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História: Espaços e Experiências Urbanas Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Profa. Dra. Marcia Barros Valdivia Revisão Textual: Profa. Esp. Vera Lídia de Sá Cicaroni São Paulo, a cidade como exemplo: construindo o espaço urbano entre rios, fachadas e normatizações 5 • Introdução • São Paulo: entre rios, boêmios e estudantes. Um olhar sobre as mudanças sociais no espaço urbano · Conhecer e reconhecer a cidade, em constante transformação, inserida no contexto histórico da primeira metade do século XIX, diante da atuação dos discursos hegemônicos do Estado em diálogo com a cidade do Rio de Janeiro, capital do Brasil, com a engenharia e a arquitetura e com o discurso médico, entre outros. · Refletir sobre a necessidade do saneamento e das reformulações urbanas na cidade de São Paulo a partir dos modelos europeus de civilização, reformulações essas financiadas pelo capital da agroexportação. · Identificar os vetores de doenças, que vão além das águas impróprias, dos insetos, das bactérias, dos protozoários e dos vírus, catalogados pelo discurso médico, e que incluem os sujeitos históricos considerados indesejáveis como portadores e “transmissores” dos males físicos, sociais e morais. Entre eles estão as classes de menor poder aquisitivo de imigrantes europeus e os descendentes da etnia africana. Caro(a) aluno(a)! Nesta unidade, vamos conhecer e reconhecer a cidade, em constantes transformações, inserida no contexto histórico da primeira metade do século XIX, diante da atuação dos discursos hegemônicos do Estado, em diálogo com a cidade do Rio de Janeiro, capital do Brasil, com a engenharia e a arquitetura e com o discurso médico, entre outros. Procure fazer as leituras e desenvolver todas as atividades propostas. Assim, certamente você terá um excelente aproveitamento. É importante lembrar que vários recursos, como as atividades de sistematização e de aprofundamento, bem como o fórum de discussão e a videoaula contribuem para o processo de aprendizagem. Após usufruir desses recursos, registre as dúvidas e discuta-as com o professor tutor. Tenha bons estudos! São Paulo, a cidade como exemplo: construindo o espaço urbano entre rios, fachadas e normatizações 6 Unidade: São Paulo, a cidade como exemplo: construindo o espaço urbano entre rios, fachadas e normatizações Contextualização No dia 25 de janeiro do ano de 1554, os padres da Companhia de Jesus fundaram, em uma colina de Piratininga, um colégio para catequisar, ensinar a gramática da língua portuguesa e alguns oficios para os índios. A Vila de São Paulo de Piratininga, em 1711, tornou-se uma cidade chamada São Paulo, decisão tomada pelo rei de Portugal, D. João V. Naquela época, São Paulo ainda era o ponto de chegada e partida dos bandeirantes, que estavam envolvidos em expedições pelo interior do Brasil com o objetivo de buscar minerais preciosos, aprisionar índios para o trabalho e resgatar africanos escravizados que fugiam da opressão das minas das lavouras e dos engenhos. Em 1815, a cidade transformou-se em capital da Província de São Paulo. Em 1827, foi inaugurada a primeira faculdade do curso de Direito, no Largo São Francisco. No ano seguinte, em 1828, São Paulo ficou conhecida como o burgo dos estudantes e, então, tornou-se o núcleo intelectual e político do país. Já na segunda metade do século XIX, era um importante centro econômico, com a expansão da cafeicultura. Imigrantes chegaram de várias partes do mundo para trabalhar nas lavouras e, mais tarde, nas indústrias da cidade. Mais da metade dos habitantes, em meados da década de 1890, era formada por pessoas emigradas de outros países, como portugueses, italianos, espanhóis, entre outras diversas nacionalidades que compunham o mosaico étnico da cidade. Para iniciarmos a unidade, vamos, por meio da leitura do artigo abaixo, passear pela São Paulo do burgo dos estudantes, com um aluno da Faculdade do Largo São Francisco, o poeta Álvares de Azevedo, inserido em sua excêntrica boemia no século XIX. A curta passagem de Álvares de Azevedo por São Paulo: http://roteirosliterarios.com.br/curta-passagem-de-alvares-de-azevedo-por-sao-paulo/ 7 Introdução No dia 25 de Janeiro do ano de 1554, os padres da Companhia de Jesus fundaram, em uma colina de Piratininga, um colégio para catequisar e ensinar, além das letras da gramática portuguesa, também matemática, física, ciências naturais e ofícios, como cozinheiro, alfaiate, sapateiro, carpinteiro, pedreiro, entalhador de madeira, tecelão, oleiro, farmacêutico, agricultor, entre outros aprendizados, que não foram direcionados apenas ao indígena, mas também a outros sujeitos históricos, como os filhos dos colonizadores brancos e homens mestiços de ascendência europeia e indígena, chamados de mamelucos ou caboclos. Os mamelucos que se destacaram durante o desenvolvimento da colonização foram os bandeirantes, embora os primeiros fossem de origem portuguesa, como Antonio Raposo Tavares. As atividades desses desbravadores colaboraram para a expansão do território através de alguns tipos de expedições, como as entradas, que eram financiadas pelo governo português; as bandeiras, que eram feitas através de iniciativas privadas, com recursos dos próprios bandeirantes, que buscavam obtenção de lucro; e as monções, que foram expedições fluviais paulistas, que partiam de Porto Feliz, às margens do Rio Tietê, com destino às áreas de mineração na região sudeste. As viagens pelo rio tinham, também, o objetivo comercial nas regiões mineradoras. As canoas levavam mantimentos, ferramentas, armas, munições, tecidos, instrumentos agrícolas e escravos negros, entre outras mercadorias, para serem comercializadas nos povoados, arraiais e vilas do interior do Brasil. Esses produtos eram trocados por ouro e peles de animais. As expedições fluviais chegaram até a região da Amazônia, lugar de rica diversidade de produtos da própria terra, chamados, na época, de drogas do sertão, como as ervas aromáticas, utilizadas na culinária, e as plantas medicinais, de conhecimento indígena, e outros, como o tabaco, o cacau, a canela, a baunilha, o cravo, a castanha do Pará, o urucum, o guaraná, o gengibre, a salsaparrilha, a pimenta, o gergelim, a noz de pixurim, conhecida hoje como noz moscada, entre outras espécies de sementes, flores, frutos, frutas e grãos da flora e da botânica brasileira. Além disso, fazia-se a exploração da fauna e o aprisionamento do nativo, usado como mão de obra escrava. A palavra droga esta relacionada ao termo holandês droog, utilizado, no contexto do século XVI, com o significado de folhas secas, porque, na época, a maioria dos medicamentos era feita à base de vegetais. Atualmente, a Organização Mundial da Saúde classifica como droga toda substância capaz de modificar a função dos organismos vivos, resultando em mudanças fisiológicas e ou psiquícas. Nesse conceito, estão incluídas as substâncias lícitas e ou ilícitas, de uso social e ou festivo e também medicinal. A respeito do uso e do abuso de substâncias e elementos da natureza catalogados como drogas na história do Brasil, confira o site: www.revistadehistoria.com.br. Fonte: Revista da Bibloteca Nacional. Brasil de todas as drogas. Ano 10. Número 110. Novembro de 2014 8 Unidade: São Paulo, a cidade como exemplo: construindo o espaço urbano entre rios, fachadas e normatizações A figura do bandeirante é bastante representativa na história do Estado e da cidade de São Paulo. Foram eles, homens principalmente paulistas, que atuaram também na procura de pedras e metais preciosos pelo interior do Brasil. Vale ressaltar que os bandeirantes agiram com violência, por muitas vezes mataram idosos, deficientes físicos, mentais e crianças ou qualquer pessoa que fosse empecilho para a sequência de suas viagens, além cometerem estupro de mulheres. A violência praticada foi registradas por alguns jesuítas. No sul, particularmente em São Paulo, os colonos desenvolveram formasespecíficas de apresamento, inicialmente privilegiando a composição de expedições de grande porte, com organização e disciplina militares. Foram estas as expedições que assolaram as missões jesuíticas do Guairá (atual estado do Paraná) e Tape (atual Rio Grande do Sul), transferindo dezenas de milhares de índios guaranis para os sítios e fazendas dos paulistas.1 Outro grupo social atuante nos caminhos interioranos foram os tropeiros, principalmente quando se iniciou a exploração de pedras e metais preciosos no final do século XVII. Data-se de 1697 uma das primeiras descobertas de ouro no interior de Taubaté, cidade localizada no, hoje, Vale do Paraiba. Devido à descoberta desses minerais interessantes para a economia portuguesa, muitas pessoas migraram para a região das minas, localizada nas capitanias do sul. Assim, novas estradas foram abertas pelos tropeiros, que estabeleciam seus postos comerciais. Desse modo, foram surgindo outros arraiais, vilas e cidades, como, por exemplo, Vila Rica, fundada em 1711. Para a fiscalização das áreas mineradoras, a capital do Brasil foi transferida da cidade de Salvador para o Rio de Janeiro em 1763. O tropeiro foi responsável pelo transporte e venda das mercadorias naquelas cidades que estavam surgindo. Dessas trocas comerciais, surgiu o mercado interno na colônia. A atividade comercial foi, aos poucos, interligando as regiões. Assim, houve a superação do isolamento que existia entre as cidades, como a Vila de São Paulo de Piratininga, que, também em 1711, tornou-se a cidade chamada São Paulo, através da decisão tomada pelo rei de Portugal, D. João V. Naquela época, São Paulo ainda era o ponto de chegada e partida dos bandeirantes, que estavam envolvidos em expedições pelo interior do Brasil com o objetivo de buscar minerais preciosos, aprisionar índios para o trabalho e resgatar africanos escravizados que fugiam da opressão das minas das lavouras e dos engenhos. Essas e outras mudanças permitiram que São Paulo, com o passar dos anos, deixasse de ser o arraial de sertanistas para se tornar o burgo dos estudantes. 1 MONTEIRO, John Manuel. O Escravo Índio, esse Desconhecido, In: GRUPIONI, Donisete Benzi (Org). Índios no Brasil. 3 ed. São Paulo: Global, 1998. pp. 108-109. 9 São Paulo: entre rios, boêmios e estudantes. Um olhar sobre as mudanças sociais no espaço urbano Os problemas geopolíticos que ocorreram na Europa, como a concorrência econômica entre as principais potências europeias da época, representadas pela Inglaterra e França, refletiram no Brasil. O governo francês de Napoleão Bonaparte decretou, em 1806, o Bloqueio Continental, que impedia que as nações europeias tivessem relações comerciais com a Inglaterra. A nação que desrespeitasse o bloqueio seria invadida pela França. Ocorreu que o governo de Portugal, na época de D. João VI, não podia romper relações comerciais com o governo inglês devido às dívidas externas que possuía com a referida nação. Diante dessa situação delicada, o governo português transferiu para a sua colônia brasileira todo o aparato político e econômico de Portugal, contando com a proteção militar Inglesa. Esse episódio da História do Brasil ficou conhecido como a vinda da família real para o Brasil. Decidido então a derrotar os ingleses não somente pela guerra, mas também pela via econômica, Napoleão decretou um bloqueio comercial, proibindo qualquer nação europeia [...] manter qualquer relação comercial com a Inglaterra. Aqueles países que ousassem desobedecer ao imperador seriam imediatamente invadidos. Desse modo, Napoleão esperava levar à falência a economia inglesa, que dependia muito deste comércio marítimo, em especial com o império português. No entanto, a relação de dependência portuguesa para com o capital inglês era ainda maior, pois Portugal possuía grandes dívidas com a Inglaterra, além de ser originária deste país a maioria dos produtos manufaturados utilizados em Portugal e subsequentemente no Brasil. Assim sendo, o pequeno país ibérico se viu no meio de um impasse diplomático e econômico, pois, se apoiasse os ingleses teria seu território invadido como ocorreu com a Prússia e tantos outros. Porém, se aderisse ao Bloqueio de Napoleão, perderia seu maior parceiro econômico e ainda veria sua maior colônia, o Brasil, ser invadida pela Inglaterra [...]2 Após a partida de Portugal, em Novembro de 1807, a corte chegou ao porto de Salvador, na Bahia, em 23 de Janeiro de 1808 e, no dia 8 de Março de 1808, fixou-se no Rio de Janeiro. Vieram, aproximadamente, quinze mil pessoas, distribuídas em quatorze navios. Eram eles funcionários, criados, assessores, pessoas ligadas à corte portuguesa e também profissionais liberais. Trouxeram também muito dinheiro, obras de arte, documentos, livros, bens pessoais e outros objetos de valor. Além dos administrativos e econômicos com a política externa portuguesa, outro problema deveria ser resolvido, referente à acomodação da família de D. João VI e de todos os emigrados de Portugal para o Rio de Janeiro, que possuía características sociais coloniais e uma estética arquitetônica barroca. 2 SILVA, Matheus Alves Duarte da. A Família Real No Rio de Janeiro: Doenças e práticas terapêuticas no período Joanino. Rio de Janeiro: Casa Oswaldo Cruz. Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2009, pp, 6-7. 10 Unidade: São Paulo, a cidade como exemplo: construindo o espaço urbano entre rios, fachadas e normatizações Apesar das festas e comemorações pela chegada da família real, os novos governantes se depararam com um primeiro problema na nova sede do império: como acomodar todos os novos moradores. Mesmo sendo contestado o número de nobres, é fato que vieram muitas pessoas, e essas precisavam ser acomodadas. A própria família real teve que ser, num primeiro momento, instalada de improviso no antigo palácio dos vice-reis. Para outros nobres, o problema da moradia foi resolvido requisitando-se as habitações da população.3 Antigo palácio dos vice-reis, hoje conhecido como Paço Imperial Fonte: Wikimedia Commons Remodelações foram feitas na cidade do Rio de Janeiro durante os anos de 1808 a 1822, ocasião do processo de independência do Brasil, que passou de colônia para império de Portugal. O espaço físico começou a ser modificado de acordo com a estética arquitetônica que, aos poucos, deixava de ser barroca e tornava-se neoclássica. Essas modificações também ocorreram em outras cidades, entre elas, a cidade de São Paulo, que, a partir de 1815, tornou-se capital da província de São Paulo. Na primeira metade do século, no clima das turbulências político-sociais do Primeiro Reinado (1822-1831) e do Período Regencial (1831-1840), alguns centros urbanos adquiriram aos poucos nova dimensão, recebendo muitos desses habitantes recém-chegados de vários países, como se observa pelo “Registro de Estrangeiros” na alfândega. Vilas e cidades do interior, como [...] São Paulo, Sorocaba, Guaratinguetá e muitas outras entraram num novo ritmo. Em São Paulo (e também em Olinda), criou-se, em 1827, a Academia de Direito, para a formação de novos quadros dirigentes.4 Saiba mais sobre a vinda da família real para o Brasil e as mudanças ocorridas no espaço urbano da cidade do Rio de Janeiro através do artigo “Arte brasileira no século XIX: O neoclassicismo”. Disponível em: http://www.administradores.com.br/_resources/files/_modules/academics/academics_2942_20100502235255c6cd.pdf 3 Op. cit., p. 10. O palácio dos vice-reis, depois conhecido como Paço Imperial, foi a residência temporária da família real até sua mudança para a Quinta da Boa Vista. Localiza-se, atualmente, na Praça XV de Novembro, no centro do Rio de Janeiro. 4 MOTA, Carlos Guilherme. São Paulo no Século XIX (1822-1889): Esboço de interpretação. Cadernos de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo. São Paulo: Mackenzie, 2004. p.11. 11 O imperador do Brasil D. Pedro I, por meio de leis, em 11 de Agosto de 1827, criou os primeiros cursos deCiências Jurídicas e Sociais do Brasil, que foram estabelecidos nas cidades de São Paulo e de Olinda. O curso da Academia do Largo de São Francisco foi inaugurado em 1º de Março de 1828, e as aulas de direito foram ministradas no Largo do Convento de São Francisco. Os estudantes entravam para as salas de estudos pela sacristia. O badalar dos sinos sinalizava o início, o intervalo e o final das aulas. Faculdade do largo São Francisco Fonte: Wikimedia Commons Até o ano de 1856, formaram-se de dezesseis a trinta e cinco bacharéis em direito. No ano de 1863, foram cento e onze formandos. A instalação da faculdade de direito mudou a rotina da cidade de São Paulo devido à presença dos estudantes, que moravam em casas de pensões também conhecidas como repúblicas estudantis. Aqueles jovens também tiveram uma vida boêmia intensa e excêntrica, inspirados nos literatos europeus, como o francês Alfred Musset e o inglês Lord Byron, escritores de temas melancólicos, carregados de pessimismo e tédio, identificados, no período, como escritores do Mal do Século. Jovens falantes, farristas e usuários de diversas substâncias entorpecentes, como o éter, o ópio o haxixe, além do álcool, vieram de diversas partes do Brasil para estudar na Faculdade do Largo São Francisco. Viveram entre a academia e a boemia, entre o pensamento crítico intelectual e o devaneio. Entre eles, estiveram Manuel Alvares de Azevedo e Bernardo de Guimarães, que entregaram suas vidas à boemia e à orgia em uma construção barroca na Chácara dos Ingleses, atual Praça Almeida Junior. As festas eram feitas de preferência nas noites mais escuras e tempestuosas, apresentavam-se trajados de negro com grandes capas, levavam meretrizes nas capelas e realizavam ruidosas cenas, as sepulturas eram violadas e cadáveres profanados com a prática da necrofilia.5 5 FONSECA, Guido. O Submundo dos Tóxicos em São Paulo. São Paulo: editora Resenha Tributária, 1994, p. 42. 12 Unidade: São Paulo, a cidade como exemplo: construindo o espaço urbano entre rios, fachadas e normatizações A cidade de São Paulo permaneceu com aspectos rurais até por volta do ano de 1870. Apesar de, no ano de 1872, a população ter chegado a, aproximadamente, 32 mil habitantes, apenas 20 mil pessoas moravam no perímetro urbano. A ocupação dessa área não avançava muito além do núcleo colonial inicial, no pátio do colégio. Próximos a essa área, ficavam as casas, os casebres e os estabelecimentos comerciais, como a padaria Santa Tereza, inaugurada por imigrantes portugueses em 1872, e que se mantém em funcionamento até hoje. Com o passar dos anos, houve a expansão urbana pelo vale do rio Anhangabaú. Faltavam, em São Paulo, vários recursos indispensáveis aos centros urbanos, que seriam remodelados com inspiração nas cidades europeias, em especial nas cidades francesas e inglesas. Nos decênios de 1860 e 1870, aspectos e hábitos rurais ainda eram visíveis nas ruas paulistanas, como a presença de animais circulando pelas ruas, a insuficiência de iluminação pública e residencial. Também eram precários o sistema de canalização de águas, o serviço de esgotos, o calçamento regular e a coleta de lixo. Houve também a fiscalização dos corpos humanos mortos, por meio de normas de higiene e saúde que entraram em vigor no século XIX e que, na prática, resultaram em ações como a construção de cemitérios, entre eles, o da Consolação, inaugurado em 1858. Assim, a cidade precisava tornar-se salubre do ponto de vista médico e dialogava com o Estado, com os engenheiros e arquitetos, que propunham remodelações que seriam concluídas, efetivamente, no final do século XIX e início do XIX. Os médicos passaram também a se preocuparem com os mortos e seu sepultamento, não com uma mentalidade religiosa, mas com a visão higienista, pois eles viam os sepultamentos dentro dos templos e mesmo dentro da cidade, além de outros costumes funerários, como altamente prejudiciais à saúde dos vivos. Os governos municipais seguiram a opinião dos médicos, procurando reordenar o espaço ocupado pelos mortos, estabelecendo uma nova geografia urbana na relação entre vivos e mortos.6 Os visitantes e os imigrantes que desembarcaram no porto de Santos encontraram a cidade portuária e a cidade de São Paulo fétidas, sujas e mal iluminadas, em contraste com os centros europeus, como Paris, que já havia passado pelas reformas urbanísticas. Apesar dos problemas visíveis, os imigrantes que vieram buscar melhorias para suas vidas ingressaram no mercado de trabalho como carroceiros, leiteiros, carpinteiros, pedreiros, vendedores ambulantes, comerciantes com estabelecimento fixo ou viajantes, conhecidos como caixeiros, condutores de carroças, feirantes, jardineiros, alfaiates, costureiras, doceiras, confeiteiros, padeiros, empregados domésticos, operários, entre outras diversas profissões, embora, somente no ano de 1888, o trabalho escravo tenha sido extinto no Brasil. Localizada em regiões fluviais, São Paulo também enfrentou, na época, o problema com as águas dos rios Anhangabaú, Tamanduateí e Tietê. Os rios, desde a gênese da formação da cidade, com o colégio jesuíta, serviam de vias de comunicação, transporte e ainda confirmavam a presença de terras férteis para pesca e plantio. As águas também dessedentavam e banhavam os homens e os animais não somente no período colonial mas também no império. 6 MORENO, Tania Maria. O Espaço da Morte em São Paulo: O cemitério da Consolação, In: AVELINO, Yvone Dias (Org). Olhares Cruzados: Cidade, História, Arte e Mídia. Curitiba: CRV, 2011, p. 260. 13 Os cuidados contra a contaminação, a necessidade de canalização e distribuição das águas na cidade de São Paulo foi, em geral, insuficiente e desigual.7 Esses, entre outros fatores, geraram complicações de higiene e saúde de difícil solução por parte da administração pública da província paulistana. Práticas como enterrar ou jogar animais domésticos mortos nas margens dos rios, despejar aí lixo e excrementos das casas ou lojas comerciais ou restos dos matadouros, realizar rituais de candomblé dentro das águas, entre outros fatores, fizeram com que as águas se tornassem sujas. Esse problema de contaminação das águas levou à separação e à desvalorização das águas sujas em relação ás águas limpas, que passaram a ser disputadas nos chafarizes, nas fontes, nas caixas e barris-pipas de águas. O próprio Anhangabaú recebia os restos dos bois abatidos e atravessava com eles ruas e bairros inteiros [...] Por outro lado a estagnação das águas no Tamanduateí continuava dando margem para que se formassem nas suas várzeas depósitos perigosos de lixo e de bichos mortos [...] a direção dos ventos dominantes ainda contribuía para acarretar [...] todas as exalações pútridas que dali se elevavam em grande quantidade do sangue e dos demais restos das reses que se matavam [...] Além disso o Anhangabaú atravessando esse matadouro público recebia o sangue dos bois e o levava aos moradores do Piques, do Açu e da zona da ponte da Constituição, por onde ele passava os moradores assistiam a partir das duas da tarde o deslizar da vermelha torrente fedorenta”8 Além dos problemas com as águas, as moradias da população, em geral, eram péssimas devido aos defeitos nas construções, como, por exemplo, nos alicerces das casas, o que gerava umidade e a proliferação de fungos e bactérias, e também nas instalações sanitárias. Esses problemas também eram encontrados nas casas daqueles que tinham melhores condições financeiras. As doenças mais comuns, naquele período, eram a malária, também chamada de impaludismo; a varíola, também conhecida como epidemia de bexigas, porque os portadores ficavam cheios de bolhas pelo corpo; a febre tifoide; a lepra, também chamada de morfeia ou mal de Lázaro; o tifo; a difteria; a escarlatina; a meningite; a tuberculose, entre outras doenças, além das mentais, psíquicas e sexualmente transmissíveis, como a sífilis, que preocupavam tanto os médicos como a populaçãoem geral. Muitos imigrantes traziam consigo os vírus, as bactérias e os parasitas de muitas dessas enfermidades descritas além das malas com os seus pertences. Desembarcavam no Brasil com muitos males de saúde, o que gerava mais um agravante diante de tantas dificuldades que precisavam enfrentar. Muitas dessas enfermidades eram adquiridas nos navios, devido às condições de higiene e à alimentação precárias e ao cansaço dos vários dias da viagem, que já deixavam o organismo de homens, mulheres, jovens e crianças debilitados. Havia a necessidade de cuidados médicos, que nem sempre eram dispensados aos enfermos, até mesmo porque o ensino e a prática da medicina foram, aos poucos, introduzidos no Brasil. No início, os estudantes de medicina de nacionalidade brasileira formavam-se na Europa, em especial na Faculdade de Coimbra, em Portugal. 7 Sobre esse assunto, cf: SANTANA, Denise Bernuzzi. O Corpo na Cidade das Águas. São Paulo (1840-1910), In: Revista Projeto História nº 25. Corpo e Cultura. São Paulo: Educ, 2002. 8 Sobre esse assunto, cf: Atas da Câmara Municipal de São Paulo. Volume XXV, p. 201. Ano 1830-1850. Arquivo Municipal Washington Luis. São Paulo. Como também BRUNO, Ernani Silva. História e Tradições da Cidade de São Paulo. Arraial de Sertanistas (1554-1828) & Burgo dos estudantes (1828- 1872). Volumes I e II. São Paulo: Hucitec, 1984. 14 Unidade: São Paulo, a cidade como exemplo: construindo o espaço urbano entre rios, fachadas e normatizações A primeira faculdade de medicina no Brasil foi criada na Bahia em 18 de Fevereiro de 1808 e, em Novembro do mesmo ano, foi criada a segunda faculdade, no Rio de Janeiro, chamada Escola Anatômica Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro. As dependências dessa instituição estiveram em vários endereços na cidade do Rio de Janeiro na época. A atuação médica no Brasil, no início do Império, era muito diferente da atual. Para matricular-se em uma escola médica, era necessário apenas saber ler e escrever, ter no mínimo 18 anos de idade, pagar uma taxa para inscrição. E, para ir para o segundo ano, o aluno era avaliado no idioma da língua francesa. As aulas teóricas e práticas eram realizadas nas enfermarias próprias para esse fim. O exercício da medicina brasileira, até então, era permitido somente aos físicos e aos cirurgiões portadores de habilitação e licenciados pelo cirurgião Mor do Reino. A atuação dos médicos estava basicamente limitada às atividades da sangria, da aplicação de ventosas, cuidado de feridas e fraturas. A medicalização dos pacientes era permitida somente aos médicos formados em Coimbra. Em 1812 ocorreu a primeira reforma do ensino médico no Brasil. Foi quando o curso passou de quatro para cinco anos, em março do mesmo ano, pela Junta de Direção Médico Cirúrgica e Administrativa do Hospital Real e Militar, onde funcionava a escola Anatômica e Cirúrgica do Rio de Janeiro, que inspecionava as aulas ministradas segundo os estatutos escolares da escola de medicina de Coimbra. Somente no ano de 1828, foi promulgada uma lei segundo a qual somente médicos diplomados poderiam clinicar. Essa lei aboliu as cartas de licenciamento. Em 1832, o curso de medicina passou a ter seis anos de duração e, em 1879, foi estabelecido por lei o ensino livre, momento esse em que a iniciativa privada pôde abrir seus cursos na área da saúde. Somente em 1912 foi inaugurada a primeira faculdade localizada na capital do Estado de São Paulo. E foi no ano seguinte que se iniciou a primeira turma de alunos. Um dado interessante constatado é que, durante o início do século XIX, a medicina ainda não era uma profissão de status e privilégios como é vista hoje. O trabalho médico estava ligado, no período, às atividades braçais, militares e clericais. Ao ingressar no curso de medicina, a imagem social deste no Brasil ainda era marcada pela forte presença dos cirurgiões e sua utilização em atividades militares (sem falar na ingerência dos agentes da Igreja Católica) [...] Numa sociedade culturalmente marcada pelo escravismo e consequente desprezo pelo trabalho manual [...] a decisão de cursar medicina defrontava-se com a imagem da profissão manual pouco nobre9 9 CORADIN, Odaci Luiz. Grandes Famílias e Elite Profissional na Medicina no Brasil. História, Ciências, Saúde. Rio de Janeiro: Manguinhos III, 1997, p. 441. 15 Aos poucos, o ofício do médico e os discursos proferidos pelos estudos da medicina ganharam status social a ponto de dialogar com outras profissões e esferas de poder, sendo exemplo disso a relação do discurso médico com a engenharia, a arquitetura e o Estado. Como resultado dessa relação, foi elaborada uma série de reformas nas cidades seguindo a arquitetura neoclássica, que expressava uma mentalidade elitista. A paisagem urbana, a partir da segunda metade do século XIX, deveria ser bela e higienizada. Para isso, deu-se início a uma série de leis e mudanças que alteraram os espaços citadinos e remanejaram vários sujeitos sociais que tiveram sua presença considerada indesejável em alguns lugares destinados, especificamente, para a elite. Diante desses fatores, São Paulo passou de um conglomerado urbano denominado de pequena província a uma cidade cosmopolita. Para o professor Eurípedes Simões de Paula, foi no ano de 1872 que se iniciou a transformação de São Paulo, que ele chamou de “A segunda Fundação da Cidade”.10 O capital adquirido com o modelo agroexportador cafeeiro foi investido pelos empreendedores na modificação do espaço urbano paulista, que, a partir da década de oitenta do século XIX, entrou para a fase da Bélle Époque, em que, cada vez mais, os espaços construídos, como teatros, confeitarias, bairros de elite, entre outros, demarcaram a exclusão social através das simbologias arquitetônicas em constante interlocução com o discurso médico na segunda metade do século XIX até o início do século XX. Assista o documentário “Entre Rios”, disponível em: www.youtube.com/watch?v=Fwh-cZfWNIc 10 A expressão “A segunda fundação de São Paulo” foi criada por Eurípedes Simões de Paula, professor da área de direito. Sobre esse assunto cf: PAULA, Eurípedes Simões. A Segunda Fundação de São Paulo, In: Revista de História nº 17. São Paulo: FFCL-USP, 1951, pp. 167-168. 16 Unidade: São Paulo, a cidade como exemplo: construindo o espaço urbano entre rios, fachadas e normatizações Material Complementar Vídeos: Assista ao documentário “As formas de morar em São Paulo nos séculos XVIII e XIX” e reflita sobre a relação entre os significados da cultura material e os da cultura imaterial, que foi produzida através das relações sociais no período. Por exemplo: os talheres à mesa (cultura material) - quando passaram a ser usados, produziram um novo hábito cultural que modificou os gestos e a forma de se comportar durante as refeições (cultura imaterial). Escolha alguns dos artefatos mencionados e faça o exercício de reflexão proposto. Documentário disponível em: www.youtube.com/watch?v=-NLx9BGxl5M 17 Referências BRUNO, Ernani Silva. História e Tradições da Cidade de São Paulo. Arraial de Sertanistas (1554-1828) & Burgo dos estudantes (1828-1872). Volumes I e II. São Paulo: Hucitec, 1984. CORADIN, Odaci Luiz. Grandes Famílias e Elite Profissional na Medicina no Brasil. História, Ciências, Saúde. Rio de Janeiro: Manguinhos III, 1997. FONSECA, Guido. O Submundo dos Tóxicos em São Paulo. São Paulo: Editora Resenha Tributária, 1994. MONTEIRO, John Manuel. O escravo índio, esse desconhecido, In: GRUPIONI, Donisete Benzi (Org). Índios no Brasil. 3 ed. São Paulo: Global, 1998. MORENO, Tania Maria. O Espaço da Morte em São Paulo: O cemitério da Consolação, In: AVELINO, Yvone Dias (Org). Olhares Cruzados. Cidade, História, Arte e Mídia. Curitiba: CRV, 2011. MOTA, Carlos Guilherme. São Paulo no Século XIX (1822-1889): Esboço de interpretação. Cadernos de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo. São Paulo: Mackenzie, 2004. PAULA, Eurípedes Simões. A Segunda Fundaçãode São Paulo, In: Revista de História nº 17. São Paulo: FFCL-USP, 1951. SANTANA, Denise Bernuzzi. O Corpo na Cidade das águas. São Paulo (1840-1910), In: Revista Projeto História nº 25. Corpo e Cultura. São Paulo: Educ, 2002. SILVA, Matheus Alves Duarte da. A Família Real No Rio de Janeiro: Doenças e práticas terapêuticas no período Joanino. Rio de Janeiro: Casa Oswaldo Cruz. Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2009. 18 Unidade: São Paulo, a cidade como exemplo: construindo o espaço urbano entre rios, fachadas e normatizações Anotações