Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Pâmela Brandão da Silva – Medicina UniFG 2020.2 (Semestre II) UCVI – Mecanismos de Agressão e Defesa 1 TUTORIA 5 1.Descrever os tipos de resposta de hipersensibilidade (Tipo I, II, III, IV) e suas principais diferenças, reconhecendo os tipos de antígenos envolvidos e os mediadores químicos explicando as alterações fisiopatológicas que os induzem. 2.Estudar sobre a tolerância imunológica e a autoimunidade, compreendendo a perda da tolerância imunológica; 3.Caracterizar os mecanismos de agressão nas doenças autoimunes; 4.Discorrer sobre os fatores desencadeantes de doenças autoimunes; 5.Identificar os principais tipos de doenças auto-imunes (glomerulonefrite, artrite reumatoide, psoríase, lúpus eritrematoso, tireoidite autoimune, diabetes mellitus tipo 1, vitiligo); 6.Descrever os fenômenos imunológicos característicos das doenças autoimunes; 7.Discutir acerca da imunologia do transplante de órgãos; 8.Compreender a avaliação laboratorial e clínica de doenças autoimunes; 9.Discutir o modo de comunicação e orientação médica para pacientes com doenças crônicas e incapacitantes. 1.DESCREVER OS TIPOS DE RESPOSTA DE HIPERSENSIBILIDADE (TIPO I, II, III, IV) E SUAS PRINCIPAIS DIFERENÇAS, RECONHECENDO OS TIPOS DE ANTÍGENOS ENVOLVIDOS E OS MEDIADORES QUÍMICOS EXPLICANDO AS ALTERAÇÕES FISIOPATOLÓGICAS QUE OS INDUZEM. Hipersensibilidade é o termo utilizado quando uma resposta imune resulta em reações exageradas ou inadequadas, prejudiciais ao hospedeiro. O termo “alergia” é frequentemente empregado como sinônimo de hipersensibilidade, embora, de forma mais precisa, devesse limitar-se às reações mediadas por IgE, discutidas a seguir na seção Tipo I: Hipersensibilidade Imediata (Anafilática). As manifestações clínicas dessas reações são típicas em um determinado indivíduo e ocorrem quando há o contato com o antígeno específico contra o qual o indivíduo é hipersensível. O primeiro contato do indivíduo com o antígeno promove a sensibilização, isto é, induz os anticorpos, e contatos posteriores trazem à tona a resposta alérgica. Reações de hipersensibilidade podem ser subdivididas em quatro tipos principais. Os tipos I, II e III são mediados por anticorpos, enquanto o tipo IV é mediado por células (Tabela 65-1). Reações do tipo I são mediadas por IgE, enquanto os tipos II e III são mediados por IgG. Pâmela Brandão da Silva – Medicina UniFG 2020.2 (Semestre II) UCVI – Mecanismos de Agressão e Defesa 2 - Causas da hipersensibilidade As respostas imunes contra antígenos de diferentes fontes podem ser a causa subjacente de distúrbios de hipersensibilidade. • Autoimunidade: reações contra antígenos próprios. A falha dos mecanismos normais de autotolerância resulta em reações contra as próprias células e tecidos. Esse fenômeno é chamado de autoimunidade (Cap. 15). As doenças causadas por reações de autoimunidade são denominadas doenças autoimunes. Estimase que as doenças autoimunes afetem, pelo menos, 2%a 5%da população nos países desenvolvidos, de modo que essa incidência é crescente. Muitas dessas doenças são comuns em indivíduos da faixa etária entre 20 a 40 anos de idade. Elas também são mais comuns em mulheres do que em homens, por motivos ainda desconhecidos. As doenças autoimunes são crônicas e debilitantes e representam um enorme fardo médico e econômico. Embora no passado, o tratamento para esses distúrbios tenha se mostrado frustrantes, foram desenvolvidas muitas abordagens novas e eficazes no início do século XXI com base em princípios científicos. Os mecanismos de autoimunidade foram descritos no Capítulo 15. Neste capítulo, apresentaremos diversas doenças autoimunes para ilustrar como a autoimunidade pode causá-las. • Reações contra microrganismos. As respostas imunes contra antígenos microbianos podem causar doença se as reações forem excessivas ou se os microrganismos forem anormalmente persistentes. As respostas das células T contra microrganismos persistentes podem dar origem a uma inflamação grave, algumas vezes, com a formação de granulomas; esta é a causa da lesão tecidual observada na tuberculose e algumas outras infecções crônicas. Se forem produzidos anticorpos contra antígenos microbianos, eles podem se ligar aos antígenos para produzir imunocomplexos, que se depositam nos tecidos e desencadeiam inflamação. Raramente, os anticorpos ou células T contra um microrganismo apresentarão uma reação cruzada com o tecido do hospedeiro. Em algumas doenças que envolvem o trato intestinal, denominadas doença do intestino irritável, a resposta imune é direcionada contra bactérias comensais que normalmente residem no intestino e não causem danos. Muitas vezes, os mecanismos que uma resposta imune usa para erradicar um microrganismo patogênico requerem a morte das células infectadas e, por conseguinte, causam lesão do tecido do hospedeiro. Por exemplo, na hepatite viral, o vírus que infecta as células hepáticas não é citopático, mas é reconhecido como estranho pelo sistema imunológico. Os linfócitos T citotóxicos (CTLs) tentam eliminar as células infectadas, e essa resposta imune normal danifica as células do fígado. Esse tipo de reação normal não é considerada hipersensibilidade. • Reações contra antígenos ambientais. Amaioria dos indivíduos saudáveis não reage contra substâncias ambientais comuns, em Pâmela Brandão da Silva – Medicina UniFG 2020.2 (Semestre II) UCVI – Mecanismos de Agressão e Defesa 3 geral inofensivas, mas quase 20%da população é anormalmente responsiva a uma ou mais destas substâncias. Esses indivíduos produzem anticorpos imunoglobulina E (IgE) que causam doenças alérgicas (Cap. 20). Alguns indivíduos tornam-se sensibilizados a antígenos ambientais e substâncias químicas, que, em contato com a pele, desenvolvem reações de células T que levam à inflamação mediada por citocinas, resultando em sensibilidade de contato. Em todas essas condições, os mecanismos de lesão do tecido são os mesmos normalmente observados na eliminação de agentes infecciosos. Esses mecanismos incluem respostas imunes inatas e adaptativas que envolvem fagócitos, anticorpos, linfócitos T, mastócitos e várias outras células efetoras, além dos mediadores da inflamação. O problema na hipersensibilidade é que a resposta imune não é controlada adequadamente. Como os estímulos para essas respostas imunes anormais são difíceis ou impossíveis de se eliminar (p. ex., autoantígenos, microrganismos comensais e antígenos ambientais) e o sistema imune possui muitas alças de retroalimentação positiva intrínsecas (mecanismos de amplificação), sempre que uma resposta imune patológica é iniciada, é difícil controlá-la ou interrompê-la. Dessa maneira, as doenças de hipersensibilidade tendem a ser crônicas e progressivas, representando verdadeiros desafios terapêuticos na clínica médica. Tipo i: hipersensibilidade imediata (anafilática) Uma reação de hipersensibilidade imediata ocorre quando um antígeno (alérgeno) liga-se a IgE na superfície de mastócitos, com a consequente liberação de vários mediadores (ver relação de mediadores a seguir) (Figura 65-1). O processo é iniciado quando um antígeno induz a formação de anticorpos IgE, que se ligam fortemente, por de porção Fc, a receptores na superfície de basófilos e mastócitos. A re-exposição ao mesmo antígeno resulta na ligação cruzada das IgE ligadas à célula, degranulação e liberação de mediadores farmacologicamente ativos,em minutos (fase imediata). Nucleotídeos cíclicos e cálcio desempenham papéis essenciais na liberação dos mediadores.1 Sintomas como edema e eritema (“pápulas e queimação”) e pruridos manifestam- se rapidamente porque mediadores, por exemplo, histamina, encontram-se pré-formados. A fase tardia da inflamação mediada por IgE ocorre aproximadamente seis horas após a exposição ao antígeno e deve-se a mediadores, por exemplo, leucotrienos (SRS- A), sintetizados após a degranulação da célula. Esses mediadores promovem um influxo de células inflamatórias, como neutrófilos e eosinófilos, resultando em sintomas como eritema e induração. O complemento não está envolvido nas reações imediatas ou tardias, uma vez que IgE não ativa o complemento. Observe que os alérgenos envolvidos nas reações de hipersensibilidade consistem em substâncias como pólen, descamações de animais, alimentos (nozes, mariscos), e vários fármacos, contra as quais a Pâmela Brandão da Silva – Medicina UniFG 2020.2 (Semestre II) UCVI – Mecanismos de Agressão e Defesa 4 maioria dos indivíduos não exibe sintomas clínicos. Contudo, alguns indivíduos respondem a tais substâncias produzindo grandes quantidades de IgE e, como resultado, manifestam diversos sintomas alérgicos. O aumento de IgEs é resultado de uma mudança de classe aumentada para IgE nas células B, decorrente das grandes quantidades de IL-4 produzidas por células Th-2. Indivíduos não alérgicos respondem ao mesmo antígeno produzindo IgG, que não provoca a liberação de mediadores por mastócitos e basófilos. (Não há receptores de IgG em tais células.) Há uma predisposição genética às reações de hipersensibilidade imediata, discutida a seguir, na seção Atopia. As manifestações clínicas de hipersensibilidade do tipo I podem apresentar várias formas, por exemplo, urticária (também conhecida como fervor-do-sangue), eczema, rinite e conjuntivite (também conhecida como febre do feno), e asma. A ocorrência de determinada manifestação clínica depende, em grande parte, da via de entrada do alérgeno e da localização dos mastócitos portando a IgE específica para o alérgeno. Por exemplo, alguns indivíduos expostos ao pólen no ar são acometidos da febre do feno, enquanto outros que ingerem alérgenos no alimento apresentam diarreia. Além disso, indivíduos que respondem a um alérgeno com urticária possuem IgEs específicas para o alérgeno em mastócitos na pele, enquanto aqueles que respondem com rinite possuem mastócitos específicos para o alérgeno no nariz. A forma mais severa de hipersensibilidade de tipo I consiste na anafilaxia sistêmica, na qual a broncoconstrição e hipotensão (choque) podem ser de risco à vida. As causas mais comuns de anafilaxia são alimentos, como amendoins e mariscos, veneno de abelha e fármacos. De particular interesse para profissionais de saúde são as reações de hipersensibilidade de tipo I associadas ao uso de luvas de látex, que se manifestam como urticária, asma e até mesmo anafilaxia sistêmica. A Tabela 65-2 resume alguns dos importantes aspectos clínicos das reações de hipersensibilidade imediata. Nenhum mediador é isoladamente responsável por todas as manifestações das reações de hipersensibilidade do tipo I. Alguns importantes mediadores e seus efeitos são os seguintes: (1) A histamina é encontrada em grânulos de mastócitos e basófilos tissulares, em um estado pré-formado. Sua liberação provoca vasodilatação, aumento da permeabilidade capilar e da contração da musculatura lisa. Clinicamente, podem ocorrer distúrbios como rinite alérgica (febre do feno), urticária e angioedema. O intenso broncoespasmo na anafilaxia aguda resulta, em parte, da liberação de histamina. Fármacos anti- histamínicos bloqueiam os sítios receptores de histamina e podem ser relativamente efetivos na rinite alérgica, mas não na asma (ver a seguir). (2) A substância de reação lenta da anafilaxia (SRS-A, do inglês, slow-reacting substance of anaphylaxis) consiste em vários leucotrienos, que não são encontrados em um estado pré-formado, sendo produzidos durante as reações anafiláticas. Esse fato é responsável pela lenta manifestação dos efeitos de SRS-A. Leucotrienos são formados a partir do ácido araquidônico, pela via da lipoxigenase, e causam aumento da Pâmela Brandão da Silva – Medicina UniFG 2020.2 (Semestre II) UCVI – Mecanismos de Agressão e Defesa 5 permeabilidade vascular e contração da musculatura lisa. São os principais mediadores da broncoconstrição na asma e não são influenciados por anti-histamínicos. (3) O fator quimiotático de eosinófilos da anafilaxia (ECF-A, do inglês, eosinophil chemotactic factor of anaphylaxis) é um tetrapeptídeo pré-formado presente em grânulos de mastócitos. Quando liberado durante a anafilaxia, atrai eosinófilos que são proeminentes nas reações alérgicas imediatas. O papel dos eosinófilos nas reações de hipersensibilidade do tipo I é incerto, contudo, liberam histaminase e arilsulfatase, que degradam dois mediadores importantes, histamina e SRS-A, respectivamente. Eosinófilos podem, portanto, reduzir a severidade da resposta do tipo I. (4) A serotonina (hidroxitriptamina) encontra-se pré-formada em mastócitos e plaquetas. Quando liberada durante a anafilaxia, causa dilatação capilar, aumento da permeabilidade vascular e da contração da musculatura lisa, contudo é de menor importância na anafilaxia humana. (5) Prostaglandinas e tromboxanos estão relacionados aos leucotrienos. São derivados do ácido araquidônico pela via da cicloxigenase. Prostaglandinas causam dilatação e permeabilidade aumentada de capilares, assim como broncoconstrição. Tromboxanos agregam plaquetas. Os mediadores mencionados são ativos somente por alguns minutos após sua liberação; ainda, são inativados enzimaticamente e ressintetizados de forma lenta. As manifestações da anafilaxia variam entre as espécies, porque os mediadores são liberados em velocidade e quantidades distintas, e os tecidos variam quanto à sensibilidade a eles. Por exemplo, o trato respiratório (broncoespasmo, edema de laringe) é um importante órgão de choque em humanos, entretanto o fígado desempenha tal papel em cães. Na doença alérgica de vias aéreas (asma), a hiperatividade da via aérea parece ser causada por IL-13. A IL-13 é produzida por células Th-2 e liga-se a um receptor que compartilha uma cadeia com o receptor de IL-4. IL-13 não aumenta a quantidade de IgE. Contrariamente às reações anafiláticas, mediadas por IgE, as reações anafilactoides, clinicamente similares às reações anafiláticas, não são mediadas por IgE. Em reações anafilactoides, os agentes desencadeadores, geralmente fármacos ou meio de contraste iodado, induzem diretamente os mastócitos e basófilos a liberar seus mediadores, sem o envolvimento de IgE. Tipo ii: hipersensibilidade citotóxica A hipersensibilidade citotóxica ocorre quando anticorpos direcionados contra antígenos da membrana celular ativam o complemento (Figura 65-2). Isso gera um complexo de ataque à membrana (ver Capítulo 63), que danifica a membrana celular. O anticorpo (IgG ou IgM) liga-se ao antígeno por meio de sua região Fab e atua como uma ponte para o complemento por meio de sua região Fc. Como resultado, ocorre a lise mediada pelo complemento, como nas anemias hemolíticas, reações de transfusão ABO, ou doença hemolítica de Rh. Além de causar lise, a ativação do complemento atrai fagócitos para o sítio, com a Pâmela Brandão da Silva – Medicina UniFG 2020.2 (Semestre II)UCVI – Mecanismos de Agressão e Defesa 6 consequente liberação de enzimas que danificam as membranas celulares. Fármacos (p. ex., penicilinas, fenacetina, quinidina) podem ligar-se a proteínas de superfície de hamácias e iniciarem a formação de anticorpos. Tais anticorpos autoimunes (IgG) então interagem com a superfície das hemácias, resultando em hemólise. O teste direto de antiglobulinas (Coombs) é tipicamente positivo (ver Capítulo 64). Outros fármacos (p. ex., quinino) podem ligar-se a plaquetas e induzir autoanticorpos que lisam as plaquetas, produzindo trombocitopenia e, como consequência, uma tendência a sangramentos. Outras (p. ex., hidralazina) podem modificar o tecido hospedeiro e induzir a produção de autoanticorpos dirigidos contra o DNA celular. Como resultado, ocorrem manifestações de doença similares àquelas do lúpus eritematoso sistêmico. Certas infecções, por exemplo, infecção por Mycoplasma pneumoniae, podem induzir anticorpos que reagem de forma cruzada com antígenos de hemácias, resultando em anemia hemolítica. Na febre reumática, anticorpos contra estreptococos do grupo A reagem de forma cruzada com o tecido cardíaco. Na síndrome de Goodpasture, anticorpos contra membranas basais dos rins e pulmões ligam-se a tais membranas e ativam o complemento. Danos severos às membranas são causados por proteases liberadas por leucócitos atraídos ao sítio pelo componente C5a do complemento (ver página 447). Tipo iii: hipersensibilidade por complexo imune A hipersensibilidade por complexo imune ocorre quando complexos antígeno-anticorpo induzem uma resposta inflamatória nos tecidos (Figura 65.3). Normalmente, os complexos imunes são prontamente removidos pelo sistema retículo endotelial, porém, ocasionalmente, persistem e são depositados nos tecidos, resultando em vários distúrbios. Em infecções microbianas ou virais persistentes, complexos imunes podem ser depositados em órgãos, por exemplo, rins, resultando em danos. Em distúrbios autoimunes, antígenos “próprios” podem elicitar anticorpos que se ligam a antígenos orgânicos ou depositam-se em órgãos na forma de complexos, especialmente nas articulações (artrite), rins (nefrite) ou vasos sanguíneos (vasculite). Em todos os locais onde os complexos são depositados, estes ativam o sistema complemento. Células polimorfonucleares são atraídas ao sítio, ocorrendo inflamação e lesão tissular. Duas reações típicas de hipersensibilidade do tipo III são a reação de Arthus e a doença do soro. Tipo iv: hipersensibilidade tardia (mediada por células) A hipersensibilidade tardia é uma função de linfócitos T, e não de anticorpos (Figura 65-4). Pode ser transferida por células T imunologicamente comprometidas (sensibilizadas) e não pelo soro. A resposta é “tardia”, isto é, inicia-se horas (ou dias) após o contato com o antígeno e frequentemente persiste por dias. Em Pâmela Brandão da Silva – Medicina UniFG 2020.2 (Semestre II) UCVI – Mecanismos de Agressão e Defesa 7 determinadas hipersensibilidades por contato, como veneno do carvalho, a erupção cutânea vesicular pruriginosa é causada por células T citotóxicas CD8-positivas, que atacam as células da pele que apresentam o óleo vegetal como um antígeno exógeno. No teste cutâneo de tuberculina, a erupção cutânea indurada é causada por células T auxiliares CD4-positivas e macrófagos, que são atraídos ao sítio da injeção. A Tabela 65-3 descreve alguns dos importantes aspectos clínicos da hipersensibilidade tardia. Reações de hipersensibilidade tardia de importância clínica A. Hipersensibilidade por contato Esta manifestação de hipersensibilidade mediada por células ocorre após a sensibilização com compostos químicos simples (p. ex., níquel, formaldeído), matérias vegetais (p. ex., hera venenosa, veneno do carvalho), fármacos de aplicação tópica (p. ex., sulfonamidas, neomicina), alguns cosméticos, sabões e outras substâncias. Em todos os casos, pequenas moléculas que atuam como haptenos penetram na pele, ligam-se a proteínas corpóreas e tornam-se antígenos completos. Acredita-se que proteínas cutâneas normais, às quais o sistema imune é tolerante, passam a atuar como proteína carreadora devido às modificações induzidas pelo hapteno, resultando em seu reconhecimento pelo sistema imune como uma proteína exógena. A hipersensibilidade mediada por células é induzida particularmente na pele. Diante de um novo contato da pele com o agente ofensor, o indivíduo sensibilizado desenvolve eritema, prurido, vesículas, eczema, ou necrose em 12-48 horas, em decorrência do ataque de células T citotóxicas. O teste de uma pequena área da pele com adesivos algumas vezes pode identificar o antígeno ofensor. Medidas que evitem o contato subsequente com o material impedirão as recorrências. B. Hipersensibilidade do tipo tuberculínica A hipersensibilidade tardia a antígenos de micro-organismos ocorre em várias doenças infecciosas, sendo utilizada como medida auxiliar de diagnóstico. É tipificada pela reação de tuberculina. Quando uma pequena quantidade de tuberculina (PPD) é injetada por via intradérmica em um paciente previamente exposto a Mycobacterium tuberculosis, ocorre uma reação discreta nas primeiras horas. Entretanto, gradativamente desenvolvem-se induração e vermelhidão, atingindo-se um pico em 48-72 horas. Um teste cutâneo positivo indica que o indivíduo foi infectado pelo agente, porém não confirma a presença de doença em curso. Contudo, se o teste cutâneo converte-se de negativo para positivo, sugere-se que o paciente tenha sido infectado recentemente. Indivíduos infectados nem sempre apresentam um teste cutâneo positivo, uma vez que a infecção sobrepujante, os distúrbios que suprimem a imunidade mediada por células (p. ex., uremia, sarampo, sarcoidose, linfoma e AIDS), ou a administração de fármacos imunossupressores (p. ex., corticosteroides, antineoplásicos) podem provocar anergia. Pâmela Brandão da Silva – Medicina UniFG 2020.2 (Semestre II) UCVI – Mecanismos de Agressão e Defesa 8 Uma resposta positiva no teste cutâneo auxilia no diagnóstico e dá suporte para a quimioprofilaxia ou quimioterapia. Na hanseníase, um teste de lepromina positivo indica a presença de lepra tuberculoide com imunidade mediada por células competente, enquanto um teste de lepromina negativo sugere a presença de lepra lepromatosa com imunidade mediada por células prejudicada. Em infecções micóticas sistêmicas (p. ex., coccidioidomicose e histoplasmose), um teste cutâneo positivo com o antígeno específico indica exposição ao organismo. A hipersensibilidade mediada por células desenvolve-se em diversas infecções virais; no entanto, os testes sorológicos são mais específicos que os testes cutâneos tanto para o diagnóstico como para a avaliação da imunidade. Em infecções por protozoários e helmintos, os testes cutâneos podem ser positivos, porém geralmente menos úteis que testes sorológicos específicos. 2.ESTUDAR SOBRE A TOLERÂNCIA IMUNOLÓGICA E A AUTOIMUNIDADE, COMPREENDENDO A PERDA DA TOLERÂNCIA IMUNOLÓGICA; Tolerância é um estado de não responsividade imunológica específica; isto é, uma resposta imune a um determinado antígeno (ou epitopo) não ocorre, embora o sistema imune esteja atuando normalmente. Em geral, antígenos apresentados durante a vida embrionária são considerados “próprios” e não estimulam uma resposta imunológica, ou seja, somos tolerantes a tais antígenos. A ausência de uma resposta imune no feto é causada pela deleção de precursores de células T autorreativas no timo (Figura 66.1). Ao contrário,antígenos não apresentados durante o processo de maturação, isto é, encontrados pela primeira vez quando o organismo encontra-se imunologicamente maduro, são considerados “não próprios” e geralmente elicitam uma resposta imunológica. Embora tanto células B como células T participem da tolerância, a tolerância de células T desempenha o papel principal. Tolerância de células T O principal processo pelo qual linfócitos T adquirem a capacidade de distinguir o próprio do não próprio ocorre no timo fetal (ver Capítulo 58). Esse processo, denominado deleção clonal, envolve a morte de células T (“seleção negativa”) que reagem contra antígenos (principalmente proteínas do MHC próprias) presentes no feto naquele momento. (Observe que substâncias exógenas injetadas no feto precocemente durante o desenvolvimento são tratadas como próprias.) As células autorreativas morrem por um processo de morte celular programada, denominado apoptose. A tolerância ao próprio, adquirida no interior do timo, é denominada tolerância central, enquanto a tolerância adquirida fora do timo é denominada tolerância periférica. A tolerância periférica é necessária porque alguns antígenos não atingem o timo e, portanto, algumas células T autorreativas nele não são mortas. Existem vários mecanismos envolvidos na tolerância periférica: algumas células T autorreativas são mortas, algumas Pâmela Brandão da Silva – Medicina UniFG 2020.2 (Semestre II) UCVI – Mecanismos de Agressão e Defesa 9 não são ativadas, e outras são suprimidas por células T regulatórias que produzem citocinas inibitórias. Anergia clonal é o termo empregado para descrever células T autorreativas que não são ativadas devido ao fato de a coestimulação apropriada não ocorrer (Figura 66-2). A ignorância clonal refere-se a células T autorreativas que ignoram antígenos próprios. Essas células T autorreativas são mantidas ignorantes pela separação física dos antígenos alvo, por exemplo, barreira hematoencefálica, ou ignoram antígenos próprios porque os antígenos estão presentes em quantidades muito pequenas. Embora células T clonalmente anérgicas sejam não funcionais, estas se tornam funcionais e iniciam uma doença autoimune quando as condições são alteradas posteriormente na vida. O mecanismos de anergia clonal envolve a apresentação inadequada de antígenos, levando à insuficiência de produção de interleucina-2 (IL-2). A apresentação inadequada é decorrente de uma falha dos “sinais coestimulatórios”; por exemplo, quantidades suficientes de IL-1 podem não ser produzidas ou proteínas de superfície celular, como CD28 na célula T, e B7 na célula B, podem não interagir apropriadamente, levando a falhas na transdução de sinal por proteínas ras. Por exemplo, a proteína inibitória CTL-4 presente na superfície das células T pode deslocar a CD28 e interagir com B7, resultando em uma falha na ativação das células T. Além disso, B7 é uma proteína induzível e a incapacidade de sua indução em quantidades suficientes pode levar à anergia. Ainda, as proteínas coestimulatórias, CD40 na célula B e CD40L na célula T auxiliar, podem não interagir adequadamente. A falha dos sinais coestimulatórios ocorre com maior frequência quando há uma resposta inflamatória insuficiente no sítio da infecção. A presença de micróbios tipicamente estimula a produção de citocinas pró- inflamatórias, como TNF e IL-1. Contudo, quando a resposta inflamatória é insuficiente, em outras palavras, quando o efeito adjuvante das citocinas é inadequado, as células T serão mortas em vez de serem ativadas. Tolerância de células B Células B também se tornam tolerantes aos antígenos próprios por dois mecanismos: (1) deleção clonal, provavelmente enquanto os precursores de células B encontram-se na medula óssea, e (2) anergia clonal de células B na periferia. Contudo, a tolerância em células B é menos completa que em células T, uma observação sustentada pelo fato de a maioria das doenças autoimunes ser mediada por anticorpos. Indução da tolerância A indução da tolerância por um antigeno, em vez de uma resposta imunológica, é determinada, em grande parte, pelos seguintes aspectos: (1) A maturidade imunológica do hospedeiro; por exemplo, animais neonatos são imunologicamente imaturos e não respondem adequadamente a antígenos exógenos (p. ex., neonatos aceitarão aloenxertos que seriam rejeitados por animais maduros). (2) A estrutura e dose do antígeno; por exemplo, uma Pâmela Brandão da Silva – Medicina UniFG 2020.2 (Semestre II) UCVI – Mecanismos de Agressão e Defesa 10 molécula muito simples induz a tolerância mais rapidamente que uma complexa, assim como doses muito altas ou muito baixas do antígeno podem resultar em tolerância, ao invés de uma resposta imune. Polissacarídeos purificados ou copolímeros de aminoácidos injetados em doses muito altas resultam em “paralisia imune” – ausência de resposta. Outros aspectos da indução ou manutenção da tolerância são os seguintes: (1) Células T tornam-se tolerantes mais prontamente e mantêm-se tolerantes por período mais longo que células B. (2) A administração de um antígeno de reação cruzada tende a interromper a tolerância. (3) A administração de fármacos imunossupressores intensifica a tolerância(4) A tolerância é mantida de forma mais adequada quando o antígeno ao qual o sistema imune é tolerante permanece presente., por exemplo, em pacientes submetidos a transplantes de órgãos. Mecanismos de autoimunidade A possibilidade de que o sistema imunológico de um indivíduo pudesse reagir contra antígenos autólogos e causar dano tecidual foi observada por imunologistas ao mesmo tempo que estes reconheceram a especificidade do sistema imunológico para antígenos estranhos. No início da década de 1990, Paul Ehrlich cunhou a expressão melodramática “horror autotóxico” para as reações imunológicas prejudiciais ao próprio indivíduo. A autoimunidade é uma causa importante de doenças em humanos, e estima-se que estas afetam, no mínimo, 2%a 5%da população dos Estados Unidos. Frequentemente, usa-se erroneamente o termo autoimunidade para qualquer doença na qual as reações imunológicas acompanham dano tecidual, embora seja muito difícil (ou quase impossível) estabelecer um papel para as respostas imunológicas contra autoantígenos como causa para esses distúrbios. Já que a inflamação é um componente importante nessas doenças, costuma-se agrupá-las como doenças inflamatórias mediadas pela imunidade, o que não implica que a resposta patológica seja direcionada contra autoantígenos (Cap. 19). As questões fundamentais a respeito da autoimunidade são (1) como a autotolerância falha e (2) de que forma os linfócitos autorreativos são ativados. Precisa-se de respostas para essas perguntas, a fim de compreender a etiologia e a patogênese das doenças autoimunes, que consistem no desafio principal da Imunologia. Nosso entendimento sobre autoimunidade melhorou bastante durante as duas últimas décadas, principalmente por causa do desenvolvimento de modelos animais informativos dessas doenças, da identificação dos genes que podem predispor à autoimunidade e de métodos mais aprimorados para a análise das respostas imunológicas em humanos. Diversos conceitos gerais importantes surgiram a partir de estudos sobre autoimunidade. Os fatores que contribuem para o desenvolvimento da autoimunidade são a suscetibilidade genética e os gatilhos ambientais, como infecções e lesão local no tecido. Genes de suscetibilidade podem prejudicar os mecanismos de autotolerância; a infecção ou necrose nos tecidosPâmela Brandão da Silva – Medicina UniFG 2020.2 (Semestre II) UCVI – Mecanismos de Agressão e Defesa 11 promovem o influxo de linfócitos autorreativos e a ativação dessas células, resultando em lesão tecidual (Fig. 15-11). Infecções e lesão tecidual também podem alterar a forma como os autoantígenos são apresentados para o sistema imunológico, levando à falha da autotolerância e à ativação dos linfócitos autorreativos. Os papéis desses fatores no desenvolvimento da autoimunidade serão discutidos posteriormente. Outros fatores como mudanças na microbiota do indivíduo e alterações epigenéticas nas células imunológicas podem desempenhar papéis importantes na patogênese, mas os estudos nesses tópicos ainda estão muito no início. - Características Gerais das Doenças Autoimunes Doenças autoimunes apresentam diversas características gerais que são relevantes para a definição de seus mecanismos subjacentes. • Doenças autoimunes podem ser sistêmicas ou órgão-específicas, dependendo da distribuição dos autoantígenos que são reconhecidos. Por exemplo, a formação de complexos imunológicos circulantes (compostos de autonucleoproteínas e anticorpos específicos) produz tipicamente doenças sistêmicas, como o lúpus eritematoso sistêmico (SLE, do inglês systemic lupus erythematosus). Ao contrário, respostas de autoanticorpos ou células T contra autoantígenos com distribuição tecidual restrita levam a doenças específicas dos órgãos, como miastenia grave, diabetes tipo 1 e esclerose múltipla. • Vários mecanismos efetores são responsáveis pela lesão do tecido em diferentes doenças autoimunes. Esses mecanismos incluem complexos imunológicos, autoanticorpos circulantes e linfócitos T autorreativos e serão discutidos no Capítulo 19. As características clínicas e patológicas da doença geralmente são determinadas pela natureza da resposta autoimune dominante. • Doenças autoimunes tendem a ser crônicas, progressivas e de autoperpetuação. As razões para essas características são: (1) os autoantígenos que disparam essas reações são persistentes e, uma vez que a resposta imunológica se inicia, muitos mecanismos amplificadores que são ativados perpetuam essa resposta; (2) uma resposta iniciada contra um autoantígeno que lesiona tecidos pode resultar na liberação e alteração de outros antígenos teciduais, na ativação de linfócitos específicos para esses outros antígenos e na exacerbação da doença. Este fenômeno, conhecido como propagação de epítopo, pode explicar por que uma vez desenvolvida a doença autoimune, esta pode se prolongar ou se autoperpetuar. 3.CARACTERIZAR OS MECANISMOS DE AGRESSÃO NAS DOENÇAS AUTOIMUNES; Mecanismos A. Mimetismo molecular Diversas bactérias e vírus são implicados como fonte de antígenos de reação cruzada que desencadeiam a ativação de células T ou células B autorreativas. Por exemplo, a síndrome de Reiter ocorre Pâmela Brandão da Silva – Medicina UniFG 2020.2 (Semestre II) UCVI – Mecanismos de Agressão e Defesa 12 após infecções por Shigella ou Chlamydia, enquanto a síndrome de Guillain-Barré ocorre após infecções por Campylobacter. O conceito de mimetismo molecular é utilizado para explicar esses fenômenos; isto é, o desencadeador ambiental assemelha-se (mimetiza) suficientemente a um componente do corpo, de modo que um ataque imune é dirigido contra o componente corpóreo de reação cruzada. Um dos exemplos mais bem caracterizados de mimetismo molecular é a relação entre a proteína M de S. pyogenes e a miosina do músculo cardíaco. Anticorpos contra determinadas proteínas M reagem de forma cruzada com a miosina cardíaca, levando à febre reumática. Evidências adicionais que fundamentam a hipótese do mimetismo molecular incluem o achado de que existem sequências idênticas de aminoácidos em certas proteínas virais e certas proteínas humanas. Por exemplo, há uma sequência de seis aminoácidos idêntica na polimerase do vírus da hepatite B e na proteína básica da mielina humana. B. Alteração de proteínas normais Fármacos podem ligar-se a proteínas normais, tornando-as imunogênicas. O lúpus eritematoso sistêmico induzido por procainamida é um exemplo desse mecanismo. C. Liberação de antígenos sequestrados Determinados tecidos, por exemplo, esperma, sistema nervoso central, e as lentes e o trato uveal oculares, são sequestrados de modo que seus antígenos não são expostos ao sistema imune. Esses tecidos são conhecidos como sítios imunologicamente privilegiados. Quando tais antígenos atingem acidentalmente a corrente sanguínea, por exemplo, após danos, eliciam respostas humorais e celulares, produzindo aspermatogênese, encefalite, ou endoftalmite, respectivamente. O esperma, em particular, deve situar-se em um sítio sequestrado, imunologicamente privilegiado, uma vez que se desenvolve após a maturidade imunológica ter sido alcançada e, no entanto, normalmente não é sujeito ao ataque imune. Antígenos intracelulares, como DNA, histonas e enzimas mitocondriais são normalmente sequestrados do sistema imune. Entretanto, infecções bacterianas ou virais podem danificar células, provocando a liberação desses antígenos sequestrados, os quais ativam então uma resposta imune. Uma vez que autoanticorpos são formados, a liberação subsequente de antígenos sequestrados resulta na formação de complexos imunes e em sintomas da doença autoimune. Além da infecção, a radiação e os compostos químicos também podem danificar células e liberar componentes intracelulares sequestrados. Por exemplo, sabe-se que a luz solar exacerba a erupção cutânea em pacientes com lúpus eritematoso sistêmico. Acredita-se que a radiação UV danifica as células, liberando DNA e histonas normalmente sequestrados, que são os principais antígenos nessa doença. D. Disseminação de epitopos Pâmela Brandão da Silva – Medicina UniFG 2020.2 (Semestre II) UCVI – Mecanismos de Agressão e Defesa 13 Disseminação de epitopos é o termo utilizado para descrever a nova exposição a autoantígenos sequestrados como resultado de danos causados às células pela infecção viral. Esses autoantígenos recém-expostos estimulam células T autorreativas, resultando em doença autoimune. Em um modelo animal, uma doença similar à esclerose múltipla foi causada pela infecção por um vírus de encefalomielite. Observe que as células T reativas foram dirigidas contra antígenos celulares em vez de aos antígenos virais. - Embora as respostas inatas possam desempenhar funções importantes no desenvolvimento e na persistência das doenças autoimunes, em um nível mais fundamental a autoimunidade patogênica representa uma falha na tolerância imune específica. Considerando que a tolerância é um mecanismo aplicável apenas aos linfócitos, a contribuição da resposta adaptativa é intuitivamente evidente. Vale salientar que dissemos que há uma "falhà' na tolerância. Isso pode significar que, em alguns casos, haja uma incapacidade de desenvolver tolerância em primeiro lugar, mas tendo em vista que as doenças autoimunes comumente não começam antes da meia-idade ou em uma idade mais avançada, parece que a tolerância funciona normalmente nos estágios iniciais, mas que os indivíduos geneticamente predispostos acumulam influências ambientais e, possivelmente, mutações que por fim resultam nas respostas patogênicas descontroladas contra os antígenos próprios. Ainda não está bem claro se a resposta é ou não desencadeada por antígenos próprios, antígenos estranhos,superantígenos ou outros ativadores policlonais, ou por anti-idiótipos. Também é importante ter em mente que uma doença autoimune aparentemente idêntica pode originar-se de um conjunto diverso de circunstâncias em determinados pacientes. - A tolerância não é absoluta Dentre os vários mecanismos de tolerância utilizados pelo sistema imune, apenas a apoptose resulta na destruição dos linfócitos antígeno-específicos. Embora as células B de alta afinidade sejam tolerizadas por apoptose, principalmente aos autoantígenos que circulam em concentrações altas, esse mecanismo mais extremo de lidar com linfócitos insubordinados é dirigido principalmente às células T durante a seleção negativa no timo. A edição do receptor (p. 93) pode eliminar as células B autorreativas por meio da recombinação V(D)J continuada. As células B autorreativas presentes na periferia geralmente não acarretam problemas porque não contam com a ajuda das células T cognatas (veja a Figura 11.16). Entretanto, para os autoantígenos que não estão expressos em níveis adequados no timo (p. 302), as células T autorreativas estão disponíveis. O processamento de um autoantígeno resulta na formação de determinados peptídios (dominantes) expressos preferencialmente nas células apresentadoras de antígenos (APC), enquanto outros (crípticos) aparecem apenas nos sulcos Pâmela Brandão da Silva – Medicina UniFG 2020.2 (Semestre II) UCVI – Mecanismos de Agressão e Defesa 14 das moléculas do MHC em concentrações muito baixas, os quais, embora sejam capazes de expandir suas células T cognatas no contexto da seleção tímica positiva (veja a p. 300), podem não conseguir produzir sinais suficientemente potentes para determinar a seleção negativa destas células. Consequentemente, as células T autorreativas e específicas para os epítopos crípticos sobrevivem no repertório que, por essa razão, terá uma tendência no sentido da autorreatividade fraca. Respostas desencadeadas pelos autoantígenos As galinhas da raça obesa (OS) provavelmente não fazem parte do cardápio do nosso restaurante local, mas são interessantes porque produzem espontaneamente autoanticorpos (IgG) contra tireoglobulina e desenvolvem uma resposta inflamatória crônica contra a tireoide, que destrói a glândula e causa hipotireoidismo secundário. Quando a fonte do antígeno é removida pela tireoidectomia neonatal, esses animais não produzem autoanticorpos. Em seguida, a injeção de tireoglobulina normal nesses animais induz a síntese dos anticorpos. A tireoidectomia das galinhas OS com tireoidite estabelecida é seguida de uma redução dramática dos títulos dos anticorpos. Conclusões: a imunidade espontânea contra a tireoglobulina é desencadeada e mantida pelo autoantígeno originado da glândula tireoide. Além disso, como a resposta é absolutamente dependente das células T, podemos inferir que os linfócitos B e T sejam ativados pela tireoglobulina nesse modelo experimental. Em geral, a doença humana é uma noz difícil de quebrar e precisamos depender de indícios mais indiretos. Pesquisadores isolaram linhagens de células T das glândulas com doença de Graves e conseguiram demonstrar a estimulação direta desses linfócitos pelas células tireóideas intactas. A remoção da suposta fonte de antígenos pela tireoidectomia dos pacientes com doença de Hashimoto é seguida de uma redução dos níveis séricos das gamaglobulinas, um dos indícios que levaram à descoberta da autoimunidade tireóidea (veja o Marco histórico 18.1); casualmente, isto está em pleno acordo com os dados observados nas galinhas OS citadas. A produção dos autoanticorpos IgG de alta afinidade acompanhada de hipermutação somática nos pacientes com doença autoimune da tireoide constitui evidência clara de seleção das células B por antígenos em uma resposta dependente dos linfócitos T. Em termos bem simples, a razão disso é que os anticorpos IgG de alta afinidade originam-se apenas por mutação e seleção desencadeadas pelo antígeno dentro dos centros germinativos (veja a p. 257). Um argumento mais indireto, embora igualmente convincente, é que os anticorpos são produzidos regularmente contra um grupo de epítopos de um único autoantígeno, ou dos autoantígenos dentro de um único órgão (p. ex., tireoglobulina mais peroxidase tireóidea, , ou diferentes componentes do nucleossoma). E difícil propor uma hipótese que não dependa finalmente da estimulação pelos antígenos. As células T são essenciais a essas respostas, porque a depleção dos linfócitos T Pâmela Brandão da Silva – Medicina UniFG 2020.2 (Semestre II) UCVI – Mecanismos de Agressão e Defesa 15 CD4 em alguns modelos animais suprime a produção dos autoanticorpos. Visibilidade dos autoantígenos para o sistema imune Em alguns componentes do organismo (p. ex., esperma, cristalino e coração), os antígenos estão totalmente sequestrados (escondidos) do sistema imune e, consequentemente, não estimulam qualquer grau de tolerância imunológica. Isso não causa problemas, a menos que algum percalço (p. ex., traumatismo físico) provoque a liberação do antígeno na circulação e a ativação subsequente dos linfócitos autorreativos. Em geral, mesmo nessas circunstâncias, a experiência tem demonstrado que a injeção de extratos não modificados dos tecidos afetados pelos distúrbios autoimunes órgão-específicos não estimula facilmente a síntese de anticorpos. Na verdade, na maioria dos casos - por exemplo, eritrócitos na anemia hemolítica autoimune, ribonucleoproteína (RNP) e componentes do nucleossoma presentes nas bolhas da superfície das células apoptóticas do LES, e receptores de superfície em alguns casos de autoimunidade órgão-específica - os autoantígenos estão facilmente acessíveis aos linfócitos circulantes. Presumivelmente, os antígenos presentes em concentrações suficientes no líquido extracelular são processados pelas APC profissionais, mas no caso dos autoantígenos associados às células, os peptídios derivados interagem "expressivamente" com as células T específicas apenas quando há moléculas apropriadas do MHC na superfície, quando a concentração do peptídio processado correspondente é significativa e, no caso das células T em repouso, quando os sinais coestimuladores podem ser produzidos. Desse modo, a mensagem subjacente é que todos estão sentados em um campo minado de células autorreativas, que podem ter acesso aos seus respectivos autoantígenos. Entretanto, como as doenças autoimunes ocorrem apenas em uma minoria da população, o organismo deve ter mecanismos homeostáticos para evitar que essas células autorreativas sejam ativadas em condições normais. Embora com suas limitações, a Figura 18.7 fornece uma base para que possamos examinar como esses mecanismos podem ser anulados de modo a permitir o desenvolvimento da autoimunidade. Supostamente, o elemento fundamental ao sistema é o controle das células T auxiliares autorreativas, na medida em que as evidências favorecem claramente a dependência de quase todas as respostas autoimunes das células T; desse modo, a interação entre a célula Te o peptídio combinado com o MHC torna- -se fundamental. Iniciamos com o pressuposto de que essas células normalmente não sejam reativas em consequência da deleção clonai, da anergia clonai, da supressão T ou da apresentação inadequada dos autoantígenos. Logo, pode-se supor um grau anormal de reatividade aos antígenos próprios em consequência da expressão intratímica relativamente baixa de Pâmela Brandão da Silva – Medicina UniFG 2020.2 (Semestre II)UCVI – Mecanismos de Agressão e Defesa 16 determinada molécula (veja a p. 304). As anormalidades das vias de sinalização que afetam os limiares das seleções positiva e negativa no timo também poderiam afetar a reatividade subsequente aos autoantígenos periféricos. O mesmo poderia acontecer com as anormalidades da morte celular programada (apoptose). Como as células B específicas para o autoantígeno conseguem a ajuda das células T Allison e Weigle sugeriram independentemente que, se as células T autorreativas são toleradas e, desse modo, não canseguem colaborar com as células B no sentido de produzir autoanticorpos (Figura l 8.8a), o fornecimento de novos determinantes carreadores (i. e., epítopos das células T auxiliares) aos quais não teria sido desenvolvida autotolerância poderia resultar em um "bypass das células T". Em outras palavras, a ajuda então seria fornecida pelas células B autorreativas, mesmo que os linfócitos T autorreativos estivessem ausentes, resultando na produção dos autoanticorpos (Figura 18.8b). Modificação do autoantígeno Um novo carreador poderia originar-se por modificação pós- - tradução da molécula (Figura 18.8b.l), por exemplo, como ocorre com a citrulinação (uma modificação pós-tradução da arginina) da vimentina, do fibrinogênio, do colágeno tipo II e da a-enolase na artrite reumatoide. A modificação também pode ser conseguida por combinação com um fármaco (Figura 18.8b.3). Em um exemplo dentre vários outros, a anemia hemolítica autoimune associada à administração da a-metildopa poderia ser atribuída à modificação da superfície das hemácias, de modo a produzir um carreador capaz de estimular as células B que reconhecem o antígeno do sistema Rh (rhesus). Em condições normais, esse antígeno é considerado "fraco" e teria menos probabilidade de induzir a tolerância das células B que os antígenos "mais fortes" presentes na hemácia. Mimetismo molecular dos epítopos da célula T Em consequência do mimetismo molecular, os epítopos da célula B presentes em um antígeno microbiano podem desenvolver reatividade cruzada aos epítopos de um autoantígeno humano. Contudo, como o antígeno microbiano e o antígeno próprio são apenas parcialmente semelhantes, é necessária a tolerância das células T às sequências das outras partes do antígeno microbiano. Desse modo, as células T específicas para essas sequências estão presentes e podem ajudar as células B que reconhecem o epítopo com reatividade cruzada (Figura 18.8b.2). O mecanismo desse processo está descrito com mais detalhes na Figura 18.9a. Nos parágrafos anteriores, mencionamos que os anticorpos da febre reumática produzidos contra o Streptococcus também reagem com o coração. Outro exemplo são as proteínas do envoltório da Yersinia enterocolytica, que têm alguns epítopos semelhantes aos do receptor do hormônio tireoestimulante (TSH). Doença Pâmela Brandão da Silva – Medicina UniFG 2020.2 (Semestre II) UCVI – Mecanismos de Agressão e Defesa 17 autoimune Autoanticorpo O inconveniente desse modelo de reatividade cruzada do epítopo da célula B é que, uma vez que o agente que desencadeou a reatividade cruzada tenha sido eliminado do organismo, o epítopo da célula T não está mais presente. Entretanto, o agente infeccioso também pode simular um autoantígeno produzindo um epítopo de célula T com reatividade cruzada nas APC profissionais, que podem preparar as células Te aumentar a expressão das suas moléculas de adesão. Nesse caso, as células T têm avidez por se ligarem e ficarem persistentemente ativadas pelo autoepítopo apresentado na célula do tecido-alvo, que é associado à molécula , apropriada do MHC (Figura 18.9b). E importante lembrar que as células T citotóxicas (T c) transgênicas poderiam destruir apenas as células J3 pancreáticas que tivessem um transgene virai, quando fossem preparadas por uma infecção virai real (veja a Figura 11.9). Vale lembrar também que as células tumorais poderiam ser reconhecidas apenas pelas células T ativadas, não pelos linfócitos T em repouso (veja a Figura 17.14). Teoricamente, a célula T em repouso também poderia ser ativada por um superantígeno microbiano por mecanismos independentes de um antígeno específico. Embora tenhamos atribuído o papel dominante dos alelos do MHC como fatores de risco para as doenças autoimunes à sua capacidade de apresentar epítopos antigênicos fundamentais às células T autorreativas, estes alelos também poderiam atuar por um mecanismo muito diferente. Podemos lembrar que, durante a ontogenia intratímica, as células T são selecionadas positivamente por sua interação fraca com os peptídios próprios complexados com o MHC. Ora, como cerca de 500/o dos peptídios da classe II são derivados do MHC, as células T maduras que deixam o timo foram selecionadas com um forte viés para o reconhecimento fraco dos peptídios do MHC próprio apresentados pela classe II. Por essa razão, deve haver uma reserva expressiva de células T autorreativas e suscetíveis à estimulação pelos epítopos derivados exogenamente com reatividade cruzada que mimetizam esses peptídios do MHC. Isso é verdade. A sequência QKRAA (a chamada sequência do "epítopo compartilhado") está localizada dentro de uma região polimórfica da cadeia DRf3 do DRl e de alguns alelos do DR4, assim como nas proteínas do choque térmico dnaJ produzidas pela E. coli, pelo Lactobacillus lactis e pela Bruce/la ovis e também na proteína gpl 10 do vírus Epstein-Barr. Isso oferece a oportunidade de ativar as células T com especificidade autorreativa por um peptídio processado que contenha a sequência QKRAA apresentada por outra molécula HLA. Desse modo, a sequência QKRAAVDTY do alelo de suscetibilidade à AR (HLA-DRBl *04:01) é muito semelhante à sequência QKRAAYDQY da proteína do choque térmico dnaJ da E. coli (Tabela 18.5), e este peptídio apresentado pelo DQ causa proliferação das células T da sin6via dos pacientes com AR. De fato, foi identificado um grande número de sequências microbianas com graus variados de homologia com as proteínas humanas (Tabela 18.5), embora se deva enfatizar que, neste estágio, elas apenas fornecem indícios para estudos posteriores. Pâmela Brandão da Silva – Medicina UniFG 2020.2 (Semestre II) UCVI – Mecanismos de Agressão e Defesa 18 A simples existência de uma homologia não constitui certeza de que a infecção por aquele microrganismo necessariamente conduzirá à autoimunidade, porque tudo depende de diversas contingências, inclusive a maneira pela qual as proteínas são processadas pelas APC. Epítopos agregados da célula T e disseminação dos epítopos Um componente da membrana pode ajudar a resposta imune a outro componente (reconhecimento por associação). No contexto da autoimunidade, um determinante auxiliar novo pode originar- se por modificação de um fármaco (como descrito anteriormente) ou pela inserção do antígeno viral na membrana de uma célula infectada (Figura 18.8b.4). A comprovação clara de que isso pode desencadear a reação a um componente celular preexistente foi conseguida com os estudos nos quais a infecção de um tumor com o vírus influenza produziu resistência às células tumorais não infectadas. De modo semelhante, a ajuda da célula T pode ser fornecida por uma molécula como o DNA, que não pode formar intrinsecamente um epítopo da célula T, depois de formar um complexo com um carreador dependente da célula T (neste exemplo, uma histona) ou um idiótipo anti-DNA ao qual as células T foram sensibilizadas. Para que esse mecanismo funcione, o componente auxiliar precisa continuar acopladofisicamente ao fragmento que possui o epítopo da célula B. Quando esse complexo é reconhecido pelo receptor da célula B, o componente auxiliar é agregado à célula B, processado e apresentado na forma de um epítopo para ser reconhecido pelas células T (Figura 18.9c). Com a mesma marca, a resposta autoimune pode ser disseminada aos outros epítopos da mesma molécula. Mecanismos de bypass do idiótipo Os linfócitos com especificidade para os antígenos ex6genos poderiam entrar em comunicação com os linfócitos autorreativos por meio das conexões da rede de idiótipos (Figura 18.1 O), principalmente porque algumas doenças autoimunes caracterizam-se por idiótipos com reatividade cruzada expressiva. As células T auxiliares com especificidade para o idiótipo de um receptor de linfócitos podem ser úteis à estimulação da célula que contém o idiótipo. Desse modo, é concebível que um agente ambiental (p. ex., um parasito ou um vírus) possa desencadear a síntese do anticorpo que possua um idiótipo com reatividade cruzada e seja compartilhado com o receptor de uma célula B ou T autorreativa e, desse modo, desencadeie • uma resposta auto1mune. Ativação policlonal Os micróbios comumente têm propriedades adjuvantes porque possuem ativadores linfocitários policlonais, tais como endotoxinas bacterianas. Os diversos autoanticorpos detectados na mononucleose infecciosa certamente devem ser atribuídos à ativação policlonal das células B pelo vírus Epstein-Barr (EBV). No entanto, é difícil entender como a ativação policlonal pan- Pâmela Brandão da Silva – Medicina UniFG 2020.2 (Semestre II) UCVI – Mecanismos de Agressão e Defesa 19 específica poderia dar origem aos padrões de autoanticorpos típicos dos diferentes distúrbios autoimunes sem a participação de algum fator direcionador dos antígenos. Nos parágrafos anteriores, mencionamos as condições nas quais as células B ou T ativadas policlonalmente poderiam contribuir para a manutenção da resposta imune (veja a legenda da Figura 18.9b,c). 4.DISCORRER SOBRE OS FATORES DESENCADEANTES DE DOENÇAS AUTOIMUNES; Fatores genéticos Diversas doenças autoimunes apresentam acentuada incidência familiar, sugerindo-se uma predisposição genética a tais distúrbios. Existe uma forte associação de algumas doenças com determinadas especificidades do antígeno leucocitário humano (HLA), especialmente os genes de classe II. Por exemplo, a artrite reumatoide ocorre predominantemente em indivíduos portando o gene HLA-DR4. A probabilidade de ocorrer espondilite anquilosante é cem vezes maior em indivíduos portando HLA- B27, um gene de classe I, do que naqueles que não o apresentam. Há duas hipóteses para explicar a relação entre determinados genes HLA e as doenças autoimunes. Uma postula que tais genes codificam proteínas do MHC de classe I ou classe II, as quais apresentam autoantígenos com maior eficiência que as proteínas do MHC não associadas a doenças autoimunes. A outra hipótese afirma que células T autorreativas escapam da seleção negativa no timo porque se ligam fracamente àquelas proteínas do MHC de classe I ou classe II na superfície do epitélio tímico. Deve-se observar, no entanto, que o fato de uma pessoa desenvolver ou não uma doença autoimune é evidentemente multifatorial, uma vez que indivíduos com genes HLA que sabidamente predispõem a certas doenças autoimunes, apesar disso não desenvolvem a doença, como, por exemplo, muitos indivíduos carreando o gene HLA-DR4 não desenvolvem artrite reumatoide. Isto é, acredita-se que genes HLA são necessários, mas não suficientes, para causar doenças autoimunes. Em geral, doenças relacionadas a MHC de classe II, por exemplo, artrite reumatoide, doença de Graves (hipertireoidismo) e lúpus eritematoso sistêmico, ocorrem de forma mais comum em mulheres, enquanto doenças relacionadas a MHC de classe I, por exemplo, espondilite anquilosante e síndrome de Reiter, ocorrem mais comumente em homens. Fatores hormonais Aproximadamente 90% de todas as doenças autoimunes ocorrem em mulheres. Embora a explicação para essa taxa acentuadamente desigual em relação ao gênero seja incerta, existem algumas evidências, a partir de modelos animais, que o estrogênio pode alterar o repertório de células B e intensificar a formação de anticorpos contra DNA. Clinicamente, a observação de que o lúpus eritematoso sistêmico surge ou exacerba-se durante a gravidez (ou imediatamente após o parto) fundamenta Pâmela Brandão da Silva – Medicina UniFG 2020.2 (Semestre II) UCVI – Mecanismos de Agressão e Defesa 20 o conceito de que os hormônios desempenham um importante papel na predisposição de mulheres a doenças autoimunes. Fatores ambientais Existem vários agentes ambientais que desencadeiam doenças autoimunes, muitos dos quais consistem em bactérias ou vírus. Por exemplo, a faringite causada por Streptococcus pyogenes predispõe à febre reumática. Outros exemplos são descritos na Tabela 66-2. Embora ainda seja uma especulação, acredita-se que membros da microbiota normal do intestino desempenhem papel na gênese de doenças inflamatórias intestinais, como doença de Crohn e colite ulcerativa. Determinadas infecções causam doenças autoimunes em animais, por exemplo, a infecção por vírus coxsackie em camundongos causa diabetes do tipo I, mas esta não foi estabelecida como uma causa em humanos. Outros desencadeadores ambientais incluem certos fármacos, como procainamida, que provoca lúpus eritematoso sistêmico, e determinados metais pesados, como ouro e mercúrio, que causam doenças autoimunes em animais experimentais. Há dois mecanismos principais pelos quais fatores ambientais poderiam desencadear doenças autoimunes. Um consiste no mimetismo molecular, o qual propõe que agentes infecciosos possuem antígenos responsáveis pela elicitação de uma resposta imune que reage de forma cruzada com componentes das células humanas. O outro é o fato de o dano tissular liberar antígenos intracelulares (sequestrados) que elicitam uma resposta imune. Esses mecanismos são descritos em maiores detalhes na próxima seção. Em resumo, o modelo atual é que doenças autoimunes ocorrem em indivíduos (1) com uma predisposição genética determinada por seus genes do MHC e (2) que são expostos a um agente ambiental que desencadeia uma resposta imune de reação cruzada contra algum componente do tecido normal. Além disso, uma vez que as doenças autoimunes aumentam em número com o avanço da idade, outro possível fator consiste no declínio do número de células T regulatórias, permitindo que quaisquer células T autorreativas sobreviventes proliferem e causem doença. - Anormalidades Imunológicas que Levam à Autoimunidade A autoimunidade resulta da combinação de algumas das três aberrações imunológicas principais. • Tolerância ou regulação defeituosas. Afalha dos mecanismos de autotolerância em células T ou B, levando ao desequilíbrio entre ativação e controle de linfócitos, é a causa subjacente de todas as doenças autoimunes. O potencial para autoimunidade existe em todos os indivíduos, porque algumas especificidades de clones de linfócitos em desenvolvimento geradas aleatoriamente podem ser para autoantígenos, e muitos autoantígenos estão prontamente acessíveis aos linfócitos. Conforme discutido anteriormente, a tolerância a autoantígenos normalmente é mantida por meio de processos de seleção que previnem a maturação de alguns linfócitos específicos para autoantígenos e de mecanismos que Pâmela Brandão da Silva – Medicina UniFG 2020.2 (Semestre II)UCVI – Mecanismos de Agressão e Defesa 21 inativam ou deletam linfócitos autorreativos que amadurecem. A perda da autotolerância pode ocorrer se linfócitos autorreativos não forem deletados ou inativados durante ou após a sua maturação; também pode ocorrer se as APCs forem ativadas, de modo que autoantígenos sejam apresentados ao sistema imunológico de forma imunogênica. Modelos experimentais e estudos limitados em humanos mostram que qualquer um dos mecanismos a seguir pode contribuir para a falência da autotolerância: Defeitos na deleção (seleção negativa) de células T ou B ou na edição de receptores em células B durante a maturação dessas células nos órgãos linfoides centrais. Defeitos no número e função de linfócitos T regulatórios Apoptose defeituosa de linfócitos autorreativos maduros Função inadequada de receptores inibitórios • Apresentação anormal de autoantígenos. Essas anormalidades podem incluir expressão aumentada e persistência de autoantígenos que são normalmente degradados ou alterações estruturais nesses antígenos, resultantes de modificações enzimáticas ou de estresse ou lesão celular. Caso essas mudanças levem à apresentação de epítopos antigênicos que normalmente não estão presentes, o sistema imunológico não pode ser tolerante com esses epítopos, permitindo o desenvolvimento de autorrespostas. • Inflamação ou resposta imunológica inata inicial. Conforme abordado em capítulos anteriores, a resposta imunológica inata é um forte estímulo para a ativação subsequente de linfócitos e para a geração de respostas imunológicas adaptativas. Infecções ou danos à célula podem suscitar reações imunológicas inatas locais com inflamação. Essas reações podem contribuir para o desenvolvimento de doença autoimune, talvez pela ativação das APCs, que se sobrepõem aos mecanismos regulatórios, resultando em ativação excessiva da célula T. Recentemente, grande foco tem sido colocado no papel das células T na autoimunidade por duas razões principais. A primeira razão é que as células T auxiliares são reguladores-chave de todas as respostas imunológicas às proteínas e muitos autoantígenos implicados nas doenças autoimunes são proteínas. A segunda razão é que diversas doenças autoimunes estão geneticamente ligadas ao MHC (o complexo HLA, em humanos), e a função das moléculas do MHC é a apresentação de antígenos peptídios para as células T. A falha da autotolerância em linfócitos T pode resultar em doenças autoimunes, nas quais o dano ao tecido é causado por reações imunológicas mediadas por células. Anormalidades nas células T auxiliares também podem levar à produção de autoanticorpo, porque essas células são necessárias para a produção de anticorpos de alta afinidade contra antígenos proteicos. Serão descritos adiante os princípios gerais da patogênese das doenças autoimunes, com ênfase em suscetibilidade gênica, infecções e outros fatores que contribuem para o desenvolvimento da autoimunidade. Pâmela Brandão da Silva – Medicina UniFG 2020.2 (Semestre II) UCVI – Mecanismos de Agressão e Defesa 22 - Bases Genéticas da Autoimunidade A partir dos primeiros estudos de doenças autoimunes em pacientes e animais experimentais, observou-se que essas doenças têm um componente genético muito forte. Por exemplo, o diabetes tipo 1 mostra uma concordância de 35%a 50%em gêmeos monozigóticos e de 5%a 6%em gêmeos dizigóticos; outras doenças autoimunes mostram evidência similar de uma contribuição genética. Análise de histórico familiar, estudos de associação genômica e esforços de sequenciamento em grande escala estão revelando novas informações sobre os genes que podem estar na base do desenvolvimento da autoimunidade e de distúrbios inflamatórios crônicos. Vários aspectos gerais da suscetibilidade genética tornaram-se aparentes a partir desses estudos. A maioria das doenças autoimunes é consequência de características poligênicas complexas, nas quais os indivíduos afetados herdam polimorfismos genéticos múltiplos que contribuem para a suscetibilidade da doença. Estes genes agem em conjunto com os fatores ambientais para causarem as doenças. Alguns destes polimorfismos estão associados a diversas doenças autoimunes, sugerindo que os genes causadores influenciam mecanismos gerais de regulação imunológica e autotolerância. Outros loci associam-se a doenças particulares, sugerindo que estes podem afetar o dano ao órgão ou linfócitos autorreativos de especificidades particulares. Cada polimorfismo genético faz uma pequena contribuição para o desenvolvimento de doenças autoimunes particulares. Esses polimorfismos também são encontrados em indivíduos saudáveis, porém em uma frequência mais baixa do que em pacientes que desenvolvem doenças. Sustenta-se a opinião de que, em pacientes individuais, tais polimorfismos múltiplos são co-herdados e, juntos, contribuem para o desenvolvimento da doença. Um dos desafios contínuos neste campo de estudo é compreender a interação dos múltiplos genes, uns com os outros e em conjunto com fatores ambientais. OBS.: • Alterações anatômicas em tecidos, causadas por inflamação (possivelmente secundárias a infecções), lesão isquêmica ou trauma, podem levar à exposição de autoantígenos que normalmente são ocultados do sistema imunológico. Tais antígenos isolados podem não ter induzido autotolerância. Portanto, se autoantígenos previamente ocultos são liberados, estes podem interagir com linfócitos imunocompetentes e induzir respostas imunológicas específicas. Exemplos de antígenos isolados anatomicamente incluem proteínas intraoculares e esperma. Pensa-se que a uveíte e a orquite pós-traumáticas se devem a respostas autoimunes contra autoantígenos que são liberados de suas localizações normais através de trauma. Pâmela Brandão da Silva – Medicina UniFG 2020.2 (Semestre II) UCVI – Mecanismos de Agressão e Defesa 23 5.IDENTIFICAR OS PRINCIPAIS TIPOS DE DOENÇAS AUTO- IMUNES (GLOMERULONEFRITE, ARTRITE REUMATOIDE, PSORÍASE, LÚPUS ERITREMATOSO, TIREOIDITE AUTOIMUNE, DIABETES MELLITUS TIPO 1, VITILIGO); As doenças autoimunes humanas são divididas em dois grupos: (1) órgão-específicas, nas quais a autoagressão é dirigida a um órgão; (2) sistêmicas, em que a autoagressão faz-se contra autoantígenos ubiquitários e as lesões tendem a comprometer vários órgãos. Algumas doenças por autoagressão podem ter características dos dois grupos, razão pela qual no Quadro 9.4 são listadas em um espectro que vai do absolutamente órgão- específico até o sistêmico. As doenças por autoagressão, sistêmicas ou órgão-específicas, têm algumas características em comum: são mais frequentes em mulheres, podem ter distribuição familia! e geralmente estão vinculadas a um ou mais genes, parecendo haver um padrão genético, possivelmente multigênico, que favorece a autoagressão. Embora sem comprovação, na maioria das vezes suspeita-se da participação de agentes infecciosos no desencadeamento de muitas delas. Por outro lado, na maioria das doenças autoimunes, embora sejam detectados autoanticorpos e células T sensibilizadas a diversos antígenos, com frequência não se conhece o papel patogenético dessas respostas imunitárias, se são realmente primárias e desencadeantes da doença ou se, ao contrário, são consequência das lesões existentes. - Lúpus eritematoso sistémico O lúpus eritematoso sistêmico (LES) é doença autoimune crônica que evolui com períodos de quiescência e crises de manifestações clínicas, caracterizada pela existência de autoanticorpos antiantígenos do núcleo, do citoplasma e damembrana das células de diversos tecidos e por lesões em diferentes órgãos (ver Capítulo 30). Os pacientes apresentam manifestações cutâneas, mucosas, renais, articulares, hematológicas e neurológicas, associadas em dfei rentes combinações (ver também os capítulos correspondentes). O encontro de quatro das dez manifestações listadas e definidas a seguir (simultaneamente ou em observações sequenciais) permite o diagnóstico clínico de LES: • Eritema malar, fixo, plano ou elevado, estendendo-se ao dorso do nariz e à fronte (Figura 9.14) • Eritema discoide, elevado, com descamação ceratótica e tendência a atrofia central • Fotossensibilidade aumentada, com eritema exacerbado a ós exposição ao sol • úlceras mucosas na boca e na orofaringe, rasas e indolores • Artrite não erosiva, em duas ou mais articulações • Serosite serofibrinosa (pleurite ou pericardite) • Alterações renais: albuminúra i persistente (> 0,5 g/dia) ou cilindrúria com cilindros celulares • Alterações neurológicas: convulsões ou psicose, sem causa medicamentosa ou metabólica aparente • Alterações hematológicas: anemia hemolítica, leucopenia ou trombocitopenia • Alterações imunológicas: fenômeno LE, anticorpos antidsDNA, antiag.Sm, VDRL falso-positivo (o teste Pâmela Brandão da Silva – Medicina UniFG 2020.2 (Semestre II) UCVI – Mecanismos de Agressão e Defesa 24 específico para anticorpos antitreponema é negativo) ou presença de anticorpos antinucleares em altos títulos. O paciente pode apresentar ainda alopecia, febre, mialgia, vasculite cutânea, fenômeno de Raynaud, linfadenomegalia, esplenomegalia, neuropatia periférica, episclerite e hepatite. O LES é frequente nos EUA (6 casos/100.000 pessoas) e mais comum em mulheres (9:1 em indivíduos de 15 a40 anos) e em negros (chance de 1:250 em mulheres negras americanas); embora possa ocorrer em qualquer faixa etária, surge frequentemente entre 15 e 40 anos. Associação familiai é comum, e a coincidência em gêmeos idênticos é de 30%. Tais observações mostram que fatores hormonais (gênero) e genéticos influenciam o aparecimento da doença, mas não se conhecem nem o papel dos hormônios femininos, nem os genes a ela relacionados. Embora não se conheça uma causa desencadeante, alguns fatores precipitam os surtos da doença: exposição à luz solar, fármacos (hidralazina, o:- metildopa, clorpromazina etc.), componentes químicos de alimentos (o:-canavanina em brotos de alfafa) e infecções de qualquer etiologia. Tais fatores podem desencadear a doença em indivíduos geneticamente predispostos, nifest embora na maioria dos casos as primeiras maações surjam sem um fator aparente. Pouco se sabe a respeito dos mecanismos responsáveis pela quebra de tolerância aos dversos i autoantígenos celulares no LES. Em animais com LES espontâneo, ao lado do fator genético bem evidenciado e do fator hormonal, há fortes indícios de participação de um vírus (um retrovírus) no desencadeamento da doença. Em modelos de lúpus murino, é muito frequente o achado de anticorpo antigp70, que é típico de infecção por retrovírus; em casos humanos da doença, não há evidências seguras de infecção viral. O LES é uma doença progressiva e de mau prognóstico. Todavia, com os medicamentos imunossupressores hoje disponíveis, tem sido possível controlar sua evolução e melhorar o estado geral dos pacientes. Na maioria dos casos, o óbito é devido às lesões renais progressivas. - Tireoidite de Hashimoto Tireoidite de Hashimoto é doença inflamatória crônica associada a autoanticorpos antimicrossomos de células fali- culares, antitireoglobulina, antiperoxidase da tireoide e antiantígeno de superfície de células foliculares. A origem autoimunitária da doença é reforçada por: (a) com frequência, encontra-se associada a outras doenças por autoagressão (anemia perniciosa, síndrome de Sjõgren); (b) existência de tireoidite autoimune espontânea em animais (pintos obesos); (c) indução de tireoidite semelhante à humana em animais de laboratório, ainda que não persistente, por injeção de tireoide homóloga em adjuvante de Freund. A doença é mais comum em mulheres (5:1), aumentando de frequência com o avançar da idade. Cerca de 10% das mulheres e 3% dos homens adultos assintomáticos possuem anticorpos antimicrossomos da tireoide, dos quais 1 O a 20% podem tornar- se sintomáticos. Infiltrado linfocitário discreto na tireoide é encontrado em até 15% das autópsias de indivíduos sem Pâmela Brandão da Silva – Medicina UniFG 2020.2 (Semestre II) UCVI – Mecanismos de Agressão e Defesa 25 antecedentes de doença tireoidiana. Macroscopicamente, a tireoide apresenta-se com tamanho normal ou aumentado, consistência firme, lobulada ou finamente nodular. Ao microscópio, encontra-se inflamação crônica com infiltrado de mononucleares formando numerosos folículos linfoides, muitas vezes volumosos e com centros germnativos i evidentes; cerca de 50% dos linfócitos têm marcadores para células B. Os folículos tireoidianos remanescentes são hipotróficos e frequentemente sofrem metaplasia oxífílica. O quadro histológico indica que as lesões têm mecanismo eminentemente celular, pois há intenso infiltrado linfomacrofágico na glândula. Não se sabe se a lesão de folículos é mediada por células T citotóxicas, por células T inflamatórias e macrófagos, por ADCC ou por todos eles. Linfócitos periféricos dos pacientes sofrem blastogênese in vitro na presença de antígenos da tireoide, indicando haver células T sensibilizadas. Estudos experimentais não são esclarecedores, já que em camundongos e coelhos com tireoidite experimental a lesão é transferida pelo soro, o que não acontece quando a doença é induzida em ratos ou cobaios. Nestes, a transferência de linfócitos para receptores normais induz lesões. Na tireoidite espontânea de pintos obesos, demonstra-se agressão celular mediada por anticorpos (ADCC). Portanto, é possível que haja agressão celular (células T inflamatórias) associada a lesão intermediada por anticorpos, justificando a grande quantidade de lin fócitos B na lesão (síntese local de autoanticorpos). A tireoidite de Hashimoto é doença progressiva que leva a destruição da tireoide, constituindo uma das causas mais frequentes de hipotireoidismo. - Diabetes melito tipo 1 A diabete meliw tipo 1 (TIDM), também chamada de diabete insulinodependente ou diabete juvenil, é uma forma de diabete que envolve a destruição inflamatória crônica das células fl produtoras de insulina nas ilhotas de Langerhans do pancreas, o que resulta em pouca ou nenhuma produção de insulina. A insulina facilita a entrada da glicose nas células, onde ela é metabolizada para a produção de energia. Na ausência de insulina, os níveis de glicose no sangue se elevam resultando em aumento da fome, vontade frequente de urinar e sede excessiva. Outros sintomas incluem perda de peso, náusea e fadiga. O principal problema é o desenvolvimento de cetoacidose, a produção de cetoácidos, que baixa o pH do sangue. Isto ocorre quando as células começam a quebrar as proteínas e ácidos graxos para atender exigências metabólicas na ausência de glicose. Diabete Melito Na TIDM, quem mais contribui para a destruição da célula fl são as células T CDB• citotóxicas. Entretanto, os infiltrados inflamatórios nas ilhotas de Langerhans incluem as células T CD4+ e macrófagos junto às citocinas que eles secretam, como IL-1, IL-6 e IFN-a. Muitos pacientes com TIDM também desenvolvem autoanticorpos para insulina e para outros antígenos das ilhotas tais como a ácido glutâmico descarboxilase (GAD). Acredita-se que esses autoanticorpos
Compartilhar