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ACCOUNTABILITY E TRANSPARÊNCIA PÚBLICA AULA 1 Prof. Fernanda Alves Andrade Guarido 2 CONVERSA INICIAL Nesta aula, nos dedicaremos aos fundamentos da accountability e seus mecanismos. Vamos nos debruçar sobre pesquisas anteriores que se propuseram a compreender o significado do termo no Brasil, e identificar os meios de realização, fazendo classificações. Também vamos identificar na prática o que se entende por accountability. Ao final, verificaremos que uma só palavra não define accountability – por ser polissêmica e multidimensional (Taylor, 2019, p. 1318), envolve ações distintas, com atores e papeis diversos. Veremos ainda que a accountability é muito importante nos estados democráticos, sendo forte nos locais em que há maturidade política e consciência do poder de atuação dos administrados. TEMA 1 – ACCOUNTABILITY – CONTEXTO E REALIDADE BRASILEIRA O termo accountability, não tem uma definição precisa na língua portuguesa. Dessa forma, há dificuldade em traduzi-lo, pois uma só palavra não o define. Contrariamente, nos Estados Unidos se fala muito em accountability, pois o norte-americano, com o emprego da palavra, logo compreende de que se trata. Essa observação é parte um estudo feito na década de 1990 pela professora Ana Maria Campos. Seu artigo é um dos primeiros a tratar da accountability no Brasil. É certo que há diferença nas relações entre a Administração Pública, e aquilo que é público no Brasil e nos Estados Unidos. Isso decorre das características culturais de um e outro e país. A forma de as pessoas se relacionarem com o Estado é diferente no Brasil e nos Estados Unidos. Da mesma forma, não se pode esquecer que existe um vínculo entre linguagem e cultura, que colabora na identificação, qualificação e, em suma, no conhecimento da realidade (Campos, 1990). Dessa forma, características da cultura brasileira poderiam ser responsáveis pela inexistência de um conceito preciso do termo accountability em nossa terra. A professora Ana Maria Campos passou a investigar, assim, de que forma o governo se relacionava com os cidadãos; de que maneira os cidadãos viam o governo e o Estado como um todo; como os servidores lidavam com os cidadãos; e como as pessoas em geral lidavam com o que era público (bens, recursos, entre outros). 3 Em 1990, observou-se que a pobreza política do brasileiro, a ausência, a fraqueza ou a pouca legitimidade das instituições e a falta de bases para as instituições brasileiras (características que favoreceram a existência de uma democracia formal no Brasil, marcada pela aceitação passiva do domínio do Estado) eram fatores que conduziam à inexistência do termo accountability no país. Quer dizer, os cidadãos brasileiros não tinham a cultura de exigir seus direitos, que estão no papel, na Constituição, nas leis, mas muitas vezes não se concretizam. Por sua vez, os cidadãos tinham uma relação de subordinação em relação ao Estado, favorecendo a existência de um “Superestado” (governo autoritário) e de “subcidadanias” (cidadãos subservientes). Observemos que, em 1990, há apenas dois anos de promulgação de nossa Constituição da República, também inexistia compromisso do cidadão brasileiro com qualquer forma de associativismo, ou com a gestão, o que favorecia a dominação do Estado. Quer dizer, o texto constitucional já favorecia a participação política do cidadão brasileiro, mas este ainda não era senhor de seus direitos, pois ainda estava descobrindo o texto da Constituição, construindo o seu sentido. Por isso, ainda não eram comuns e nem frequentes as associações de defesa de direitos dos cidadãos, e menos ainda a participação política dos cidadãos na gestão pública. Nossas instituições eram fracas. Por esses – e outros – motivos, a democracia brasileira era fraca, e alternava entre períodos de autoritarismo e populismo. Dessa forma, a fraqueza do tecido institucional determinava a ausência de controles do público sobre o Estado (Campos, 1990, p. 37). A fraqueza da imprensa como instituição, a falta de transparência nas organizações burocráticas do governo, a debilidade das instituições políticas, o baixo nível de organização da sociedade civil, a fragmentação cívica e ética das instituições – são evidências de uma democracia formal (Campos, 1990, p. 37- 9). Por outro lado, a Administração Pública brasileira era marcada pela centralização política e administrativa e pela ausência de participação dos indivíduos (por si ou por suas associações) nas políticas públicas (Campos, 1990, p. 40). A democracia brasileira, logo após a promulgação da Constituição, era formal, ou seja, constava das leis, mas ainda não se concretizava em ações diárias. Por exemplo, a constituição assegurava a existência de conselhos de comunidade, mas eles ainda estavam sendo descobertos, ainda estavam em 4 formação. Da mesma forma, a ação popular, as audiências públicas, as consultas públicas, apesar de constarem do texto constitucional, ainda não eram uma realidade. O mesmo pode ser dito dos orçamentos participativos, do dever de informação, todos presentes em regras, mas ausentes ou fracos na prática. Lembremos também que nossas instituições, encarregadas do controle, ainda estavam em estágio inicial, tal como o novo papel do Ministério Público, os Tribunais de Contas, as Corregedorias, entre outros. Enquanto a realidade no Brasil era de uma democracia formal, nos Estados Unidos a democracia não tinha tais características. Afinal, sendo uma democracia moderna, ali se considera natural que o governo e a gestão “sejam responsáveis perante os cidadãos” (Campos, 1990, p. 30). Quer dizer, lá há uma maior participação do cidadão na gestão pública e nem todos os serviços são de responsabilidade do Estado – e mesmo quando são, o cidadão está mais presente, é mais consciente acerca do que se faz, como se faz, opina acerca do gasto público, participa da gestão. Daí se percebe que o cidadão é ator responsável na existência e no processamento da accountability. Observemos que existe uma correlação entre accountability e democracia. É que ela é natural e corriqueira (constante) nos países onde há menos distância entre administrados e governo – isso nos locais em que há mais igualdade, menos autoridade e menos hierarquia. Por isso, pode-se afirmar que a accountability se relaciona com valores democráticos, tais como “igualdade, dignidade humana, participação e representatividade” (Campos, 1990, p. 33). O conceito é encontrado, dessa maneira, em ações, a exemplo do controle da gestão pública, sendo realizado, sobretudo, pelos destinatários das políticas públicas. Mecanismos de controles internos, ferramentais, estruturas e regras só serão efetivos se os cidadãos, individualmente ou por suas associações, participarem das políticas públicas, seja em sua construção, seja na entrega dos resultados. Isso envolve uma série de ações, que serão efetivas se realizadas concomitantemente, tais como: o exercício adequado da cidadania, desde o ato de votar, até o acompanhamento da gestão dos detentores de mandato eletivo; a participação na decisão acerca das políticas públicas a serem realizadas; o desenvolvimento de novos relacionamentos com os servidores públicos e com o Estado, nos quais não haja subserviência, nem clientelismo por 5 parte dos cidadãos, mas uma postura de equidade (o Estado e os servidores públicos não são melhores, nem mais sábios do que qualquer cidadão); o uso adequado de ferramentas que medem produtividade e desempenho; a formulação de leis e outros atos normativos que definam condutas e responsabilidades; a efetiva verificação e cobrança acerca do cumprimento das obrigações pelos gestores públicos (sejam servidores públicos lato sensu, agentes políticos, ou ainda particulares imbuídosde funções públicas). TEMA 2 – DEFINIÇÕES INICIAIS Accountability se relaciona, por assim dizer, com resposta e com responsabilização. A responsabilidade pode ser encarada pelo próprio indivíduo como um dever moral, ou como um dever advindo de um regulamento. A responsabilidade advinda de um dever moral está atrelada àquilo que o indivíduo acredita, ao modo como esse indivíduo conduz a sua vida, às crenças que norteiam o seu agir. É uma responsabilidade subjetiva, que vem do sujeito, internamente. Por outro lado, há a responsabilidade objetiva, isto é, decorrente da existência de regras que preveem sanções para os casos de descumprimento das obrigações que a própria regra cria. Na responsabilidade objetiva, o indivíduo faz o que deve ser feito, não porque acredita que está fazendo o que é correto, mas sobretudo porque a desobediência gera um resultado não desejado – uma penalidade. Na responsabilidade objetiva, cumprem-se obrigações. Dessa maneira, accountability se relaciona, também, com o cumprimento de uma obrigação. Postas essas questões contextuais, já é possível definir o termo. Para Paludo (2013, p. 135), “A noção de accountability encontra-se relacionada com o uso do poder e dos recursos públicos, em que o titular da coisa pública é o cidadão, e não os políticos eleitos”. O conceito auxilia na compreensão do que envolve a accountability, mas ainda é impreciso na definição de seus contornos. É que falta entender o que os cidadãos devem fazer em relação ao uso do poder e dos recursos públicos. Matias-Pereira (2010, p. 71) ressalta: “O termo accountability pode ser considerado o conjunto de mecanismos e procedimentos que levam os decisores 6 governamentais a prestarem contas dos resultados de suas ações, garantindo- se maior transparência e a exposição das políticas públicas”. Para realizar a accountability, devem ser adotadas ferramentas e processos voltados à prestação de contas daquilo que se fez estando à frente da gestão pública. Mas a accountability realmente ocorrerá se a resposta for dada quanto ao alcance do resultado que as ações praticadas pelos gestores públicos acarretaram. Quer dizer, as ferramentas e os processos de prestação de contas devem mostrar os resultados da ação. Somente assim estamos sendo verdadeiramente transparentes, se há, de fato, uma justificação acerca do como se atuou. Essa resposta deve ser dada aos cidadãos e aos encarregados do controle, visto que nos Estados Democráticos o controle também é exercido pelos órgãos previstos na estrutura governamental (tribunais de contas, controladorias, entre outros). Independentemente das características de cada país, estudos ressaltam que, em regra, ela decorre da transparência, da fiscalização e da sanção, sendo influenciada pela capacidade de agir das instituições de controle e pela dominância política de cada Estado. Vejamos o trecho a seguir como reflexão: sejam quais forem as idiossincrasias das experiências individuais de países com relação ao equilíbrio de accountability, os princípios básicos sugerem que accountability (A) é resultado da transparência (T), fiscalização (F) e sanção (S), moderados pelo grau de efetividade (E) das instituições, ajustado pelo grau de dominância política (D). essa abordagem pode ser resumida da seguinte maneira: A= (T+ F+ S) * (E – D). (Taylor, 2019, p. 1318) A citação quer dizer que a fórmula pode ser aplicada de forma ampla, em vários níveis de análise (por exemplo, dentro de um setor do governo, ou na relação entre governo e sociedade) e diferentes setores políticos (por exemplo, estados, municípios e mesmo países, ou ainda setores, segmentos, entre outros). Com essa fórmula, podemos verificar modos de alcançar os objetivos da accountability, dado que sua estrutura analítica permite identificação de escolhas estratégicas sobre políticas públicas. Vamos considerar, por exemplo, um tribunal de contas que realmente fiscaliza (uma instituição efetiva), com liberdade em relação a quem está no poder (baixo grau de dominância política). Em uma realidade como essa, as chances de as ações de transparência, fiscalização e sanção serem efetivas são maiores. Nesse cenário, pode-se alcançar a accountability. 7 TEMA 3 – TIPOS DE ACCOUNTABILITY Já sabemos que a accountability abarca múltiplas ações, sendo dominantes ações de transparência, fiscalização e sanção. Mas é preciso pensar ainda em como ocorre a accountability, quem são as pessoas envolvidas, e se é possível definir uma tipologia (espécies de accountability). Pensamos que sim. Podemos falar em accountability vertical e em accountability horizontal. A primeira (accountability vertical) advém do controle exercido pelos cidadãos e pela sociedade em relação aos governos e agentes políticos. Esse tipo de accountability pressupõe o controle exercido por desiguais (Paludo, 2013, p. 137), isto é, por agentes não estatais (cidadãos e sociedade) a agentes estatais (agente públicos e agentes políticos) (Mota, 2006, p. 43). Para ser autêntico, esse tipo de accountability demanda uma relação de respeito entre representantes e representados. Na accountability vertical, o detentor de mandato eletivo (agente político) representa o cidadão e, nessa condição, deve agir segundo seu juízo, em respeito aos contornos legais, buscando concretizar aquilo que ele sabe ou acredita ser a vontade de seus representados (Mota, 2006, p. 17). O primeiro exemplo de accountability vertical é aquele exercido por meio de eleições, com o instrumento do voto. O plebiscito e o referendo são exemplos de accountability vertical, pois também são exercidos pelo voto. O ato de representar demanda uma certa discricionariedade, que permitirá, dentro dos contornos legais, a realização de escolhas que devem conduzir à concretização da vontade dos representados. Os deveres de motivação e de publicidade, entretanto, são inafastáveis aos agentes políticos, para que se permita entender, analisar e mesmo julgar as ações dos agentes políticos (Mota, 2006, p. 17). É preciso lembrar, entretanto, que mesmo agindo dentro da legalidade, nem sempre o representante eleito vai fazer aquilo que seus representados desejam ou esperam. A liberdade de associação e a liberdade de opinião dos eleitores surge como o contrapeso necessário à garantia da accountability (Mota, 2006, p. 21). Mas ela só é possível se houver transparência em relação aos atos praticados pelos agentes políticos e pelos governos (agentes públicos). Da mesma forma, é necessário garantir liberdade de expressão política, de modo que se tenha uma autêntica democracia, na qual se observe a accountability vertical (Mota, 2006, p. 21). Nesse sentido, o associativismo dos cidadãos ocupa 8 um lugar central, pois a partir dele é possível expressar aos agentes políticos o que se pensa e o que se deseja em relação à gestão em exercício. O associativismo também pode conferir poder para demandar, controlar. Por isso, a liberdade de expressão e de associação representa um contrapeso democrático de grande importância na democracia representativa (Mota, 2006, p. 22). Atos de publicidade realizados na sociedade civil ou na imprensa também constituem exemplo de accountability vertical, pois podem servir ao exercício do controle. O mesmo se passa com o voto, que permite uma accountability realizada periodicamente a cada eleição. Mas somente a accountability vertical não garante aos agentes políticos e aos agentes públicos (servidores públicos em geral, e quem lhes faça as vezes) a responsabilização necessária, a fim de garantir ações legítimas (entendidas como aquelas desejadas pelos representados). Por conta disso, outros instrumentos são necessários, a exemplo de leis que estabeleçam obrigações. Tais instrumentos, tais arranjos institucionais constituem a accountability (Mota, 2006, p. 25). Assim, sãoprescritas regras, que quando desobedecidas vão acarretar sanções aos agentes políticos (e/ou aos agentes públicos). O segundo tipo, a accountability horizontal, diz respeito ao controle exercido pelos poderes ou pelos órgãos decorrentes. Diz-se horizontal por ser um tipo de controle exercido de agente estatal para outro agente estatal (Mota, 2006, p. 43). O controle exercido pelo Ministério Público, pelo Tribunal de Contas, pelo Legislativo, pelas Controladorias e por agências fiscalizadoras qualifica-se como controle horizontal. O controle horizontal será entre iguais (controle entre os poderes) ou entre autônomos (controle realizado por agências fiscalizadoras e por órgãos dos poderes) (Mota, 2006, p. 14). São exemplos de controle horizontal: Ações de improbidade administrativa movidas pelo Ministério Público em desfavor de agentes políticos. Instauração de Tomada de Contas Especial pelo Tribunal de Contas da União em relação a atos de gestores do executivo federal. Podemos citar outras classificações feitas para o termo accountability. No conceito de accountability política, por exemplo, estão presentes as dimensões de (1) informação, (2) justificação e (3) punição (Schedler, citado 9 por Paludo, 2013, p. 135). Mas o que isso quer dizer? Informação e justificação são meios de promover transparência da ação, são meios de resposta, conhecidos pelos teóricos como answerability (informação + justificação). Já a dimensão de punição, chamada de enforcement pelos teóricos estrangeiros, completa a dimensão do controle atribuída à accountability. Para resumir, podemos afirmar que, juntas, essas dimensões da accountability (informação, justificação e sanção ou answerability e enforcement) visam evitar e corrigir o abuso de poder político (Schedler, citado por Mota, 2006, p. 46). É preciso atentar, portanto, para a importância do elo entre as dimensões da accountability, pois isoladas elas não alcançam a accountability de fato. Por exemplo, informação e justificação, sozinhas, são um tipo de transparência, mas não são accountability. Em suma, para que exista accountability, a possibilidade de punir deve estar presente. Assim, considerando a accountability política, no exercício do poder é obrigatório haver transparência, devendo-se noticiar e explicar as ações tomadas. Se houver desvio das finalidades a que o atributo de poder conduz, deve haver sanção, a fim de coibir os desvios. Cumprindo com tais deveres, as dimensões de accountability podem conduzir a uma gestão transparente. Como funciona? Pense em um político, em pleno exercício de seu mandato eletivo. Um prefeito, por exemplo, que prometeu fazer uma obra de saneamento em bairros da cidade. Como fiscalizar tal ação? Podemos fazê-lo observando o PPA – Plano Plurianual. A obra está lá? Em que ano foi planejada? Quanto foi reservado para a obra? Há verba destinada? Ela foi realizada? Houve publicação dos atos inerentes à licitação? O contrato celebrado foi publicado? A obra foi realizada no tempo previsto? Verificando as páginas de publicações oficiais, pode-se garantir que as publicações foram feitas, se o contrato foi executado... e, diante da ausência da ausência, a dimensão de enforcement pode atuar, por meio das instâncias de controle (Tribunais de Contas, Ministério Público, punindo-se os responsáveis) A accountability necessita, para ser efetiva, de mecanismos institucionais fortes. Tais mecanismos podem ser diversos: uma lei com alto poder de coerção, um Tribunal de Contas e um Ministério Publico atuantes e muito respeitados, entre outros. Após tudo o que já vimos, podemos afirmar que existem mecanismos institucionais que asseguram accountability no Brasil (Mota, 2006, p. 2). Na Constituição de 1988, muitos desses mecanismos foram enaltecidos. 10 O próprio fato de integrarem o texto constitucional já lhes confere força normativa com potencial de concreção. A existência de conselhos da sociedade, audiências públicas, eleições periódicas, direito à informação e à liberdade de expressão, o dever de prestação de contas, o Ministério Público e seu papel bem-definido, os Tribunais de Contas, entre outros, são exemplos de mecanismos institucionais de accountability. Há ainda outras classificações feitas para o termo accountability (Paludo, 2013, p. 135): Accountability societal – aquele tipo de controle exercido por organizações da sociedade civil. Investigação e denúncia de abusos cometidos por detentores do poder no exercício de funções públicas, quando feitas por ONGs (Organizações Não Governamentais), são exemplo de accountability societal. Accountability econômica – o termo envolve a obrigação de prestar contas, como também o uso de boas práticas de gestão. Envolve ainda a possibilidade de responder pelos atos e resultados decorrentes da atuação do gestor. O Centro Latino-americano de Administração para o Desenvolvimento – CLAD é uma organização internacional e intergovernamental criada nos anos 1970. Propõe construir um novo modelo de Estado para a América Latina no século XXI. O CLAD surgiu em 1972, com os governos de México, Peru e Venezuela. Ele é respeitado por diversas entidades sérias voltadas ao desenvolvimento. A finalidade do CLAD é promover o desenvolvimento da gestão pública. Para tanto, firma convênios de cooperação com diversas entidades. A accountability é considerada pelo CLAD como crucial para o desenvolvimento dos Estados. Assim, em seus estudos, o CLAD definiu outras formas de realização da accountability. São elas: formas administrativas e políticas ou democráticas. Tal subdivisão ainda permite a classificação das formas gerenciais de responsabilização. Nas primeiras (formas administrativas), tem-se o controle de procedimentos, o controle de resultados e a competição administrada (CLAD, 2006). Mas como agem esses controles? Eles atuam de várias formas, seja na verificação da obediência a ritos internos, na verificação do alcance de 11 resultados, seja no estímulo para o desenvolvimento de ações benéficas para a unidade administrativa. É importante observar que, no controle de procedimentos, a atuação se dá pela verificação da eficiência; isto é, atenta-se se o rito estabelecido para a realização da função pública está sendo cumprido. Lembramos que obedecer ao rito envolve seguir regras e protocolos internos. Já na atuação pelo controle de resultados, o que se busca é a aferição do alcance de metas. Por fim, a competição administrada envolve o estabelecimento de estímulos e premiações para o cumprimento de metas pré-estabelecidas. Por fim, temos as “formas democráticas de accountability”. Trata-se de uma classificação por meio da qual podemos observar uma atuação por meio de supervisão parlamentar, exercida pelo Legislativo em relação aos demais poderes, notadamente o Executivo, esfera em que o termo accountability ganha relevo especial. Por exemplo, uma Câmara de Deputados pode solicitar ao Executivo que envie relatórios dos gastos que realizou. Outro exemplo: a criação de cargos públicos no âmbito do Executivo só pode ocorrer mediante lei. Também nessas formas democráticas há o “controle social”, que cuida de formas diretas de accountability exercidas pelos indivíduos. O exemplo clássico é o voto, por meio do qual um cidadão pode decidir se colabora para eleger ou não um dado político. Fala-se ainda em formas gerenciais de responsabilização, que têm ligação com o modo de gestão da coisa pública. Nessa seara, estão o controle por resultados e por competição administrada e o controle social. Aqui, importam, entre outros princípios, dar poder de ação ao gestor, priorizando o resultado da política pública, estimulando o modus operandi do gestor e conferindo transparência à gestão, de modo que o indivíduo seja partícipe e não cliente (Bresser-Pereira, 1998). Taylor(2019, p. 1318) afirma que accountability é um conceito multidirecional, e não somente vertical ou horizontal. Em seu entendimento, está presente a ideia de múltiplas ações que desencadeiam processos de accountability, bem como o envolvimento, não somente de sancionamento de comportamentos inadequados, mas também de monitoramento constante e potencial de investigação da conduta do ator governamental. O conceito abarca ainda, segundo Taylor (2019), a prevenção de transgressões. 12 TEMA 4 – OS AGENTES E A ACCOUNTABILITY Chegou o momento de estudar as pessoas envolvidas com a accountability, isto é, os agentes ou os atores. Escolhemos uma teoria para abordar o assunto. Trata-se da teoria agente-principal. Segundo a teoria do agente-principal, a accountability envolve a atuação de dois atores: o principal e o agente. Por essa teoria, o principal delega autoridade para que o agente atue em seu nome. A delegação, isto é, o ato de autorizar que alguém atue em nosso nome, tem a finalidade de promover a execução de algo que seja do interesse da parte que delega. Na teoria, o principal delega poderes ao agente. O agente é o gestor público, o político, enfim, aquele que atua na gestão pública. O principal é o cidadão. Nessa relação (agente e principal), é preciso considerar a assimetria de informações. Assimetria é o mesmo que diferença, desigualdade. Assim, no nosso caso, o agente (gestor ou agente público), que atua no exercício do poder que lhe foi delegado, tem informações que o principal (o cidadão) não tem. Nesse contexto, assimetria quer dizer desigualdade de informações. Devemos considerar ainda que os interesses do agente (gestor ou agente público) podem não coincidir com os do principal (cidadão), impactando na efetividade dos objetivos da relação obrigacional pactuada. Quer dizer, há risco de, chegando ao poder, o gestor público buscar a realização de interesses pessoais, ao invés de interesses públicos, com os quais havia se comprometido. Relembrando: consideramos, portanto, como principal, aquele que contrata uma obrigação, e agente aquele que se obriga a realizá-la. Assim, em regra os cidadãos confiam aos gestores públicos a obrigação de gerir os bens públicos. Por exemplo, o principal na accountability vertical deve ser entendido como o indivíduo ou a sociedade. O agente é o agente público. Pela teoria principal-agente, considera-se, portanto, que o agente possui interesses e informações que podem não ser os mesmos do principal. Assim, a assimetria (desigualdade) de informações é um problema a ser considerado para a efetivação da accountability. Já na accountability horizontal, considera-se que a relação se dá entre agentes, posto que nos dois pólos da relação há atores que desempenham obrigações atribuídas, segundo interesses públicos, na estrutura institucional vigente. Segundo Robl Filho e Garcia Junior, 13 A função das instituições democráticas passaria pelo estabelecimento de um processo de responsabilização do agente por meio das suas ações e omissões, assim como da aplicação de sanções adequadas para o caso em que os agentes não concretizem os interesses do principal ou descumpram as normas legais. (Robl Filho; Garcia Junior, 2018, p. 15) A accountability ganha força, assim, quando há mecanismos de enforcement, isto é, mecanismos de coerção aptos a compelir o agente a cumprir com o que podemos chamar de mandato. Tal como visto anteriormente, acontece que o mandato do agente muitas vezes não é vinculante, razão pela qual espera-se que ela aja segundo os interesses dos principais. Os políticos, por exemplo, não estão vinculados às promessas de campanha. Dessa forma, os mecanismos institucionais têm o papel de norte, para compelir o agente a realizar o mandato. O agente terá alguma liberdade, portanto, mas os contornos gerais de sua atuação estarão pautados por mecanismos institucionais que o legitimam (ou não). A lei é um desses mecanismos. São exemplos de agentes: detentores de mandato eletivo, tais como prefeitos, governadores, presidente da República, além de agentes políticos e agentes públicos – servidores públicos em geral. São exemplo de principais: o povo, a sociedade, a comunidade, o indivíduo, o eleitorado, as associações. É preciso atentar para o fato de que a dimensão de justificação (resposta sobre as obrigações que devem ser cumpridas pelo gestor público) merece especial atenção neste tema. Assim, o gestor deve dar satisfação de seus atos. Logo, ao decidir, ele deverá justificar os fundamentos que o levaram à decisão. E por que é assim? Podemos responder com base no Direito: é que o exercício de função pública envolve agir conforme a lei. Por isso, dizemos que a Administração Pública é regida pelo princípio da legalidade (Carvalho, 2009). Assim, como o gestor público tem que dar especial atenção à lei, deve motivar seus atos, fundamentando-os, bem como indicando os pressupostos de fato e de direito que os motivaram. Quer dizer, ao tomar uma decisão, o gestor público não pode agir com autoridade, impondo-a. Ele deve decidir e explicar os motivos que o levaram a escolher um caminho ao invés de outro. Sempre que possível, ele deve escrever os fundamentos – presentes na lei – para a sua decisão. Com isso, os agentes públicos facilitam a verificação, que é inerente à atuação pública, permitindo a conferência da adequação legal (cumprimento da lei) e finalística (realização de metas, políticas públicas) do ato praticado. Quer 14 dizer, o gestor deve justificar o ato com base na lei e com base na finalidade da sua realização. TEMA 5 – A ACCOUNTABILITY EM NOSSO COTIDIANO Vimos que no Brasil de 1990 o termo accountability não apresentava correspondente, de modo que nos deparávamos com um termo impreciso em língua portuguesa. Não havia tradução para a palavra accountability. Em 1990, a Constituição da República tinha apenas dois anos de promulgação, mas seu texto já trazia diversos conteúdos que permitiam a realização da accountability, ainda que não se pudesse dizer com certeza o que ela era. É que a Constituição previu a existência de meios de atuação do Ministério Público e do Tribunal de Contas; incluiu formas de participação da sociedade na gestão; trouxe a ação a ação popular para o nosso cenário; instituiu Conselhos da Comunidade, entre outras previsões que se alinham à accountability. De 1990 para cá, muita coisa mudou. O texto da Constituição foi sendo descoberto, concretizado, através do exercício cotidiano dos atos de cidadania, como também das práticas da gestão pública. Os artigos da constituição relativos à accountability são explicados em ações concretas. Assim, o Tribunal de Contas, o Ministério Público, os Procons, as Defensorias Públicas, as Controladorias, os Conselhos, os Observatórios, entre outros, são instrumentos de accountability previstos ou possibilitados pela Constituição. Tais instrumentos, em suas áreas de competência, vêm desempenhando funções importantes para o controle da gestão pública. Em suma, vimos que a accountability se vale de mecanismos institucionais, e que a lei é um desses importantes mecanismos. Nesse sentido, o próprio texto da Constituição permitiu o desenvolvimento da accountability no Brasil. Mas ainda são válidas as indagações: será que já podemos definir o termo com precisão? A língua portuguesa já nos confere uma clara dimensão do termo? Já temos maturidade política suficiente para termos intimidade com a accountability e seu papel? Temos atores suficientemente maduros, cientes de suas obrigações e de suas prerrogativas no que tange ao controle? Para responder a essas perguntas, acreditamos que é preciso analisar a trajetória da democracia brasileira, além dos marcos da gestão pública, a fim de compreender se houve modificações na compreensão do que vem a ser a accountability no Brasil.Quer dizer, como a democracia brasileira se 15 transformou? Como a gestão pública se transformou? Podemos afirmar que são muitas transformações, e que elas se refletem no dia a dia do brasileiro. Passados os anos, reconheceu-se que a Constituição da República consolidou importantes mecanismos de accountability, a exemplo do orçamento participativo, dos conselhos e do plebiscito, entre outros já mencionados. Tais mecanismos permitem a participação da sociedade nas políticas públicas (Pinho; Sacramento, 2009). Mas não é só isso. Ainda podemos citar outras mudanças. As reformas gerenciais, por exemplo, simbolizam um avanço em prol da realização da accountability no Brasil. Entre elas, a reforma gerencial ocorrida no interior da Administração Pública, em 1995, se apresentou como marco de mudança no modo de gerir a Administração Pública. O Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado – PDRAE, com as modificações no controle da gestão pública, foi considerado um instrumento de modernização. As reformas da Administração Pública brasileira, juntamente com a governança, são um tema que merece aprofundamento (Pinho; Sacramento, 2009). Nesse sentido, destaca-se a mudança no tipo de controle, que deixou de focar nos processos e nas formalidades em si, passando a olhar para os resultados. Ou seja, a Administração Pública aprendeu que um controle, atento apenas para o cumprimento da lei, ou para a sequência de ritos, não é suficiente e nem efetivo. Com isso, passou a olhar para a política pública como um todo, preocupando-se mais com o resultado das ações dos gestores, ao invés de atentar para a formalidade dos atos praticados. NA PRÁTICA Estudamos a dificuldade de os pesquisadores brasileiros definirem o termo accountability, algo que inclusive foi atribuído à relação existente entre linguagem e cultura (Campos, 1990). É importante estudar como, apesar da dificuldade de precisar o conceito, o termo é compreendido em instâncias encarregadas de fazê-lo. Pesquisando a jurisprudência selecionada do Tribunal de Contas da União – TCU, por exemplo, pode-se afirmar que, na prática, accountability é sinônimo de responsabilização. Assim concluímos porque, ao inserir a primeira como palavra-chave de pesquisa, são selecionados acórdãos que fazem menção à responsabilização. 16 Assim, ao pesquisar o termo accountability na jurisprudência, foram encontrados 243 acórdãos, com destaque para o termo responsabilização. Vale a pena transcrever alguns trechos, a título de ilustração: A presunção de corresponsabilidade do secretário municipal de saúde em relação à malversação de recursos do SUS (art. 9º, inciso III c/c art. 32, § 2°, da Lei 8.080/1990) é relativa e deve ser afastada na presença de evidências de que o gestor local de saúde não teve participação efetiva na gestão dos recursos. (Brasil. Tribunal de Contas da União. Acórdão n. 4785/2019. Data: 25.06.2019. Primeira Câmara. Relator: Marcos Bemquerer) Embora no enunciado acima não se encontre o termo responsabilização, nos indexadores, isto é, nos termos usados para selecionar o acórdão, consta o termo, que é também apresentado na jurisprudência do TCU quando se escreve o termo accountability. Percebe-se também no enunciado que o tema abordado é a responsabilização – no caso, isenção a um agente público local, quando não participou de atos de má gestão de recursos públicos por parte de agente público de outra esfera. Em outra ocasião, também na jurisprudência selecionada do TCU, lê-se: “Comando ministerial constante de portaria não justifica a violação de leis orçamentárias e ambientais. A burla de bloqueio orçamentário enseja a responsabilização do gestor”. (Brasil. Tribunal de Contas da União. Acórdão n. 0721/14-P. Data: 26.03.2014. Relator: José Mucio Monteiro). Esse acórdão evidencia a importância de se respeitar as receitas estimadas e as despesas constantes da Lei Orçamentária Anual – LOA. Burlá-la consiste em irregularidade grave, passível de responsabilização. O mesmo pode acontecer com quem burla metas, diretrizes ou programas previstos no Plano Plurianual – PPA ou na LDO – Lei de Diretrizes Orçamentárias. Nesse sentido, é importante lembrar que a LDO intermedia o médio planejamento do PPA em relação à LOA, pois é na LDO que devem constar as metas e prioridades do orçamento anual, a encargo da LOA (Deprá; Leal, 2017). No Judiciário, especificamente para o Superior Tribunal de Justiça – STJ, accountability é sinônimo de prestação de contas, consistindo em um princípio. Ao usar o termo para pesquisar, foram encontrados 5 acórdãos e 46 decisões monocráticas. Para ilustrar o que se expõe, é oportuna a citação da seguinte jurisprudência: 6. O sistema republicano brasileiro estabelece, em esfera federal, que é obrigação do Presidente da República apresentar, anualmente, ao Congresso Nacional as contas referentes ao exercício anterior (art. 84, XXIV da CF/88). Não há dúvida de que se trata de regra a ser adotada 17 em simetria pelos entes federados, por se tratar de importante dispositivo de accountability praticado nos tradicionais mecanismos de freios e contrapesos que plenificam o Estado Democrático de Direito e que afastam as práticas despóticas de órgãos governamentais. 7. Por conseguinte, é imperativo que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, bem assim como a todos os gestores da coisa pública, apresentem aos órgãos de controle as contas de dinheiros, bens e valores que venham a ser arrecadados e utilizados em obrigações de natureza pecuniária. 8. E, para conhecimento dos cidadãos, cabe aos entes efetuar a disponibilização de informações em portais de transparência, dotados de ampla divulgação, para acompanhamento do emprego dos recursos públicos, consoante dispõe a LC 101/2000. [...] (Brasil. Superior Tribunal de Justiça. Resp n. 83.1965. Data: 29.08.2017. Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho) No site eletrônico da CGU, a pesquisa com o termo accountability conduz a informações e normas que remetem ao tema governo aberto e integridade pública. A accountability igualmente surge como termo associado a estratégias de combate à corrupção. FINALIZANDO Vimos que o termo accountability não tem, no Brasil, uma precisão conceitual. Com o amadurecimento de nossa democracia, aprendemos acerca de suas dimensões de informação, justificação e punição (ou prestação de contas, transparência e responsabilização). O conceito pode ser associado, entre outros, a atos de controle, responsabilização e prestação de contas. Mas simplificá-lo ou isolá-lo em um desses atos é perigoso, pelo desprezo indevido a todas as dimensões da accountability. Fala-se em diversos tipos de accountability: os tipos horizontal e vertical ganharam espaço nas pesquisas. Na vertical, temos atos de fiscalização e controle sendo exercidos pelos cidadãos, sozinhos ou por meio de associações. Esse tipo de accountability tem forte ligação com democracias amadurecidas e cidadãos politizados. A accountability horizontal é aquela que ocorre por meio de agentes estatais: controles internos (controladorias, ouvidorias, setores de controle interno), Legislativo, Judiciário, Ministério Público e Tribunais de Contas. Os atores envolvidos na accountability envolvem, segundo a teoria, um agente (agente público) e um principal (aquele que outorga o mandato; geralmente é o povo e o interesse público primário a ele atrelado). Assim, há a figura de alguém que age para realizar uma política pública, e esse alguém deve prestar contas de seus atos. Para que o mandato outorgado seja cumprido, é necessário que certos mecanismos sejam desenvolvidos, a fim de assegurar que 18 o agente não se desviará dos compromissos que assumiu. Isso fica fácil de compreender se pensarmos em políticos eleitos, com a obrigação de cumprir as promessas ou os planos apresentadosdurante a campanha. Tais promessas e planos devem estar atrelados a interesses públicos. Há, na estrutura institucional, mecanismos que vão fazer com que os agentes não se desviem das promessas antes realizadas. O PPA, a LDO e a LOA são leis orçamentárias nas quais constam as políticas públicas de médio (PPA) e de curto prazo (LDO e LOA). Por sua vez, os controles interno e externo, no cumprimento das funções institucionais (aquelas ligadas às próprias finalidades dos órgãos), estão encarregados de verificar o cumprimento dessas políticas e punir ou seguir a responsabilização quando houver desvio. O Ministério Público e o Judiciário também apresentam papel importante. O primeiro, ao investigar e provocar o judiciário para a responsabilização civil e criminal dos agentes que desviarem de seus deveres. Os Tribunais de Contas, no exercício do controle externo, na guarda de bens e dinheiro público, poderão responsabilizar agentes públicos faltosos com seus deveres. O povo, por fim, é o detentor do autêntico poder de controlar. No Brasil, pouco a pouco o povo descobre instrumentos de controle que estão a seu dispor. Os Conselhos da Comunidade, presentes na Constituição da República; as audiências públicas, as consultas públicas, os orçamentos participativos, a ação popular, entre outros, são mecanismos que permitem que o controle seja exercido pelo povo (individual ou coletivamente). O dever de justificar é inerente ao exercício da função pública. Isso envolve motivar os próprios atos e documentar o que se faz, permitindo, em suma, a compreensão do que foi realizado no exercício da função pública, a fim de se aferir se o meio utilizado foi adequado, se a finalidade pública a que se destina foi atendida, e se o meio utilizado era o mais interessante e viável, entre as opções existentes. É inafastável, ao agente público, a motivação, isto é, a justificação de suas funções. Afinal, aquilo que o agente público faz deve estar atrelado ao cumprimento de interesses públicos, sendo que muitas vezes até mesmo a forma de praticar o ato aparece discriminada no regramento vigente. A justificação deve ser realizada, portanto, pelos agentes públicos, a fim de que seja possível verificar que as obrigações, contraídas ou impostas funcionalmente, foram todas cumpridas. 19 Caso o agente público desvie das funções que lhe são atribuídas e/ou de suas obrigações legais, ele deve ser responsabilizado. Os mecanismos de coerção, ou seja, de imposição de cumprimento das regras, são fundamentais para assegurar que o agente público cumprirá seus deveres ou suas funções institucionais. Caso não o faça, sofrerá sanções que podem variar, a depender de quem realiza a accountability – pode ser a perda de eleições posteriores (accountability social); a imposição de uma multa (accountability horizontal exercida, por exemplo, por um Tribunal de Contas); ou a cassação de direitos políticos (sentença transitada em julgado aplicada por um juiz no exercício da função jurisdicional). Os mecanismos de responsabilização ou enforcement têm, assim, um importante papel na accountability. É certo, pois, que a accountability é um termo multidimensional, que pode ser exercido de maneiras diversas, podendo se destacar, segundo o CLAD (2006): formas administrativas de responsabilização a. controle de procedimentos b. controle de resultados c. competição administrada formas políticas ou democráticas de controle d. supervisão parlamentar e. controle social (democracia direta) formas gerenciais de responsabilização f. controle por resultados g. controle por competição administrada h. controle social 20 REFERÊNCIAS BRESSER-PEREIRA, L. C. Reforma do estado para a Cidadania: a reforma gerencial brasileira na perspectiva internacional. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2011. CAMPOS, A. M. Accountability: quando poderemos traduzi-la para o português? Revista de administração pública, v. 24, n. 2, p. 30-50, 1990. CARVALHO, R. M. U. Curso de Direito Administrativo. 2 ed. Salvador: Jus Podvim, 2009. CLAD – Centro Latino-americano de Administração para o Desenvolvimento. A responsabilização na nova gestão pública latino-americana. In: BRESSER- PEREIRA, L. C.; GRAU, N. C. (Coords.). Responsabilização na administração pública. São Paulo: Clad/Fundap, 2006. DEPRÁ, V. O. B.; LEAL, M. C. H. Fiscalização do orçamento público: accountability e controle social da atividade financeira do Estado. Revista do Direito Público, Londrina, v. 12, n. 3, p. 216-241, dez. 2017. MATIAS-PEREIRA, J. Curso de Administração Pública. São Paulo: Atlas, 2010. MOTA, A. C. Y. H. A. Accountability no Brasil: os cidadãos e seus meios institucionais de controle dos representantes. 250f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. PALUDO, A. Administração Pública. 3 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. PINHO, J. A. G.; SACRAMENTO, A. R. S. Accountability: já podemos traduzi-la para o português? Revista Administração Pública, Rio de Janeiro, p. 1343- 1368, nov. / dez. 2009. ROBL FILHO, I. N.; GARCIA JUNIOR, R. Corrupção: uma análise a partir da economia institucional e da accountability horizontal em busca da efetividade do controle da administração pública. Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional, v. 10, p. 478-497, jul.-dez. 2018. 21 TAYLOR, M. M. Alcançando a accountability: Uma Abordagem para o Planejamento e Implementação de Estratégias Anticorrupção. Revista da Controladoria-Geral da União, v. 11, n. 20, p. 1311-1330, 2019. ACCOUNTABILITY E TRANSPARÊNCIA PÚBLICA AULA 2 Prof.ª Fernanda Guarido 2 CONVERSA INICIAL A accountability deve ser entendida como um conceito polissêmico e multidirecional (Taylor, 2019, p. 1318), isto é, possui sentido que não se resume a uma só palavra e abrange diversos aspectos da relação entre os atores. Existe accountability no âmbito político, no âmbito societal, no âmbito legal, no âmbito burocrático, entre outros. Por sua vez, o termo envolve ações de transparência, fiscalização, sanção, e estas têm outros desdobramentos. Por exemplo, a transparência envolve o dever de informar; o fiscalizar envolve a realização de um procedimento, em atenção a um rito e nele há aspectos a se observar, a exemplo do contraditório (direito a defesa, à resposta); o ato de punir envolve a observância de critérios, tais como a proporcionalidade, a razoabilidade, a realização da dosimetria (essas palavras querem dizer que para punir deve haver um relação correspondente entre o ato praticado e a penalidade que é cominada). Visto dessa forma, é preciso considerar a importância de se estudar a realidade do espaço público em que se estuda a accountability. Nesse sentido, é importante ter-se noção de como se desenvolveu a gestão pública brasileira e de que maneira o estabelecimento de obrigações, as prestações de contas e as responsabilidades foram instituídas e cobradas dos agentes públicos ao longo da história. Faz-se importante também compreender como entende a gestão pública, como se realizam as políticas públicas e em que medida elas são consideradas legítimas na gestão pública brasileira. Por isso passaremos a estudar aspectos históricos da gestão pública brasileira, os modelos de gestão identificados pelos teóricos nos diversos momentos de nossa história, bem assim aspectos ligados à governança. Esta (a governança), por sua vez, será entendida não somente como o aparato operacional (administrativo e financeiro) apto ao desenvolvimento das finalidades públicas, mas também no sentido da adequação de tais fazeres aos anseios dos cidadãos (Matias-Pereira, 2010.). Após a apreensãodesses conhecimentos, veremos como a governança e a accountability se relacionam e de que forma podem cooperar à boa gestão. Consideramos importante dar ênfase especial à participação social, que, conforme será visto, ganhou relevo num dado modelo de gestão, e a como ela se faz importante nos diversos aspectos da accountability. É que a participação 3 social representa um grande avanço no exercício da democracia, no alcance da igualdade. Dessa maneira, acreditamos que chamar a atenção para esses aspectos pode fortalecê-los. Veremos ainda no tópico intitulado Na prática problemas que podem ser prevenidos, remediados ou extirpados com os atos de accountability. Ao final, também revisaremos aspectos mais importantes do que foi trabalhado. TEMA 1 – OS MODELOS DE GESTÃO PÚBLICA NO BRASIL Um pouco de nossa história e de nossa cultura explica a nossa gestão pública. Fomos colônia de Portugal e nossa divisão administrativa inicial ocorreu sob a forma de capitanias hereditárias. A gestão das capitanias era patrimonialista, pois os donatários podiam usá-las e explorá-las, devendo fundar vilas, cobrar tributos e repassar parte destes à Coroa Portuguesa, além de realizar julgamentos e aplicar penas, entre outras funções (Calmon, 2002). Mesmo após virar república, traços desse patrimonialismo prevaleciam no Brasil. Famílias patriarcais e um estado mediador de interesses dividiam o poder, de modo que na gestão pública se identificavam relações clientelísticas, consanguíneas, sendo comuns o mandonismo, o nepotismo, o clientelismo e o patrimonialismo. O público era tratado como se privado fosse. Esse modo de gestão foi denominado administração pública patrimonial e foi intensa no Brasil até cerca de 1930 (Brasil; Cepêda; Medeiros, 2014). Na administração pública patrimonial, há confusão entre aquilo que é pertencente ao Estado, chamado de público, e aquilo que pertence aos gestores. Os bens públicos são tratados como se fossem de propriedade dos gestores, que deles se utilizam em seu favor. Um exemplo de patrimonialismo é a oferta de cargo público como presente de casamento – algo que já fez parte da cultura brasileira num passado mais remoto. A história conta que, a partir de 1930, no Brasil, com o aparecimento da indústria, demandou-se o papel desenvolvimentista por parte do aparato estatal, e que isto favoreceu o surgimento da administração pública burocrática (Brasil; Cepêda; Medeiros, 2014). Esse modelo é de suma importância. Para compreendê-lo, antes é preciso entender o que é uma burocracia. Max Weber (2004), na obra Economia e Sociedade, estudou as burocracias. Nesse estudo, desenvolveu o que chamou de tipo ideal, tendo descrito as características da burocracia. Em Weber (2004), a burocracia é um tipo de poder ou dominação 4 estando, portanto, na mesma categoria que o patriarcalismo, o patrimonialismo, o feudalismo, entre outros. No patriarcalismo, as famílias têm um pai, que é a figura da autoridade. No feudalismo, o senhor feudal, dono das terras, era o chefe. E a cada um desses poderes corresponde um ou mais tipos de sistemas sociais diferentes: a família, o feudo, uma região, uma cidade, o Estado, uma igreja, as organizações (ou burocracias) entre outros, são exemplos de sistemas sociais. As organizações, como fenômeno da sociedade moderna, podem ser de várias espécies, a exemplo de escolas, igrejas, clubes, do exército ou mesmo do próprio Estado (Prestes-Motta; Bresser-Pereira, 2004). Mas o que são organizações e por que elas importam para se entender a burocracia e a gestão pública burocrática? Atente que “uma organização ou uma burocracia é um sistema social racional, ou um sistema social, em que a divisão do trabalho é racionalmente realizada tendo em vista os fins visados.” (Prestes-Motta; Bresser- Pereira, 2004, p. 7). Burocracia e organização são sinônimos, portanto. Dizer que uma organização ou uma burocracia constitui um sistema racional implica que esta organização se utiliza de um método que possui coerência entre os meios empregados para administrar ou produzir e os resultados que se pretende alcançar. Quer dizer, as organizações burocráticas atuam de certa maneira, para atingir uma dada finalidade. Por exemplo, a dona de casa vai às compras e, antes de fazê-lo, ela verifica o que está faltando em sua casa, para, ao chegar ao supermercado, adquirir apenas os produtos faltantes. Assim ela fará uso adequado do seu dinheiro. Da mesma forma, ela se organiza para comprar os produtos que têm boa qualidade e um preço compatível com a sua receita. Ela busca realizar uma gestão eficiente de seu orçamento. As organizações ou burocracias visam eficiência, portanto. Ao inserir a noção da eficiência no conceito de organização ou de burocracia, pode-se fazer uso de um conceito aprimorado. Assim, burocracia “é o sistema social em que a divisão do trabalho é sistemática e coerentemente realizada, tendo em vista os fins visados; é o sistema social em que há procura deliberada de economizar os meios para se atingir os objetivos” (Prestes-Motta; Bresser-Pereira, 2004, p. 8). São características das organizações burocráticas o formalismo, a impessoalidade e o profissionalismo (Prestes-Motta; Bresser-Pereira, 2004). Nelas, as regras são escritas e, portanto, previsíveis e verificáveis (formalismo). 5 Existe uma hierarquia, com cargos e funções definidos (impessoalidade). Os trabalhadores são profissionais, notadamente os gestores, que têm expertise naquilo que fazem, recebem salários, ao invés de serem donos do próprio negócio (profissionalismo). Segundo Abu-El-Haj (2005), são também características da administração racional-legal (ou burocrática) a hierarquização e a racionalização de funções, a divisão de trabalho, a autoridade limitada do cargo, a existência de normas escritas, a especialização, a existência de carreiras estáveis, a comunicação escrita e documentada, além da separação entre os bens públicos e a propriedade de servidores. Essas características nos remetem ao ordenamento da existência e da atuação da administração. O foco está em ser eficiente, em controlar a organização, em conhecer o modo como ela funciona, de forma que as surpresas, na organização burocrática, em regra não devem existir. Nas burocracias, em seu estado puro, o poder está no cargo e não nas pessoas. Por isso, o governo das pessoas existe apenas enquanto elas ocupam cargos, de modo que, ao deixá-lo, passarão para o próximo ocupante todo o poder. A autoridade e a obediência que se exige está atrelada aos cargos, às regras, e não àqueles que os ocupam. Não há nas burocracias puras espaço para sentimentos, seja de favorecimento, seja de perseguição. A superioridade técnica, o planejamento e o controle são propiciados com a burocracia. A organização burocrática, pensada dessa maneira, possui muitas qualidades, as quais são buscadas pelas organizações em geral cotidianamente. Mas, apesar de o tipo ideal weberiano ser sobremaneira interessante e importante, o modelo burocrático possui disfunções. Entre elas, o abuso do corporativismo, o desestímulo à premiação por mérito, entre outros, geraram desestímulo dos trabalhadores. O corporativismo é, por exemplo, aquele tipo de situação em que prevalecerá a proteção aos grupos profissionais e não necessariamente aos interesses da organização. Como o profissionalismo é exaltado nas burocracias, uma das disfunções ocorre ao se esperar pelo tempo para que as promoções ocorram. Isso desestimula o incremento do desempenho dos profissionais. Tais situações, entre outras, conduziram ao conhecimento do termo burocracia como algo ruim. Burocracia também é conhecida como ineficiência, como emperramento, excesso de procedimento e ausência de foco. Por isso, em reação às disfunções da burocracia, surgiram outros modelos de 6 gestão (Abu-El-Haj,2005). Mesmo assim, não se pode acreditar que tudo na burocracia seja ruim, nem que esse modelo tenha sido rompido ou superado. Visando eficiência, a gestão pública brasileira sofreu reformas com traços que buscaram padrões gerenciais. E reformas gerenciais são identificadas no Brasil desde muito tempo atrás. A criação do DASP – Departamento Administrativo do Serviço Público, visou incrementar o serviço público e conduzir as carreiras. O Decreto-lei n. 200/1967 criou uma gestão descentralizada (Abu- El-Haj, 2005). Mas esses são relatados como esforços de reforma gerencial, pois a verdadeira reforma gerencial na administração pública brasileira ocorreu em 1995. Nela se destacaram a criação do MARE (Ministério da Administração e Reforma do Estado), encarregado do PDRAE (Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado), que focava, entre outros objetivos, na desestatização, na racionalização, na flexibilização, na institucionalização e na publicização (Pinto; Santos, 2017). Este momento é considerado como o verdadeiro introdutor do modelo de administração pública gerencial na gestão pública brasileira. A reforma gerencial de 1995 é considerada o marco da modernização da administração pública (Abu-El-Haj, 2005). Ela está focada no controle, na eficiência, na busca de resultados. A privatização, a terceirização, a desregulamentação e a accountability são atribuídas à reforma gerencial (Costa, 2008). Bresser-Pereira (1996) afirma que a reforma gerencial se tornou condição para “um serviço público moderno, profissional e eficiente, voltado para o atendimento das necessidades dos cidadãos” (Bresser-Pereira, 1996, p. 296). A ideia por trás desse modelo é dar mais liberdade para o gestor atuar, permitindo que ele seja mais ágil e mais eficiente. Os controles da gestão foram aprimorados, passando a existir para momento posterior ao ato de gestão. Isso também conferiu agilidade à atuação do gestor público. A descentralização, isto é, a realização de funções públicas por meio de terceiros, ou de entidades da administração indireta igualmente permitiu ao Estado fazer mais coisas, num tempo menor, além de melhorar o modo de uso seu orçamento. Mas o modelo de administração pública gerencial também sofreu transformações. Não é que os pressupostos de eficiência e de produtividade tenham sido abandonados. Muito pelo contrário, eles persistem, e ainda são meta da gestão pública. Mas o modo de alcance dessas metas sofreu transformações. No modelo de administração pública gerencial, a separação entre os papeis dos stakeholders tende a separar quem realiza a política pública 7 e o destinatário dela. Pode-se falar, portanto, no cidadão-cliente. Um outro modelo de gestão pública conduziu a um modo distinto de atuação. Trata-se do modelo de governança pública (Secchi, 2009), que se dedicou a esse papel. Na governança pública, existe um modelo relacional, no qual os destinatários das políticas públicas são partícipes na execução destas. A governança pública também é conhecida como administração pública societal, havendo ainda outros nomes que o qualificam (novo serviço público é mais uma forma de denominá-lo). Este é um modelo democratizante, que tem a Constituição da República de 1988 como o marco legal destas transformações (Pinto; Santos, 2017). A Constituição, com a instituição de Conselhos políticos, com a previsão de plebiscitos e referendos, com a iniciativa popular na criação de leis, com a iniciativa popular no questionamento da legalidade de atividades de gestão (ação popular), entre outros, municiou o cidadão de ferramentas para a participação na gestão pública. Com o amadurecimento do texto da Constituição e a vivência diária de suas regras, passa-se, dia a dia, a conhecer as possibilidades de concreção do seu texto e as formas como a administração e a sociedade podem cooperar. Estes são os modelos de gestão pública identificados ao longo da trajetória da gestão pública brasileira: administração pública patrimonialista, administração pública burocrática, administração pública gerencial, governança pública. É preciso deixar registradas duas questões: a primeira é que não existe consenso entre os termos usados nos modelos de gestão pública. Por isso, é mais importante focar nas características desses modelos e ter em mente que a reforma no Brasil foi marcante em três fases (nas décadas de 1930, 1960 e 1990, sendo esta última a mais relevante). É preciso registrar, em segundo lugar, que um modelo não rompeu com o outro (Secchi, 2009). O modelo burocrático ainda persiste, o modelo gerencial tem bastante força e a governança pública está sendo descoberta, dia a dia. Traços de cada um desses modelos coexistem na gestão pública brasileira. TEMA 2 – GOVERNANÇA PÚBLICA Chegou o momento de falarmos da governança pública, que será abordada não como um modelo de gestão, mas algo a ser buscado, realizado. Em termos gerais, governança diz respeito à direção e à coordenação de atores no desempenho de funções de trabalho (Almqvist, 2012, p. 1745). É um termo 8 guarda-chuva, com percepções e sentido diferentes, usado nas ciências políticas, na gestão e na economia (Almqvist, 2012, p. 1745). Governança indica relação de autoridade e controle no contexto das organizações. Por isso, no âmbito privado, governança corporativa foi o termo cunhado para tratar de assuntos ligados a competências e poderes na estrutura interna e na relação com os stakeholders (Almqvist, 2012, p. 1745). Já no setor público, o termo está associado não somente a custos e a qualidade dos serviços, mas também ao impacto das políticas públicas na comunidade e na sociedade como um todo (Almqvist, 2012, p. 1746). Assim, falar em governança é algo que pode abordar aspectos amplos, tais como conformidade, performance e estrutura (Goddard, 2005). Expliquemos: assuntos voltados ao modo à organização interna, tais como existência de setores, funções, finalidades, desempenho dos setores, adequação desses setores e de suas funções àquilo que deve ser produzido na organização são todos assuntos que permeiam o tema governança. Como se sabe, no âmbito das organizações, há regras, cargos e funções definidos, há hierarquias a serem respeitadas, papéis a serem desenvolvidos. Nesse arcabouço, há ainda setores com suas atividades delimitadas, metas a serem atingidas, obrigações, prerrogativas e vedações. Há também princípios a serem seguidos, valores que são cultivados no âmbito interno e externo às organizações. Esses também são assuntos caros ao tema governança. Sabemos que nas organizações públicas a realização das finalidades a que os órgãos e entidades se destinam é algo inafastável, pois, como se sabe, estas devem perseguir o interesse público. Além disso, como o princípio da legalidade é um dos vetores das atividades no âmbito da administração pública, as responsabilidades, em regra, estão escritas e devem ser cumpridas. Considerando, portanto, os aspectos acima mencionados, pode-se afirmar que atuar em prol da boa governança implica 1. agir de acordo com as regras escritas, ou com o comportamento esperado no âmbito da comunidade ou da sociedade; 2. atingir o desempenho prescrito ou esperado; e também; 3. atentar para a existência de procedimentos e de setores e respeitar as competências estabelecidas, como também os ritos definidos para realização das atividades. 9 Matias-Pereira (2010, p. 71) destaca que há duas correntes de pensamento acerca de governança. A primeira considera que a boa governança se atrela ao atendimento das exigências ligadas ao incremento de eficiência e de efetividade governamental. É importante lembrar que eficiência, conceito processual (fazer algo bem feito), tem ligação com a escolha do meio correto para se atingir determinado fim (entre o menu de opções, escolher o jeito mais adequadopara fazer algo bem feito). Carvalho (2009, p. 196) esclarece que “ao escolher os meios através dos quais o Estado buscará satisfazer as necessidades coletivas, é imperioso considerar ser obrigatória a eficiência em atingir os objetivos públicos”. A eficiência na administração pública é, assim, um dever. Não é uma opção ao gestor ser ou não ser eficiente. Assim, gerar resultados negativos pode conduzir o gestor à responsabilização. O conceito de eficiência atrai outros dois, isto é, os de eficácia e de efetividade. A eficácia está ligada ao alcance dos resultados almejados, e a efetividade, por sua vez, está ligada à concretização prática das regras postas (Carvalho, 2009, p. 202). Expliquemos: o gestor se comprometeu a construir uma ponte. Para isso, ele realiza uma licitação – porque a lei exige – e entre as espécies de licitação existentes, este gestor deve escolher aquela que conduzirá ao alcance da meta (ponte) de modo mais rápido, mais econômico, com qualidade. Nessa acepção, a governança se atrela à atuação do gestor público escolhendo os meios mais adequados (em termos econômicos e em termos de alcance de resultados) para atingir as finalidades públicas, sem deixar de considerar o efetivo alcance destas finalidades, em cumprimento das normas estabelecidas acerca de como o gestor público deve agir. Os estudos de governança que se alinham com a busca da eficiência cuidam da escolha de meios céleres (rápidos), menos onerosos (mais baratos), adequados, para atingir as finalidades públicas. Obviamente, no uso desses meios não poderão ser desprezadas as regras postas, sobretudo aquelas ligadas à motivação dos atos, à publicidade e à transparência na atuação. Focando na eficiência, Bresser-Pereira (2011, p. 33) define governança como a “capacidade financeira e administrativa, em sentido amplo, de um governo em implementar políticas.” Quer dizer, o conceito de governança se atrela à realização da gestão de maneira adequada, no sentido de buscar e alcançar eficiência, eficácia e efetividade. 10 Mas os estudos de governança também abarcam, noutra corrente de pensamento, questões ligadas ao potencial democrático e emancipatório (Matias-Pereira, 2010, p. 71). Nessa corrente de pensamento, governar se torna um ato interativo, ou seja, ele não ocorrerá numa relação top-down (de cima para baixo), na qual o governo está distante dos governados. A governança, assim concebida, reconhece que há limites na atuação estatal e que compartilhar a gestão pública com a sociedade pode conduzir à realização de finalidades as quais, sozinho, o Estado não conseguiria propiciar. Admite-se, portanto, a atuação em rede (managing network), e nesta o Estado é um, entre os vários atores envolvidos na gestão da coisa pública. A atuação em rede é aquela em que vários stakeholders atuam para propiciar o alcance de uma finalidade pública. Essa tarefa não é deixada para realização exclusiva do Estado, portanto. É óbvio que, no âmbito dessa corrente, há funções reservadas ao núcleo intransferível atribuído ao estado. É o que se passa, por exemplo, com a função de fiscalizar (entre outras). Expliquemos: somente o Estado diretamente pode exercer funções de fiscalização. Mas há outras funções que podem ser realizadas por terceiros. É o caso da educação, da infraestrutura, da saúde, entre outros. Não é demais lembrar, portanto, que a governança também está ligada à distribuição do poder na administração de recursos econômicos e sociais, tendo- se em conta o desenvolvimento (Matias-Pereira, 2010, p. 74). Quer dizer, falar de governança é falar também da alocação de recursos, da operacionalização desses recursos e da concretização de políticas públicas. Expliquemos: ter dinheiro para fazer uma obra, fazê-la e entregar a obra à sociedade é assunto da governança pública. Compreendida a governança, pensamos ser importante distinguir o que quer dizer governabilidade. O termo está atrelado à ação de governar, isto é, “às condições sistêmicas e institucionais sob as quais se dá o exercício do poder” (Oliveira; Carvalho; Corrêa, 2013, p. 98). Aceitação e cooperação para a atuação são assuntos que interessa à governabilidade. Expliquemos: um dado político está exercendo o seu mandato e deseja enviar ao congresso uma certa lei. Mas nem o político e nem a lei têm ampla aceitação da sociedade. Na verdade, ele é detestado e tem péssima reputação. Dificilmente esse político terá sucesso na tentativa de publicar sua lei, pois ele não tem governabilidade. 11 Desse modo, Bresser-Pereira (2011, p. 33) define a governabilidade como a “capacidade política de governar derivada da relação de legitimidade do Estado e do seu Governo com a sociedade”. Pode-se afirmar que “sem governabilidade é impossível governança”, mas que a governança “pode ser muito deficiente em situações satisfatórias de governabilidade” Bresser-Pereira (2011). Vamos lá: a popularidade e a aceitação de um dado político são muito importantes para ele atuar (exercer a governança). Mas esse mesmo político pode ser extremamente aceito pela sociedade e exercer uma governança ruim, por não primar pela eficiência, nem pela eficácia e menos ainda pela efetividade. A aprovação à ação de governar é, portanto, de suma importância, para que os mecanismos de governo recebam a aceitação necessária. Mas estes, não se deve olvidar, devem ser desenvolvidos de modo a priorizar as ações que se alinham ao desempenho ótimo. Então, o ideal é uma gestão com alta governabilidade e alta governança! No âmbito da administração pública federal brasileira, governança pública foi definida em legislação como conjunto de mecanismos de liderança, estratégia e controle postos em prática para avaliar, direcionar e monitorar a gestão, com vistas à condução de políticas públicas e à prestação de serviços de interesse da sociedade (art. 2º, I). (Brasil, 2017a) O conceito aproxima o modus operandi da administração pública daquele praticado por organizações privadas, pois admite estratégias voltadas ao incremento da eficiência e mesmo a inovação e o empreendedorismo na atuação estatal (Oliveira; Carvalho; Corrêa, 2013). No art. 3º do Decreto n. 9.203/2017, estão elencados como princípios da governança pública 1. capacidade de resposta; 2. integridade; 3. confiabilidade; 4. melhoria regulatória; 5. prestação de contas e responsabilidade; e 6. transparência. O Decreto n. 9.203/2017 elenca diretrizes para o alcance da governança pública. Trata-se de ações, descritas em onze incisos constantes do art. 4º (Brasil, 2017a). Pode-se afirmar que essas ações estão pautadas pela agilidade, pela eficiência, pelo controle e pela transparência. Faz-se importante registrar ainda que a governança está orientada à realização do que o Decreto chama de 12 valores públicos, os quais estão conceituados no art. 2º, inciso II, do Decreto n. 9.203/2017 da seguinte maneira: Art. 2º. [...] II - valor público - produtos e resultados gerados, preservados ou entregues pelas atividades de uma organização que representem respostas efetivas e úteis às necessidades ou às demandas de interesse público e modifiquem aspectos do conjunto da sociedade ou de alguns grupos específicos reconhecidos como destinatários legítimos de bens e serviços públicos. (Brasil, 2017a) Para o Decreto n. 9.203/2017, valores públicos são resultados das ações voltadas à satisfação de demandas públicas. Mas não é só isso: esses resultados têm que produzir impacto na sociedade naqueles pontos específicos para os quais a ação é destinada (Brasil, 2017a). Quer dizer, valor público é o resultado da política pública eficaz. Exemplifiquemos: a entrega da obra de um posto de saúde apto a ser usado pela população é um valor público. Mas a execução de uma obra de um posto de saúde cheio de defeitos, sem que possa ser utilizado não podeser considerado um valor público. TEMA 3 – OS MODELOS DE GESTÃO, A GOVERNANÇA E A ACCOUNTABILITY Ao longo da história, na administração pública brasileira podem ser identificados modos de atuação que, pelas suas características, foram separados e classificados como modelos. Administração pública burocrática, Administração pública gerencial e governança pública são os modelos de gestão estudados ao longo da história da administração pública brasileira. Esses modelos de gestão pública impactam nas atividades do governo. É que suas características vão influenciar o modo de atuação. O modelo burocrático, por exemplo, incutiu um modo de atuação pautado pelas características da organização burocrática. Pode-se atribuir a esse modelo, por exemplo, a estruturação de carreiras públicas, a existência de regulamentos que disciplinam as atividades, o estabelecimento de programas e de metas a serem atingidas, entre outros. A existência de departamentos nas unidades administrativas, a prescrição formal de atividades, a criação de cargos e delimitação de suas funções por lei, a progressão na carreira são mais exemplos de impacto do modelo burocrático na gestão pública. A partir do instante em que se percebeu, entretanto, que o modelo burocrático possuía disfunções, passou-se a reagir a elas, buscando solucionar 13 os problemas do excesso da burocracia. E esses problemas incomodaram; tanto é verdade que se popularizou o uso do termo burocracia no sentido pejorativo, isto é, de maneira a se reportar a atividades confusas, lentas, cheias de ritos e sem finalidades. Diz-se que tanto o modelo de administração pública gerencial quanto o de governança consistiram em reações às disfunções do modelo burocrático (Secchi, 2009). Assim, a descentralização, o controle a posteriori (após a realização do ato), o controle por resultados, o uso de tecnologias nas atividades da administração são exemplos de mudanças introduzidas pelo modelo de administração pública gerencial na gestão pública brasileira. Já o incremento da participação, a dialogicidade (atuação dialogada, no caso entre sociedade e governo) e o aprimoramento das tecnologias a fim de promover a interação é atribuída ao modelo de governança pública. A abertura de canais para participação, via internet, em políticas públicas (consultas públicas via internet, entre outros) são exemplos que atrelam ao modelo de governança pública. As parcerias público-privadas, os termos de colaboração e de fomento, entre outros, são também exemplos da aproximação entre a sociedade e o gestor público. Nos modelos de gestão pública, são identificados elementos voltados a um fazer adequadamente. Cada um desses modelos trouxe características às atividades administrativas, que passaram a ser incorporados ao dia a dia da administração pública. Não se fala no rompimento de um modelo e surgimento do outro. Ao contrário, na administração pública brasileira podem ser identificadas características de cada um desses modelos. Mas o que se pode dizer é que houve uma evolução, a qual permitiu caminhar em prol da boa governança. O compromisso, no âmbito da boa governança na administração pública brasileira é entregar valores públicos, e estes, como produtos ou resultados, devem ser compreendidos como aqueles esperados e efetivamente entregues, nos exatos termos em que necessários, planejados e executados. Dessa forma, considerando que a governança orienta o agir da organização, a accountability, conceito complexo que é, há de ser entendida como o conjunto de atos executados em respeito às regras prescritas, à estrutura posta, aos papéis esperados e às metas estabelecidas. A governança dá o norte, planeja, estabelece as metas, escolhe o meio de atuar, atua e controla. A accountability, nesse cenário, é o conjunto de atos 14 tendentes à informação, publicidade e verificação acerca do cumprimento dos objetivos da boa governança. Mas não é só isto, pois a accountability também assegura o apenamento de quem se desviar dos deveres e obrigações que possui. Mas a accountability é multifacetada, ou seja, o ato de informar, justificar e sancionar depende do que se faz e de para quem faz. Assim, no âmbito dos estudos de governança a accountability adquire um conceito plástico (que se amolda), portanto. É que os atos de informação, justificação, e punição, adquirirão aspectos amplos, a depender de para quem se presta contas e do que se presta contas (Almqvist, et al., 2010, p. 1746). Pelo exposto, percebe-se que, para que valores públicos sejam entregues, é necessário o máximo de fiscalização, o máximo de transparência, o máximo de coerção – potencial de sancionamento. E a accountability é indispensável para tanto. Por isso, podemos afirmar que a accountability é um princípio fundamental à governança pública (Oliveira; Carvalho; Corrêa, 2013, p. 92), pois as suas dimensões permitem dar a direção, medir e controlar as atividades do gestor público. Nesse cenário, a transparência permite o controle e a correção. O sancionamento, outro elemento da accountability, garante, pelo caráter repressor e mesmo pedagógico, o cumprimento das regras e objetivos, a satisfação das políticas públicas programadas. No cenário da administração pública e seus modelos pode-se afirmar, portanto, que a accountability se alinha com o que há de mais importante, pois está determinada a permitir o controle dos atos praticados pelos gestores públicos e, com isso, manter o rumo em prol da atuação ótima (governança pública). TEMA 4 – INSTRUMENTOS DE GOVERNANÇA VOLTADOS À ACCOUNTABILITY Os valores públicos são produtos ou respostas necessários, úteis e efetivamente entregues aos destinatários da sociedade. Existe no conceito de valores públicos uma dimensão de necessidade, outra de desejo e uma terceira de real entrega, real execução. Quer dizer, os valores públicos existem quando os interesses públicos almejados são efetivamente realizados. Por exemplo, a sociedade deseja uma estrada segura, bem-feita, moderna e que propicia viagens prazerosas. Por meio de um contrato de parceria público-privada este 15 contrato é efetivamente entregue. Podemos afirmar, então, que essa estrada é um valor público. Mas para alcançar valores públicos muitas são as diretrizes e os princípios de governança elencados pela teoria e pelas regras. Assim, podemos elencar os seguintes elementos da governança do setor público, a saber: responsabilidade em atender à sociedade, supervisão, controle e assistência social (Matias- Pereira, 2010, p. 76). Os três primeiros, como se sabe, têm forte ligação com a accountability. Mas esse ferramental pode se travestir de outros formatos. É que há outros fatores que contribuem para uma governança corporativa sólida. São eles, entre outros, estrutura e ambiente administrativo, administração de risco, conformidade e complacência, monitoração e avaliação de desempenho, responsabilidade em prestar contas, conformidade versus desempenho (Marques, citado por Matias-Pereira, 2010, p. 76-77). O Decreto n. 9.203/2017, por exemplo, traz alguns desses instrumentos para realização da governança. De início, no próprio conceito de governança trazido pelo decreto é destacado o caráter de controle e monitoramento de políticas públicas e de serviços de interesse da coletividade (art. 2º, inciso I) (Brasil, 2017a). Trata-se de ferramental que permitirá a justificação, a resposta e o controle das atividades de gestão. A capacidade de resposta, a prestação de contas e responsabilidade e a própria transparência, princípios da governança pública elencados no art. 3º do Decreto n. 9.203/2017, necessitam de ferramentas aptas ao seu alcance e realização (Brasil, 2017a). Fala-se, por exemplo, no estabelecimento de controles internos que permitam o alcance desses princípios. Os controles internos são,
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