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5- UNIDADE 5

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FILOSOFIA 
Professor: Dr. José Francisco dos Santos 
UNIDADE 5 - TÓPICOS DE FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA I 
– A LIBERDADE 
 
 
UNIDADE V 
 
TÓPICOS DE FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA I – A LIBERDADE 
 
 
OBJETIVOS: 
 
A) Identificar a tensão entre as ideias de liberdade e destino e os problemas 
filosóficos relacionados a ela. 
B) Relacionar liberdade interior e responsabilidade ética. 
C) Avaliar a importância dos relacionamentos interpessoais para a evolução 
de uma liberdade madura. 
 
 
 
INTRODUÇÃO 
 
Após termos analisado, mesmo que de modo sucinto, alguns temas cruciais 
para o entendimento da nossa tarefa intelectual e as questões políticas mais 
relevantes para o entendimento do mundo contemporâneo, refletiremos sobre 
alguns tópicos de filosofia que tocam muito diretamente nosso cotidiano, 
começando pela questão da Liberdade. 
A palavra é bastante conhecida e reverenciada, mas nem sempre temos uma 
noção esclarecida do seu significado, ou ainda, dos diversos significados que 
assumiu ao longo da história e ainda assume. O tema esteve presente nas 
unidades anteriores acerca das questões políticas, jurídicas e sociais do mundo 
contemporâneo, foi tema da revolução francesa e embalou muitos movimentos 
revolucionários. 
 
A proposta, nesta unidade, é uma reflexão mais específica sobre seu 
significado ética e suas contradições. Afinal, somos realmente livres? Como 
podemos ser livres e termos que seguir regras, ao mesmo tempo? Existe 
algum tipo de destino traçado, do qual não podemos escapar? 
Como se trata de uma reflexão filosófica, acerca de tema sobre o qual não 
podemos pretender certeza matemática, sempre haverá margem para 
discordância e debate. O que vale em filosofia, no entanto, é sempre a 
qualidade da argumentação. Quando conseguimos levantar os pontos 
principais de uma questão e analisá-los com o máximo de inteligência e 
honestidade, estamos fazendo um bom trabalho filosófico. Se o debate 
 
posterior mostrar erros na argumentação e apontar novas perspectivas, o 
verdadeiro filósofo sempre ficará satisfeito, pois essa é a verdadeira função de 
todo debate filosófico: estimular o esclarecimento de um tema e melhorar 
continuamente nosso entendimento acerca dele. 
 
 
Infográfico: 
 
1. Destino ou liberdade? 
 
Um texto emblemático da cultura grega antiga, acerca desse tema é a peça 
Édipo Rei, de Sófocles. Nessa história, Édipo é filho do rei e da rainha de 
Tebas. Quando ele nasceu, seu pai consultou o oráculo e a profecia afirmou 
que o menino estava destinado a matar o próprio pai e se casar com a mãe. 
Horrorizado, o pai do menino mandou matá-lo. Mas como sempre acontece 
nesses casos, a pessoa encarregada do serviço ficou com pena e entregou-o a 
uma caravana que ia para bem distante: Corinto. Lá, ele foi adotado pelo rei e 
pela rainha da cidade, e nunca soube da sua condição de adotado. Crescido, 
ele próprio consultou o oráculo. Ao saber do seu terrível destino, fugiu de 
Corinto, afirmando que jamais faria uma loucura daquelas. E foi parar onde? 
Em Tebas. Nas proximidades da cidade, envolveu-se numa briga e acabou 
matando um homem desconhecido que, por acaso era seu verdadeiro pai, o rei 
de Tebas. Entrando na cidade, esta estava de luto pela morte do rei e aquele 
que decifrasse um enigma, receberia como prêmio a mão da rainha viúva e a 
coroa. É claro que ele decifrou e, assim, cumpriu inteiramente o seu destino. 
Na Ilíada, quando nasceu o príncipe Páris, de Tróia, sua irmã Cassandra, que 
era profetiza, soube que ele traria a desgraça para a cidade e convenceu o pai, 
o rei Príamo, a livrar-se dele. Para variar, o menino acabou sendo abandonado 
e criado por pastores. Retornando a Tróia, mais tarde, reassume seu lugar de 
príncipe e, numa viagem a Esparta, rapta Helena, a esposa do rei Menelau, o 
que dá origem à guerra que destruiu sua cidade, cumprindo a profecia de 
Cassandra. 
 
Os gregos, pelo que se percebe, tinham certa fissura por esse negócio de 
destino, como algo traçado pelos deuses e do qual os mortais não poderiam 
fugir, por mais que tentassem. Mas se existe um destino traçado por alguma 
entidade superior, então nós estamos aqui apenas para seguir um “script”, não 
tendo liberdade de decisão nem, consequentemente, nenhuma 
responsabilidade sobre o que fazemos. Mas nós prezamos demais nossa 
liberdade como uma das coisas mais preciosas de que dispomos. Ninguém 
quer viver uma vida de escravo, muito embora, por covardia, muitos acabam se 
resignando com algo próximo disso. 
 
A liberdade é um daqueles temas clássicos da filosofia, para os quais não 
dispomos de meios especiais de observação, para termos uma resposta 
científica. Tais temas pertencem ao que chamamos de “metafísica”, ou aquilo 
que está para além do que podemos determinar no plano físico ou sensorial 
 
(definindo bem ‘grosso modo’). Muitos filósofos e teólogos já se debruçaram 
sobre o tema e, embora não tendo resposta definitiva, nossa conduta depende, 
em grande monta, do tipo de resposta que damos, individualmente, a essa 
questão. Podemos nos conformar a um destino inexorável e ficar lamentando a 
pouca sorte, ou podemos “desafiar os deuses” e construirmos, ao menos no 
que for possível, nosso próprio destino. 
 
O filme “Os agentes do Destino”, com Matt Damon, é uma metáfora 
contemporânea muito bem bolada para tratar desse tema. Na trama, os tais 
agentes são representados por senhores vestidos de terno e chapéu (à moda 
dos anos 1950), com vários níveis de hierarquia, que cuidam para que os 
detalhes da vida de cada um sigam o que está escrito no “livro”, ou seja, aquilo 
que foi traçado pelo “Cabeça”, o chefe que controla o destino das pessoas. 
Mas o jovem político David Norris, vivido por Matt Damon, decide enfrentar os 
tais agentes e lutar para ficar com a mulher de sua vida, o que os “agentes” 
entendem que atrapalharia o que o “livro” prescreve sobre seu futuro político. 
 
 
Crer num destino do qual não podemos fugir não me parece uma hipótese 
adequada ao que experimentamos no dia a dia. Se há circunstâncias que estão 
além das nossas escolhas, também é certo que escolhemos muito do que 
fazemos ou deixamos de fazer, e tais escolhas vão dando forma ao nosso 
futuro, de modo que não podemos nos eximir da responsabilidade sobre nosso 
sucesso ou fracasso, felicidade ou infelicidade. 
 
 
Para mim, a melhor metáfora para descrever essa situação foi dada por William 
P. Young, no livro “A Cabana”. Para Young, Deus tem um plano para nós, mas 
a cada ação livre nossa, o plano vai sendo rearranjado e tomando forma, como 
um tapete que é tecido ponto a ponto, e que nem Deus pode determinar, 
sozinho, sua forma final. Parece-me que isso garante o fato da nossa liberdade 
e também a ideia de que não estamos imersos num puro acaso, mas fazemos 
parte de uma realidade maior. Como se trata de metafísica, não podemos 
“comprovar” nada disso, mas, insisto, a crença que assumirmos será 
fundamental para a construção do nosso próprio destino, ou para a resignação 
e lamentação pelo que não tivemos coragem de fazer, achando mais fácil 
culpar os “deuses”. 
Quanto ao fato de estarmos fadados a um destino inexorável, os grandes 
filósofos gregos foram bem mais comedidos na análise desse tema. O fato é 
 
que, se fôssemos inteiramente guiados por um destino que não escolhemos, 
não teríamos responsabilidade moral sobre o que fazemos, sobre nossas 
escolhas, e sempre poderíamos pôr a culpa de nossos erros no tal destino, nos 
deuses, etc. Esse não parece, no entanto, ser o padrão da vida humana. 
Aristóteles, um desses gigantes da filosofia antiga, discípulo de Sócrates e de 
Platão, desenvolve essa discussão no seu livro “Ética a Nicômaco”. 
Utilizaremos a sua análise como padrão, pois a consideramos bastante lúcida e 
completa. 
 
Para Aristóteles, o ser humano se difere dos animais e das plantas por um 
princípio superior, racional. O filósofo diz que todo ser vivo possui um princípio 
que é mais que a matéria, e que ele chamou de “alma” (psiché). A alma tem 
três
níveis: o vegetativo, o sensitivo e o racional. A alma vegetativa é 
responsável pela nutrição, pela manutenção do organismo vivo, e é comum a 
todos os seres vivos. E nós, ela corresponde aos nossos órgãos vitais. A alma 
sensitiva, própria dos animais, permite que o organismo não apenas viva, mas 
sinta, receba estímulos do meio e reaja a eles. Por fim, a alma racional, própria 
dos humanos, permite o conhecimento, a consciência, o saber. 
Como os animais são regidos apenas pela sua alma sensitiva, sua liberdade é 
restrita ou inexistente. Eles obedecem a um padrão estabelecido pela natureza, 
do qual não podem sair. No nosso caso, ao nos dar a capacidade racional, a 
natureza deixou sob nossa responsabilidade o controle sobre nossas 
sensações. Isso é, em princípio, bom, mas pode se tornar uma armadilha. 
Como não temos freio natural para nossa sensibilidade, podemos deixá-la sem 
controle e nos embrenharmos em todo tipo de vício. 
O exercício da liberdade, portanto, pode ser confundido com a simples 
possibilidade de dar vazão aos impulsos da sensibilidade (prazeres da comida, 
da bebida e do sexo, raiva, fuga da responsabilidade, etc.). Quando isso 
acontece, o indivíduo, cuja sensibilidade não tem freio, “se passa” e acaba 
perdendo a capacidade de decidir, portanto, de ser livre. 
Observem o que acontece com todo viciado. Ele começa apreciando (sem 
moderação) o que lhe causa algum prazer. Como a sensação do prazer é forte 
e sempre “pede mais”, ele vai atendendo aos apelos sensitivos. Com o tempo, 
perde a capacidade de dizer não a si mesmo. Embora continue sentido o 
prazer daquela sensação específica, não consegue mais controlar aquela área 
da sua vida, causando distúrbios terríveis. Vejam como é penoso o caminho de 
volta de qualquer vício, como bem atestam os Alcoólicos ou Narcóticos 
Anônimos. Todo vício destrói a liberdade. Então, ela só pode ser alcançada por 
quem exercita a virtude, que consiste na moderação racional dos impulsos. 
 
Dessa forma, tornamo-nos responsáveis pelo nosso destino. A menos que a 
pessoa viva dentro de uma “tragédia grega”, sempre poderá direcionar sua vida 
para as formas mais elevadas de conhecimento e de ação, fazendo escolhas 
qualificadas, que imprimem qualidade ao seu presente e ao seu futuro. 
 
 
2. Liberdade interior e interdependência 
 
Na passagem do século XIX para o XX, parecia que o ser humano havia 
encontrado, finalmente, todas as condições para a realização plena de todas as 
suas potencialidades, tendo combatido, no campo das ideias e das armas, 
contra as forças “obscuras” que o oprimiam. O liberalismo político e econômico 
(a afirmação da liberdade contra o mercantilismo e os reis absolutos) havia 
marcado, um século antes, a evolução política das principais nações da 
Europa. A ciência, cantada em prosa e verso desde a descoberta das Leis da 
Newton, representavam a emancipação do homem frente a natureza, agora 
conhecida e dominada. O endeusamento da razão cantava a vitória sobre a 
religião, considerada outra grande opressora da liberdade humana. Mas eis 
que, no decurso de poucos anos, todo esse edifício começou a ruir, com a 
Primeira Guerra Mundial e a ascensão de regimes totalitários como o fascismo; 
na Itália, o nazismo; na Alemanha, o “comunismo” da União Soviética. 
Com essas considerações, o filósofo e psicanalista alemão Erich Fromm dá 
início ao seu fabuloso livro “O Medo à Liberdade”, em que busca analisar as 
razões pelas quais nós, tão ansiosos por sermos livres, frequentemente 
sucumbimos a inúmeros tipos de tirania. 
 
Ainda no século XVIII, a Revolução Francesa foi emblemática quanto a isso. 
Após violenta luta contra o governo absoluto de Luiz XVI, em nome da 
liberdade e da igualdade pregadas por filósofos como John Locke e Jean-
Jacques Rousseau, a França se viu mergulhada numa tirania nunca vista, 
comandada por Robespierre, o principal revolucionário que pregava a tal 
liberdade. A carnificina que ele promoveu, condenando milhares de pessoas à 
guilhotina, terminou com seu próprio pescoço conhecendo o fio da navalha. 
Pouco tempo depois, Napoleão Bonaparte assume o poder como Imperador, 
comandando a França e dominando quase toda a Europa com mão de ferro. 
Na Rússia do início do século XX, a luta contra a tirania do Czar Nicolau II 
terminou com a ascensão de outro regime que prometia igualdade e liberdade, 
mas que produziu o que talvez seja a pior experiência política da história: o 
comunismo soviético, que varreu metade da Europa. 
O que a história mostra como um fato que se repete, aparece com muita 
frequência na nossa vida pessoal. Daí a importância de, com faz Fromm, 
buscar as raízes dessa nossa dificuldade em lidar com a liberdade. Tendemos 
a pensar que a liberdade seja a ausência de condições externas que nos 
constranjam, mas uma vez libertos de tal condição, com facilidade nos vemos 
emaranhados em outra. Quantas mulheres buscaram no casamento a fuga da 
 
opressão do pai e acabaram ainda mais oprimidas por maridos autoritários e 
violentos (e o mesmo em relação aos homens que têm uma relação de 
dependência excessiva em relação à mãe e acabam encontrando – porque 
inconscientemente procuram – esposas dominadoras). 
 
A filósofa Hannah Arendt relaciona esse fenômeno com a educação da 
atualidade, denunciando que, quando pais e professores abrem mão de sua 
autoridade, na ilusão de darem liberdades aos jovens, estes acabam se 
embrenhando em outros tipos de dominação: dos grupos sociais, gangues, 
traficantes, “tribos”. O que é preciso para que possamos realmente afirmar 
nossa liberdade, ou, nos dizeres de Fromm, para que nos tornar aquilo que 
realmente somos? Esse desenvolvimento deve começar no nosso interior, pois 
a imensa maioria das nossas “amarras” não está nos outros nem nas 
circunstâncias externas. Retornaremos a esse ponto. 
A reflexão de Erich Fromm sobre a liberdade continua com a análise da 
ambiguidade que esta tem para o ser humano. Se o sinal distintivo da nossa 
espécie é a capacidade de ser livre – talvez a marca mais profunda que Deus 
deixou de si mesmo em nós -, a história natural mostra que esse processo foi 
extremamente lento, pois fomos nos libertando de modo muito gradual da 
dependência estrita dos fenômenos naturais e refinando aos poucos nosso 
instinto de viver em grupo. Cada um de nós traz em si esse paradoxo: 
ansiamos por sermos livres, mas não podemos prescindir de viver em relação 
estreita com as outras pessoas. Como espécie e como indivíduos, passamos 
por esse processo de “libertação”. Por meio dele, de modo nem sempre 
contínuo ou bem organizado, vamos tentando nos afirmar como pessoas livres 
em relação às outras pessoas que estão no mesmo processo, e sem as quais 
não podemos viver. 
 
O corte do cordão umbilical nos dá, fisicamente, a condição de seres 
individuais, mas o preço é perder a segurança e a comodidade com as quais 
estávamos tão familiarizados. A relação entre a mãe e a criança é bastante 
significativa acerca desse desenvolvimento, que passa da necessidade 
inerente do bebê à consciência de ser uma pessoa e à luta pela autoafirmação, 
com todos os conflitos inerentes a esse processo, que todos conhecemos 
muito bem. Todos passamos pela ansiedade característica de ter que escolher 
entre a segurança e o conforto que a “manada” nos confere e a solidão e as 
dificuldades típicas de quem decide ser independente. 
 
 
Na história da espécie, tornamo-nos realmente humanos (e livres) quando 
nossas ações já não são determinadas por traços hereditários e biológicos, 
como no caso dos animais inferiores. Sem essa determinação biológica, como 
afirma Fromm, temos sempre que escolher entre diversas linhas de ação, pois 
não temos mais um “instinto” que nos leva a tomar sempre a mesma decisão. 
Isso custa muita energia espiritual, e é sempre mais fácil refugiar-se, 
voluntariamente, na determinação da tribo, do clã, de um governo autoritário, 
de qualquer grupo ou instituição que nos dê segurança e nos livre desse peso 
insuportável
de ter que escolher e conviver com as consequências das nossas 
escolhas. 
 
 
No extremo oposto disso está a pregação individualista do pensamento 
moderno, que pretende emancipar o ser humano de todas as suas “amarras”. 
Pela crença individualista, tendemos a enxergar apenas nossos próprios 
interesses, como se a afirmação da nossa liberdade e individualidade pudesse 
prescindir do nosso caráter inerentemente social. Esse egoísmo 
institucionalizado tem marcado de modo muito negativo nosso cotidiano. 
Os agrupamentos humanos só serão realmente humanos se neles houver 
espaço para o exercício da liberdade. Onde a submissão de uns está a serviço 
dos interesses mesquinhos de outros não há relação humana, mas mera 
servidão. Por outro lado, nossa interdependência, na qualidade de animais 
sociais, exige o cuidado com as necessidades dos outros. 
Enfim, só uma convivência verdadeiramente amorosa pode nos tirar desse 
dilema. O amor, para muito além da sua interpretação romântica, é o estágio 
final da liberdade madura do ser humano. Amar implica ter saído da fase de 
dependência infantil, ter desenvolvido as próprias potencialidades, mas, apesar 
disso - ou exatamente por causa disso - ser capaz de colocar-se a serviço dos 
outros, de respeitar as crenças e posicionamentos dos outros sem abrir mão 
das suas próprias. É a compreensão de que nossa individualidade não se 
anula, mas se reforça no respeito e no serviço aos demais seres humanos, 
igualmente ansiosos pela sua liberdade, mas necessitados do convívio e do 
apoio dos outros. É a marca distintiva deixada por Deus mostrando a que veio! 
 
 
3. Determinismo físico e liberdade 
 
A questão da liberdade pode também ser discutida a partir da análise física (ou 
metafísica1) do mundo. Na Idade Moderna, com o desenvolvimento da física 
como ciência autônoma, especialmente pelas obras de Galileu e Newton, 
passou-se a acreditar que o mundo é regido por leis físicas rígidas, de modo 
que tudo está determinado por leis que não podem ser violadas. Ora, a 
liberdade é exatamente a possibilidade de agir sem ter o constrangimento de 
uma lei, de fazer uma escolha que não está dada de antemão, seja pelo 
destino, pelos deuses ou por leis da natureza. 
 
Essa crença de um universo matematicamente determinado, como uma 
máquina, ficou conhecido como determinismo ou mecanicismo. 
Aparentemente, não há contradição entre a pretensa liberdade humana e um 
universo determinado, mas à medida que avançamos nessa discussão, 
percebemos que as duas coisas são incompatíveis, pois a liberdade humana 
teria que ser explicada por um viés completamente diferente da ciência, o que 
também geraria contradição com a mentalidade cientificista e positivista. 
No final do século XIX e início do século XX, o filósofo norte-americano Charles 
Sanders Peirce se debruçou sobre essa questão. Ele estava intrigado, 
sobretudo, com a ideia de ciência como ela fora estabelecida por Galileu e 
Newton, como um conhecimento certo, indubitável, universal e necessário. 
Peirce era também cientista, trabalhava com geologia, química, e outras áreas. 
De sua prática científica, nasceu a convicção de que essa ideia de ciência 
infalível e determinista não fazia o menor sentido. Ele sabia que toda teoria 
científica era uma tentativa de aproximação da verdade sobre algum assunto, e 
estava sempre aberta a imprecisões, correções e até de refutação total. 
Além da análise da ciência, Peirce refletiu detidamente sobre o universo em 
geral, fazendo metafísica, ou seja, indo além das meras teorias científicas, e 
procurando investigar qual seria a estrutura do universo como um todo, que 
justificasse o modo como o percebemos. Concluiu pela teoria do 
indeterminismo. Seguindo um viés evolucionista, ele teorizou que o universo 
 
1 A palavra metafísica foi utilizada pela primeira vez por Andrônico de Rhodes, que viveu no primeiro 
século antes da era cristã. Ele organizou as obras de Aristóteles que haviam sido perdidas. Depois de 
catalogar o tradado de “física”, encontrou um texto que Aristóteles chamava de “filosofia primeira”, e 
tratava de temas que iam para além do que podia ser observado. Na falta de um nome melhor, Andrônico 
chamou o tratado de “metafísica”, porque, fortuitamente, foi catalogado “depois da física. O nome se tornou 
clássico, e designa aqueles temas que não podem ser tratados pela observação científica, mas são 
necessários e relevantes para a compreensão da realidade como um todo. 
 
está em contínua transformação, e a inexatidão do nosso conhecimento sobre 
ele não vem apenas do fato de que nosso conhecimento é limitado e falível, 
mas que o próprio universo ainda não está pronto. 
Nessa teoria, a liberdade aparece como um dado do próprio universo, pois as 
próprias leis físicas estão em processo de evolução. O universo não pode ser, 
portanto, meramente material, como querem os materialistas. A mera matéria 
não gera nada, não pode se desenvolver nem se complexificar por força 
própria. O universo é, portanto, uma espécie de mente, que cria “hábitos” ao 
longo do tempo. Tais hábitos são as leis da natureza. 
Nesse contexto, a liberdade humana aparece como uma manifestação do 
próprio modo de ser do universo. Como o “hardware” do cérebro humano 
permite o funcionamento de “softwares” mais complexos, a liberdade pode se 
manifestar em nós de modo mais completo. Se observarmos as diversas 
espécies de seres vivos, veremos que há um nível “gradual” de liberdade entre 
eles, indo do comportamento mais determinado das plantas e dos animais 
inferiores, até as manifestações psíquicas mais complexas. 
 
Vamos analisar isso com o exemplo de uma colmeia: 
O filósofo alemão Karl Marx afirma que o trabalho é o fator constitutivo do ser 
humano, pois é a atividade que une a capacidade intelectual de planejamento e 
previsão com a habilidade manual de transformação da natureza. Dessa forma, 
nenhum animal “trabalha” propriamente, pois, por mais organizada que seja 
sua atividade, não possui planejamento, sendo apenas uma atividade instintiva 
e automática. 
Mas a tal “atividade automática” das abelhas demonstra um aprimoradíssimo 
senso de organização, conhecimentos refinados de engenharia (a estrutura da 
colmeia tem forma hexagonal, porque é mais estável), e um domínio de 
bioquímica de fazer inveja às mais destacadas fábricas de produtos 
alimentícios. Pois bem, é patente que há muita inteligência investida numa 
colmeia. Se essa inteligência não provém do cérebro das abelhas, de onde 
vem? Quem é responsável por tão perfeita organização social. Quem compilou 
aí tantos conhecimentos de física, química e biologia? 
A questão permanece naquilo que chamamos em filosofia de “metafísica”, ou 
seja, questões que não podem ser decididas por métodos científicos de 
observação. Mas não poder ser decidido está longe de ser o mesmo que 
irrelevante. Primeiro porque foi especulando dessa forma, num período quando 
telescópios e microscópios nem sequer eram sonhados, que os sábios da 
antiguidade abriram o caminho para o conhecimento científico que temos hoje. 
A hipótese para a resposta da pergunta é o materialismo. Para essa doutrina, a 
 
matéria é a origem de tudo, sendo a mente, a inteligência, a variedade e a 
liberdade resultados dos processos de evolução da matéria, que vai se 
diversificando e ficando mais complexa. Como consequência prática da visão 
materialista está a crença de que a vida humana não pode sobreviver à 
matéria, pois, afinal, tudo se resume à matéria. Com base nessa crença, as 
pessoas assumem posturas, tomam decisões, criam estilos de vida. E não há a 
menor evidência científica de que o materialismo seja uma teoria próxima da 
verdade. 
 
Charles Sanders Peirce, como vimos, nunca engoliu essa ideia de que a 
metafísica fosse uma área menos nobre da filosofia e que seus temas fossem 
incognoscíveis. Para ele, quando a metafísica trabalha na direção da pergunta 
que fizemos, ela é científica,
porque está propondo hipóteses para explicar 
dados da observação, que é o que faz qualquer ciência. Repelindo o 
materialismo e o mecanicismo, Peirce propõe a hipótese de que, na origem, 
tudo é mente, e não matéria. De fato, não é plausível pensar que a matéria 
inerte seja capaz de gerar vida, inteligência e liberdade. É claramente “forçar a 
barra”. Na hipótese do filósofo, a matéria é que é o resultado de uma 
deterioração da mente, e não a mente de uma evolução da matéria. Para ele, 
“não é a ideia que está na alma, mas a alma que está na ideia”. Certamente 
fica mais fácil entender a colmeia por essa perspectiva. Se mente e inteligência 
não são atributos exclusivos dos processos cerebrais humanos, mas estão na 
origem de todas as coisas, então temos um caminho aberto para reflexões 
profícuas não só para entender o sentido da liberdade. Tal ideia pode nos tirar 
da prisão cientificista da modernidade ocidental e, quem sabe, trilhar um 
caminho que leve à possível unificação das linguagens científica, filosófica e 
religiosa, que o positivismo estabeleceu como inconciliáveis. Está aí uma tarefa 
intelectual que vale a pena empreender. 
 
 
 
 
REFERÊNCIAS 
 
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Coleção Pensadores. São Paulo: Editora 
Nova Cultural, 1987. 
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Editora 
Perspectiva, 2001. 
FROMM, Erich. A arte de amar. Belo Horizonte: Editora itatiaia, 1988. 
FROMM, Erich. O medo à liberdade. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970. 
HOMERO. Ilíada. Ebooks Brasil, 2009. 
MAY, Rollo. O homem à procura de si mesmo. Petrópolis: Editora Vozes, 
1986. 
SANTOS, José Francisco dos. Realismo e falibilismo: um contraponto entre 
Peirce e Popper. Curitiba: Editora CRV, 2011. 
SANTOS, José Francisco dos. Para refletir: artigos para reflexão e discussão 
em filosofia, ética e temas transversais. Jundiaí/SP: Paco Editorial, 2013. 
SÓFOCLES. Édipo Rei. Ebooks Brasil, 2005. 
 
 
 
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