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164 PONTO DE VISTA Terapia cognitiva construtivista e psicanálise Antonio Carlos Pacheco e Silva Filho1 1 Doutor em Medicina pelo Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Graduated Fellow – The Institute of Living. Hartford, Conn. USA. Membro efetivo e Analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. A filosofia e as ciências pós-modernas vêm criti- cando severamente o reducionismo da fase histórica denominada Iluminismo, a qual se caracterizou pelo objetivismo, com grandes contribuições para o desenvol- vimento científico em vários campos, inclusive na medi- cina. Na psiquiatria, como no restante da medicina biológica, muito se desenvolveu o sentido descritivo, que atingiu seu ápice com Emil Kraepelin, embora logo tenha surgido a psicanálise como contraponto ao excessivo objetivismo kraepeliniano, levando à psiquiatria dinâmica que desde o início do século XX tornou-se fundamental nos EUA; inicialmente baseada na psicobiologia de Adolph Mayer e posteriormente, com o grande afluxo de psicanalistas europeus refugiados de guerra, recebendo forte influência psicanalítica. Estruturou-se a psicanálise como “psicologia do ego” principalmente em relação aos mecanismos de defesa, cuja obra mais antiga creio ter sido publicada em 1936 por Anna Freud. A ciência do inconsciente teria ficado menos instintiva (como a tinha desenvolvido Freud) e mais egóica. Essa influência se fez sentir sobre todos os psi- quiatras norte-americanos, mesmo sobre os não-psica- nalistas, na então chamada “psicodinâmica”. Atualmente, com o grande desenvolvimento das neurociências e da psicofarmacologia, o pêndulo psi- quiátrico, em muitos centros mundiais, parece ter osci- lado, a meu ver, de maneira bastante exagerada no sentido biológico. Volta-se, por conseguinte, ao objeti- vismo excessivo do Iluminismo, dando novos rótulos às síndromes há longo tempo descritas e procurando- se tratar mais as doenças do que os pacientes em sua subjetividade. Aparentemente, novas psicoterapias foram sur- gindo, tornando-se as cognitivas, possivelmente, as mais importantes. Dentro destas, as comportamentais, apoiadas no behaviorismo, mostram-se excessivamente objetivistas, enfocando os pacientes mais como “casos” do que subjetivamente como pessoas. Em certo confronto, a terapia cognitiva construti- vista veio corrigir essa deficiência, como acertadamente afirmam Abreu et al. (2001): “A pós-modernidade é marcada por uma grande alteração nos paradigmas científicos, principalmente onde estão as psicoterapias inseridas. Neste contexto surge o construtivismo tera- pêutico como uma resposta à pluralidade individual... As emoções, outrora consideradas inimigas e tóxicas para o equilíbrio humano, passam a ser consideradas fundamentais. De intrusas passaram a essenciais.” Realmente, até neurocientistas, como Antonio Damásio, em pesquisas notáveis, chegaram à conclusão de ser a emoção precedente à cognição e depender esta principalmente daquela (1994, 2000); a objetividade cartesiana, como no aforismo “penso, logo existo”, vai sendo substituída em grande parte pelo contrário: “Sou, sinto e depois penso”. Ou seja, os sentimentos e as emoções condicionam os pensamentos. W. R. Bion, grande contribuidor para o desenvol- vimento da psicanálise, há poucos anos falecido, estabeleceu uma das mais criativas teorias sobre a origem do pensamento, atribuindo-o inicialmente às frustrações e à necessidade de se encontrar soluções para elas, no que o ser humano repete ontogeneticamente a filogenia. Em outras palavras, as frustrações provocam emoções, e aquelas ameaçadoras da integridade psicológica como o medo e a raiva, princi- palmente o primeiro, levam à necessidade de pensar. Baseia-se no temor de aniquilação do recém-nascido, conforme postulado por Melanie Klein, na posição esquizoparanóide, como a proto emoção responsável pelo aparecimento gradativo do pensamento. Natural- mente, este pensar, na forma verbal, só começa a surgir em torno do primeiro ano de vida. Antes disso, pensamos de maneira rudimentar, à semelhança dos mamíferos superiores, principalmente os primatas. Rev. Psiq. Clín. 29 (3):164-166, 2002Silva Filho, A.C.P. 165 Voltando às psicoterapias cognitivas, é interessante perceber como, a partir de 1998, aproximaram-se das idéias psicanalíticas, dando senão prioridade, como nós psicanalistas fazemos, às emoções, reconhecendo ser a realidade interna construída principalmente por elas e não apenas por premissas racionais. Bem dizem Abreu et al., deve ser o conhecimento compreendido diferen- temente das referências objetivistas, como fruto de uma organização individual pessoal. “Primeiro sentimos, depois pensamos. As emoções sempre criarão problemas para o pensamento resolver (a mesma idéia de Bion!). É pela construção interna que a realidade externa adquire significado.” Ainda, segundo aqueles autores, a con- cepção cognitiva construtivista considera as estruturas emocionais um dos alicerces fundamentais para o apare- cimento do conhecimento humano. Somos o que sen- timos ser. Principalmente, no que se segue, os cognitivistas construtivos dão a mão aos psicanalistas: “Todo conhecimento e compreensão da realidade serão sempre construções e interpretações feitas a partir do sujeito que as vivencia, tomando como ponto de partida sua história passada de interações....Como dizia Fernando Pessoa, nós fabricamos realidades”. É claro haver um afastamento da psicanálise ao não darem importância à fantasia inconsciente e aos objetos internos formadores da realidade interna, constituintes básicos da psicanálise atual. Nessa linha, Bohleber e Pfeifer (2002) acentuam a importância de conhecimentos interdisciplinares para o entendimento melhor da mente. Analisam principalmente as importantes pesquisas sobre a memória chegando ao que denominam embodied cognitive science (ciência cognitiva da incorporação), contribuindo para o melhor esclarecimento do processo psicanalítico. A memória, acentuam, deve ser considerada: a) uma construção teórica procurando explicar certos acontecimentos do passado influentes sobre o comportamento atual; b) não apenas como armazenamento, mas como atividade de todo o organismo, na atividade de uma recategorização complexa contínua, em processo interativo continuamente incor- porado (inbodied) como um todo. Essa é também idéia de Edelman, Prêmio Nobel por trabalho sobre a natureza do sistema de aprendizagem no nível celular e neuroquímico; um dos nomes mais prestigiados da psicologia cognitiva, que havia sido anteriormente imunologista. Em sua visão, o padrão de conexões neuronais, embora fixo no nasci- mento, certas combinações de conexões são selecionadas como resultado de estímulos específicos e da competição entre diversos grupos neuronais – esses mapas ou redes se intercomunicam para criar categorias de coisas e eventos que são alterados com o tempo por experiências subseqüentes; c) uma função onde há sempre um lado subjetivo e outro objetivo. O primeiro decorre da história individual e o segundo de padrões neuronais oriundos de interações sensoriais motoras com o meio. Isso implica que tanto a verdade “nar- rativa” (subjetiva) como a histórica (objetiva) devem ser consideradas na mudança psíquica estável. Citam os autores acima Shank (1982), que em seu livro dynamic memory procurou explicar os processos mnêmicos no decorrer do processo analítico. Estabelece um inter- relacionamento no que chamou TOP (Ponto de organização temática) que seria o triângulo da autocompreensão, do insight, ligando estruturas análogas de um conflito atual com outras na transferência e na informação biográfica. Figura 1 Triângulo do insight, da autocompreensão Seria, por exemplo, o caso de uma paciente anali- sada, com depressão profunda. Haveria nela compo- nentes análogos da situação conflitante atual (1) (sentir- se explorada pelo marido) a transferência (2) (conven- cida de estar sua analista apenas interessada em seu dinheiro) e uma experiência traumática da infância (3) (quando foi usada como “escudo” protetorpela mãe, para fugir, numa noite aterrorizante, de soldados russos, durante a segunda guerra mundial). Se a memória funcionasse apenas como um com- putador, os seres vivos não conseguiriam sobreviver, num mundo de mudanças contínuas. Processos Rev. Psiq. Clín. 29 (3):164-166, 2002Silva Filho, A.C.P. 166 adaptativos construtivos são indispensáveis. O próprio sistema imunológico funciona como uma memória de inter-relacionamento no anticorpo ao reagir a um antígeno. Também para muitos, a memória seria constituída por vários sistemas: memória processual, episódica, declarativa, autobiográfica, sistemas mais ou menos independentes. As primeiras experiências seriam praticamente armazenadas de forma exclusiva na memória processual e não poderiam ser integradas à memória autobiográfica que se desenvolve muito depois. Segundo Fonagy e Target, citados pelos autores Bohleber e Pfeifer, “A psicanálise em busca de lem- branças antigas não leva a nada. É necessária uma mudança dos modelos mentais, uma alteração da organização hierárquica dos processos da memória implícita”. E acrescentam: “As pesquisas psicanalíticas das últimas décadas, postulando cada vez mais radicalmente ser só uma elaboração, working through, das experiências traumáticas ocorridas nas primeiras relações objetais, feita na transferência, podem produzir mudanças estruturais e receber suporte interdisciplinar pelas pesquisas biológicas atuais sobre a memória”. O fator decisivo é a elaboração no relacionamento, no aqui e agora transferencial, que inclui as experiências sensoriais-motoras e afetivas na interação terapêutica, no sentido “incorporativo”. Essa incorporação na plasti- cidade cerebral altera as redes neuronais, e isso para ocorrer exige tempo. Em suma, pesquisas multidisciplinares são essenciais para o melhor conhecimento da mente humana, seus distúrbios e seu tratamento. A confluência entre conceitos próximos de várias orientações permite chegar mais perto da verdade científica. Referências bibliográficas ABREU, C.N.; VALLE, L.G.; ROSO, M.C. – Terapia Cognitiva Construtivista, Revista de Psiquiatria Clínica 28(6): 356-60, 2001. DAMÁSIO, A.R. – O Erro de Descartes. Europa-América, Sintra, 1994. DAMÁSIO, A.R. – O Ministério da Consciência . Companhia das Letras, São Paulo, 2000. LEUZINGER - BOHLEBER , M.; P FEIFER, R. – Remembering a Depressive Primary Object. International Journal of Psychoanalysis 83: 3-33, 2002. Rev. Psiq. Clín. 29 (3):164-166, 2002Silva Filho, A.C.P.
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