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PONTO DE VISTA
Terapia cognitiva construtivista e psicanálise
Antonio Carlos Pacheco e Silva Filho1
1 Doutor em Medicina pelo Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Graduated Fellow – The Institute of Living. Hartford, Conn. USA.
Membro efetivo e Analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
A filosofia e as ciências pós-modernas vêm criti-
cando severamente o reducionismo da fase histórica
denominada Iluminismo, a qual se caracterizou pelo
objetivismo, com grandes contribuições para o desenvol-
vimento científico em vários campos, inclusive na medi-
cina.
Na psiquiatria, como no restante da medicina
biológica, muito se desenvolveu o sentido descritivo,
que atingiu seu ápice com Emil Kraepelin, embora logo
tenha surgido a psicanálise como contraponto ao
excessivo objetivismo kraepeliniano, levando à psiquiatria
dinâmica que desde o início do século XX tornou-se
fundamental nos EUA; inicialmente baseada na
psicobiologia de Adolph Mayer e posteriormente, com
o grande afluxo de psicanalistas europeus refugiados
de guerra, recebendo forte influência psicanalítica.
Estruturou-se a psicanálise como “psicologia do
ego” principalmente em relação aos mecanismos de
defesa, cuja obra mais antiga creio ter sido publicada
em 1936 por Anna Freud. A ciência do inconsciente
teria ficado menos instintiva (como a tinha desenvolvido
Freud) e mais egóica.
Essa influência se fez sentir sobre todos os psi-
quiatras norte-americanos, mesmo sobre os não-psica-
nalistas, na então chamada “psicodinâmica”.
Atualmente, com o grande desenvolvimento das
neurociências e da psicofarmacologia, o pêndulo psi-
quiátrico, em muitos centros mundiais, parece ter osci-
lado, a meu ver, de maneira bastante exagerada no
sentido biológico. Volta-se, por conseguinte, ao objeti-
vismo excessivo do Iluminismo, dando novos rótulos
às síndromes há longo tempo descritas e procurando-
se tratar mais as doenças do que os pacientes em sua
subjetividade.
Aparentemente, novas psicoterapias foram sur-
gindo, tornando-se as cognitivas, possivelmente, as mais
importantes. Dentro destas, as comportamentais,
apoiadas no behaviorismo, mostram-se excessivamente
objetivistas, enfocando os pacientes mais como “casos”
do que subjetivamente como pessoas.
Em certo confronto, a terapia cognitiva construti-
vista veio corrigir essa deficiência, como acertadamente
afirmam Abreu et al. (2001): “A pós-modernidade é
marcada por uma grande alteração nos paradigmas
científicos, principalmente onde estão as psicoterapias
inseridas. Neste contexto surge o construtivismo tera-
pêutico como uma resposta à pluralidade individual...
As emoções, outrora consideradas inimigas e tóxicas
para o equilíbrio humano, passam a ser consideradas
fundamentais. De intrusas passaram a essenciais.”
Realmente, até neurocientistas, como Antonio
Damásio, em pesquisas notáveis, chegaram à conclusão
de ser a emoção precedente à cognição e depender esta
principalmente daquela (1994, 2000); a objetividade
cartesiana, como no aforismo “penso, logo existo”, vai
sendo substituída em grande parte pelo contrário: “Sou,
sinto e depois penso”. Ou seja, os sentimentos e as
emoções condicionam os pensamentos.
W. R. Bion, grande contribuidor para o desenvol-
vimento da psicanálise, há poucos anos falecido,
estabeleceu uma das mais criativas teorias sobre a
origem do pensamento, atribuindo-o inicialmente às
frustrações e à necessidade de se encontrar soluções
para elas, no que o ser humano repete ontogeneticamente
a filogenia. Em outras palavras, as frustrações
provocam emoções, e aquelas ameaçadoras da
integridade psicológica como o medo e a raiva, princi-
palmente o primeiro, levam à necessidade de pensar.
Baseia-se no temor de aniquilação do recém-nascido,
conforme postulado por Melanie Klein, na posição
esquizoparanóide, como a proto emoção responsável
pelo aparecimento gradativo do pensamento. Natural-
mente, este pensar, na forma verbal, só começa a surgir
em torno do primeiro ano de vida. Antes disso, pensamos
de maneira rudimentar, à semelhança dos mamíferos
superiores, principalmente os primatas.
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Voltando às psicoterapias cognitivas, é interessante
perceber como, a partir de 1998, aproximaram-se das
idéias psicanalíticas, dando senão prioridade, como nós
psicanalistas fazemos, às emoções, reconhecendo ser
a realidade interna construída principalmente por elas e
não apenas por premissas racionais. Bem dizem Abreu
et al., deve ser o conhecimento compreendido diferen-
temente das referências objetivistas, como fruto de uma
organização individual pessoal. “Primeiro sentimos,
depois pensamos. As emoções sempre criarão problemas
para o pensamento resolver (a mesma idéia de Bion!).
É pela construção interna que a realidade externa adquire
significado.” Ainda, segundo aqueles autores, a con-
cepção cognitiva construtivista considera as estruturas
emocionais um dos alicerces fundamentais para o apare-
cimento do conhecimento humano. Somos o que sen-
timos ser.
Principalmente, no que se segue, os cognitivistas
construtivos dão a mão aos psicanalistas: “Todo
conhecimento e compreensão da realidade serão sempre
construções e interpretações feitas a partir do sujeito
que as vivencia, tomando como ponto de partida sua
história passada de interações....Como dizia Fernando
Pessoa, nós fabricamos realidades”.
É claro haver um afastamento da psicanálise ao
não darem importância à fantasia inconsciente e aos
objetos internos formadores da realidade interna,
constituintes básicos da psicanálise atual.
Nessa linha, Bohleber e Pfeifer (2002) acentuam a
importância de conhecimentos interdisciplinares para o
entendimento melhor da mente. Analisam principalmente
as importantes pesquisas sobre a memória chegando ao
que denominam embodied cognitive science (ciência
cognitiva da incorporação), contribuindo para o melhor
esclarecimento do processo psicanalítico.
A memória, acentuam, deve ser considerada:
a) uma construção teórica procurando explicar
certos acontecimentos do passado influentes
sobre o comportamento atual;
b) não apenas como armazenamento, mas como
atividade de todo o organismo, na atividade
de uma recategorização complexa contínua,
em processo interativo continuamente incor-
porado (inbodied) como um todo. Essa é
também idéia de Edelman, Prêmio Nobel por
trabalho sobre a natureza do sistema de
aprendizagem no nível celular e neuroquímico;
um dos nomes mais prestigiados da psicologia
cognitiva, que havia sido anteriormente
imunologista. Em sua visão, o padrão de
conexões neuronais, embora fixo no nasci-
mento, certas combinações de conexões são
selecionadas como resultado de estímulos
específicos e da competição entre diversos
grupos neuronais – esses mapas ou redes se
intercomunicam para criar categorias de coisas
e eventos que são alterados com o tempo por
experiências subseqüentes;
c) uma função onde há sempre um lado subjetivo
e outro objetivo. O primeiro decorre da história
individual e o segundo de padrões neuronais
oriundos de interações sensoriais motoras com
o meio. Isso implica que tanto a verdade “nar-
rativa” (subjetiva) como a histórica (objetiva)
devem ser consideradas na mudança psíquica
estável. Citam os autores acima Shank (1982),
que em seu livro dynamic memory procurou
explicar os processos mnêmicos no decorrer
do processo analítico. Estabelece um inter-
relacionamento no que chamou TOP (Ponto de
organização temática) que seria o triângulo da
autocompreensão, do insight, ligando estruturas
análogas de um conflito atual com outras na
transferência e na informação biográfica.
Figura 1 Triângulo do insight, da autocompreensão
Seria, por exemplo, o caso de uma paciente anali-
sada, com depressão profunda. Haveria nela compo-
nentes análogos da situação conflitante atual (1) (sentir-
se explorada pelo marido) a transferência (2) (conven-
cida de estar sua analista apenas interessada em seu
dinheiro) e uma experiência traumática da infância (3)
(quando foi usada como “escudo” protetorpela mãe,
para fugir, numa noite aterrorizante, de soldados russos,
durante a segunda guerra mundial).
Se a memória funcionasse apenas como um com-
putador, os seres vivos não conseguiriam sobreviver,
num mundo de mudanças contínuas. Processos
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adaptativos construtivos são indispensáveis. O próprio
sistema imunológico funciona como uma memória de
inter-relacionamento no anticorpo ao reagir a um
antígeno.
Também para muitos, a memória seria constituída
por vários sistemas: memória processual, episódica,
declarativa, autobiográfica, sistemas mais ou menos
independentes. As primeiras experiências seriam
praticamente armazenadas de forma exclusiva na
memória processual e não poderiam ser integradas à
memória autobiográfica que se desenvolve muito depois.
Segundo Fonagy e Target, citados pelos autores
Bohleber e Pfeifer, “A psicanálise em busca de lem-
branças antigas não leva a nada. É necessária uma
mudança dos modelos mentais, uma alteração da
organização hierárquica dos processos da memória
implícita”. E acrescentam: “As pesquisas psicanalíticas
das últimas décadas, postulando cada vez mais
radicalmente ser só uma elaboração, working through,
das experiências traumáticas ocorridas nas primeiras
relações objetais, feita na transferência, podem produzir
mudanças estruturais e receber suporte interdisciplinar
pelas pesquisas biológicas atuais sobre a memória”. O
fator decisivo é a elaboração no relacionamento, no aqui
e agora transferencial, que inclui as experiências
sensoriais-motoras e afetivas na interação terapêutica,
no sentido “incorporativo”. Essa incorporação na plasti-
cidade cerebral altera as redes neuronais, e isso para
ocorrer exige tempo.
Em suma, pesquisas multidisciplinares são
essenciais para o melhor conhecimento da mente
humana, seus distúrbios e seu tratamento. A confluência
entre conceitos próximos de várias orientações permite
chegar mais perto da verdade científica.
Referências bibliográficas
ABREU, C.N.; VALLE, L.G.; ROSO, M.C. – Terapia Cognitiva Construtivista,
Revista de Psiquiatria Clínica 28(6): 356-60, 2001.
DAMÁSIO, A.R. – O Erro de Descartes. Europa-América, Sintra, 1994.
DAMÁSIO, A.R. – O Ministério da Consciência . Companhia das Letras,
São Paulo, 2000.
LEUZINGER - BOHLEBER , M.; P FEIFER, R. – Remembering a Depressive
Primary Object. International Journal of Psychoanalysis 83:
3-33, 2002.
Rev. Psiq. Clín. 29 (3):164-166, 2002Silva Filho, A.C.P.

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