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A RELIGIÃO E O SAGRADO COMO FATO INTRÍNSECO À HUMANIDADE

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A RELIGIÃO E O SAGRADO COMO FATO INTRÍNSECO À HUMANIDADE 
 
“Há mais coisas entre o céu e a terra, do que supõe a nossa vã filosofia” 
(SHAKESPEARE. 2009, p.21) 
Iniciar o discurso trazendo esta frase, que apesar de ser publicamente referida 
ao romancista Shakespeare, já era afirmada pelo Filósofo Blaise Pascal, direciona o 
ponto chave da concepção acerca do ser religioso. 
Durante o decorrer da narrativa histórica da humanidade, acompanha-se a 
necessidade humana de estabelecer sua fé em algo, ou devidamente em um “Cosmo”. 
O Sociólogo Émile Durkheim tratou da perspectiva humana acerca da religião, 
e pontuou em sua obra “As Formas Elementares da Vida Religiosa” que o que 
antecede a religião é a família (ou clã), e que a mesma se estrutura em decorrência 
dela. Especificando que não se pode associar religião à um fenômeno raso: que não 
possui organização prima em seus aspectos. Em razão disso, ele propõe a análise da 
antropologia da religião a partir de uma estrutura específica comum. 
Não se limitando somente aos aspectos que redigem o conceito, Durkheim 
(2009, p. 6 e 7), discorreu a respeito da necessidade de compreender o contexto 
histórico da religião, e a partir dele, acompanhar a sociedade em que estava inserido. 
O sociólogo acreditava que a sociedade funcionava a partir de instituições humanas, 
e que a religião, em todos os seus aspectos, não deve ser vista da ótica de um modelo 
sistêmico que já possui um padrão de comparação sólido. Porque, neste caso, as 
primeiras instituições que estabeleceram uma religião, seriam errôneas e falsas, e 
dessa perspectiva, a religião teria sido facilmente desmistificada pela ciência, não 
tendo em si próprias sustentabilidade para durar. Para ele, tratar da religião desde as 
primeiros civilizações, é ter como base algo que é real, e que exprime realidade 
(DURKHEIM, 2009, l- 7). 
De certo, a origem das religiões se confunde com a do ser humano, 
independentemente do conteúdo ao qual se associa o Sagrado. Assim, embora 
sofram influências umas das outras, conclui-se que cada povo possui uma gênese 
religiosa característica, e de suma importância para o debate atual acerca da 
Liberdade Religiosa. 
Quando se pensa em religião, ou mesmo em Sagrado, junto a esse contexto 
histórico, têm-se uma alusão, quase que involuntária, a uma espécie de ignorância. O 
homem científico tem um olhar criterioso para com a cultura do religioso, entendendo 
a ciência e filosofia como saberes suficientes em si mesmos, que não andam em 
conformidade com a fé. Como se a fé não tratasse de um pilar fundamental na 
estrutura do homem enquanto ser vivente, dotado de alma e espírito. 
Contrária a isso, a dogmática cristã, a exemplo, do sec. XVII, possuía 
pensadores como Blaise Pascal (2002), que confrontava tal afirmação, expondo um 
sentimento profundo acerca daquilo que não está revelado nas coisas, e que defendia 
que a razão, sozinha, não poderia explicar tudo, nem era o pilar uno suficiente para 
discorrer a respeito do ser humano. 
Durkheim (2009), afirma que as religiões primitivas eram, sobremaneira, de 
singela compreensão. Pois as sociedades não estavam alvoroçadas em uma série de 
possibilidades de perguntas para possíveis respostas propostas a partir de um 
pensamento erudito. Em razão disso, as ações que direcionam o homem à uma 
religião, estão afirmadas nele mesmo, de forma pura. Ele propõe a religião, como 
naturalmente ligada ao homem, e originária à ciência e filosofia, pois trata de uma 
resposta à um anseio interno. 
Em sua obra “As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na 
Austrália”, Durkheim afirma que: 
O fiel que se pôs em contato com o seu deus não é apenas um homem que 
percebe verdades novas que o descrente ignora, é um homem que pode 
mais. Ele sente em si mais força, seja para suportar as dificuldades da 
existência, seja para vencê-las. Está como que elevado acima das misérias 
humanas porque está elevado acima de sua condição de homem; acredita-
se salvo do mal, seja qual for a forma, aliás, que conceba o mal (DURKHEIM, 
2009, p. 459), 
 
(REINKE, 2019, p. 23) aponta a teoria do teólogo Rudolf Otto, ao mencionar 
que ao se deparar com o Sagrado, o religioso possui uma reação ligada à sua própria 
existência; o sagrado, não se trata de uma realidade associada à ignorância, mas 
verdadeiramente faz menção a algo muito além daquilo que poderíamos compreender 
ou delimitar em nossas rasas concepções humanas. 
Desse modo, não há que se pensar em sociedade desvinculada de religião. A 
mesma está enraizada no decorrer das civilizações, seja como objeto de controle, 
estudo ou enquanto uma convicção humana acerca de sua estima espiritual. 
 
 
 
 
DA IMPOSIÇÃO RELIGIOSA 
 
No que se refere à religião como instrumento de manipulação em massa, é 
possível denotar um marco social inquestionável: o uso da mesma para controle social 
traçou uma carreira sangrenta, impiedosa e absurdamente escravista. Sendo 
intrigante como algo que antecende o modelo de organização ocidental, e mesmo a 
própria civilização, pôde ser detido nas mãos de um soberano. 
Rosseau (2013, p. 14) mensurou que o homem não tem autoridade natural 
sobre o seu semelhante, e que a força não faz direito; deste modo, impor determinada 
vontade “soberana” a outrem está diretamente ligada ao entendimento do mesmo para 
com a “força” do soberano. 
Inegavelmente, o homem religioso possui um respeito singular para com o seu 
líder. Tal como o mencionado, não se encaixa no entendimento humano as reais 
motivações do homem frente ao sagrado, no entanto, a associação entre a religião 
como mediadora do sagrado, permeia a ótica que dá ao líder religioso uma existência 
relativamente superior por ter sua função direcionada pelo “Cosmo”. Tal estima 
concede líder que detém a divindade em si, autonomia sobre os fiéis. 
Cita Paul Claval em seu artigo “Política, espaço e cultura: as ligações entre 
poder e religião”: 
As primeiras formas de poder concentrado e de institucionalização política 
foram construídas por sacerdotes-reis. No começo da colonização da África, 
no século dezenove, muitos eram os exemplos deste tipo de organização 
política no interior do continente. Na Grécia e em Roma, a figura do 
sacerdote-rei permanecia viva mesmo que a realidade do poder já havia se 
tornado diversa. 
A associação de um poder baseado sobre a força militar e a religião 
caracterizava a maioria dos sistemas políticos tradicionais. Esta associação 
podia ter formas diversas. No caso mais frequente, o rei ou o imperador 
aparece como o chefe supremo da igreja: na China, o imperador oficiava 
como sacerdote nas grandes cerimônias religiosas. Na primavera, ele abria o 
primeiro sulco: desta maneira, ele reconciliava o mundo profano da 
agricultura e as forças do Cosmos. 
Outra maneira de apoiar o sistema político sobre a autoridade de origem 
religiosa era a divinização do Rei ou do Imperador: era a situação do faraó no 
Egito, dos soberanos na Mesopotâmia antiga, dos Reis persas. Alexandre o 
Grande aceitou tornar-se um deus para dominar a parte oriental de seu 
Império. Augusto seguiu uma via semelhante quando instituiu o culto de 
Roma e de Augusto (CLAVAL, 2011, n.p.). 
 
A perspectiva da interação do religioso a um líder humano, verbaliza o que já 
fora afirmando desde a era filosófica moderna, no que se refere à estima dele para 
com o sagrado. 
Maquiavel (1994) que compreendia que a religião existe de forma única e 
exclusiva em benefício da sociedade, possuindo fundação humana e sendo 
totalmente estabelecida na razão, construiu um pensamento sólido em razão das duas 
possibilidades de conhecimento da verdade da religião, sendos eles a partir da 
perspectiva do governante, e do governado. Traça ainda que, para o governante que 
compreende o poderio da religião, o discurso persuasivo acerca da mesma, dá a eles 
uma posição de favorecimento. O povo compreende e reconheceum bem que 
somente com o discurso racional seria insfuciente para alcançá-los. 
Deste modo, embora ele compreenda a religião como uma ferramenta para O 
Príncipe, em benefício da sociedade, ele a tinha como uma possibilidade ao uso da 
força. Ressaltando que, apesar dos interesses do soberano para com ela, o seu uso 
é em favor da sociedade, assim não sendo, não há que se falar em ferramenta, mas 
imposição. A história aponta que a mistura entre religião e estado de forma una, 
resultou em abuso e desrespeito para com a sociedade e o cidadão em suas estimas. 
Claval (2011, l. 34), afirma que para criar uma instituição política, é necessário 
que a desconfiança do grupo para com o governante seja sanada, ou pelo menos 
parte dela. Se assim não for, a estabilidade do governo ficaria completamente 
comprometida, já que o uso de força armada incita a rebelião, e para manter o controle 
dos possíveis grupos rebeldes seria necessário dispor de um valor muito alto para 
manutenção da vigilância. O que seria alternativo a esta possibilidade é o que 
Maquiavel propôs: o uso da influência que a religião, ou mesmo do líder religioso para 
controlar o povo. Seria esta a influência normal que o líder religioso possui para com 
os fiéis. 
Historicamente, o autor menciona o Faraó, os Reis persas, e mesmo o 
Imperador Romano Alexandre O Grande, que aceitou ser divinizado para que o seu 
controle político fosse estendido à parte do seu império. Tal associação revela sobre 
um ponto que não pode ser discorrido ou tocado na existência humana: a fé. A razão 
sozinha é insuficiente para dominar o homem religioso no mais íntimo do seu ser, na 
dimensão que a religião, se manipulada, consegue. 
 Nos primeiros séculos, os templos eram a própria associação física ao Cosmo. 
O lugar onde os preceitos religiosos poderiam ser idolatrados, reais e visíveis. E 
aqueles que recebiam a vocação “espiritual” de estarem à frente, eram os que 
representavam a autoridade sagrada intocável. 
 Partindo desta concepção, indaga-se a problemática causada neste contexto. 
O problema de fato se dava devido à própria ação do homem de abrir mão de parte 
de si, em temor à representatividade do líder religioso para com o Cosmo. 
Jaime Pisnky, (2019, n.p.) em seu artigo “Religião e Poder: Uma relação 
perigosa”, pontua que no decorrer histórico do uso da religião enquanto ferramenta do 
Poder, encontram-se tanto fatos benéficos, quanto absurdamente desestruturadores 
ao que se anseia de um governo. 
A exemplo, quando na sociedade mesopotâmica o uso da religião para que o 
povo que estivesse debaixo daquele domínio obedecesse, com animus espiritual, 
formou toda uma estrutura de civilização. Desde a construção de canais, estruturação 
de cidades, irrigação suficiente para todo o território do rio Nilo, do Egito, e dos Tigre 
e Eufrates, fomentação da agricultura, comércio, etc. E contrária a esse “benefício 
social”, exemplifica momentos em que religião e política se fundiram, de modo que a 
cobrança de impostos dos fiéis se dava em favor ao templo. 
O religioso possui o íntimo de seu ser desrespeitado quando, para domínio, 
utilizam a religião inserida ao poder político, e para que haja a estabilidade do mesmo, 
a liberdade religiosa é cessada. Nessa perspectiva, possibilidade do exercício de uma 
religião que não seja a que reconhece o líder político como uma figura divina, é 
ameaça política. 
Essa foi a visão tida pelo governo Romano, na sangrenta luta para que qualquer 
ameaça ao seu poder fosse totalmente eliminada. 
 
2.2.1 O governo romano, a religião judaica e o cristianismo 
 
O evangelho segundo escreveu Mateus, no capítulo 2, versículos 1;2;3;4;5;7; e 
8, traz: 
“– Onde está o recém-nascido Rei dos judeus? Porque vimos a sua estrela 
no Oriente e viemos para adorá-lo. Ao ouvir isso, o rei Herodes ficou 
alarmado, e, com ele, toda a Jerusalém. Então Herodes convocou todos os 
principais sacerdotes e escribas do povo e lhes perguntou onde o Cristo 
deveria nascer. Eles responderam: - Em Belém da Judeia, porque assim está 
escrito por meio do profeta: (...). Com isto, Herodes, tendo chamado os 
magos para uma reunião secreta, perguntou-lhes sobre o tempo exato em 
que a estrela havia aparecido. E enviando-os a Belém, disse-lhes:- Vão e 
busquem informações precisas a respeito do menino; e quando o tiverem 
encontrado, avisem-me, para eu também ir adorá-lo. 
O início dessa sede de poder que detinha o governo de Roma, se dá na 
narrativa bíblica, quando, no nascimento de Jesus, três Reis Magos se dirigem a 
Jerusalém, em busca do “representante” dos Judeus, que havia sido profetizado em 
toda a história deles. 
Ao se deparar com a possibilidade de um “Rei” dos Judeus, que, na perspectiva 
judaica, seria um líder político, o rei de Roma se viu sob ameaça. 
O desfecho ocorre na espera da volta dos Magos, que por revelação divina, 
foram alertados a respeito dos interesses do rei Herodes na morte do menino Jesus, 
e não voltaram por Jerusalém. 
No versículo 16, do mesmo texto, a narrativa continua: 
 
“Vendo-se iludido pelos magos, Herodes ficou muito furioso e mandou matar 
todos os meninos de Belém e de todos os seus arredores, de dois anos para 
baixo, conforme as informações que havia recebido dos magos a respeito do 
tempo em que a estrela havia aparecido.” 
 
 
Um genocídio extremamente cruel, que teve como motivação a imposição de 
poder político, não somente enquanto Estado, mas a divindade central, que não 
aceitava nenhuma espécie de ameaça ao seu poder. 
Eusébio de Cesareia expôs, em sua obra “História Eclesiástica” ressaltada pela 
Me. em história Silvia Sgroi Brandão, o traço sangrento em que a religião cristã, e 
nomeando aqueles que morreram em razão da fé como “mártires, foi submetida 
durante os sécs. I, II e III, tanto pelos romanos, como pelos judeus. 
A partir da perspectiva do Império Romano, dos sacerdotes e escribas judeus, 
a religião cristã foi vista como uma crescente ameaça, que não somente deveria ser 
punida com critério relativos à impossibilidade de fé, mas como o exercício que, além 
de desafiar, era desleal ao Império. 
Segundo ainda compilou Silva Sgroi, a história traz Nero como o primeiro 
instituidor da perseguição à fé cristã, já organizada, por volta do ano de 64, sendo 
seguido por Diocleciano, que era fiel à prática do paganismo. 
Por meio de seu governo, em torno do ano 303, lançou-se o primeiro edito 
imperial, sendo ainda publicado mais três editos que estabeleciam destruição de 
igrejas, destituição de funcionários cristãos, prisão do clero, liberdade no caso de 
apostasia, sacrifício obrigatório aos deuses, tendo como pena a morte, ou trabalhos 
em minas. 
A historiadora discorre ainda sobre a perseguição por Diocleciano ter durado 
cerca de 4 anos, e cessado no ocidente, no entanto, continuado no oriente, até 311, 
por Galério. 
E tal contexto denota, o marco sangrento em que a confusão política entre 
Estado e Religião, quando não separados, e vistos como uma forma de que o 
indivíduo seja devidamente respeitado e atendido, foi historicamente acentuado 
durante séculos, para aqueles que professavam a fé cristã. 
O não respeito à esta prerrogativa, historicamente falando, regou o solo 
terrestre com sangue, sem a menor ressalva quanto à possibilidade de valor à vida 
humana. Manter o poder soberano, sem “ameaça”, era a única coisa que realmente 
importava.

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