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Le Monde Diplomatique Brasil ed 165

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LE MONDE
BRASIL
Riva
2 Le Monde Diplomatique Brasil ABRIL 2021
PLANO BIDEN
Viva o “risco 
sistêmico”!
POR SERGE HALIMI*
T
rês dias antes da entrada de Do-
nald Trump na Casa Branca, o 
presidente chinês, Xi Jinping, 
viajou para Davos. Advertiu os 
Estados Unidos contra o protecionis-
mo. Hoje, é a política de retomada do 
crescimento, impulsionada por Joe 
Biden, que alarma os dirigentes chi-
neses. Eles veem aí um “risco sistêmi-
co” para a ordem econômica atual...
Os Estados Unidos acabam, com 
efeito, de adotar uma das leis mais 
sociais de sua história. Ela descarta 
as estratégias econômicas feitas nas 
últimas décadas, que favoreciam as 
rendas do capital – “inovadores” e 
rentistas juntos – e castigavam as 
classes populares; rompe com as po-
líticas públicas assustadas com a vol-
ta da inflação e o surto do endivida-
mento; e não procura mais lisonjear 
os neoliberais e seus financiadores 
com cortes de impostos, cujo produto 
acabava frequentemente na Bolsa e 
inflava a bolha financeira. 
Com seu plano de emergência de 
US$ 1,9 trilhão (quase 10% da produ-
ção da riqueza anual do país), que de-
ve ser seguido por um programa de 
investimentos em infraestruturas, 
energias próprias e educação (US$ 3 
trilhões em dez anos), o ex-vice-presi-
dente de Barack Obama parece ter en-
fim aprendido as lições da história – e 
as do fracasso de seu antigo “patrão”, 
que, muito prudente, muito centrista, 
não ousou se aproveitar da crise fi-
nanceira de 2007-2008 para impulsio-
nar um novo New Deal. “Com uma 
economia mundial em queda livre”, 
justificou-se Obama, “minha tarefa 
prioritária não era reconstruir a or-
dem econômica, mas evitar um de-
sastre suplementar.”1 Obcecada pela 
dívida, a Europa se infligia no mesmo 
momento uma década de purgação 
orçamentária, de fechamento à chave 
de leitos de hospitais...
Um dos elementos mais promis-
sores do plano Biden é sua universa-
lidade. Todos os norte-americanos 
com rendimentos inferiores a US$ 75 
mil por ano têm direito a um novo 
cheque do Tesouro no valor de US$ 4 
mil por pessoa. Ora, há um quarto de 
século que a maioria dos Estados oci-
dentais condiciona suas políticas so-
ciais a patamares de recursos cada 
vez mais baixos, a dispositivos de su-
pervisão permanente, a “políticas de 
ativação” do emprego punitivas e 
humilhantes.2 Resultado: os que pre-
cisam, mas não ganham nada, são 
estimulados a odiar as políticas pú-
blicas que lhes tiram alguma coisa 
para dar a outros. Depois, atiçados 
pela mídia, passam a imaginar que 
estão pagando para beneficiar vaga-
bundos e parasitas.
A crise de Covid-19 pôs fim a esse 
tipo de maledicência. Nem erro nem 
imperícia podem ser atribuídos a to-
dos os assalariados ou trabalhadores 
independentes cuja atividade foi bru-
talmente interrompida. Em alguns 
países, 60% dos que receberam um 
auxílio emergencial por causa da 
pandemia nunca tinham recebido 
nada antes.3 O Estado os socorreu 
“custasse o que custasse” e sem dis-
criminações. Por enquanto, os adver-
sários são poucos – fora da imprensa 
financeira e da China popular... 
*Serge Halimi é diretor do Le Monde 
Diplomatique.
1 Barack Obama, A Promised Land [Uma terra 
prometida], Crown, Nova York, 2020.
2 Ver Anne Daguerre, “Emplois forcés pour 
les bénéficiaires de l’aide social” [Empre-
gos forçados para os beneficiários da aju-
da social] , Le Monde Diplomatique, jun. 
2005.
3 Segundo a consultoria BCG, citada em The 
Economist, Londres, 6 mar. 2021.
©
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ikRiva
3ABRIL 2021 Le Monde Diplomatique Brasil
EDITORIAL
© Claudius
Para enfrentar a fome
POR SILVIO CACCIA BAVA
N
o ano passado, o governo libe-
rou R$ 292 bilhões para o au-
xílio emergencial, que chegou 
a 68 milhões de brasileiros e 
brasileiras. Contou com nove parce-
las, desde abril. Cinco delas foram 
de R$ 600, e quatro, de R$ 300. Os re-
sultados foram extremamente posi-
tivos tanto para assegurar a segu-
rança alimentar de 30% dos 
brasileiros quanto para enfrentar a 
recessão, que se anunciava muito 
mais severa do que realmente foi. A 
renda transferida animou o comér-
cio e o consumo.
No dia 15 de março, o Congresso 
Nacional aprovou a Emenda Consti-
tucional n. 109/2021, que autoriza o 
gasto de R$ 44 bilhões para o paga-
mento de um novo auxílio emergen-
cial para a população vulnerável afe-
tada pela pandemia. O gasto será 
lançado na dívida pública. 
O valor e a quantidade de parcelas 
ainda serão definidos pelo governo, 
que propõe um gasto médio de R$ 
250, variando de R$ 175 a R$ 350. Se-
rão 45,6 milhões de pessoas benefi-
ciadas. Estão excluídos 22,4 milhões 
de pessoas que receberam em 2020. 
Agora, no momento mais agudo 
da crise sanitária e de desemprego, 
há uma redução substancial do au-
xílio emergencial no valor e no nú-
mero de pessoas que beneficia. É fal-
ta de dinheiro? 
Em 24 de março, dezesseis gover-
nadores se manifestaram em conjun-
to sustentando que o auxílio emer-
gencial deve se manter em R$ 600.1 E, 
na falta do apoio federal para enfren-
tar situações desesperadoras, toma-
ram iniciativas, juntamente com pre-
feitos, de criar programas de renda 
emergencial em seus estados e em al-
guns municípios. 
Aproveitando-se da PEC do auxí-
lio emergencial, parlamentares in-
troduziram nela uma autorização de 
utilização dos lucros financeiros de 
26 fundos públicos para amortização 
da dívida pública, num montante 
aproximado de R$ 200 bilhões. Essa 
autorização pode retirar do Fundo 
Nacional de Desenvolvimento Cien-
tífico e Tecnológico, do Fundo Nacio-
nal de Cultura e dos Fundos de Segu-
rança e dos militares cerca de R$ 65 
bilhões.2 O ataque a esses fundos é o 
ataque à ciência, à pesquisa, à cultu-
ra. Mas, se os lucros financeiros dos 
fundos estão disponíveis, por que 
não utilizá-los para ampliar o auxílio 
emergencial? Por que destiná-los, em 
caráter excepcional, ao pagamento 
do serviço da dívida pública para o 
setor financeiro? 
A condução desastrosa, e mesmo 
criminosa, do governo federal no en-
frentamento da pandemia, associada 
à ausência de política econômica pa-
ra a retomada do crescimento, está 
levando grande parte dos brasileiros 
a um beco sem saída: sem trabalho, 
sem comida, acossados pela pande-
mia e sem perspectivas de superar a 
crise. Só quem não tem mais comida 
para oferecer para suas crianças po-
de avaliar o tamanho desta tragédia. 
Nos Estados Unidos, o governo li-
beral de Joe Biden acaba de aprovar 
uma dotação de US$ 1,9 trilhão para 
enfrentar a pandemia. E vai entregar 
US$ 1 trilhão para programas de aju-
da direta às famílias. O auxílio emer-
gencial para cada família será de R$ 
7.600, além dos R$ 3.250 repassados 
em dezembro. O governo garante 
ainda um seguro-desemprego de R$ 
2.169 por semana. Com o fechamento 
das escolas, o governo norte-ameri-
cano está oferecendo R$ 30,9/dia pa-
ra cada criança que deixa de receber 
a alimentação na escola.3 
Esses recursos não são lançados 
como gasto, mas considerados in-
vestimento na retomada da econo-
mia. Com renda para atender às suas 
necessidades básicas, os norte-ame-
ricanos terão seus direitos à segu-
rança alimentar respeitados e irão 
às compras, retomando o dinamis-
mo da economia. 
Como se vê, com a saída de Trump 
o governo Bolsonaro não tem mais si-
do fiel ao seu alinhamento com as 
políticas do governo norte-america-
no. Estamos muito longe disso. 
No momento atual, na urgência, 
há medidas a tomar. E isso pode ser 
feito desde a dimensão da vida coti-
diana até questões macro. 
A primeira delas é a pressão sobre 
o Congresso para que se restabeleça 
o valor de R$ 600 nesta nova fase do 
auxílio emergencial e que esse pro-
grama volte a atender os 68 milhões 
de pessoas que necessitaram dele no 
ano passado.
Além disso, outras medidas emer-
genciais complementares podem ser 
tomadas. Por exemplo, a criação de 
restaurantes populares utilizando a 
infraestrutura de escolas públicas, 
com suas cozinhas e merendeiras, 
para garantir segurança alimentarnos bairros populares. Esses restau-
rantes populares podem se abastecer 
nos cinturões hortifrutigranjeiros 
que cercam as cidades. Com isso, es-
tariam também transferindo renda 
para os agricultores familiares. 
Outra ação emergencial é a cria-
ção de frentes de trabalho para ga-
rantir uma remuneração aos desem-
pregados. Esse recurso tem sido 
usado nas crises há muito tempo. Há 
muito o que fazer tanto na área so-
cial, como o cuidado com os mais ve-
lhos, quanto na melhoria de vida nas 
cidades, implantando planos de ar-
borização, reformando escolas, e 
tantas outras possibilidades. 
A solidariedade na sociedade tem 
sido fundamental para aliviar o so-
frimento dos mais pobres, mas preci-
samos de políticas públicas e de um 
novo governo que venha a substituir 
o governo Bolsonaro e seja compro-
metido com programas emergen-
ciais de atenção às maiorias e com 
programas de investimento que pro-
movam a transição da economia de 
mercado que temos hoje para uma 
nova economia, a economia do cui-
dado, preocupada com a qualidade 
de vida de todos nós. 
1 “Governadores e prefeitos bancam auxílios 
regionais”, Valor, 25 mar. 2021. 
2 “Promulgada emenda constitucional que per-
mite a volta do auxílio emergencial: valor e 
parcelas serão definidos”, Departamento In-
tersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), 
16 mar. 2021.
3 Folha de S.Paulo, Mundo, 22 jan. 2021.
Riva
4 Le Monde Diplomatique Brasil ABRIL 2021
UMA POLÍTICA DE GOVERNO
Coronavírus, negacionismo 
e infelicidade no Brasil
D
iante do perfil de morbimorta-
lidade da Covid-19, causada pe-
lo novo coronavírus (Sars-
-Cov-2), e das respostas 
políticas, econômicas, sociais e sani-
tárias que os países ofereceram para 
o enfrentamento da pandemia, e 
após um ano da decretação de estado 
de pandemia pela Organização Mun-
dial da Saúde (OMS), consideramos 
importante e oportuno refletir sobre 
duas questões: como o governo brasi-
leiro respondeu à pandemia e quais 
são suas consequências? Que lições a 
gestão da pandemia pelo governo 
brasileiro poderia nos ensinar?
Discutir essas questões, com base 
na análise do cenário e do perfil de 
morbimortalidade, nos conhecimen-
tos e evidências científicas e nos re-
flexos políticos, econômicos e so-
ciais, é essencial para a compreensão 
do posicionamento do governo Bol-
sonaro, de suas ações e/ou omissões 
no enfrentamento da pandemia, e 
seu desfecho, momentâneo.
CENÁRIO, DESAFIOS, 
CIÊNCIA E NEGACIONISMO 
A velocidade de transmissão do Sars-
-Cov-2, o número de mortes e sua le-
talidade capturaram a agenda políti-
ca e pautaram a ação dos governos. 
Assim, a forma como os governos se 
organizam e respondem politica-
mente à crise é fator-chave na explica-
ção da magnitude da epidemia, em 
cada contexto.
No Brasil, o governo federal seguiu 
inicialmente as orientações preconi-
zadas pela OMS e adotou medidas 
sensatas para monitoramento e con-
tenção da epidemia, como a ativação 
do Centro de Operações de Emergên-
cias em Saúde Pública, a declaração 
de estado de emergência em saúde 
pública, a decretação de estado de ca-
lamidade pública, a obrigação de re-
gistro das internações por Covid-19 
em todos os estabelecimentos de saú-
de no país, leis, medidas provisórias e 
outros instrumentos normativos.
Aliado a essas medidas, o Brasil 
pôde observar como países seminais, 
em número e gravidade de casos, 
enfrentavam a pandemia decorrente 
do espalhamento do Sars-Cov-2, e 
deles tirar lições. Puderam ser obser-
vadas medidas como a coordenação 
central da política a ser adotada por 
todos os entes federados em determi-
nado território; a organização das 
ações por meio do protagonismo da 
vigilância e da atenção primária em 
saúde, priorizando ações preventivas, 
promotoras e protetoras de saúde; a 
preparação da infraestrutura hospita-
lar, de recursos humanos e insumos 
para a saúde; a execução de ações para 
a contenção do espalhamento do vírus 
com o distanciamento social; a ado-
ção de medidas econômicas e sociais 
complementares e simultâneas às 
providências no campo da saúde.
Essas lições não são estranhas e 
de difícil aplicação no Brasil, visto 
que o país tem um sistema de saúde 
estruturado, com capilaridade, capi-
tal intelectual e tradição sanitária 
para responder aos desafios impos-
tos pela pandemia. Sabíamos, a ciên-
cia, o que deveria ser feito para frear o 
espalhamento do Sars-Cov-2 e o au-
mento de novos casos no início da 
pandemia, com medidas de conten-
ção, tais como:
1. Coordenação nacional no enfren-
tamento da pandemia, como pre-
coniza a Carta Magna e o marco 
legal e regulatório do Sistema Úni-
co de Saúde (SUS), e como fator 
determinante para o envolvimen-
to articulado de toda a estrutura 
do SUS; 
2. Adoção do distanciamento social 
como estratégia para conter o avan-
ço dos casos e do isolamento social 
com base na confirmação dos casos 
por meio da realização em massa 
de testes diagnósticos, como orien-
tador tático-operacional para evi-
tar o espalhamento do vírus;
3. Implantação de proteção econô-
mica para manutenção do empre-
go e renda, e proteção social aos 
mais vulneráveis para que o gover-
no pudesse orientar/exigir o dis-
tanciamento social;
4. Investimento em comunicação so-
cial e educação sanitária;
5. Fortalecimento do sistema nacio-
nal de informação em saúde e trans-
parência dos dados; 
6. Aumento dos investimentos em 
saúde em todos os níveis de atenção, 
com prioridade para as ações preven-
tivas, protetoras e promotoras, como 
determina a Constituição Federal.
E sabemos, a ciência, o que deve-
mos fazer, daqui para a frente:
1. Todas as medidas anteriores;
2. Vacinar.
No entanto, já no início da pande-
mia não demorou a se manifestar o 
viés negacionista do governo em rela-
ção às claras evidências apontadas 
pela classe científica, às recomenda-
ções da OMS e às experiências exito-
sas em vários países no enfrentamen-
to do Sars-Cov-2. O desgaste e a queda 
de gestores federais que propunham 
políticas e ações para o enfrentamen-
to da pandemia que não levassem em 
conta a política negacionista do go-
verno, bem como a subserviência da-
queles que aceitaram assumir o Mi-
nistério da Saúde seguindo a política 
de saúde determinada pela Presidên-
cia da República – as quais podem ser 
vistas nas palavras do ministro 
Pazuello, que acaba de deixar o cargo 
(“Senhores, é simples assim: um 
manda e outro obedece”), e nas pala-
vras do atual ministro Queiroga, 
quarto ministro na gestão da pande-
mia (“A política é do governo Bolso-
naro... A Saúde executa a política do 
governo”) – foram marcas do primei-
ro ano de gestão da pandemia. 
As consequências dessa política 
se manifestaram imediatamente no 
perfil de morbimortalidade da popu-
lação e em seus reflexos políticos, 
econômicos e sociais.
O PERFIL DE MORBIMORTALIDADE 
POR COVID-19
Analisando o comportamento da 
pandemia, em 18 de março de 2021, 
em relação a 30 de abril de 2020, num 
grupo de países que apresentaram 
mais de 1 milhão de casos de Covid-19 
em 18 de março de 2021 (G21), verifi-
ca-se que esse grupo, que correspon-
de a 42% da população mundial, res-
ponde por 78% dos casos acumulados 
de Covid-19 e por mais de 80% dos 
óbitos (ver tabela). A epidemia, que 
em seu início acometeu principal-
mente alguns países da Europa e os 
Estados Unidos, correspondendo a 
mais de 60% dos casos e a quase 80% 
dos óbitos, avançou em direção à Ín-
dia, à África, a outras partes da Euro-
pa e aos países latino-americanos.
Na América Latina ganha desta-
que o perfil de morbimortalidade do 
Brasil, que, com 2,8% da população 
mundial, foi responsável por mais de 
um quarto das mortes no mundo e 
viu o número de casos confirmados 
de Covid-19 saltar de 2,3% do total 
acumulados em abril de 2020 para 
9,7% dos casos em março de 2021, en-
quanto os óbitos foram de 2,2% para 
10,7% no mesmo período. Os novos 
casos e óbitos por Covid-19 avança-
ram sua participação no total de ca-
sos mundiais de 7,3% para 17,6% e de 
8,1% para 27,5%, respectivamente,quando comparado o período de 30 
de abril de 2020 em relação a 18 de 
março de 2021.
Esses números não encontram pa-
ralelo e preocupam as autoridades da 
OMS, que veem o Brasil como um ris-
co sanitário para o mundo. Em maté-
ria recente publicada pela BBC, cien-
tistas britânicos afirmam haver um 
desgoverno da doença no Brasil e que 
o vírus está se replicando com o apa-
recimento de variante. Segundo a re-
portagem, o Brasil pode se tornar uma 
“fábrica” de variantes superpotentes.
Esse descontrole se torna ainda 
mais preocupante quando observa-
mos o caráter marcante e dramático 
da desigualdade social e econômica 
no adoecimento e na mortalidade por 
Covid-19 no Brasil. 
Apesar desse quadro, lideranças 
do governo seguem com discursos 
negacionistas e minimizam a gravi-
dade da situação brasileira. Em en-
trevista recente (Globonews, 17 
mar.), o líder do governo do presiden-
te Jair Bolsonaro na Câmara dos De-
putados, Ricardo Barros, afirmou 
que a situação do país “é até confor-
tável”. Nesse mesmo diapasão, o pre-
sidente Jair Bolsonaro, em evento 
realizado no Palácio do Planalto em 
22 de março, ao se referir ao enfren-
tamento da pandemia, afirmou que 
“estamos dando certo [...] o Brasil 
vem dando exemplo, somos um dos 
poucos países que está na vanguarda 
na busca de soluções”. 
Essa cegueira situacional, que 
tem como pano de fundo o negacio-
nismo como programa de governo, 
levou o país a ser avaliado como a 
pior gestão pública do mundo na 
condução da pandemia, em um gru-
Insensatez negacionista do governo central, que atua contra o combate à pandemia, se 
dá por omissão ou por ação e é intencional, um programa de governo. A não aplicação 
efetiva e oportuna de políticas e medidas de contenção caracteriza a omissão. 
Por outro lado, esse mesmo governo adota ações contrárias ao combate da pandemia 
POR ADILSON SOARES*
Riva
5ABRIL 2021 Le Monde Diplomatique Brasil
po de 98 países, em pesquisa divulga-
da em janeiro pelo Instituto Lowy, de 
Sydney, na Austrália. E, de lá para cá, 
o quadro piorou.
NEGACIONISMO COMO 
PROGRAMA DE GOVERNO
A insensatez negacionista do gover-
no central, que atua contra o comba-
te à pandemia, se dá por omissão ou 
por ação e é intencional, um progra-
ma de governo. 
A não aplicação efetiva e oportu-
na de políticas e medidas de conten-
ção, descritas anteriormente, carac-
teriza claramente uma atuação por 
omissão por parte do governo fede-
ral. Por outro lado, esse mesmo go-
verno adota ações contrárias ao com-
bate da pandemia, tais como:
1. Preconizar e estimular o uso de in-
sumos, materiais e medicamentos 
sem comprovação científica;
2. Não adotar o distanciamento so-
cial e o uso de materiais protetores 
individuais e coletivos;
3. Fazer, praticamente durante quase 
todo o primeiro ano de pandemia, 
campanha contra a vacina e a 
vacinação;
4. Não adquirir vacinas oportuna-
mente e na quantidade necessária;
5. Acionar governadores no Supremo 
Tribunal Federal questionando a 
competência por parte dos entes fe-
derados em adotar medidas adminis-
trativas que possibilitem o distancia-
mento social;
6. Desautorizar medidas adotadas 
por condutores da política de saúde 
por ele nomeados;
7. Propor campanha de comunicação 
social priorizando a continuidade 
das atividades econômicas, induzin-
do a população a comportamento di-
ferente do preconizado pelas autori-
dades sanitárias e pela ciência;
8. Não executar, em sua integralida-
de, o orçamento extraordinário auto-
rizado pela Emenda Constitucional n. 
106/2020 para o combate da pande-
mia (executou 85% dos recursos totais 
disponíveis e 71% dos recursos dispo-
níveis específicos na rubrica para o 
setor de saúde (dados de 16 mar. 2021).
Em meio à elevação dos casos e 
mortes evitáveis por Covid-19, ao es-
gotamento da rede hospitalar e ao co-
lapso no sistema funerário, essas 
ações e omissões semeiam confusão e 
dificultam a atuação do governo cen-
tral na proposição e execução de polí-
ticas que poderiam articular os entes 
federados, os agentes econômicos e a 
sociedade, e seus reflexos são senti-
dos nos planos econômico e social.
Apesar da adoção de medidas vi-
sando mitigar o efeito avassalador e 
os desafios impostos pela pandemia 
da Covid-19, estas não foram suficien-
tes e oportunas para evitar a queda 
acentuada de 4,1% no PIB, o aumento 
Uma das lições que podemos 
tirar, após um ano de pandemia, é 
que a essa correlação entre negacio-
nismo e descoordenação do Sistema 
Único de Saúde, que se mostra 
nefasta, com custos sociais e de 
vidas humanas, é preciso opor outra. 
Nesses termos, não é possível enfren-
tar a epidemia sem que haja uma 
política que leve em conta a impor-
tância da inclusão social, da solida-
riedade, da tradição sanitária brasi-
leira, das evidências científicas e do 
marco legal e regulatório do SUS, 
que preconiza, entre outras coisas, 
gestão e financiamento solidário e 
tripartite do sistema, com coordena-
ção central.
Não podemos recuperar o sofri-
mento do povo brasileiro nem a vida 
dos que se foram, mas é possível re-
fletir sobre os erros e as oportunida-
des perdidas e fazer diferente, porque 
sabemos o que fazer. 
*Adilson Soares é economista, doutor em 
Saúde Coletiva pela Universidade Estadual 
de Campinas (Unicamp), professor de Polí-
ticas Públicas e Economia da Saúde do 
Programa de Pós-Graduação em Ciências 
da Secretaria de Estado da Saúde de São 
Paulo, membro da Associação Brasileira de 
Saúde Coletiva (Abrasco), da Associação 
Brasileira de Economia da Saúde (ABrES) 
e da Associação Brasileira de Economistas 
pela Democracia (Abed).
de 6,3% no número de desemprega-
dos formais e 10,5% de informais, a 
diminuição da renda e o empobreci-
mento das famílias, que retraíram seu 
consumo em 5,5%, segundo dados do 
IBGE relativos ao exercício de 2020.
Esses reflexos podem ser observa-
dos ainda no aumento da infelicidade 
dos brasileiros, apontado no Relatório 
Mundial de Felicidade da Organiza-
ção das Nações Unidas, divulgado re-
centemente, em 19 de março: o Brasil 
está na 41ª posição no ranking (caiu 
nove posições), fato relacionado em 
parte à ação ou omissão do governo 
no enfrentamento da pandemia e 
seus reflexos. Esse movimento foi 
capturado em recentes pesquisas 
conduzidas pelo Datafolha, compa-
rando março de 2020 a março de 2021, 
que mostra um aumento do medo das 
pessoas de se infectarem pelo corona-
vírus de 36% para 55% dos entrevista-
dos e uma rejeição a Bolsonaro na 
gestão da pandemia de 35% para 54%.
A insensatez e a descoordenação 
do governo Bolsonaro no enfrenta-
mento da pandemia desfavoreceram 
a articulação do SUS na rede de aten-
ção à saúde em cada território e re-
gião de saúde e a incorporação das 
forças vivas da sociedade e lideranças 
comunitárias como elementos cru-
ciais no engajamento da população 
nas medidas de distanciamento so-
cial. Com dificuldade de efetivação 
do distanciamento social, de preven-
ção, rastreamento e isolamento de ca-
sos, o Brasil observou uma rápida ele-
vação do número de casos e óbitos.
Esse quadro levou os gestores de 
saúde, pressionados pelo caos e pela 
urgência em dar solução aos casos e 
óbitos que se apresentavam, a priori-
zar ações curativas de âmbito hospita-
lar na tentativa de mitigar os efeitos da 
crise, em detrimento da oportunidade 
perdida de identificação, isolamento e 
tratamento dos casos de Covid-19 nos 
territórios, por meio de investimentos 
em ações preventivas, promotoras e 
protetoras de saúde na esfera da rede 
de atenção primária à saúde.
Embora o governo federal tenha 
adotado inicialmente providências 
normativas legais e regulatórias, pre-
parando-se para uma boa condução 
da política de enfrentamento da pan-
demia, ele não tomou ações adminis-
trativas e de gestão do sistema de 
saúde efetivas e oportunas. Questões 
verificadas como a falta de leitos, de 
oxigênio e de vacinas e o perfil de 
morbimortalidade decorrente do 
Sars-Cov-2 revelam que a pandemia 
está longe do fim e que o governo 
central não trata a epidemiacom a 
devida prioridade, como estava auto-
rizado a fazê-lo pela declaração do 
estado de emergência e de calamida-
de, com recursos disponíveis para 
suas providências.
Tabela - EVOLUÇÃO DE CASOS E ÓBITOS POR COVID 19 - PAÍSES COM MAIS CASOS ACUMULADOS EM 18/03/2021 
Países
% Pop. 
mundo
18/03/2021 30/4/2020
CASOS ÓBITOS CASOS ÓBITOS
% Casos 
Estoque/
mundo
% Casos 
novos/
mundo
% Óbitos 
Estoque/
mundo
% Óbitos 
Novos/ 
mundo
% Casos 
Estoque/
mundo
% Casos 
novos/
mundo
% Óbitos 
Estoque/
mundo
% Óbitos 
Novos/ 
mundo
EUA 4,3% 24,1% 11,9% 19,8% 15,3% 32,3% 27,7% 25,7% 34,3%
Brasil 2,8% 9,7% 17,6% 10,7% 27,5% 2,3% 7,3% 2,2% 8,1%
Índia 17,8% 9,5% 8,3% 5,9% 1,9% 1,1% 2,3% 0,5% 1,1%
Rússia 1,9% 3,6% 2,0% 3,5% 4,5% 3,4% 9,6% 0,5% 1,7%
Reino Unido 0,9% 3,5% 1,3% 4,7% 1,0% 5,4% 6,4% 11,6% 13,1%
França 0,9% 3,4% 7,1% 3,4% 2,7% 4,1% 2,2% 10,7% 7,3%
Itália 0,8% 2,7% 5,0% 3,9% 4,3% 6,6% 2,8% 12,3% 5,5%
Espanha 0,6% 2,6% 1,2% 2,7% 2,3% 7,0% 2,9% 11,1% 3,5%
Turquia 1,1% 1,6% 4,1% 1,1% 0,8% 3,8% 4,0% 1,4% 1,5%
Alemanha 1,1% 2,2% 3,5% 2,8% 2,3% 5,1% 2,0% 2,8% 3,0%
Colômbia 0,6% 1,9% 1,0% 2,3% 1,4% 0,2% 0,5% 0,1% 0,3%
Argentina 0,6% 1,8% 1,7% 2,0% 1,6% 0,1% 0,2% 0,1% 0,2%
México 1,7% 1,8% 1,4% 7,3% 7,0% 0,5% 1,7% 0,7% 2,3%
Polônia 0,5% 1,6% 5,3% 1,8% 4,2% 0,4% 0,6% 0,3% 0,5%
Irã 1,1% 1,5% 1,5% 2,3% 0,7% 3,0% 1,3% 2,7% 1,2%
África do Sul 0,8% 1,3% 0,3% 1,9% 0,9% 0,2% 0,5% 0,0% 0,2%
Ucrânia 0,5% 1,3% 3,1% 1,1% 2,6% 0,3% 0,7% 0,1% 0,2%
Rep. Tcheca 0,1% 1,2% 2,0% 0,9% 2,0% 0,2% 0,1% 0,1% 0,0%
Indonésia 3,5% 1,2% 1,3% 1,5% 2,0% 0,3% 0,5% 0,4% 0,1%
Peru 0,4% 1,2% 1,6% 1,8% 1,8% 1,0% 3,4% 0,4% 1,2%
Países Baixos 0,2% 1,0% 1,3% 0,6% 0,3% 1,2% 0,5% 2,1% 2,5%
TOTAL 42,1% 78,6% 82,2% 82,0% 87,0% 78,7% 77,2% 85,8% 87,8%
Fonte: Elaboração do autor com base em dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). • Nota: Países com mais de 1 milhão de casos acumulados em 18/03/2021.
Riva
6 Le Monde Diplomatique Brasil ABRIL 2021
OS EFEITOS DA PANDEMIA E DA VOLTA DE LULA
Ideologia, perspectivas e 
as bases do bolsonarismo
Durante a pandemia, as condições econômicas, políticas e sociais passaram por 
mudanças importantes. O desemprego cresceu, o auxílio emergencial rendeu 
popularidade ao presidente, assistimos a conflitos na coalizão bolsonarista, investigações 
evidenciaram a corrupção no seio familiar presidencial, Trump foi derrotado e, finalmente, 
Lula teve suas condenações anuladas. Não temos ainda claro o que isso implicará para o 
bolsonarismo, mas é possível observar padrões e construir alguns cenários
POR VINICIUS DO VALLE*
N
o dia 4 de março, em meio a um 
evento no estado de Goiás, o 
presidente Jair Bolsonaro co-
mentou as estratégias de com-
bate à pandemia no país. Sem rodeios 
e ao seu estilo, vociferou: “Chega de 
frescura, de mimimi. Vão ficar cho-
rando até quando?”.
Minutos após a declaração, o ví-
deo da cena ganhava milhares de 
compartilhamentos nas redes so-
ciais, gerando revolta e indignação. A 
frase também ganhou repercussão 
nos principais jornais do mundo. Va-
le constar que, na véspera do dia em 
que a frase foi proferida, batíamos o 
recorde diário de mortes na pande-
mia até então, com 1.840 óbitos, e os 
hospitais de várias regiões do país 
anunciavam a lotação total dos leitos 
de UTI e o início de uma situação de 
colapso. Como entender que, no pior 
momento sanitário, uma declaração 
como essa fosse proferida?
Argumentei, em outros dois textos 
publicados pelo Le Monde Diplomati-
que Brasil no último ano,1 que as 
ações de Bolsonaro não são aleatórias 
e que, apesar de num primeiro olhar 
não fazerem sentido, trazem em si 
uma racionalidade – perversa, mas, 
ainda assim, uma racionalidade. As 
ações do presidente durante a pande-
mia não fogem a essa regra e, como 
confirma uma pesquisa realizada pe-
la ONG Conectas e pelo Centro de 
Pesquisas e Estudos de Direito Sani-
tário (Cepedisa), da Faculdade de 
Saúde Pública da USP, não podemos 
falar de incompetência na gestão sa-
nitária nacional, e sim de uma estra-
tégia articulada de ação governamen-
tal para a disseminação da doença.
Mas qual é a racionalidade por 
trás de tantos absurdos?
Representando uma política de 
extrema direita, Bolsonaro se postula 
a todo momento como antissistema e 
como agente mobilizador de um mo-
vimento que, para seus seguidores, 
precisão, mas certamente menor do 
que os cerca de 40% que ainda dizem 
apoiar o governo, ou mesmo os 30% 
que avaliam a gestão federal como 
boa ou ótima nas pesquisas. Essa 
porção militante seria o que efetiva-
mente poderíamos chamar de base 
social da extrema direita no Brasil. 
Fortemente mobilizada, essa fração 
toma adversários políticos como ini-
migos, mostra disposição para o con-
flito e para a regulação dos corpos e 
da sexualidade e cultua um líder vis-
to como mito. Essas características 
nos remetem ao que há de mais som-
brio na história – o fascismo. 
Considerando o fascismo um fe-
nômeno não meramente histórico – 
circunscrito nas décadas de 1930 e 
1940 e manifestado em determinados 
países sob certas condições –, e sim 
um fenômeno estrutural, definido 
como um ordenamento do Estado e 
dos afetos, as aproximações e parale-
los com o que vemos no Brasil atual 
são inevitáveis. Theodor Adorno é 
um dos autores que, dessa perspecti-
va, fornece preciosas pistas para o 
presente. Na obra Estudos sobre a 
personalidade autoritária, publicada 
em 1950 por Adorno junto de outros 
acadêmicos da Faculdade de Ber-
keley, é proposta a Escala F (de fascis-
mo), baseada em nove indicadores, 
construídos graças a um extenso 
questionário que mapeava os valores 
dos respondentes. Não é preciso mui-
to esforço para constatar que várias 
das características psíquicas associa-
das por eles ao fascismo – por exem-
plo, a agressividade a minorias, a rea-
ção contrária ao que remete ao 
pensamento complexo e às subjetivi-
dades e a preocupação com atos se-
xuais alheios – estão fortemente pre-
sentes no ambiente social brasileiro. 
É possível também, de acordo 
com Adorno, em Teoria freudiana e o 
modelo fascista de propaganda, ver 
paralelos na forma como os líderes 
fascistas do século passado e Bolso-
naro constroem sua imagem e veicu-
lam suas ideias para o público. Tal 
construção ocorre não por meio da 
identificação racional, mas por meio 
de um apelo às pulsões psíquicas 
primitivas. A escassez de ideias é, 
nesse sentido, parte imprescindível 
da técnica de identificação que se dá 
pela reiteração da exposição de um 
líder que seria, ao mesmo tempo, to-
do-poderoso e comum. O apelo bol-
sonarista às armas e aos seus símbo-
los, às frases de efeito grosseiras, ao 
deboche, às piadas sobre a virilidade 
sexual, à estética pitoresca caem aí 
como uma luva.
Também fazendo uso da teoria 
psicanalítica freudiana, na obra A 
dialética do esclarecimento, Adorno 
e Max Horkheimer retratam, na últi-
ma seção do livro, o fascismo como 
busca resgatar a moral social, salvar 
o país e exterminar o que seriam os 
“inimigos da nação”. No bojo de 
apoiadores mais fiéis cabem o movi-
mento antivacina, o movimento ter-
raplanista, os conspiracionistas do 
QAnon (uma teoria da conspiração 
forjada em fóruns da internet) e até 
certos grupos supremacistas, aos 
quais o governo e o presidente, a des-
peito de não incorporarem suas pau-
tas – ao menos de forma explícita –, se 
preocupam em não desagradar e em 
se manterem entre eles como uma re-
ferência. Já de forma explícita e ver-
balizada, o governo assume duas teo-
rias conspiratórias, constitutivas da 
visão difundida pelo escritor Olavo 
de Carvalho e que muito se relacio-
nam e lhe servem de referência ideo-
lógica. A primeira é a teoria da hege-
monia esquerdista no mundo, que 
postula que os valores de esquerda 
teriam se espalhado pela sociedade e 
pelas instituições e dominariam o 
planeta. Entre esses valores estariam 
o feminismo, a “ideologia de gênero” 
e os ideais de direitos humanos que 
inspiram os movimentos antirracis-
tas, indígenas e LGBTQIA+. A segun-
da teoria é a do globalismo,que de-
nuncia uma elite global que 
controlaria o mundo com base em 
seus valores. Essa elite seria compos-
ta por grandes corporações, ONGs, 
universidades, organizações interna-
cionais como a ONU e representantes 
de governos. Esses grupos globalistas 
espalhariam a hegemonia esquerdis-
ta no mundo e, se pudessem, instala-
riam uma ditadura mundial. Tais 
teorias são compartilhadas entre 
aqueles que integram o que podemos 
chamar de “grupo militante” da base 
de apoio do presidente – uma fração 
ainda difícil de ser quantificada com 
© Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
“Vão ficar chorando até quando?” enquanto Brasil registrava mais de 1.800 mortos
Riva
7ABRIL 2021 Le Monde Diplomatique Brasil
uma paranoia, que teria como pano 
de fundo a rejeição e o desejo de ani-
quilação da diferença e do diferente. 
A paranoia é entendida pelos autores 
com base na conceitualização freu-
diana, como uma falsa projeção, um 
delírio que produz uma interpreta-
ção do mundo a qual nenhuma prova 
de realidade, nenhuma evidência 
empírica ou experiência pode que-
brar. Se tal caracterização serve para 
descrever parte da base bolsonarista, 
isso significa que as tentativas de 
diálogo e convencimento racional 
por parte das camadas progressistas 
com essa fração são inúteis. 
Expus nos já citados textos ante-
riores publicados aqui no Le Monde 
Diplomatique Brasil que Bolsonaro 
mobiliza essa fração e tenta aumen-
tá-la por meio de uma estratégia de 
guerra de movimento, com mobiliza-
ção constante, sobreposição de te-
mas e ataques incessantes a tudo e a 
todos que correspondem ao seu alvo. 
Nessa guerra simbólica, criam-se 
narrativas distintas, em que inimigos 
poderosos – sempre ligados à esquer-
da e ao establishment – estariam ata-
cando o Brasil, que, por sua vez, pre-
cisaria ser salvo pela força e moral do 
presidente e de seus apoiadores. Nes-
sa cruzada imaginária, Bolsonaro é 
retratado como uma ameaça aos in-
teresses de dominação dos podero-
sos e, dessa forma, sofreria todo tipo 
de perseguição – principalmente da 
imprensa e das instituições, tidas co-
mo sempre corruptas. A racionalida-
de, portanto, estaria na lógica bolso-
narista de mobilização constante, 
mantendo um grupo ao redor de si – 
e, graças a ele, garantindo sua rele-
vância e força. Suas declarações du-
rante a pandemia podem ser vistas 
com esse fim, e, quanto mais irôni-
cas, mais funcionam, pois, além de 
gerarem efeito mobilizador para sua 
base, elas despertam sentimentos re-
pulsivos entre seus detratores, ali-
mentando sistematicamente o con-
flito. O que o presidente mais quer, 
nesse sentido, é receber ataques, para 
poder revidá-los num ciclo contínuo.
PARA ALÉM DOS MILITANTES: 
A EXTENSÃO DO BOLSONARISMO
É preciso não perder de vista que a 
parcela militante de extrema direita é 
minoritária socialmente e muito in-
ferior ao total de pessoas que, ainda 
que com reticências, dizem apoiar o 
governo. Em artigo recente em que 
analisa a virada à direita no Brasil, o 
cientista político André Singer, consi-
derando dados de pesquisas eleito-
rais, argumenta que a sustentação e o 
voto em Bolsonaro se deram não por 
um aumento exponencial da extrema 
direita na última década, mas pelo 
apoio de quem se autodenomina sim-
plesmente como direita.2 Parte desse 
contingente já havia, inclusive, 
apoiado o PT nos anos lulistas. En-
tender essa parcela, os motivos de 
seu apoio a Bolsonaro e os possíveis 
efeitos que as mudanças recentes na 
conjuntura têm gerado a ela pode ser 
fundamental para uma alteração na 
configuração política do país.
Nesse sentido, tenho argumenta-
do que o discurso bolsonarista, ain-
da que de forma dispersa, encontra 
eco para além da esfera militante. 
Entre grupos de empresários, rura-
listas, madeireiros e mineradores, ele 
é sustentado pelo desejo de desregu-
lamentações às suas atividades, o 
que envolveria a supressão de direi-
tos trabalhistas, da legislação am-
biental e dos direitos de grupos espe-
cíficos, como os indígenas. Descendo 
a pirâmide social, o bolsonarismo 
também ecoa em pequenos comer-
ciantes afetados pela pandemia, em 
policiais contrários à pauta de direi-
tos humanos, em evangélicos con-
trários ao feminismo e aos direitos 
LGBTQIA+ e em profissionais uberi-
zados – que compartilham a ideolo-
gia do progresso como simplesmente 
ligado ao esforço individual. Temos, 
dessa forma, um apoio que atravessa 
diferentes classes sociais, o que difi-
culta a disputa desse segmento pela 
dinâmica política e discursiva da es-
querda, que tem como base a cliva-
gem entre ricos e pobres e o combate 
às desigualdades. 
PANDEMIA, VOLTA DE LULA 
E O CENÁRIO ELEITORAL
Durante a pandemia do coronavírus, 
enquanto o bolsonarismo se radicali-
zou, as condições econômicas, políti-
cas e sociais passaram por mudanças 
e reviravoltas importantes. O desem-
prego cresceu, e o conflito entre saú-
de e economia se manifestou como 
uma realidade para os trabalhadores 
sem condições materiais de realizar o 
isolamento. Ainda na esfera econô-
mica, houve o auxílio emergencial, 
que, embora articulado pelo Con-
gresso, rendeu ao presidente um au-
mento de popularidade. Politicamen-
te, assistimos a conflitos na coalizão 
bolsonarista, que fizeram antigos 
aliados, como Sérgio Moro e Luiz 
Henrique Mandetta, se tornarem ini-
migos políticos do presidente. Tam-
bém tivemos avanços nas investiga-
ções que evidenciaram práticas de 
corrupção no seio familiar presiden-
cial. Internacionalmente, Bolsonaro 
perdeu sua principal referência, com 
a derrota de Donald Trump nos Esta-
dos Unidos. Finalmente, no último 
mês, em uma reviravolta política e ju-
rídica, Lula teve seus processos na 
Operação Lava Jato transferidos de 
Curitiba, o que anulou suas condena-
ções e o tornou elegível. Não temos 
ainda claro o que toda essa movimen-
tação implicará para o futuro do bol-
sonarismo, mas é possível observar 
padrões e construir alguns cenários.
O primeiro elemento a considerar 
é que todos esses eventos não fize-
ram que o presidente efetivamente 
se moderasse. Se houve períodos de 
trégua no uso do Poder Executivo 
para o confronto institucional, en-
saios de moderação no discurso e 
tentativas de melhorar o diálogo com 
o Congresso – com a aproximação ao 
chamado “Centrão” –, é preciso tam-
bém reconhecer que esses movimen-
tos se mostraram meramente estra-
tégicos e momentâneos, servindo 
como espaços de fôlego para novas 
investidas de enfrentamento por 
parte do bolsonarismo. 
Já no plano econômico, os sinais 
são menos inequívocos: ao mesmo 
tempo que o governo promoveu uma 
pauta de desregulamentação e tolhi-
mento dos direitos, também insti-
tuiu o auxílio emergencial e, por ve-
zes, flertou com a possibilidade da 
instauração de políticas de cunho 
desenvolvimentista. Caso optasse 
por tais políticas, promovendo in-
centivos estatais para a recuperação 
econômica e o resgate das camadas 
vulneráveis, Bolsonaro certamente 
aumentaria sua popularidade e pe-
netração entre os mais pobres, o que 
poderia lhe dar melhores condições 
eleitorais, principalmente contra Lu-
la. No entanto, essa escolha queima-
ria pontes do bolsonarismo com o 
mercado, que cobra do governo rigor 
fiscal e controle nos gastos sociais. 
Até agora, o presidente vem demons-
trando mais inclinação para manter 
o alinhamento ao mercado e às exi-
gências fiscais do que para reforçar o 
investimento público e a reação eco-
nômica. Para se deslocar do pífio de-
sempenho econômico subsequente, 
sua estratégia é culpar o isolamento 
social e os governadores e prefeitos, 
o que ainda reforça o ambiente de 
confronto ao qual é tão habituado e 
tensiona as instituições que tanto 
busca destruir.
Nessa conjuntura, considerando 
que as eleições de 2022 aconteçam 
normalmente, as perspectivas para 
os progressistas ainda são muito in-
certas. Em entrevistas realizadas 
com eleitores bolsonaristas das ca-
madas de renda C e D em 2020, como 
parte de pesquisas coordenadas pe-
las pesquisadoras Esther Solano e 
Camila Rocha,identificamos ele-
mentos que indicam tanto um des-
contentamento com certas práticas 
do presidente – por exemplo, suas de-
clarações polêmicas e sua gestão da 
pandemia – quanto ainda um forte 
antipetismo e rejeição a outras alter-
nativas eleitorais, o que pode dar so-
brevida ao bolsonarismo. 
Nesse quadro, a recente reintro-
dução de Lula no cenário eleitoral, 
apesar do efeito imediato de geração 
de esperança entre os progressistas e 
das reações de preocupação no go-
verno, deve ser vista com cautela. 
Embora Lula tenha importante pene-
tração em setores populares e uma 
imensa habilidade para aglutinar di-
ferentes segmentos políticos em tor-
no de seu nome, o antipetismo ainda 
é uma força que não pode ser ignora-
da no Brasil e que tende a ser fortale-
cida com sua presença. Além disso, a 
figura do ex-presidente traz as condi-
ções ideais para o reforço da dinâmi-
ca de conflito que alimenta o bolso-
narismo. Cabe dizer também que, a 
despeito de Lula ser o nome de es-
querda com maior penetração para 
além das bolhas progressistas, ainda 
não sabemos como sua imagem pode 
ser atingida em um contexto de forte 
uso da internet para construção de 
narrativas alternativas e fake news. 
Por fim, vale dizer que, além das 
incertezas e da necessidade de caute-
la relacionada ao quadro eleitoral, o 
cenário político não permite garantir 
que as eleições de fato acontecerão – 
nem sequer que, caso aconteçam, 
Bolsonaro aceitará o resultado de 
uma eventual derrota. A esta altura 
dos acontecimentos, não é exagero 
nem deve surpreender a constatação 
de que Bolsonaro busca estimular o 
caos social para uma ruptura demo-
crática e que, para tal, conta com a 
cumplicidade e inação de parte do 
Congresso. Por tal motivo, ao mesmo 
tempo que se organizam para 2022, 
inclusive dando a devida importân-
cia para a eleição de uma grande ban-
cada democrática, os progressistas 
não devem deixar de pressionar pelo 
afastamento do presidente, ou ao me-
nos pela garantia de que as eleições 
serão justas e válidas. São tarefas di-
fíceis, mas imprescindíveis. 
*Vinicius do Valle é doutor em Ciência 
Política pela Universidade de São Paulo e 
autor, entre outros trabalhos, de Entre a re-
ligião e o lulismo: um estudo com pente-
costais em São Paulo, publicado pela edi-
tora Recriar (2019).
1 “Bolsonaro e a estratégia do caos” e “O arse-
nal bolsonarista: conflito e caos como méto-
dos da ação política”, Le Monde Diplomatique 
Brasil, 2 e 29 abr. 2020.
2 André Singer, “A reativação da direita no Bra-
sil”, versão preprint disponível em: http://ce-
nedic.fflch.usp.br.
A parcela militante 
de extrema direita é 
minoritária socialmente 
e muito inferior ao total 
de pessoas que dizem 
apoiar o governo
Riva
8 Le Monde Diplomatique Brasil ABRIL 2021
Os incontáveis painéis de debate 
nos canais de notícias 24 horas
Com suas imagens espetaculares, GCs que desfilam pela tela e comentaristas instalados no palco, os canais de notícias 
24 horas colonizaram nosso imaginário visual e mental. Suas antenas, que proliferaram nos anos 1990 em nome do 
pluralismo e do “dever de informar”, negligenciam a investigação e a reportagem e imprimem seu ritmo à vida pública 
POR SOPHIE EUSTACHE*
UM MODELO ECONÔMICO QUE CORROMPE O DEBATE POLÍTICO
A 
informação 24 horas nasce da 
injeção de uma velha ideia em 
novos canais. Qual é a ideia? A 
de que os males do mundo re-
sultam da falta de comunicação entre 
os seres humanos. E quais são os ca-
nais? As redes privadas de comunica-
ção que se multiplicaram no início 
dos anos 1980, graças às novas tecno-
logias e à financeirização dos meios 
de comunicação. Em 1997, Robert 
“Ted” Turner – que dezessete anos 
antes criara, nos Estados Unidos, a 
CNN, primeira rede de televisão ex-
clusivamente dedicada à notícia – ex-
plicava: “Desde que a CNN foi criada, 
a Guerra Fria acabou, os conflitos na 
América Central foram encerrados, 
veio a paz na África do Sul e há tenta-
tivas para estabelecer a paz no Orien-
te Médio e na Irlanda do Norte. As 
pessoas entenderam que a guerra é 
uma estupidez. Com a CNN, as infor-
mações correm o mundo inteiro, e 
ninguém quer parecer estúpido. En-
tão, há paz, pois isso é inteligente”. 
Em 1991, o canal colocara a Guerra do 
Golfo dentro da sala dos telespecta-
dores ocidentais: horas e horas se 
passavam até que algum aconteci-
mento viesse interromper a fala de 
generais da reserva que se instala-
vam na bancada do estúdio, enquan-
to os correspondentes empoleirados 
no telhado de um hotel de luxo de 
Bagdá filmavam o céu. Diante das câ-
meras, não acontecia nada, porém o 
importante é que as imagens eram ao 
vivo. Essa fórmula se impôs como pa-
drão de cobertura midiática dos 
grandes eventos internacionais.
Na França, esse formato foi visto 
pela primeira vez na rede La Cinq, 
canal privado criado por François 
Mitterrand em 1985 e atribuído ao 
magnata do audiovisual Silvio Ber-
lusconi, então considerado próximo 
dos socialistas italianos, e ao empre-
sário Jérôme Seydoux, até ser com-
prado por Robert Hersant em 1987. 
Das 5 às 8 da manhã, o canal exibia o 
programa Le Journal Permanent. O 
conceito, hoje familiar, consistia em 
repetir continuamente um noticiá-
rio de 15 minutos. Em dezembro de 
1989, a La Cinq cobriu a Revolução 
Romena.1 “As imagens ao vivo mos-
traram a explosão de alegria da mul-
tidão, reunida na Praça da Ópera, 
com a notícia da queda de Nicolae 
Ceausescu. Em seguida, mostraram 
a pavorosa vala comum onde ha-
viam sido depositados os corpos das 
vítimas das manifestações do do-
mingo anterior”, relatou com admi-
ração o jornal Le Monde (25 dez. 
1989) – mas as valas comuns eram 
falsas, e essa fake news da vanguar-
da, disseminada por todo o planeta e 
logo depois desmentida, já sinaliza-
va o poder e o perigo representados 
por essa mídia instantânea.
EM BUSCA DE UMAS “ASPAS”
A versão radiofônica desse modelo, a 
rede France Info, lançada em 1987, 
teve um sucesso inesperado. Ela foi 
concebida por Jérôme Bellay, então 
diretor de notícias da Radio France, 
que queria criar um “self-service de 
notícias para quem tem pressa”. Ima-
ginada desde o início como um pro-
duto de consumo de massa, a infor-
mação 24 horas se dirige sobretudo a 
consumidores. Assim, a BFM TV or-
gulha-se de ser “o canal de notícias 
24 horas campeão de marketing no 
mundo”, nas palavras de um de seus 
diretores editoriais, Laurent Drez-
ner.2 O jornalista Jean-Jacques Bour-
din, apresentador de política do ca-
nal, define os cidadãos como 
“acionistas” da “empresa França”...3
Com o lançamento da televisão 
digital em 2005-2006, a informação 
24 horas alcançou um estágio indus-
trial, adquirindo a influência que co-
nhecemos hoje. A França tinha então 
quatro canais gratuitos desse tipo, 
três deles pertencentes a operadoras 
privadas: a LCI, de Martin Bouygues, 
criada em 1994; a i-Télé, lançada em 
1999 e, após sua aquisição em 2014 
pelo empresário Vincent Bolloré, re-
batizada como CNews; a BFM TV, 
fundada por Alain Weill em 2005 e 
controlada desde 2015 por Patrick 
Drahi, chefe da SFR; e a France 24 
(dedicada sobretudo a notícias inter-
nacionais). As redes de televisão 
France 24 e France Info (homônima 
da rádio), esta criada em 2016, têm 
caráter público, assim como La Chaî-
ne Parlementaire e Public Sénat, dois 
canais institucionais. Em escala in-
ternacional, a chegada ao cenário da 
Russia Today (RT), canal russo fun-
dado em 2005 pela agência governa-
mental RIA-Novosti,4 e do canal cata-
riano Al-Jazeera International, criado 
em 1996 e lançado em inglês em 2006, 
mudou o jogo da informação 24 horas 
global e rachou o oligopólio ocidental 
formado por CNN, BBC e Euronews. 
Na França, a informação 24 horas so-
mou em 2019 apenas 4,5% de audiên-
cia média: 2,3% para a BFM TV; 1% 
para a LCI; 0,8% para a CNews; e 0,5% 
para a France Info.5 A título de com-
paração, a TF1 tem 19,5% da audiên-
cia, e a France 2, 13,9%. Com exceção 
da BFM TV, todos esses canais estão 
deficitários.
Longe de promover qualidadee 
pluralismo, essa competição na qual 
cada um tenta ficar com a maior par-
te da receita de publicidade produziu 
uma deterioração das condições de 
produção e um aumento do número 
dos programas de estúdio.
Distinguir as especificidades edi-
toriais de cada canal é tarefa que exi-
ge um exame minucioso, pois o resu-
mo de notícias de cada um parece 
copiado e colado de todos os outros. 
Na manhã de 5 de novembro de 2019, 
data escolhida em razão da disponi-
bilidade dos arquivos, a France Info e 
a LCI abriram seu jornal matinal tra-
tando da visita do ministro do Inte-
rior aos subúrbios [de Paris] após 
uma agressão de policiais, enquanto 
a BFM TV e a CNews falaram da deci-
são tomada pelo governo de criar co-
tas de imigração, para depois passar 
ao assunto da visita do ministro. De 
um canal para outro, a abordagem é 
mais ou menos a mesma: comentá-
rios sobre declarações políticas, rea-
ções de políticos eleitos em ligação 
direta com o estúdio, reportagens, 
“análises” de “especialistas” no estú-
dio, “interpretações” feitas pelos edi-
torialistas, debates entre personali-
dades da direita e do centro, tudo 
ritmado por “destaques” continua-
mente exibidos na parte inferior da 
tela. Nenhum dos quatro canais ce-
deu o microfone aos moradores do 
bairro em questão.
A diferença entre os jornais da 
manhã de cada um dos quatro canais 
é marginal. Ela aparece no fim do jor-
nal, quando entram as “pautas frias” 
– como uma “investigação” sobre a 
qualidade do ar na escola celebrando 
os méritos da empresa Véolia –, ou 
nas colunas patrocinadas: Actu Sport, 
com a Euromaster na CNews, ou L’éco 
de Pietri, com a Cerfrance na LCI.
Nesse mesmo dia, uma viagem de 
Emmanuel Macron a Xangai e a reti-
rada dos Estados Unidos do Acordo 
de Paris impediram, in extremis, a 
total ausência de notícias interna-
cionais no noticiário matinal. Quem 
queria saber sobre o resto do planeta 
precisava ter acordado mais cedo: às 
5 da manhã, horário do jornal France 
24, veiculado pela France Info, que 
tratou das manifestações no Iraque 
contra o governo (apenas a BFM TV e 
a France Info fizeram uma breve alu-
são a isso no fim do jornal) e dos mo-
vimentos sociais no Líbano e no Chi-
le. Com exceção do canal público, 
que também passou um jornal afri-
cano, as notícias internacionais li-
mitavam-se à vida política dos Esta-
dos Unidos, que por sua vez se 
resumia aos tuítes publicados por 
seu então presidente. Prevendo ser 
“muito absorvente nesta eleição” (a 
de novembro de 2020), nas palavras 
do diretor adjunto de redação Mat-
thieu Mondoloni, a rádio France Info 
enviou uma dezena de jornalistas 
para sua cobertura in loco, além dos 
que já faziam o acompanhamento 
internacional da Radio France. “Dois 
critérios se combinam para o bom 
funcionamento dos canais de notí-
cias 24 horas: uma forte personaliza-
ção e a ideia de contagem regressi-
va”, observa a socióloga de mídia 
Andrea Semprini.
Riva
9ABRIL 2021 Le Monde Diplomatique Brasil
A flagrante homogeneidade das 
informações é acompanhada por um 
marketing agressivo, a fim de cons-
truir identidades distintas. Ao longo 
do dia, peças celebrando as qualida-
des únicas do canal pontuam os pro-
gramas, e chamadas para os progra-
mas nobres surgem no canto da tela. 
“Entre as 6h e as 8h da noite, quando 
você chega em casa e quer entender o 
que aconteceu no dia: junte-se a nós 
na LCI. A explicação, os fatos, nada 
além dos fatos, com nossos jornalis-
tas, o debate de ideias – inclusive 
aquelas que incomodam – com nos-
sos convidados, e, às 7h30, a opinião 
dos grandes editores do canal vão aju-
dar você a formar sua opinião”, pro-
clama David Pujadas em uma chama-
da durante o jornal da manhã. Na 
verdade, os âncoras e seus programas 
de debate bastam para forjar a identi-
dade desses canais. Assim, a busca 
pelo embate que transforma “deba-
tes” em ringues é a marca da CNews, 
enquanto a BFM TV transforma seu 
estúdio em cenário para registros te-
levisivos os mais variados: painel de 
especialistas, entrevistas, debate en-
tre jornalistas, políticos ou profissio-
nais defendendo posições opostas so-
bre um tema, visão do repórter da 
casa, com a infografia de apoio.6
Duas lógicas estruturam a linha 
editorial dos canais de notícias. Uma 
é a das grades monopolizadas pelos 
programas de debate (nos quais o 
apresentador se esforça para arran-
car boas “aspas” dos convidados) e 
pelos jornais com as últimas notícias 
(que transformam as aspas em infor-
mação). Outra é a da proliferação de 
programas ao vivo e de “edições 
especiais” que estouram a grade e 
prometem aos telespectadores ime-
diaticidade (“Tudo o que acontece ao 
vivo na BFM TV”) e imersão (“Mer-
gulhe no centro dos acontecimen-
tos”).7 Essas duas lógicas impõem-se 
em detrimento do documentário e da 
investigação, que poderíamos imagi-
nar ter nesses canais dedicados à 
informação e que dispõem de um 
tempo infinito, muitas vezes preen-
chido por amenidades, um meio 
ideal para a exigência de “análise e 
interpretação” que a mídia tanto se 
vangloria de fazer.
A onipresença dos programas de 
debate está relacionada à adoção de 
um modelo de negócio de baixo custo. 
“Não apenas esses programas funcio-
nam, mas, além disso, são baratos”, 
explica Antoine Genton, ex-apresen-
tador da i-Télé (hoje CNews) e presi-
dente da associação de jornalistas do 
canal. “Preencher uma hora no ar com 
um debate entre três ou quatro pes-
soas pagas a menos de 200 euros cada 
– quando são pagas – leva o custo edi-
torial de um programa a mil euros, ao 
passo que uma hora de programas de 
reportagem custa dez ou quinze vezes 
mais. Portanto, há também uma di-
mensão econômica na opção de colo-
car debates no ar, e eu entendo que 
um empresário faça isso”.8 Em horário 
nobre, o programa Face à l’Info, que 
diariamente dá a palavra ao polemis-
ta de extrema direita Éric Zemmour, 
teria permitido à CNews quadruplicar 
a audiência da faixa das 7h às 8h da 
noite em novembro de 2020, em com-
paração a 2019 (de 0,8% para 3,3%).9 
Esse crescimento automaticamente 
alimenta as receitas de publicidade, 
que em 2019 tiveram um salto de 14%, 
chegando a 24 milhões de euros,10 em-
bora o novo proprietário, Bolloré, te-
nha reduzido pela metade os recursos 
financeiros do canal.
Os programas de debate estão no 
centro de sua nova estratégia. “Nin-
guém mais assiste aos canais de notí-
cias para saber o que está acontecen-
do! As novidades estão em nosso 
celular. A diferença está na expressão. 
Se estamos tendo sucesso, é porque 
vamos ao encontro daquilo que a so-
ciedade está questionando, do que lhe 
interessa. Nosso estúdio reflete o que 
se passa nas ruas”, entusiasma-se Ser-
ge Nedjar, diretor da CNews e leal a 
Bolloré.11 Um reflexo bastante distor-
cido, por causa de uma limitação tão 
antiga como o teatro: para convencer 
o telespectador a continuar vendo um 
punhado de sujeitos falando sobre se 
chove ou faz sol, eles precisam se de-
safiar, deslizar, causar escândalo. Es-
sa encenação passa pela personaliza-
ção dos programas: Bourdin Direct 
(BFM TV), Le Live Toussaint (com Bru-
ce Toussaint, na BFM TV), Brunet Di-
rect (com Éric Brunet, na LCI), 24h Pu-
jadas (LCI), L’heure des Pros (nome 
que soa como o de seu apresentador, 
Pascal Praud, na CNews)...
“UM HOMEM SEDUTOR, 
UM INTELECTUAL...”
Capacidade de análise e cultura his-
tórica não estão entre as qualidades 
exigidas. Media trainer do INA Ex-
pert, um centro de treinamento pro-
fissional, Emmanuel Vieilly traba-
lhou, desde 2016, mais de cinquenta 
jornalistas e apresentadores da Fran-
ce Info, BFM TV, France 24, RMC 
Sport e Public Sénat. “Um programa é 
uma história, com personagens. Além 
disso, quando Cyril Hanouna vende 
Touche pas à mon poste [exibido pela 
C8, que pertence a Bolloré], ele vende 
com a cartela de personagens. Se vo-
cê colocar ali somente mulheres sen-
suais e sem cérebro, você não terá po-
lêmica no palco, todo mundo vai 
concordar. É preciso haver uma mu-
lher sensual sem cérebro, um homem 
sedutor, um intelectualque já escre-
veu três livros... Isso inicia a guerra, 
cria emoção e dá vontade de assistir, 
para saber quem vai ganhar a luta. É 
como uma briga de rua, é difícil não 
olhar”, explica ele imitando a atitude 
dos protagonistas.
Assim, a virada da CNews para a 
extrema direita deve-se tanto às limi-
tações orçamentárias que restringem 
a produção de informação 24 horas 
quanto aos interesses econômicos e 
políticos de Bolloré. Em uma década, 
a briga de palco necrosou todas as 
grades de programação, de Informés 
na France Info a Ça donne le ton na 
LCI, passando por La Belle Équipe da 
CNews e BFM Story, no qual Natacha 
Polony (diretora de redação da revis-
ta Marianne), Sophia Chikirou (as-
sessora de comunicação) e Thomas 
Legrand (colunista político da Fran-
ce Inter) cruzam fogo com Alain 
Duhamel sobre assuntos tão diversos 
como “A França está isolada a respei-
to da laicidade?” (17 jan. 2021), 
“Quem odeia a polícia na França?” 
(12 out. 2020), “Saúde ou liberdade?” 
(13 out. 2020) e “Fim da linha para os 
‘coletes amarelos’?” (14 set. 2020).
Nesse cenário se imprime a velha 
ladainha sobre a objetividade jorna-
lística. “No contexto marcado sobre-
tudo pelo surgimento do populismo e 
pelo desenvolvimento das fake news, 
tenho clareza de que temos um papel 
fundamental: informar com rigor, 
cobrir as notícias em todos os seus 
aspectos e permitir que elas façam 
sentido, por meio da análise e da boa 
reportagem”, anunciou Marc-Olivier 
Fogiel, recém-nomeado chefe da 
BFM TV, em um e-mail para funcio-
nários em abril de 2019, enquanto a 
redação saía um tanto abalada do en-
contro com os “coletes amarelos”. 
“Somos uma redação que traz fatos, 
não comentários. Não comentamos 
as notícias, nós as entregamos, so-
mos seus porta-vozes. Somos apenas 
um reflexo da sociedade, mostramos 
o que acontece nela”, afirma, por sua 
vez, Mondoloni.
Além de gerar uma audiência ba-
rata, os debates mediados e as entre-
vistas de estúdio permitem que os 
canais convertam em informação as 
polêmicas que ali surgem – em vez de 
investir em reportagem: controlado 
ou não, um deslize torna-se objeto de 
comentários e reprises em outras mí-
dias, que provocam outras reações 
em cascata. Céline Pigalle, diretora 
de redação da BFM TV, detalha: “Há 
diferentes formas de valorizar decla-
rações feitas no ar: por meio de títu-
los, de retransmissões e dos painéis 
de debate. Por exemplo, podemos 
partir de uma declaração e rediscuti-
-la em um programa de debate, ou até 
tentar desenvolvê-la”. Sob o pretexto 
de perseguir a “verdade”, as questões 
frontais de Bourdin buscam, acima 
de tudo, extrair “aspas” que depois 
serão vistas na forma de GCs, artigos 
no site da TV BFM, tuítes e, no melhor 
dos casos, em outras mídias. Um 
exemplo de fabricação de polêmica 
pôde ser observado no dia 21 de no-
vembro, quando Ruth Elkrief recebeu 
a prefeita de Paris:
Anne Hidalgo, sobre o assassinato 
de Samuel Paty: “Todos devem ser 
claros sobre sua relação com a Repú-
blica. [...] Temos de empurrar parte 
da esquerda, os ambientalistas, a sair 
dessa ideia...”
Ruth Elkrief: “... de sua 
ambiguidade...”
Hidalgo: “... de sua ambiguidade”.
A conversa deu origem a quatro 
artigos no site da BFM TV, bem como 
a remissões na Paris Match, L’Express, 
Libération, Le Figaro, Le Monde, Le 
Point, Valeurs Actuelles, CNews... Mais 
de um mês depois, a France Info ain-
da falava no assunto (29 dez. 2020).
“Há um fenômeno que todos criti-
cam: é que as falas dos editorialistas 
nos estúdios estão em descompasso 
com aquilo que os repórteres obser-
vam em campo”, observa Astrid, que 
trabalhou como assistente e chefe de 
edição da BFM TV e da i-Télé. O movi-
mento dos “coletes amarelos”, no in-
verno de 2018-2019, gravou na memó-
ria essa distância entre os comentários 
da bancada no estúdio em primeiro 
plano e a imagem da agitação popu-
lar exibida no canto da tela. Essa mi-
diatização com aparência de manu-
tenção da ordem talvez explique a 
recepção dura aos videorrepórteres 
no Arco do Triunfo... “As pessoas têm 
dificuldades para discernir entre um 
jornalista e alguém como [o comen-
tarista] Christophe Barbier”, lamenta 
um videorrepórter da BFM TV.
O vão protesto dos jornalistas da 
CNews12 contra Zemmour revelou até 
que ponto as equipes estão alienadas 
de seu próprio trabalho, que muitas 
vezes se resume a destacar comentá-
rios de editorialistas e consultores. 
Uma divisão taylorista de tarefas re-
força ainda mais essa expropriação. 
As reportagens são montadas em Pa-
ris por deskers (jornalistas de gabine-
te) com base em imagens captadas 
por terceiros; as imagens captadas 
pelos videorrepórteres editadas por 
assistentes de edição ilustram regu-
larmente os programas de conversa 
no estúdio ou de ligação direta entre 
o estúdio e outros interlocutores. Es-
sa fragmentação dilui a responsabili-
dade e favorece um jornalismo de 
poltrona, desconectado do campo. 
A onipresença dos 
programas de debate 
está relacionada à 
adoção de um modelo 
de negócio de baixo custoRiva
10 Le Monde Diplomatique Brasil ABRIL 2021
“Eu trabalhava nos canais de notícias 
e não acreditava na violência poli-
cial”, conta Astrid. “Só tínhamos o 
ponto de vista das forças da ordem, 
pois, evidentemente, além dos repór-
teres e videorrepórteres, ninguém vai 
a campo. Quando há uma suposta 
ocorrência de violência policial em 
um bairro, o repórter especialista em 
‘justiça policial’ vai até lá. Suas fontes 
são quase todas policiais, mas ele faz 
seu trabalho de repórter: vai falar 
com a família, com os advogados etc. 
Ele é cuidadoso. Já os editores só ou-
vem o consultor. Eles ouvem Domini-
que Rizet, que está em todas as listas 
de WhatsApp da polícia de 
Île-de-France...”
Originalmente, porém, a BFM TV 
e a i-Télé focavam mais o ao vivo do 
que a bancada de estúdio. Era em 
campo que os novos canais de notí-
cias 24 horas queriam se destacar. A 
ideia era ser o inverso da LCI, símbo-
lo do jornalismo sentado. Na década 
de 1990, o canal do grupo Bouygues 
ampliou suas parcerias: com Les 
Échos, RTL e Le Monde para o progra-
ma político Le Grand Jury; com Le 
Monde, novamente, cujo diretor de 
redação na época, Edwy Plenel, en-
tão receptivo aos encantos da “im-
prensa patrocinada”, apresentava to-
do sábado, ao meio-dia, um 
programa de promoção literária, o Le 
Monde des idées. A i-Télé queria refle-
tir a “França exata”, e a BFM TV valo-
rizava o “ao vivo em primeiro lugar”. 
As tecnologias de teletransmissão 
reavivaram uma velha ilusão jorna-
lística, a de registrar e transmitir a 
“realidade” no momento em que ela 
acontece, como a única forma de 
captar os “fatos” sem alterá-los.
Essa ideologia, enraizada tanto 
nas direções editoriais quanto entre 
os partidários da exclusividade da 
notícia, negligencia um fato funda-
mental: o ao vivo mais produz do que 
relata o acontecimento. Basta que 
ocorra um incidente fora do normal 
(pelo menos o normal da televisão) 
para que o programa dê lugar a edi-
ções especiais. Às 4 da tarde do sába-
do dia 31 de outubro de 2020, a reda-
ção da France Info recebeu um alerta 
sobre um atentado em Lyon: “No con-
texto atual, partimos do princípio de 
que poderia ser um ataque terrorista, 
então entramos com edição espe-
cial”, relata um jornalista da France 
Info. “Quando constatamos que era 
um caso de direito comum, decidi-
mos sair: nesse momento, tivemos de 
parar, pois estávamos dando ao even-
to uma importância que ele não ti-
nha.”13 É mais uma vez o estúdio que 
estrutura a edição especial: para evi-
tar horas de transmissão ao vivo em 
que nada acontece, os canais deixam 
a melhor parte para a tagarelice em 
palco. “Nós tínhamos muitos convi-
dados para as edições especiais, e 
não podia ser diferente: precisamos 
preencher o tempo no ar, e os ele-
mentos de informação chegam a con-
ta-gotas, ou pelo menos não com ra-
pidez necessária para que possamos 
renovar as notícias no ritmo que gos-
taríamos”, conta Benjamin, ex-apre-
sentador da i-Télé. Diante da maldita 
realidadeque se recusa a acontecer 
no ritmo do ao vivo, a solução é a 
bancada de especialistas.
Nem todo acontecimento tem 
apelo para o ao vivo. Os atentados e 
as perseguições a terroristas são os 
campeões desse apelo, a ponto de a 
LCI ter feito da tomada de reféns do 
voo da Air France no aeroporto de 
Marselha, em 24 de dezembro de 
1994, sua certidão de nascimento – 
uma “sorte incrível”, nas palavras de 
Éric Revel, diretor-geral do canal de 
2010 a 2015. Mas os acontecimentos 
ricos em imagem e em suspense, que 
se prestam à dramaturgia, como o 
movimento dos “coletes amarelos” 
ou a eleição presidencial norte-ame-
ricana, não aparecem todo dia para 
ocupar todo o tempo de antena. 
Quando eles não existem, “o ao vivo 
não tem outra escolha, para preen-
cher seu próprio tempo, a não ser so-
licitá-los, estimular seu surgimento e 
até provocá-los, às vezes acabando 
por criá-los do zero”, escreve a soció-
loga Andrea Semprini.14 Essa é a lógi-
ca das vertiginosas transmissões, nos 
canais de notícias, de informações 
não verificadas, como a morte de 
Martin Bouygues, em 28 de fevereiro 
de 2015, a prisão de Xavier Dupont de 
Ligonnès, em 11 de outubro de 2019, o 
ataque ao hospital Pitié-Salpêtrière 
durante a manifestação do 1º de Maio 
de 2019, ou a exibição de armas de 
guerra por traficantes no distrito de 
Mistral, em Grenoble, em 26 de agos-
to de 2020. Desmentidas logo após se-
rem anunciadas, essas infladas men-
tiras somam-se à já robusta lista de 
fake news disseminadas por aqueles 
que as denunciam.
COM OS POLÍTICOS, 
UMA DEPENDÊNCIA MÚTUA
Seja fabricando eventos “prontos pa-
ra usar” ou jogando com a concorrên-
cia entre canais para impor sua men-
sagem, comunicadores e políticos se 
aproveitam dessa lógica. A façanha 
do paraquedista Félix Baumgartner, 
que saltou da estratosfera, em 14 de 
outubro de 2012 (em uma operação 
orquestrada pela marca Red Bull), as 
confissões de Jérôme Cahuzac, mi-
nistro responsável pelo orçamento 
no governo de Jean-Marc Ayrault 
acusado de fraude fiscal: são muitas 
as “notícias” cuidadosamente con-
feccionadas pelos serviços de comu-
nicação. Em 2013, Cahuzac e sua as-
sessora, Anne Hommel, impuseram à 
BFM TV as condições para uma “en-
trevista de confissão”. Eles decidiram 
com o jornalista encarregado da en-
trevista (Jean-François Achilli, agora 
apresentador do programa Les Infor-
més, da France Info), o local e o horá-
rio da transmissão: às 18 horas, para 
favorecer as reprises nos telejornais 
noturnos. Além disso, “se você achar 
que o convidado não disse o suficien-
te durante a entrevista, isso não im-
pede, depois de encerrá-la, de conti-
nuar questionando o que foi dito... Na 
bancada há alguém para dizer: ‘Infe-
lizmente nessa entrevista queríamos 
algumas respostas que o convidado 
não deu’”, destaca Céline Pigalle. E 
entram os comentários.
A relação entre os governantes 
eleitos e os canais de notícias é de in-
terdependência. “Alguns líderes polí-
ticos (representantes eleitos, dirigen-
tes partidários) gostavam muito de 
nossos programas. As bancadas de 
debate conferiam-lhes uma visibili-
dade que não tinham antes. Estáva-
mos lhes dando uma tribuna, e eles 
logo entenderam isso. O interesse de 
um canal de notícias é não apenas re-
ceber o convidado, mas poder recor-
tar suas falas e veiculá-las ao longo 
do dia, ou durante boa parte dele”, 
detalha o ex-apresentador da i-Télé. 
Fazer da LCI a porta de entrada da 
TF1 para o segundo escalão da vida 
pública: a ideia foi apresentada por 
Christian Dutoit quando o canal foi 
criado, em 1994. “Terão acesso a nos-
so canal figuras da política que nun-
ca tiveram acesso à mídia informati-
va nacional: prefeitos das grandes 
cidades, presidentes dos conselhos 
gerais e regionais, alguns parlamen-
tares. Em resumo, todos os nossos 
parceiros”, dizia na época.15 E, aces-
soriamente, eventuais patrocinado-
res de obras públicas realizadas por 
Bouygues... A fórmula não exclui pro-
gramas de qualidade, como a entre-
vista política de domingo à noite, 
apresentada por uma jornalista, 
Amélie Carrouer, que claramente tra-
balha previamente na pauta.
Apesar das regras decretadas pelo 
Conselho Superior do Audiovisual 
(CSA), “o igualitarismo exibido não 
exclui pequenos arranjos”, admite 
em seu livro um ex-diretor da BFM 
TV. “Nos canais de notícias, as aren-
gas de um Philippe Poutou, de uma 
Eva Joly ou de uma Nathalie Ar-
thaud16 serão mais oferecidas aos te-
lespectadores notívagos do que as do 
favorito das urnas”.17 Em dezembro 
passado, o líder ambientalista Yan-
nick Jadot, cujo partido tinha tempo 
de antena a ser contemplado, viu 
uma entrevista sua na LCI ser repri-
sada no meio da noite 31 vezes duran-
te quatro noites consecutivas...18
Das bancadas de profissionais ta-
garelas que se esforçam para alimen-
tar a polêmica do dia às transmissões 
especiais nas quais se exercita a arte 
de preencher o vazio, as herdeiras da 
CNN produziram, após trinta anos 
de desenvolvimento ininterrupto, 
uma formidável negação do princípio 
fundador da indústria de mídia: para 
estarmos mais bem informados, pre-
cisamos de mais informação. 
*Sophie Eustache é jornalista. Autora de 
Bâtonner. Comment l’argent détruit le journa-
lisme [Censurado. Como o dinheiro destrói o 
jornalismo], Éditions Amsterdam, Paris, 2020.
1 Christian Delporte, “Quand l’info devient ins-
tantanée” [Quando as notícias se tornam ins-
tantâneas], La Revue des Medias, 20 out. 
2016. Disponível em: https://larevuedesme-
dias.ina.fr.
2 Citado por Thierry Devars, La Politique en 
continu. Vers une “BFMisation” de la commu-
nication? [Política 24 horas. Rumo a uma “BF-
Mização” da comunicação?], Les Petits Ma-
tins, Paris, 2015.
3 Jean-Jacques Bourdin, L’Homme libre [O ho-
mem livre], Cherche Midi, Paris, 2014.
4 Ler Maxime Audinet, “La voix de Moscou 
trouble le concert de l’information internatio-
nale” [Voz de Moscou perturba o concerto 
das notícias internacionais], Le Monde Di-
plomatique, abr. 2017.
5 Números: Médiamétrie.
6 Cf. Maxime Friot, “BFM TV, mode d’emploi” 
[BFM TV, modo de usar], Action Critique Mé-
dias, 30 jun. 2020. Disponível em: www.acri-
med.org.
7 Thierry Devars, “Élections présidentielles et 
information en continu: les mutations télévi-
sées du récit de campagne” [Eleições presi-
denciais e notícia 24 horas: as mudanças tele-
visionadas da narrativa de campanha], 
Télévision, n.8, Paris, 2017.
8 Mathieu Deslandes, “‘Le journalisme, c’est 
pas du spectacle’: rencontre avec un repenti 
des chaînes info” [“Jornalismo não é espetá-
culo”: conversa com um arrependido dos ca-
nais de notícias], La Revue des Médias, 14 
out. 2020.
9 Benjamin Meffre, “Audiences: comment CNe-
ws enchaîne les records en ce début de sai-
son” [Audiências: como a CNews acumula 
recordes nesse início da temporada], Pure 
Médias, 4 nov. 2020. Disponível em: www.
ozap.com.
10 Jamal Henni, “CNews: l’arrivée d’Éric Zem-
mour n’a pas fait fuir les annonceurs... pour 
l’instant” [CNews: a chegada de Éric Zem-
mour não espantou os anunciantes... até o 
momento], Capital.fr, 31 ago. 2020.
11 François Rousseaux, “Serge Nedjar, patron de 
CNews: ‘On ne s’interdit aucun thème ni inter-
venant’” [Serge Nedjar, chefe da CNews: 
“Aqui não há assunto nem convidado proibi-
do”], Le Parisien, 27 jun. 2020.
12 “Nous, journalistes de Cnews, ne sommes 
pas Éric Zemmour. Nous sommes une rédac-
tion” [Nós, jornalistas da CNews, não somos 
Éric Zemmour. Nós somos uma equipe de re-
dação], comunicado à imprensa da Associa-
ção de Redatores da CNews, 1º out. 2020.
13 O assassinato de um padre ortodoxo na-
quele dia em Lyon foi motivado por um caso 
de adultério.
14 Andrea Semprini, CNN et la mondialisation de 
l’imaginaire [A CNN e a globalização do imagi-
nário], CNRS Éditions, Paris, 2000.
15 Citado por Pierre Péan e Christophe Nick, 
TFI, un pouvoir [TF1, um poder], Fayard, Pa-
ris, 1997.
16 Respectivamente, candidato do Novo Partido 
Anticapitalista (NPA) nas eleições presiden-ciais de 2012 e 2017, magistrada ambientalis-
ta e porta-voz do partido Lutte Ouvrière.
17 Guillaume Dubois, Priorité au direct [Ao vivo 
em primeiro lugar], Plon, Paris, 2015.
18 Pauline Bock, “LCI remplit ses quotas de gau-
che la nuit” [LCI preenche suas cotas de es-
querda à noite], Arrêt sur Images, 10 dez. 
2020. Disponível em: www.arretsurimages.net.
Riva
11ABRIL 2021 Le Monde Diplomatique Brasil
O desaparecimento 
do debate
A proliferação de fake news ilustra a invasão do espaço público pela mentira. Seria 
simples incriminar as redes sociais e os mentirosos que perturbam a vida pública. 
No entanto, sufocando a livre e racional troca de ideias sobre a “comunicação”, nossas 
democracias destroem o sentido das palavras e impedem que a verdade surja 
POR ANNE-CÉCILE ROBERT*
NÃO HÁ DEMOCRACIA SEM VERDADE, NÃO HÁ VERDADE SEM DIÁLOGO
A 
evolução das mentalidades e o 
progresso das ideias redese-
nham, em cada época, os con-
tornos daquilo que a sociedade 
escolhe para si mesma como sendo o 
Bem. Existe, portanto, uma parte ne-
cessária de indeterminação no inte-
resse geral. Por exemplo, a lenta con-
quista dos direitos sociais a partir do 
século XVIII e, sobretudo, do XIX ilus-
tra o caráter ao mesmo tempo contin-
gente e evolutivo do interesse geral. 
Com a democratização, este deve se 
aproximar dos anseios do povo e, pa-
ra esse fim, submeter-se a uma deli-
beração pública sancionada pelo su-
frágio universal. Uma democracia 
viva, de cidadãos atuantes e atentos 
aos negócios públicos, em princípio 
demonstra a extensão dos possíveis, 
desvela as opções existentes e fornece 
uma visão mais ampla e, assim, mais 
justa, mais verdadeira da realidade. 
Aqui, a verdade desempenha um pa-
pel crucial porque, sem ela, a deter-
minação do interesse geral não passa 
de um disfarce dos interesses parti-
culares. Ele é, de algum modo, falso.
A verdade está ligada à obrigação 
de “transparência” dos poderes pú-
blicos, mas não se resume a isso. Ora, 
desde os anos 1990, a fronteira entre 
ambas vem ficando cada vez mais 
fluida. Um poder autoritário pode 
muito bem defender os interesses de 
casta com a maior transparência. O 
cinismo que rompe com a linguagem 
oficial afetada, como o do ex-presi-
dente norte-americano Donald 
Trump, pode se passar por uma 
transparência habilmente elaborada. 
Não se trata aqui de verdade, pois es-
sa atitude é intrinsecamente unilate-
ral e exclui toda partilha genuína do 
espaço social e intelectual. Um go-
verno transparente pode, portanto, 
ser um governo falso. Os programas 
de ajuste estrutural, impostos aos 
países do Sul pelas instituições fi-
nanceiras internacionais, preconiza-
vam ao mesmo tempo medidas eco-
puramente individuais e desligados 
da organização da manutenção da or-
dem. Podemos, com razão, ver nessas 
recusas uma nova demonstração do 
“desconhecimento ideológico da 
ideologia”, tão bem analisado por 
Claude Lefort,5 com as classes diri-
gentes, presas a determinadas esco-
lhas filosóficas, procurando eliminar 
suas consequências concretas pela re-
jeição das palavras que as designam.
Para que exista “pós-verdade”, é 
preciso que exista “verdade”, isto é, 
um espaço público de discussão “li-
vre e racional” no sentido que lhe da-
va Condorcet – a qual permitisse não 
apenas descrever o real, mas também 
pô-lo em discussão. Ora, uma situa-
ção dessa não existe mais, pois os es-
paços de discussão desaparecem em 
proveito de uma tagarelice incessan-
te, superficial. Alguns recusam o de-
bate; outros fingem aceitá-lo, mas 
substituindo-o por uma forma de 
diálogo mais próxima da invectiva. 
As sociedades modernas padecem de 
uma dolorosa carência de política, 
aliada à gestão leviana das reivindi-
cações particulares, ao policiamento 
do espaço público e à adoção dos im-
perativos contábeis a serviço de pro-
jetos muitas vezes improvisados ou 
mal concebidos. Daí a constatação, 
amplamente disseminada, de que as 
“palavras” já não têm “sentido”. O re-
curso aos elementos de linguagem 
constitui a forma acabada de um des-
prezo absoluto pela verdade e a ex-
pressão de uma institucionalização 
cínica da mentira. Essa evolução está 
bem perto de um autêntico suicídio 
da política, que naufraga com mau 
tempo. A capacidade de dar nomes 
não é um atributo monárquico unila-
teral que confere à autoridade pública 
um poder de reconhecimento arbi-
trário. É por delegação da coletivida-
de e sob seu controle que designamos 
as coisas e os fatos. Ora, a coletivida-
de não pode exprimir verdades sem 
admitir o debate e as diferenças de 
pontos de vista. Do contrário, a ver-
dade social não pode aparecer. 
*Anne-Cécile Robert é jornalista do Le 
Monde Diplomatique e autora do recém-
-publicado Dernières nouvelles du men-
songe [Últimas notícias da mentira], de on-
de este texto foi tirado.
1 “Prise directe” [Contato direto], France 2, 25 
jan. 2011.
2 Eles invocam também argumentos mais práti-
cos, como a dificuldade extra ocasionada 
pela necessidade de demonstrar o caráter 
propriamente antifeminino de um assassinato.
3 Christophe Dejours, Souffrance en France. La 
banalisation de l’injustice sociale [Sofrimento 
na França. A banalização da injustiça social], 
Points, Paris, 2014.
4 Commission des Lois de l’Assemblée Natio-
nale, Paris, 28 jul. 2020.
5 Claude Lefort, “L’ère de l’idéologie” [A era da 
ideologia], Encyclopaedia Universalis, Sym-
posium – Les Enjeux, tome 2, Paris, 1994.
nômicas e regras de “boa governança”, 
situando em primeiro lugar uma ges-
tão transparente dos poderes públi-
cos (manutenção rigorosa das contas 
públicas sob a supervisão dos órgãos 
de controle). Os países que seguiram 
essas prescrições ao pé da letra viram 
abrir-se um abismo entre as institui-
ções e as populações, além de sofre-
rem golpes de Estado e violências 
pós-eleitorais (Costa do Marfim, 
Quênia, Mali, para só citar países 
africanos). A ordem social, caracteri-
zada pela extrema desigualdade, po-
dia estar apoiada em uma gestão 
transparente, mas não se adequava 
às realidades da vida cotidiana dos 
habitantes. É, pois, necessário que se 
garanta a liberdade de expressão e de 
deliberação pública para abrir espa-
ço à determinação da verdade pelos 
cidadãos esclarecidos.
Entre as funções da política, a de 
dar nome às coisas é uma das mais 
delicadas e essenciais, já que permite 
determinar os pontos de referência e 
distinguir elementos a priori confu-
sos, qualificando-os. Arte da palavra 
e do ordenamento do real, a política 
designa os objetos, as funções, as si-
tuações; desse modo, atribui posi-
ções, estabelece hierarquias e confe-
re sentido à realidade. Por exemplo, 
qualificar de “encargos” as “cotiza-
ções sociais” é revelador da escolha 
de uma ordem social. Segundo suas 
convicções, os responsáveis políticos 
empregam uma ou outra expressão. 
Evocar, como fez a jornalista Béatrice 
Schönberg, o “assassinato de Luís 
XVI” e não sua “execução” significa 
que a assembleia que julgou a monar-
quia deposta era ilegítima e, na reali-
dade, cometeu um crime.1 Os exem-
plos são numerosos.
Como exercem uma função públi-
ca, representativa, os dirigentes con-
ferem às suas palavras uma autorida-
de inigualável. Os governantes 
podem não deter o poder de dar no-
mes, mas ocupam um lugar essen-
cial, que consiste em selar o consenso 
estabelecido na sociedade. As reivin-
dicações dos cidadãos, das associa-
ções e dos partidos se traduzem tam-
bém por escolhas terminológicas que 
exprimem sua análise do mundo ou 
de uma realidade específica. O obje-
tivo consiste, então, em dar a conhe-
cer essas escolhas e impô-las como 
símbolo de aquiescência da socieda-
de. Os movimentos feministas, por 
exemplo, lutam a fim de inserir no 
código penal o termo “feminicídio”, 
para que as violências perpetradas 
contra as mulheres sejam reconheci-
das em sua especificidade. Os pode-
res públicos hesitam em efetuar essa 
distinção e consideram que o termo 
“homicídio” se aplica a todos, não 
importa o sexo.2
TAGARELICE INCESSANTE

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