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LE MONDE BRASIL Riva 2 Le Monde Diplomatique Brasil ABRIL 2021 PLANO BIDEN Viva o “risco sistêmico”! POR SERGE HALIMI* T rês dias antes da entrada de Do- nald Trump na Casa Branca, o presidente chinês, Xi Jinping, viajou para Davos. Advertiu os Estados Unidos contra o protecionis- mo. Hoje, é a política de retomada do crescimento, impulsionada por Joe Biden, que alarma os dirigentes chi- neses. Eles veem aí um “risco sistêmi- co” para a ordem econômica atual... Os Estados Unidos acabam, com efeito, de adotar uma das leis mais sociais de sua história. Ela descarta as estratégias econômicas feitas nas últimas décadas, que favoreciam as rendas do capital – “inovadores” e rentistas juntos – e castigavam as classes populares; rompe com as po- líticas públicas assustadas com a vol- ta da inflação e o surto do endivida- mento; e não procura mais lisonjear os neoliberais e seus financiadores com cortes de impostos, cujo produto acabava frequentemente na Bolsa e inflava a bolha financeira. Com seu plano de emergência de US$ 1,9 trilhão (quase 10% da produ- ção da riqueza anual do país), que de- ve ser seguido por um programa de investimentos em infraestruturas, energias próprias e educação (US$ 3 trilhões em dez anos), o ex-vice-presi- dente de Barack Obama parece ter en- fim aprendido as lições da história – e as do fracasso de seu antigo “patrão”, que, muito prudente, muito centrista, não ousou se aproveitar da crise fi- nanceira de 2007-2008 para impulsio- nar um novo New Deal. “Com uma economia mundial em queda livre”, justificou-se Obama, “minha tarefa prioritária não era reconstruir a or- dem econômica, mas evitar um de- sastre suplementar.”1 Obcecada pela dívida, a Europa se infligia no mesmo momento uma década de purgação orçamentária, de fechamento à chave de leitos de hospitais... Um dos elementos mais promis- sores do plano Biden é sua universa- lidade. Todos os norte-americanos com rendimentos inferiores a US$ 75 mil por ano têm direito a um novo cheque do Tesouro no valor de US$ 4 mil por pessoa. Ora, há um quarto de século que a maioria dos Estados oci- dentais condiciona suas políticas so- ciais a patamares de recursos cada vez mais baixos, a dispositivos de su- pervisão permanente, a “políticas de ativação” do emprego punitivas e humilhantes.2 Resultado: os que pre- cisam, mas não ganham nada, são estimulados a odiar as políticas pú- blicas que lhes tiram alguma coisa para dar a outros. Depois, atiçados pela mídia, passam a imaginar que estão pagando para beneficiar vaga- bundos e parasitas. A crise de Covid-19 pôs fim a esse tipo de maledicência. Nem erro nem imperícia podem ser atribuídos a to- dos os assalariados ou trabalhadores independentes cuja atividade foi bru- talmente interrompida. Em alguns países, 60% dos que receberam um auxílio emergencial por causa da pandemia nunca tinham recebido nada antes.3 O Estado os socorreu “custasse o que custasse” e sem dis- criminações. Por enquanto, os adver- sários são poucos – fora da imprensa financeira e da China popular... *Serge Halimi é diretor do Le Monde Diplomatique. 1 Barack Obama, A Promised Land [Uma terra prometida], Crown, Nova York, 2020. 2 Ver Anne Daguerre, “Emplois forcés pour les bénéficiaires de l’aide social” [Empre- gos forçados para os beneficiários da aju- da social] , Le Monde Diplomatique, jun. 2005. 3 Segundo a consultoria BCG, citada em The Economist, Londres, 6 mar. 2021. © C es ar H ab er t P ac io rn ikRiva 3ABRIL 2021 Le Monde Diplomatique Brasil EDITORIAL © Claudius Para enfrentar a fome POR SILVIO CACCIA BAVA N o ano passado, o governo libe- rou R$ 292 bilhões para o au- xílio emergencial, que chegou a 68 milhões de brasileiros e brasileiras. Contou com nove parce- las, desde abril. Cinco delas foram de R$ 600, e quatro, de R$ 300. Os re- sultados foram extremamente posi- tivos tanto para assegurar a segu- rança alimentar de 30% dos brasileiros quanto para enfrentar a recessão, que se anunciava muito mais severa do que realmente foi. A renda transferida animou o comér- cio e o consumo. No dia 15 de março, o Congresso Nacional aprovou a Emenda Consti- tucional n. 109/2021, que autoriza o gasto de R$ 44 bilhões para o paga- mento de um novo auxílio emergen- cial para a população vulnerável afe- tada pela pandemia. O gasto será lançado na dívida pública. O valor e a quantidade de parcelas ainda serão definidos pelo governo, que propõe um gasto médio de R$ 250, variando de R$ 175 a R$ 350. Se- rão 45,6 milhões de pessoas benefi- ciadas. Estão excluídos 22,4 milhões de pessoas que receberam em 2020. Agora, no momento mais agudo da crise sanitária e de desemprego, há uma redução substancial do au- xílio emergencial no valor e no nú- mero de pessoas que beneficia. É fal- ta de dinheiro? Em 24 de março, dezesseis gover- nadores se manifestaram em conjun- to sustentando que o auxílio emer- gencial deve se manter em R$ 600.1 E, na falta do apoio federal para enfren- tar situações desesperadoras, toma- ram iniciativas, juntamente com pre- feitos, de criar programas de renda emergencial em seus estados e em al- guns municípios. Aproveitando-se da PEC do auxí- lio emergencial, parlamentares in- troduziram nela uma autorização de utilização dos lucros financeiros de 26 fundos públicos para amortização da dívida pública, num montante aproximado de R$ 200 bilhões. Essa autorização pode retirar do Fundo Nacional de Desenvolvimento Cien- tífico e Tecnológico, do Fundo Nacio- nal de Cultura e dos Fundos de Segu- rança e dos militares cerca de R$ 65 bilhões.2 O ataque a esses fundos é o ataque à ciência, à pesquisa, à cultu- ra. Mas, se os lucros financeiros dos fundos estão disponíveis, por que não utilizá-los para ampliar o auxílio emergencial? Por que destiná-los, em caráter excepcional, ao pagamento do serviço da dívida pública para o setor financeiro? A condução desastrosa, e mesmo criminosa, do governo federal no en- frentamento da pandemia, associada à ausência de política econômica pa- ra a retomada do crescimento, está levando grande parte dos brasileiros a um beco sem saída: sem trabalho, sem comida, acossados pela pande- mia e sem perspectivas de superar a crise. Só quem não tem mais comida para oferecer para suas crianças po- de avaliar o tamanho desta tragédia. Nos Estados Unidos, o governo li- beral de Joe Biden acaba de aprovar uma dotação de US$ 1,9 trilhão para enfrentar a pandemia. E vai entregar US$ 1 trilhão para programas de aju- da direta às famílias. O auxílio emer- gencial para cada família será de R$ 7.600, além dos R$ 3.250 repassados em dezembro. O governo garante ainda um seguro-desemprego de R$ 2.169 por semana. Com o fechamento das escolas, o governo norte-ameri- cano está oferecendo R$ 30,9/dia pa- ra cada criança que deixa de receber a alimentação na escola.3 Esses recursos não são lançados como gasto, mas considerados in- vestimento na retomada da econo- mia. Com renda para atender às suas necessidades básicas, os norte-ame- ricanos terão seus direitos à segu- rança alimentar respeitados e irão às compras, retomando o dinamis- mo da economia. Como se vê, com a saída de Trump o governo Bolsonaro não tem mais si- do fiel ao seu alinhamento com as políticas do governo norte-america- no. Estamos muito longe disso. No momento atual, na urgência, há medidas a tomar. E isso pode ser feito desde a dimensão da vida coti- diana até questões macro. A primeira delas é a pressão sobre o Congresso para que se restabeleça o valor de R$ 600 nesta nova fase do auxílio emergencial e que esse pro- grama volte a atender os 68 milhões de pessoas que necessitaram dele no ano passado. Além disso, outras medidas emer- genciais complementares podem ser tomadas. Por exemplo, a criação de restaurantes populares utilizando a infraestrutura de escolas públicas, com suas cozinhas e merendeiras, para garantir segurança alimentarnos bairros populares. Esses restau- rantes populares podem se abastecer nos cinturões hortifrutigranjeiros que cercam as cidades. Com isso, es- tariam também transferindo renda para os agricultores familiares. Outra ação emergencial é a cria- ção de frentes de trabalho para ga- rantir uma remuneração aos desem- pregados. Esse recurso tem sido usado nas crises há muito tempo. Há muito o que fazer tanto na área so- cial, como o cuidado com os mais ve- lhos, quanto na melhoria de vida nas cidades, implantando planos de ar- borização, reformando escolas, e tantas outras possibilidades. A solidariedade na sociedade tem sido fundamental para aliviar o so- frimento dos mais pobres, mas preci- samos de políticas públicas e de um novo governo que venha a substituir o governo Bolsonaro e seja compro- metido com programas emergen- ciais de atenção às maiorias e com programas de investimento que pro- movam a transição da economia de mercado que temos hoje para uma nova economia, a economia do cui- dado, preocupada com a qualidade de vida de todos nós. 1 “Governadores e prefeitos bancam auxílios regionais”, Valor, 25 mar. 2021. 2 “Promulgada emenda constitucional que per- mite a volta do auxílio emergencial: valor e parcelas serão definidos”, Departamento In- tersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), 16 mar. 2021. 3 Folha de S.Paulo, Mundo, 22 jan. 2021. Riva 4 Le Monde Diplomatique Brasil ABRIL 2021 UMA POLÍTICA DE GOVERNO Coronavírus, negacionismo e infelicidade no Brasil D iante do perfil de morbimorta- lidade da Covid-19, causada pe- lo novo coronavírus (Sars- -Cov-2), e das respostas políticas, econômicas, sociais e sani- tárias que os países ofereceram para o enfrentamento da pandemia, e após um ano da decretação de estado de pandemia pela Organização Mun- dial da Saúde (OMS), consideramos importante e oportuno refletir sobre duas questões: como o governo brasi- leiro respondeu à pandemia e quais são suas consequências? Que lições a gestão da pandemia pelo governo brasileiro poderia nos ensinar? Discutir essas questões, com base na análise do cenário e do perfil de morbimortalidade, nos conhecimen- tos e evidências científicas e nos re- flexos políticos, econômicos e so- ciais, é essencial para a compreensão do posicionamento do governo Bol- sonaro, de suas ações e/ou omissões no enfrentamento da pandemia, e seu desfecho, momentâneo. CENÁRIO, DESAFIOS, CIÊNCIA E NEGACIONISMO A velocidade de transmissão do Sars- -Cov-2, o número de mortes e sua le- talidade capturaram a agenda políti- ca e pautaram a ação dos governos. Assim, a forma como os governos se organizam e respondem politica- mente à crise é fator-chave na explica- ção da magnitude da epidemia, em cada contexto. No Brasil, o governo federal seguiu inicialmente as orientações preconi- zadas pela OMS e adotou medidas sensatas para monitoramento e con- tenção da epidemia, como a ativação do Centro de Operações de Emergên- cias em Saúde Pública, a declaração de estado de emergência em saúde pública, a decretação de estado de ca- lamidade pública, a obrigação de re- gistro das internações por Covid-19 em todos os estabelecimentos de saú- de no país, leis, medidas provisórias e outros instrumentos normativos. Aliado a essas medidas, o Brasil pôde observar como países seminais, em número e gravidade de casos, enfrentavam a pandemia decorrente do espalhamento do Sars-Cov-2, e deles tirar lições. Puderam ser obser- vadas medidas como a coordenação central da política a ser adotada por todos os entes federados em determi- nado território; a organização das ações por meio do protagonismo da vigilância e da atenção primária em saúde, priorizando ações preventivas, promotoras e protetoras de saúde; a preparação da infraestrutura hospita- lar, de recursos humanos e insumos para a saúde; a execução de ações para a contenção do espalhamento do vírus com o distanciamento social; a ado- ção de medidas econômicas e sociais complementares e simultâneas às providências no campo da saúde. Essas lições não são estranhas e de difícil aplicação no Brasil, visto que o país tem um sistema de saúde estruturado, com capilaridade, capi- tal intelectual e tradição sanitária para responder aos desafios impos- tos pela pandemia. Sabíamos, a ciên- cia, o que deveria ser feito para frear o espalhamento do Sars-Cov-2 e o au- mento de novos casos no início da pandemia, com medidas de conten- ção, tais como: 1. Coordenação nacional no enfren- tamento da pandemia, como pre- coniza a Carta Magna e o marco legal e regulatório do Sistema Úni- co de Saúde (SUS), e como fator determinante para o envolvimen- to articulado de toda a estrutura do SUS; 2. Adoção do distanciamento social como estratégia para conter o avan- ço dos casos e do isolamento social com base na confirmação dos casos por meio da realização em massa de testes diagnósticos, como orien- tador tático-operacional para evi- tar o espalhamento do vírus; 3. Implantação de proteção econô- mica para manutenção do empre- go e renda, e proteção social aos mais vulneráveis para que o gover- no pudesse orientar/exigir o dis- tanciamento social; 4. Investimento em comunicação so- cial e educação sanitária; 5. Fortalecimento do sistema nacio- nal de informação em saúde e trans- parência dos dados; 6. Aumento dos investimentos em saúde em todos os níveis de atenção, com prioridade para as ações preven- tivas, protetoras e promotoras, como determina a Constituição Federal. E sabemos, a ciência, o que deve- mos fazer, daqui para a frente: 1. Todas as medidas anteriores; 2. Vacinar. No entanto, já no início da pande- mia não demorou a se manifestar o viés negacionista do governo em rela- ção às claras evidências apontadas pela classe científica, às recomenda- ções da OMS e às experiências exito- sas em vários países no enfrentamen- to do Sars-Cov-2. O desgaste e a queda de gestores federais que propunham políticas e ações para o enfrentamen- to da pandemia que não levassem em conta a política negacionista do go- verno, bem como a subserviência da- queles que aceitaram assumir o Mi- nistério da Saúde seguindo a política de saúde determinada pela Presidên- cia da República – as quais podem ser vistas nas palavras do ministro Pazuello, que acaba de deixar o cargo (“Senhores, é simples assim: um manda e outro obedece”), e nas pala- vras do atual ministro Queiroga, quarto ministro na gestão da pande- mia (“A política é do governo Bolso- naro... A Saúde executa a política do governo”) – foram marcas do primei- ro ano de gestão da pandemia. As consequências dessa política se manifestaram imediatamente no perfil de morbimortalidade da popu- lação e em seus reflexos políticos, econômicos e sociais. O PERFIL DE MORBIMORTALIDADE POR COVID-19 Analisando o comportamento da pandemia, em 18 de março de 2021, em relação a 30 de abril de 2020, num grupo de países que apresentaram mais de 1 milhão de casos de Covid-19 em 18 de março de 2021 (G21), verifi- ca-se que esse grupo, que correspon- de a 42% da população mundial, res- ponde por 78% dos casos acumulados de Covid-19 e por mais de 80% dos óbitos (ver tabela). A epidemia, que em seu início acometeu principal- mente alguns países da Europa e os Estados Unidos, correspondendo a mais de 60% dos casos e a quase 80% dos óbitos, avançou em direção à Ín- dia, à África, a outras partes da Euro- pa e aos países latino-americanos. Na América Latina ganha desta- que o perfil de morbimortalidade do Brasil, que, com 2,8% da população mundial, foi responsável por mais de um quarto das mortes no mundo e viu o número de casos confirmados de Covid-19 saltar de 2,3% do total acumulados em abril de 2020 para 9,7% dos casos em março de 2021, en- quanto os óbitos foram de 2,2% para 10,7% no mesmo período. Os novos casos e óbitos por Covid-19 avança- ram sua participação no total de ca- sos mundiais de 7,3% para 17,6% e de 8,1% para 27,5%, respectivamente,quando comparado o período de 30 de abril de 2020 em relação a 18 de março de 2021. Esses números não encontram pa- ralelo e preocupam as autoridades da OMS, que veem o Brasil como um ris- co sanitário para o mundo. Em maté- ria recente publicada pela BBC, cien- tistas britânicos afirmam haver um desgoverno da doença no Brasil e que o vírus está se replicando com o apa- recimento de variante. Segundo a re- portagem, o Brasil pode se tornar uma “fábrica” de variantes superpotentes. Esse descontrole se torna ainda mais preocupante quando observa- mos o caráter marcante e dramático da desigualdade social e econômica no adoecimento e na mortalidade por Covid-19 no Brasil. Apesar desse quadro, lideranças do governo seguem com discursos negacionistas e minimizam a gravi- dade da situação brasileira. Em en- trevista recente (Globonews, 17 mar.), o líder do governo do presiden- te Jair Bolsonaro na Câmara dos De- putados, Ricardo Barros, afirmou que a situação do país “é até confor- tável”. Nesse mesmo diapasão, o pre- sidente Jair Bolsonaro, em evento realizado no Palácio do Planalto em 22 de março, ao se referir ao enfren- tamento da pandemia, afirmou que “estamos dando certo [...] o Brasil vem dando exemplo, somos um dos poucos países que está na vanguarda na busca de soluções”. Essa cegueira situacional, que tem como pano de fundo o negacio- nismo como programa de governo, levou o país a ser avaliado como a pior gestão pública do mundo na condução da pandemia, em um gru- Insensatez negacionista do governo central, que atua contra o combate à pandemia, se dá por omissão ou por ação e é intencional, um programa de governo. A não aplicação efetiva e oportuna de políticas e medidas de contenção caracteriza a omissão. Por outro lado, esse mesmo governo adota ações contrárias ao combate da pandemia POR ADILSON SOARES* Riva 5ABRIL 2021 Le Monde Diplomatique Brasil po de 98 países, em pesquisa divulga- da em janeiro pelo Instituto Lowy, de Sydney, na Austrália. E, de lá para cá, o quadro piorou. NEGACIONISMO COMO PROGRAMA DE GOVERNO A insensatez negacionista do gover- no central, que atua contra o comba- te à pandemia, se dá por omissão ou por ação e é intencional, um progra- ma de governo. A não aplicação efetiva e oportu- na de políticas e medidas de conten- ção, descritas anteriormente, carac- teriza claramente uma atuação por omissão por parte do governo fede- ral. Por outro lado, esse mesmo go- verno adota ações contrárias ao com- bate da pandemia, tais como: 1. Preconizar e estimular o uso de in- sumos, materiais e medicamentos sem comprovação científica; 2. Não adotar o distanciamento so- cial e o uso de materiais protetores individuais e coletivos; 3. Fazer, praticamente durante quase todo o primeiro ano de pandemia, campanha contra a vacina e a vacinação; 4. Não adquirir vacinas oportuna- mente e na quantidade necessária; 5. Acionar governadores no Supremo Tribunal Federal questionando a competência por parte dos entes fe- derados em adotar medidas adminis- trativas que possibilitem o distancia- mento social; 6. Desautorizar medidas adotadas por condutores da política de saúde por ele nomeados; 7. Propor campanha de comunicação social priorizando a continuidade das atividades econômicas, induzin- do a população a comportamento di- ferente do preconizado pelas autori- dades sanitárias e pela ciência; 8. Não executar, em sua integralida- de, o orçamento extraordinário auto- rizado pela Emenda Constitucional n. 106/2020 para o combate da pande- mia (executou 85% dos recursos totais disponíveis e 71% dos recursos dispo- níveis específicos na rubrica para o setor de saúde (dados de 16 mar. 2021). Em meio à elevação dos casos e mortes evitáveis por Covid-19, ao es- gotamento da rede hospitalar e ao co- lapso no sistema funerário, essas ações e omissões semeiam confusão e dificultam a atuação do governo cen- tral na proposição e execução de polí- ticas que poderiam articular os entes federados, os agentes econômicos e a sociedade, e seus reflexos são senti- dos nos planos econômico e social. Apesar da adoção de medidas vi- sando mitigar o efeito avassalador e os desafios impostos pela pandemia da Covid-19, estas não foram suficien- tes e oportunas para evitar a queda acentuada de 4,1% no PIB, o aumento Uma das lições que podemos tirar, após um ano de pandemia, é que a essa correlação entre negacio- nismo e descoordenação do Sistema Único de Saúde, que se mostra nefasta, com custos sociais e de vidas humanas, é preciso opor outra. Nesses termos, não é possível enfren- tar a epidemia sem que haja uma política que leve em conta a impor- tância da inclusão social, da solida- riedade, da tradição sanitária brasi- leira, das evidências científicas e do marco legal e regulatório do SUS, que preconiza, entre outras coisas, gestão e financiamento solidário e tripartite do sistema, com coordena- ção central. Não podemos recuperar o sofri- mento do povo brasileiro nem a vida dos que se foram, mas é possível re- fletir sobre os erros e as oportunida- des perdidas e fazer diferente, porque sabemos o que fazer. *Adilson Soares é economista, doutor em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professor de Polí- ticas Públicas e Economia da Saúde do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, membro da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES) e da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia (Abed). de 6,3% no número de desemprega- dos formais e 10,5% de informais, a diminuição da renda e o empobreci- mento das famílias, que retraíram seu consumo em 5,5%, segundo dados do IBGE relativos ao exercício de 2020. Esses reflexos podem ser observa- dos ainda no aumento da infelicidade dos brasileiros, apontado no Relatório Mundial de Felicidade da Organiza- ção das Nações Unidas, divulgado re- centemente, em 19 de março: o Brasil está na 41ª posição no ranking (caiu nove posições), fato relacionado em parte à ação ou omissão do governo no enfrentamento da pandemia e seus reflexos. Esse movimento foi capturado em recentes pesquisas conduzidas pelo Datafolha, compa- rando março de 2020 a março de 2021, que mostra um aumento do medo das pessoas de se infectarem pelo corona- vírus de 36% para 55% dos entrevista- dos e uma rejeição a Bolsonaro na gestão da pandemia de 35% para 54%. A insensatez e a descoordenação do governo Bolsonaro no enfrenta- mento da pandemia desfavoreceram a articulação do SUS na rede de aten- ção à saúde em cada território e re- gião de saúde e a incorporação das forças vivas da sociedade e lideranças comunitárias como elementos cru- ciais no engajamento da população nas medidas de distanciamento so- cial. Com dificuldade de efetivação do distanciamento social, de preven- ção, rastreamento e isolamento de ca- sos, o Brasil observou uma rápida ele- vação do número de casos e óbitos. Esse quadro levou os gestores de saúde, pressionados pelo caos e pela urgência em dar solução aos casos e óbitos que se apresentavam, a priori- zar ações curativas de âmbito hospita- lar na tentativa de mitigar os efeitos da crise, em detrimento da oportunidade perdida de identificação, isolamento e tratamento dos casos de Covid-19 nos territórios, por meio de investimentos em ações preventivas, promotoras e protetoras de saúde na esfera da rede de atenção primária à saúde. Embora o governo federal tenha adotado inicialmente providências normativas legais e regulatórias, pre- parando-se para uma boa condução da política de enfrentamento da pan- demia, ele não tomou ações adminis- trativas e de gestão do sistema de saúde efetivas e oportunas. Questões verificadas como a falta de leitos, de oxigênio e de vacinas e o perfil de morbimortalidade decorrente do Sars-Cov-2 revelam que a pandemia está longe do fim e que o governo central não trata a epidemiacom a devida prioridade, como estava auto- rizado a fazê-lo pela declaração do estado de emergência e de calamida- de, com recursos disponíveis para suas providências. Tabela - EVOLUÇÃO DE CASOS E ÓBITOS POR COVID 19 - PAÍSES COM MAIS CASOS ACUMULADOS EM 18/03/2021 Países % Pop. mundo 18/03/2021 30/4/2020 CASOS ÓBITOS CASOS ÓBITOS % Casos Estoque/ mundo % Casos novos/ mundo % Óbitos Estoque/ mundo % Óbitos Novos/ mundo % Casos Estoque/ mundo % Casos novos/ mundo % Óbitos Estoque/ mundo % Óbitos Novos/ mundo EUA 4,3% 24,1% 11,9% 19,8% 15,3% 32,3% 27,7% 25,7% 34,3% Brasil 2,8% 9,7% 17,6% 10,7% 27,5% 2,3% 7,3% 2,2% 8,1% Índia 17,8% 9,5% 8,3% 5,9% 1,9% 1,1% 2,3% 0,5% 1,1% Rússia 1,9% 3,6% 2,0% 3,5% 4,5% 3,4% 9,6% 0,5% 1,7% Reino Unido 0,9% 3,5% 1,3% 4,7% 1,0% 5,4% 6,4% 11,6% 13,1% França 0,9% 3,4% 7,1% 3,4% 2,7% 4,1% 2,2% 10,7% 7,3% Itália 0,8% 2,7% 5,0% 3,9% 4,3% 6,6% 2,8% 12,3% 5,5% Espanha 0,6% 2,6% 1,2% 2,7% 2,3% 7,0% 2,9% 11,1% 3,5% Turquia 1,1% 1,6% 4,1% 1,1% 0,8% 3,8% 4,0% 1,4% 1,5% Alemanha 1,1% 2,2% 3,5% 2,8% 2,3% 5,1% 2,0% 2,8% 3,0% Colômbia 0,6% 1,9% 1,0% 2,3% 1,4% 0,2% 0,5% 0,1% 0,3% Argentina 0,6% 1,8% 1,7% 2,0% 1,6% 0,1% 0,2% 0,1% 0,2% México 1,7% 1,8% 1,4% 7,3% 7,0% 0,5% 1,7% 0,7% 2,3% Polônia 0,5% 1,6% 5,3% 1,8% 4,2% 0,4% 0,6% 0,3% 0,5% Irã 1,1% 1,5% 1,5% 2,3% 0,7% 3,0% 1,3% 2,7% 1,2% África do Sul 0,8% 1,3% 0,3% 1,9% 0,9% 0,2% 0,5% 0,0% 0,2% Ucrânia 0,5% 1,3% 3,1% 1,1% 2,6% 0,3% 0,7% 0,1% 0,2% Rep. Tcheca 0,1% 1,2% 2,0% 0,9% 2,0% 0,2% 0,1% 0,1% 0,0% Indonésia 3,5% 1,2% 1,3% 1,5% 2,0% 0,3% 0,5% 0,4% 0,1% Peru 0,4% 1,2% 1,6% 1,8% 1,8% 1,0% 3,4% 0,4% 1,2% Países Baixos 0,2% 1,0% 1,3% 0,6% 0,3% 1,2% 0,5% 2,1% 2,5% TOTAL 42,1% 78,6% 82,2% 82,0% 87,0% 78,7% 77,2% 85,8% 87,8% Fonte: Elaboração do autor com base em dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). • Nota: Países com mais de 1 milhão de casos acumulados em 18/03/2021. Riva 6 Le Monde Diplomatique Brasil ABRIL 2021 OS EFEITOS DA PANDEMIA E DA VOLTA DE LULA Ideologia, perspectivas e as bases do bolsonarismo Durante a pandemia, as condições econômicas, políticas e sociais passaram por mudanças importantes. O desemprego cresceu, o auxílio emergencial rendeu popularidade ao presidente, assistimos a conflitos na coalizão bolsonarista, investigações evidenciaram a corrupção no seio familiar presidencial, Trump foi derrotado e, finalmente, Lula teve suas condenações anuladas. Não temos ainda claro o que isso implicará para o bolsonarismo, mas é possível observar padrões e construir alguns cenários POR VINICIUS DO VALLE* N o dia 4 de março, em meio a um evento no estado de Goiás, o presidente Jair Bolsonaro co- mentou as estratégias de com- bate à pandemia no país. Sem rodeios e ao seu estilo, vociferou: “Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar cho- rando até quando?”. Minutos após a declaração, o ví- deo da cena ganhava milhares de compartilhamentos nas redes so- ciais, gerando revolta e indignação. A frase também ganhou repercussão nos principais jornais do mundo. Va- le constar que, na véspera do dia em que a frase foi proferida, batíamos o recorde diário de mortes na pande- mia até então, com 1.840 óbitos, e os hospitais de várias regiões do país anunciavam a lotação total dos leitos de UTI e o início de uma situação de colapso. Como entender que, no pior momento sanitário, uma declaração como essa fosse proferida? Argumentei, em outros dois textos publicados pelo Le Monde Diplomati- que Brasil no último ano,1 que as ações de Bolsonaro não são aleatórias e que, apesar de num primeiro olhar não fazerem sentido, trazem em si uma racionalidade – perversa, mas, ainda assim, uma racionalidade. As ações do presidente durante a pande- mia não fogem a essa regra e, como confirma uma pesquisa realizada pe- la ONG Conectas e pelo Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sani- tário (Cepedisa), da Faculdade de Saúde Pública da USP, não podemos falar de incompetência na gestão sa- nitária nacional, e sim de uma estra- tégia articulada de ação governamen- tal para a disseminação da doença. Mas qual é a racionalidade por trás de tantos absurdos? Representando uma política de extrema direita, Bolsonaro se postula a todo momento como antissistema e como agente mobilizador de um mo- vimento que, para seus seguidores, precisão, mas certamente menor do que os cerca de 40% que ainda dizem apoiar o governo, ou mesmo os 30% que avaliam a gestão federal como boa ou ótima nas pesquisas. Essa porção militante seria o que efetiva- mente poderíamos chamar de base social da extrema direita no Brasil. Fortemente mobilizada, essa fração toma adversários políticos como ini- migos, mostra disposição para o con- flito e para a regulação dos corpos e da sexualidade e cultua um líder vis- to como mito. Essas características nos remetem ao que há de mais som- brio na história – o fascismo. Considerando o fascismo um fe- nômeno não meramente histórico – circunscrito nas décadas de 1930 e 1940 e manifestado em determinados países sob certas condições –, e sim um fenômeno estrutural, definido como um ordenamento do Estado e dos afetos, as aproximações e parale- los com o que vemos no Brasil atual são inevitáveis. Theodor Adorno é um dos autores que, dessa perspecti- va, fornece preciosas pistas para o presente. Na obra Estudos sobre a personalidade autoritária, publicada em 1950 por Adorno junto de outros acadêmicos da Faculdade de Ber- keley, é proposta a Escala F (de fascis- mo), baseada em nove indicadores, construídos graças a um extenso questionário que mapeava os valores dos respondentes. Não é preciso mui- to esforço para constatar que várias das características psíquicas associa- das por eles ao fascismo – por exem- plo, a agressividade a minorias, a rea- ção contrária ao que remete ao pensamento complexo e às subjetivi- dades e a preocupação com atos se- xuais alheios – estão fortemente pre- sentes no ambiente social brasileiro. É possível também, de acordo com Adorno, em Teoria freudiana e o modelo fascista de propaganda, ver paralelos na forma como os líderes fascistas do século passado e Bolso- naro constroem sua imagem e veicu- lam suas ideias para o público. Tal construção ocorre não por meio da identificação racional, mas por meio de um apelo às pulsões psíquicas primitivas. A escassez de ideias é, nesse sentido, parte imprescindível da técnica de identificação que se dá pela reiteração da exposição de um líder que seria, ao mesmo tempo, to- do-poderoso e comum. O apelo bol- sonarista às armas e aos seus símbo- los, às frases de efeito grosseiras, ao deboche, às piadas sobre a virilidade sexual, à estética pitoresca caem aí como uma luva. Também fazendo uso da teoria psicanalítica freudiana, na obra A dialética do esclarecimento, Adorno e Max Horkheimer retratam, na últi- ma seção do livro, o fascismo como busca resgatar a moral social, salvar o país e exterminar o que seriam os “inimigos da nação”. No bojo de apoiadores mais fiéis cabem o movi- mento antivacina, o movimento ter- raplanista, os conspiracionistas do QAnon (uma teoria da conspiração forjada em fóruns da internet) e até certos grupos supremacistas, aos quais o governo e o presidente, a des- peito de não incorporarem suas pau- tas – ao menos de forma explícita –, se preocupam em não desagradar e em se manterem entre eles como uma re- ferência. Já de forma explícita e ver- balizada, o governo assume duas teo- rias conspiratórias, constitutivas da visão difundida pelo escritor Olavo de Carvalho e que muito se relacio- nam e lhe servem de referência ideo- lógica. A primeira é a teoria da hege- monia esquerdista no mundo, que postula que os valores de esquerda teriam se espalhado pela sociedade e pelas instituições e dominariam o planeta. Entre esses valores estariam o feminismo, a “ideologia de gênero” e os ideais de direitos humanos que inspiram os movimentos antirracis- tas, indígenas e LGBTQIA+. A segun- da teoria é a do globalismo,que de- nuncia uma elite global que controlaria o mundo com base em seus valores. Essa elite seria compos- ta por grandes corporações, ONGs, universidades, organizações interna- cionais como a ONU e representantes de governos. Esses grupos globalistas espalhariam a hegemonia esquerdis- ta no mundo e, se pudessem, instala- riam uma ditadura mundial. Tais teorias são compartilhadas entre aqueles que integram o que podemos chamar de “grupo militante” da base de apoio do presidente – uma fração ainda difícil de ser quantificada com © Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil “Vão ficar chorando até quando?” enquanto Brasil registrava mais de 1.800 mortos Riva 7ABRIL 2021 Le Monde Diplomatique Brasil uma paranoia, que teria como pano de fundo a rejeição e o desejo de ani- quilação da diferença e do diferente. A paranoia é entendida pelos autores com base na conceitualização freu- diana, como uma falsa projeção, um delírio que produz uma interpreta- ção do mundo a qual nenhuma prova de realidade, nenhuma evidência empírica ou experiência pode que- brar. Se tal caracterização serve para descrever parte da base bolsonarista, isso significa que as tentativas de diálogo e convencimento racional por parte das camadas progressistas com essa fração são inúteis. Expus nos já citados textos ante- riores publicados aqui no Le Monde Diplomatique Brasil que Bolsonaro mobiliza essa fração e tenta aumen- tá-la por meio de uma estratégia de guerra de movimento, com mobiliza- ção constante, sobreposição de te- mas e ataques incessantes a tudo e a todos que correspondem ao seu alvo. Nessa guerra simbólica, criam-se narrativas distintas, em que inimigos poderosos – sempre ligados à esquer- da e ao establishment – estariam ata- cando o Brasil, que, por sua vez, pre- cisaria ser salvo pela força e moral do presidente e de seus apoiadores. Nes- sa cruzada imaginária, Bolsonaro é retratado como uma ameaça aos in- teresses de dominação dos podero- sos e, dessa forma, sofreria todo tipo de perseguição – principalmente da imprensa e das instituições, tidas co- mo sempre corruptas. A racionalida- de, portanto, estaria na lógica bolso- narista de mobilização constante, mantendo um grupo ao redor de si – e, graças a ele, garantindo sua rele- vância e força. Suas declarações du- rante a pandemia podem ser vistas com esse fim, e, quanto mais irôni- cas, mais funcionam, pois, além de gerarem efeito mobilizador para sua base, elas despertam sentimentos re- pulsivos entre seus detratores, ali- mentando sistematicamente o con- flito. O que o presidente mais quer, nesse sentido, é receber ataques, para poder revidá-los num ciclo contínuo. PARA ALÉM DOS MILITANTES: A EXTENSÃO DO BOLSONARISMO É preciso não perder de vista que a parcela militante de extrema direita é minoritária socialmente e muito in- ferior ao total de pessoas que, ainda que com reticências, dizem apoiar o governo. Em artigo recente em que analisa a virada à direita no Brasil, o cientista político André Singer, consi- derando dados de pesquisas eleito- rais, argumenta que a sustentação e o voto em Bolsonaro se deram não por um aumento exponencial da extrema direita na última década, mas pelo apoio de quem se autodenomina sim- plesmente como direita.2 Parte desse contingente já havia, inclusive, apoiado o PT nos anos lulistas. En- tender essa parcela, os motivos de seu apoio a Bolsonaro e os possíveis efeitos que as mudanças recentes na conjuntura têm gerado a ela pode ser fundamental para uma alteração na configuração política do país. Nesse sentido, tenho argumenta- do que o discurso bolsonarista, ain- da que de forma dispersa, encontra eco para além da esfera militante. Entre grupos de empresários, rura- listas, madeireiros e mineradores, ele é sustentado pelo desejo de desregu- lamentações às suas atividades, o que envolveria a supressão de direi- tos trabalhistas, da legislação am- biental e dos direitos de grupos espe- cíficos, como os indígenas. Descendo a pirâmide social, o bolsonarismo também ecoa em pequenos comer- ciantes afetados pela pandemia, em policiais contrários à pauta de direi- tos humanos, em evangélicos con- trários ao feminismo e aos direitos LGBTQIA+ e em profissionais uberi- zados – que compartilham a ideolo- gia do progresso como simplesmente ligado ao esforço individual. Temos, dessa forma, um apoio que atravessa diferentes classes sociais, o que difi- culta a disputa desse segmento pela dinâmica política e discursiva da es- querda, que tem como base a cliva- gem entre ricos e pobres e o combate às desigualdades. PANDEMIA, VOLTA DE LULA E O CENÁRIO ELEITORAL Durante a pandemia do coronavírus, enquanto o bolsonarismo se radicali- zou, as condições econômicas, políti- cas e sociais passaram por mudanças e reviravoltas importantes. O desem- prego cresceu, e o conflito entre saú- de e economia se manifestou como uma realidade para os trabalhadores sem condições materiais de realizar o isolamento. Ainda na esfera econô- mica, houve o auxílio emergencial, que, embora articulado pelo Con- gresso, rendeu ao presidente um au- mento de popularidade. Politicamen- te, assistimos a conflitos na coalizão bolsonarista, que fizeram antigos aliados, como Sérgio Moro e Luiz Henrique Mandetta, se tornarem ini- migos políticos do presidente. Tam- bém tivemos avanços nas investiga- ções que evidenciaram práticas de corrupção no seio familiar presiden- cial. Internacionalmente, Bolsonaro perdeu sua principal referência, com a derrota de Donald Trump nos Esta- dos Unidos. Finalmente, no último mês, em uma reviravolta política e ju- rídica, Lula teve seus processos na Operação Lava Jato transferidos de Curitiba, o que anulou suas condena- ções e o tornou elegível. Não temos ainda claro o que toda essa movimen- tação implicará para o futuro do bol- sonarismo, mas é possível observar padrões e construir alguns cenários. O primeiro elemento a considerar é que todos esses eventos não fize- ram que o presidente efetivamente se moderasse. Se houve períodos de trégua no uso do Poder Executivo para o confronto institucional, en- saios de moderação no discurso e tentativas de melhorar o diálogo com o Congresso – com a aproximação ao chamado “Centrão” –, é preciso tam- bém reconhecer que esses movimen- tos se mostraram meramente estra- tégicos e momentâneos, servindo como espaços de fôlego para novas investidas de enfrentamento por parte do bolsonarismo. Já no plano econômico, os sinais são menos inequívocos: ao mesmo tempo que o governo promoveu uma pauta de desregulamentação e tolhi- mento dos direitos, também insti- tuiu o auxílio emergencial e, por ve- zes, flertou com a possibilidade da instauração de políticas de cunho desenvolvimentista. Caso optasse por tais políticas, promovendo in- centivos estatais para a recuperação econômica e o resgate das camadas vulneráveis, Bolsonaro certamente aumentaria sua popularidade e pe- netração entre os mais pobres, o que poderia lhe dar melhores condições eleitorais, principalmente contra Lu- la. No entanto, essa escolha queima- ria pontes do bolsonarismo com o mercado, que cobra do governo rigor fiscal e controle nos gastos sociais. Até agora, o presidente vem demons- trando mais inclinação para manter o alinhamento ao mercado e às exi- gências fiscais do que para reforçar o investimento público e a reação eco- nômica. Para se deslocar do pífio de- sempenho econômico subsequente, sua estratégia é culpar o isolamento social e os governadores e prefeitos, o que ainda reforça o ambiente de confronto ao qual é tão habituado e tensiona as instituições que tanto busca destruir. Nessa conjuntura, considerando que as eleições de 2022 aconteçam normalmente, as perspectivas para os progressistas ainda são muito in- certas. Em entrevistas realizadas com eleitores bolsonaristas das ca- madas de renda C e D em 2020, como parte de pesquisas coordenadas pe- las pesquisadoras Esther Solano e Camila Rocha,identificamos ele- mentos que indicam tanto um des- contentamento com certas práticas do presidente – por exemplo, suas de- clarações polêmicas e sua gestão da pandemia – quanto ainda um forte antipetismo e rejeição a outras alter- nativas eleitorais, o que pode dar so- brevida ao bolsonarismo. Nesse quadro, a recente reintro- dução de Lula no cenário eleitoral, apesar do efeito imediato de geração de esperança entre os progressistas e das reações de preocupação no go- verno, deve ser vista com cautela. Embora Lula tenha importante pene- tração em setores populares e uma imensa habilidade para aglutinar di- ferentes segmentos políticos em tor- no de seu nome, o antipetismo ainda é uma força que não pode ser ignora- da no Brasil e que tende a ser fortale- cida com sua presença. Além disso, a figura do ex-presidente traz as condi- ções ideais para o reforço da dinâmi- ca de conflito que alimenta o bolso- narismo. Cabe dizer também que, a despeito de Lula ser o nome de es- querda com maior penetração para além das bolhas progressistas, ainda não sabemos como sua imagem pode ser atingida em um contexto de forte uso da internet para construção de narrativas alternativas e fake news. Por fim, vale dizer que, além das incertezas e da necessidade de caute- la relacionada ao quadro eleitoral, o cenário político não permite garantir que as eleições de fato acontecerão – nem sequer que, caso aconteçam, Bolsonaro aceitará o resultado de uma eventual derrota. A esta altura dos acontecimentos, não é exagero nem deve surpreender a constatação de que Bolsonaro busca estimular o caos social para uma ruptura demo- crática e que, para tal, conta com a cumplicidade e inação de parte do Congresso. Por tal motivo, ao mesmo tempo que se organizam para 2022, inclusive dando a devida importân- cia para a eleição de uma grande ban- cada democrática, os progressistas não devem deixar de pressionar pelo afastamento do presidente, ou ao me- nos pela garantia de que as eleições serão justas e válidas. São tarefas di- fíceis, mas imprescindíveis. *Vinicius do Valle é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo e autor, entre outros trabalhos, de Entre a re- ligião e o lulismo: um estudo com pente- costais em São Paulo, publicado pela edi- tora Recriar (2019). 1 “Bolsonaro e a estratégia do caos” e “O arse- nal bolsonarista: conflito e caos como méto- dos da ação política”, Le Monde Diplomatique Brasil, 2 e 29 abr. 2020. 2 André Singer, “A reativação da direita no Bra- sil”, versão preprint disponível em: http://ce- nedic.fflch.usp.br. A parcela militante de extrema direita é minoritária socialmente e muito inferior ao total de pessoas que dizem apoiar o governo Riva 8 Le Monde Diplomatique Brasil ABRIL 2021 Os incontáveis painéis de debate nos canais de notícias 24 horas Com suas imagens espetaculares, GCs que desfilam pela tela e comentaristas instalados no palco, os canais de notícias 24 horas colonizaram nosso imaginário visual e mental. Suas antenas, que proliferaram nos anos 1990 em nome do pluralismo e do “dever de informar”, negligenciam a investigação e a reportagem e imprimem seu ritmo à vida pública POR SOPHIE EUSTACHE* UM MODELO ECONÔMICO QUE CORROMPE O DEBATE POLÍTICO A informação 24 horas nasce da injeção de uma velha ideia em novos canais. Qual é a ideia? A de que os males do mundo re- sultam da falta de comunicação entre os seres humanos. E quais são os ca- nais? As redes privadas de comunica- ção que se multiplicaram no início dos anos 1980, graças às novas tecno- logias e à financeirização dos meios de comunicação. Em 1997, Robert “Ted” Turner – que dezessete anos antes criara, nos Estados Unidos, a CNN, primeira rede de televisão ex- clusivamente dedicada à notícia – ex- plicava: “Desde que a CNN foi criada, a Guerra Fria acabou, os conflitos na América Central foram encerrados, veio a paz na África do Sul e há tenta- tivas para estabelecer a paz no Orien- te Médio e na Irlanda do Norte. As pessoas entenderam que a guerra é uma estupidez. Com a CNN, as infor- mações correm o mundo inteiro, e ninguém quer parecer estúpido. En- tão, há paz, pois isso é inteligente”. Em 1991, o canal colocara a Guerra do Golfo dentro da sala dos telespecta- dores ocidentais: horas e horas se passavam até que algum aconteci- mento viesse interromper a fala de generais da reserva que se instala- vam na bancada do estúdio, enquan- to os correspondentes empoleirados no telhado de um hotel de luxo de Bagdá filmavam o céu. Diante das câ- meras, não acontecia nada, porém o importante é que as imagens eram ao vivo. Essa fórmula se impôs como pa- drão de cobertura midiática dos grandes eventos internacionais. Na França, esse formato foi visto pela primeira vez na rede La Cinq, canal privado criado por François Mitterrand em 1985 e atribuído ao magnata do audiovisual Silvio Ber- lusconi, então considerado próximo dos socialistas italianos, e ao empre- sário Jérôme Seydoux, até ser com- prado por Robert Hersant em 1987. Das 5 às 8 da manhã, o canal exibia o programa Le Journal Permanent. O conceito, hoje familiar, consistia em repetir continuamente um noticiá- rio de 15 minutos. Em dezembro de 1989, a La Cinq cobriu a Revolução Romena.1 “As imagens ao vivo mos- traram a explosão de alegria da mul- tidão, reunida na Praça da Ópera, com a notícia da queda de Nicolae Ceausescu. Em seguida, mostraram a pavorosa vala comum onde ha- viam sido depositados os corpos das vítimas das manifestações do do- mingo anterior”, relatou com admi- ração o jornal Le Monde (25 dez. 1989) – mas as valas comuns eram falsas, e essa fake news da vanguar- da, disseminada por todo o planeta e logo depois desmentida, já sinaliza- va o poder e o perigo representados por essa mídia instantânea. EM BUSCA DE UMAS “ASPAS” A versão radiofônica desse modelo, a rede France Info, lançada em 1987, teve um sucesso inesperado. Ela foi concebida por Jérôme Bellay, então diretor de notícias da Radio France, que queria criar um “self-service de notícias para quem tem pressa”. Ima- ginada desde o início como um pro- duto de consumo de massa, a infor- mação 24 horas se dirige sobretudo a consumidores. Assim, a BFM TV or- gulha-se de ser “o canal de notícias 24 horas campeão de marketing no mundo”, nas palavras de um de seus diretores editoriais, Laurent Drez- ner.2 O jornalista Jean-Jacques Bour- din, apresentador de política do ca- nal, define os cidadãos como “acionistas” da “empresa França”...3 Com o lançamento da televisão digital em 2005-2006, a informação 24 horas alcançou um estágio indus- trial, adquirindo a influência que co- nhecemos hoje. A França tinha então quatro canais gratuitos desse tipo, três deles pertencentes a operadoras privadas: a LCI, de Martin Bouygues, criada em 1994; a i-Télé, lançada em 1999 e, após sua aquisição em 2014 pelo empresário Vincent Bolloré, re- batizada como CNews; a BFM TV, fundada por Alain Weill em 2005 e controlada desde 2015 por Patrick Drahi, chefe da SFR; e a France 24 (dedicada sobretudo a notícias inter- nacionais). As redes de televisão France 24 e France Info (homônima da rádio), esta criada em 2016, têm caráter público, assim como La Chaî- ne Parlementaire e Public Sénat, dois canais institucionais. Em escala in- ternacional, a chegada ao cenário da Russia Today (RT), canal russo fun- dado em 2005 pela agência governa- mental RIA-Novosti,4 e do canal cata- riano Al-Jazeera International, criado em 1996 e lançado em inglês em 2006, mudou o jogo da informação 24 horas global e rachou o oligopólio ocidental formado por CNN, BBC e Euronews. Na França, a informação 24 horas so- mou em 2019 apenas 4,5% de audiên- cia média: 2,3% para a BFM TV; 1% para a LCI; 0,8% para a CNews; e 0,5% para a France Info.5 A título de com- paração, a TF1 tem 19,5% da audiên- cia, e a France 2, 13,9%. Com exceção da BFM TV, todos esses canais estão deficitários. Longe de promover qualidadee pluralismo, essa competição na qual cada um tenta ficar com a maior par- te da receita de publicidade produziu uma deterioração das condições de produção e um aumento do número dos programas de estúdio. Distinguir as especificidades edi- toriais de cada canal é tarefa que exi- ge um exame minucioso, pois o resu- mo de notícias de cada um parece copiado e colado de todos os outros. Na manhã de 5 de novembro de 2019, data escolhida em razão da disponi- bilidade dos arquivos, a France Info e a LCI abriram seu jornal matinal tra- tando da visita do ministro do Inte- rior aos subúrbios [de Paris] após uma agressão de policiais, enquanto a BFM TV e a CNews falaram da deci- são tomada pelo governo de criar co- tas de imigração, para depois passar ao assunto da visita do ministro. De um canal para outro, a abordagem é mais ou menos a mesma: comentá- rios sobre declarações políticas, rea- ções de políticos eleitos em ligação direta com o estúdio, reportagens, “análises” de “especialistas” no estú- dio, “interpretações” feitas pelos edi- torialistas, debates entre personali- dades da direita e do centro, tudo ritmado por “destaques” continua- mente exibidos na parte inferior da tela. Nenhum dos quatro canais ce- deu o microfone aos moradores do bairro em questão. A diferença entre os jornais da manhã de cada um dos quatro canais é marginal. Ela aparece no fim do jor- nal, quando entram as “pautas frias” – como uma “investigação” sobre a qualidade do ar na escola celebrando os méritos da empresa Véolia –, ou nas colunas patrocinadas: Actu Sport, com a Euromaster na CNews, ou L’éco de Pietri, com a Cerfrance na LCI. Nesse mesmo dia, uma viagem de Emmanuel Macron a Xangai e a reti- rada dos Estados Unidos do Acordo de Paris impediram, in extremis, a total ausência de notícias interna- cionais no noticiário matinal. Quem queria saber sobre o resto do planeta precisava ter acordado mais cedo: às 5 da manhã, horário do jornal France 24, veiculado pela France Info, que tratou das manifestações no Iraque contra o governo (apenas a BFM TV e a France Info fizeram uma breve alu- são a isso no fim do jornal) e dos mo- vimentos sociais no Líbano e no Chi- le. Com exceção do canal público, que também passou um jornal afri- cano, as notícias internacionais li- mitavam-se à vida política dos Esta- dos Unidos, que por sua vez se resumia aos tuítes publicados por seu então presidente. Prevendo ser “muito absorvente nesta eleição” (a de novembro de 2020), nas palavras do diretor adjunto de redação Mat- thieu Mondoloni, a rádio France Info enviou uma dezena de jornalistas para sua cobertura in loco, além dos que já faziam o acompanhamento internacional da Radio France. “Dois critérios se combinam para o bom funcionamento dos canais de notí- cias 24 horas: uma forte personaliza- ção e a ideia de contagem regressi- va”, observa a socióloga de mídia Andrea Semprini. Riva 9ABRIL 2021 Le Monde Diplomatique Brasil A flagrante homogeneidade das informações é acompanhada por um marketing agressivo, a fim de cons- truir identidades distintas. Ao longo do dia, peças celebrando as qualida- des únicas do canal pontuam os pro- gramas, e chamadas para os progra- mas nobres surgem no canto da tela. “Entre as 6h e as 8h da noite, quando você chega em casa e quer entender o que aconteceu no dia: junte-se a nós na LCI. A explicação, os fatos, nada além dos fatos, com nossos jornalis- tas, o debate de ideias – inclusive aquelas que incomodam – com nos- sos convidados, e, às 7h30, a opinião dos grandes editores do canal vão aju- dar você a formar sua opinião”, pro- clama David Pujadas em uma chama- da durante o jornal da manhã. Na verdade, os âncoras e seus programas de debate bastam para forjar a identi- dade desses canais. Assim, a busca pelo embate que transforma “deba- tes” em ringues é a marca da CNews, enquanto a BFM TV transforma seu estúdio em cenário para registros te- levisivos os mais variados: painel de especialistas, entrevistas, debate en- tre jornalistas, políticos ou profissio- nais defendendo posições opostas so- bre um tema, visão do repórter da casa, com a infografia de apoio.6 Duas lógicas estruturam a linha editorial dos canais de notícias. Uma é a das grades monopolizadas pelos programas de debate (nos quais o apresentador se esforça para arran- car boas “aspas” dos convidados) e pelos jornais com as últimas notícias (que transformam as aspas em infor- mação). Outra é a da proliferação de programas ao vivo e de “edições especiais” que estouram a grade e prometem aos telespectadores ime- diaticidade (“Tudo o que acontece ao vivo na BFM TV”) e imersão (“Mer- gulhe no centro dos acontecimen- tos”).7 Essas duas lógicas impõem-se em detrimento do documentário e da investigação, que poderíamos imagi- nar ter nesses canais dedicados à informação e que dispõem de um tempo infinito, muitas vezes preen- chido por amenidades, um meio ideal para a exigência de “análise e interpretação” que a mídia tanto se vangloria de fazer. A onipresença dos programas de debate está relacionada à adoção de um modelo de negócio de baixo custo. “Não apenas esses programas funcio- nam, mas, além disso, são baratos”, explica Antoine Genton, ex-apresen- tador da i-Télé (hoje CNews) e presi- dente da associação de jornalistas do canal. “Preencher uma hora no ar com um debate entre três ou quatro pes- soas pagas a menos de 200 euros cada – quando são pagas – leva o custo edi- torial de um programa a mil euros, ao passo que uma hora de programas de reportagem custa dez ou quinze vezes mais. Portanto, há também uma di- mensão econômica na opção de colo- car debates no ar, e eu entendo que um empresário faça isso”.8 Em horário nobre, o programa Face à l’Info, que diariamente dá a palavra ao polemis- ta de extrema direita Éric Zemmour, teria permitido à CNews quadruplicar a audiência da faixa das 7h às 8h da noite em novembro de 2020, em com- paração a 2019 (de 0,8% para 3,3%).9 Esse crescimento automaticamente alimenta as receitas de publicidade, que em 2019 tiveram um salto de 14%, chegando a 24 milhões de euros,10 em- bora o novo proprietário, Bolloré, te- nha reduzido pela metade os recursos financeiros do canal. Os programas de debate estão no centro de sua nova estratégia. “Nin- guém mais assiste aos canais de notí- cias para saber o que está acontecen- do! As novidades estão em nosso celular. A diferença está na expressão. Se estamos tendo sucesso, é porque vamos ao encontro daquilo que a so- ciedade está questionando, do que lhe interessa. Nosso estúdio reflete o que se passa nas ruas”, entusiasma-se Ser- ge Nedjar, diretor da CNews e leal a Bolloré.11 Um reflexo bastante distor- cido, por causa de uma limitação tão antiga como o teatro: para convencer o telespectador a continuar vendo um punhado de sujeitos falando sobre se chove ou faz sol, eles precisam se de- safiar, deslizar, causar escândalo. Es- sa encenação passa pela personaliza- ção dos programas: Bourdin Direct (BFM TV), Le Live Toussaint (com Bru- ce Toussaint, na BFM TV), Brunet Di- rect (com Éric Brunet, na LCI), 24h Pu- jadas (LCI), L’heure des Pros (nome que soa como o de seu apresentador, Pascal Praud, na CNews)... “UM HOMEM SEDUTOR, UM INTELECTUAL...” Capacidade de análise e cultura his- tórica não estão entre as qualidades exigidas. Media trainer do INA Ex- pert, um centro de treinamento pro- fissional, Emmanuel Vieilly traba- lhou, desde 2016, mais de cinquenta jornalistas e apresentadores da Fran- ce Info, BFM TV, France 24, RMC Sport e Public Sénat. “Um programa é uma história, com personagens. Além disso, quando Cyril Hanouna vende Touche pas à mon poste [exibido pela C8, que pertence a Bolloré], ele vende com a cartela de personagens. Se vo- cê colocar ali somente mulheres sen- suais e sem cérebro, você não terá po- lêmica no palco, todo mundo vai concordar. É preciso haver uma mu- lher sensual sem cérebro, um homem sedutor, um intelectualque já escre- veu três livros... Isso inicia a guerra, cria emoção e dá vontade de assistir, para saber quem vai ganhar a luta. É como uma briga de rua, é difícil não olhar”, explica ele imitando a atitude dos protagonistas. Assim, a virada da CNews para a extrema direita deve-se tanto às limi- tações orçamentárias que restringem a produção de informação 24 horas quanto aos interesses econômicos e políticos de Bolloré. Em uma década, a briga de palco necrosou todas as grades de programação, de Informés na France Info a Ça donne le ton na LCI, passando por La Belle Équipe da CNews e BFM Story, no qual Natacha Polony (diretora de redação da revis- ta Marianne), Sophia Chikirou (as- sessora de comunicação) e Thomas Legrand (colunista político da Fran- ce Inter) cruzam fogo com Alain Duhamel sobre assuntos tão diversos como “A França está isolada a respei- to da laicidade?” (17 jan. 2021), “Quem odeia a polícia na França?” (12 out. 2020), “Saúde ou liberdade?” (13 out. 2020) e “Fim da linha para os ‘coletes amarelos’?” (14 set. 2020). Nesse cenário se imprime a velha ladainha sobre a objetividade jorna- lística. “No contexto marcado sobre- tudo pelo surgimento do populismo e pelo desenvolvimento das fake news, tenho clareza de que temos um papel fundamental: informar com rigor, cobrir as notícias em todos os seus aspectos e permitir que elas façam sentido, por meio da análise e da boa reportagem”, anunciou Marc-Olivier Fogiel, recém-nomeado chefe da BFM TV, em um e-mail para funcio- nários em abril de 2019, enquanto a redação saía um tanto abalada do en- contro com os “coletes amarelos”. “Somos uma redação que traz fatos, não comentários. Não comentamos as notícias, nós as entregamos, so- mos seus porta-vozes. Somos apenas um reflexo da sociedade, mostramos o que acontece nela”, afirma, por sua vez, Mondoloni. Além de gerar uma audiência ba- rata, os debates mediados e as entre- vistas de estúdio permitem que os canais convertam em informação as polêmicas que ali surgem – em vez de investir em reportagem: controlado ou não, um deslize torna-se objeto de comentários e reprises em outras mí- dias, que provocam outras reações em cascata. Céline Pigalle, diretora de redação da BFM TV, detalha: “Há diferentes formas de valorizar decla- rações feitas no ar: por meio de títu- los, de retransmissões e dos painéis de debate. Por exemplo, podemos partir de uma declaração e rediscuti- -la em um programa de debate, ou até tentar desenvolvê-la”. Sob o pretexto de perseguir a “verdade”, as questões frontais de Bourdin buscam, acima de tudo, extrair “aspas” que depois serão vistas na forma de GCs, artigos no site da TV BFM, tuítes e, no melhor dos casos, em outras mídias. Um exemplo de fabricação de polêmica pôde ser observado no dia 21 de no- vembro, quando Ruth Elkrief recebeu a prefeita de Paris: Anne Hidalgo, sobre o assassinato de Samuel Paty: “Todos devem ser claros sobre sua relação com a Repú- blica. [...] Temos de empurrar parte da esquerda, os ambientalistas, a sair dessa ideia...” Ruth Elkrief: “... de sua ambiguidade...” Hidalgo: “... de sua ambiguidade”. A conversa deu origem a quatro artigos no site da BFM TV, bem como a remissões na Paris Match, L’Express, Libération, Le Figaro, Le Monde, Le Point, Valeurs Actuelles, CNews... Mais de um mês depois, a France Info ain- da falava no assunto (29 dez. 2020). “Há um fenômeno que todos criti- cam: é que as falas dos editorialistas nos estúdios estão em descompasso com aquilo que os repórteres obser- vam em campo”, observa Astrid, que trabalhou como assistente e chefe de edição da BFM TV e da i-Télé. O movi- mento dos “coletes amarelos”, no in- verno de 2018-2019, gravou na memó- ria essa distância entre os comentários da bancada no estúdio em primeiro plano e a imagem da agitação popu- lar exibida no canto da tela. Essa mi- diatização com aparência de manu- tenção da ordem talvez explique a recepção dura aos videorrepórteres no Arco do Triunfo... “As pessoas têm dificuldades para discernir entre um jornalista e alguém como [o comen- tarista] Christophe Barbier”, lamenta um videorrepórter da BFM TV. O vão protesto dos jornalistas da CNews12 contra Zemmour revelou até que ponto as equipes estão alienadas de seu próprio trabalho, que muitas vezes se resume a destacar comentá- rios de editorialistas e consultores. Uma divisão taylorista de tarefas re- força ainda mais essa expropriação. As reportagens são montadas em Pa- ris por deskers (jornalistas de gabine- te) com base em imagens captadas por terceiros; as imagens captadas pelos videorrepórteres editadas por assistentes de edição ilustram regu- larmente os programas de conversa no estúdio ou de ligação direta entre o estúdio e outros interlocutores. Es- sa fragmentação dilui a responsabili- dade e favorece um jornalismo de poltrona, desconectado do campo. A onipresença dos programas de debate está relacionada à adoção de um modelo de negócio de baixo custoRiva 10 Le Monde Diplomatique Brasil ABRIL 2021 “Eu trabalhava nos canais de notícias e não acreditava na violência poli- cial”, conta Astrid. “Só tínhamos o ponto de vista das forças da ordem, pois, evidentemente, além dos repór- teres e videorrepórteres, ninguém vai a campo. Quando há uma suposta ocorrência de violência policial em um bairro, o repórter especialista em ‘justiça policial’ vai até lá. Suas fontes são quase todas policiais, mas ele faz seu trabalho de repórter: vai falar com a família, com os advogados etc. Ele é cuidadoso. Já os editores só ou- vem o consultor. Eles ouvem Domini- que Rizet, que está em todas as listas de WhatsApp da polícia de Île-de-France...” Originalmente, porém, a BFM TV e a i-Télé focavam mais o ao vivo do que a bancada de estúdio. Era em campo que os novos canais de notí- cias 24 horas queriam se destacar. A ideia era ser o inverso da LCI, símbo- lo do jornalismo sentado. Na década de 1990, o canal do grupo Bouygues ampliou suas parcerias: com Les Échos, RTL e Le Monde para o progra- ma político Le Grand Jury; com Le Monde, novamente, cujo diretor de redação na época, Edwy Plenel, en- tão receptivo aos encantos da “im- prensa patrocinada”, apresentava to- do sábado, ao meio-dia, um programa de promoção literária, o Le Monde des idées. A i-Télé queria refle- tir a “França exata”, e a BFM TV valo- rizava o “ao vivo em primeiro lugar”. As tecnologias de teletransmissão reavivaram uma velha ilusão jorna- lística, a de registrar e transmitir a “realidade” no momento em que ela acontece, como a única forma de captar os “fatos” sem alterá-los. Essa ideologia, enraizada tanto nas direções editoriais quanto entre os partidários da exclusividade da notícia, negligencia um fato funda- mental: o ao vivo mais produz do que relata o acontecimento. Basta que ocorra um incidente fora do normal (pelo menos o normal da televisão) para que o programa dê lugar a edi- ções especiais. Às 4 da tarde do sába- do dia 31 de outubro de 2020, a reda- ção da France Info recebeu um alerta sobre um atentado em Lyon: “No con- texto atual, partimos do princípio de que poderia ser um ataque terrorista, então entramos com edição espe- cial”, relata um jornalista da France Info. “Quando constatamos que era um caso de direito comum, decidi- mos sair: nesse momento, tivemos de parar, pois estávamos dando ao even- to uma importância que ele não ti- nha.”13 É mais uma vez o estúdio que estrutura a edição especial: para evi- tar horas de transmissão ao vivo em que nada acontece, os canais deixam a melhor parte para a tagarelice em palco. “Nós tínhamos muitos convi- dados para as edições especiais, e não podia ser diferente: precisamos preencher o tempo no ar, e os ele- mentos de informação chegam a con- ta-gotas, ou pelo menos não com ra- pidez necessária para que possamos renovar as notícias no ritmo que gos- taríamos”, conta Benjamin, ex-apre- sentador da i-Télé. Diante da maldita realidadeque se recusa a acontecer no ritmo do ao vivo, a solução é a bancada de especialistas. Nem todo acontecimento tem apelo para o ao vivo. Os atentados e as perseguições a terroristas são os campeões desse apelo, a ponto de a LCI ter feito da tomada de reféns do voo da Air France no aeroporto de Marselha, em 24 de dezembro de 1994, sua certidão de nascimento – uma “sorte incrível”, nas palavras de Éric Revel, diretor-geral do canal de 2010 a 2015. Mas os acontecimentos ricos em imagem e em suspense, que se prestam à dramaturgia, como o movimento dos “coletes amarelos” ou a eleição presidencial norte-ame- ricana, não aparecem todo dia para ocupar todo o tempo de antena. Quando eles não existem, “o ao vivo não tem outra escolha, para preen- cher seu próprio tempo, a não ser so- licitá-los, estimular seu surgimento e até provocá-los, às vezes acabando por criá-los do zero”, escreve a soció- loga Andrea Semprini.14 Essa é a lógi- ca das vertiginosas transmissões, nos canais de notícias, de informações não verificadas, como a morte de Martin Bouygues, em 28 de fevereiro de 2015, a prisão de Xavier Dupont de Ligonnès, em 11 de outubro de 2019, o ataque ao hospital Pitié-Salpêtrière durante a manifestação do 1º de Maio de 2019, ou a exibição de armas de guerra por traficantes no distrito de Mistral, em Grenoble, em 26 de agos- to de 2020. Desmentidas logo após se- rem anunciadas, essas infladas men- tiras somam-se à já robusta lista de fake news disseminadas por aqueles que as denunciam. COM OS POLÍTICOS, UMA DEPENDÊNCIA MÚTUA Seja fabricando eventos “prontos pa- ra usar” ou jogando com a concorrên- cia entre canais para impor sua men- sagem, comunicadores e políticos se aproveitam dessa lógica. A façanha do paraquedista Félix Baumgartner, que saltou da estratosfera, em 14 de outubro de 2012 (em uma operação orquestrada pela marca Red Bull), as confissões de Jérôme Cahuzac, mi- nistro responsável pelo orçamento no governo de Jean-Marc Ayrault acusado de fraude fiscal: são muitas as “notícias” cuidadosamente con- feccionadas pelos serviços de comu- nicação. Em 2013, Cahuzac e sua as- sessora, Anne Hommel, impuseram à BFM TV as condições para uma “en- trevista de confissão”. Eles decidiram com o jornalista encarregado da en- trevista (Jean-François Achilli, agora apresentador do programa Les Infor- més, da France Info), o local e o horá- rio da transmissão: às 18 horas, para favorecer as reprises nos telejornais noturnos. Além disso, “se você achar que o convidado não disse o suficien- te durante a entrevista, isso não im- pede, depois de encerrá-la, de conti- nuar questionando o que foi dito... Na bancada há alguém para dizer: ‘Infe- lizmente nessa entrevista queríamos algumas respostas que o convidado não deu’”, destaca Céline Pigalle. E entram os comentários. A relação entre os governantes eleitos e os canais de notícias é de in- terdependência. “Alguns líderes polí- ticos (representantes eleitos, dirigen- tes partidários) gostavam muito de nossos programas. As bancadas de debate conferiam-lhes uma visibili- dade que não tinham antes. Estáva- mos lhes dando uma tribuna, e eles logo entenderam isso. O interesse de um canal de notícias é não apenas re- ceber o convidado, mas poder recor- tar suas falas e veiculá-las ao longo do dia, ou durante boa parte dele”, detalha o ex-apresentador da i-Télé. Fazer da LCI a porta de entrada da TF1 para o segundo escalão da vida pública: a ideia foi apresentada por Christian Dutoit quando o canal foi criado, em 1994. “Terão acesso a nos- so canal figuras da política que nun- ca tiveram acesso à mídia informati- va nacional: prefeitos das grandes cidades, presidentes dos conselhos gerais e regionais, alguns parlamen- tares. Em resumo, todos os nossos parceiros”, dizia na época.15 E, aces- soriamente, eventuais patrocinado- res de obras públicas realizadas por Bouygues... A fórmula não exclui pro- gramas de qualidade, como a entre- vista política de domingo à noite, apresentada por uma jornalista, Amélie Carrouer, que claramente tra- balha previamente na pauta. Apesar das regras decretadas pelo Conselho Superior do Audiovisual (CSA), “o igualitarismo exibido não exclui pequenos arranjos”, admite em seu livro um ex-diretor da BFM TV. “Nos canais de notícias, as aren- gas de um Philippe Poutou, de uma Eva Joly ou de uma Nathalie Ar- thaud16 serão mais oferecidas aos te- lespectadores notívagos do que as do favorito das urnas”.17 Em dezembro passado, o líder ambientalista Yan- nick Jadot, cujo partido tinha tempo de antena a ser contemplado, viu uma entrevista sua na LCI ser repri- sada no meio da noite 31 vezes duran- te quatro noites consecutivas...18 Das bancadas de profissionais ta- garelas que se esforçam para alimen- tar a polêmica do dia às transmissões especiais nas quais se exercita a arte de preencher o vazio, as herdeiras da CNN produziram, após trinta anos de desenvolvimento ininterrupto, uma formidável negação do princípio fundador da indústria de mídia: para estarmos mais bem informados, pre- cisamos de mais informação. *Sophie Eustache é jornalista. Autora de Bâtonner. Comment l’argent détruit le journa- lisme [Censurado. Como o dinheiro destrói o jornalismo], Éditions Amsterdam, Paris, 2020. 1 Christian Delporte, “Quand l’info devient ins- tantanée” [Quando as notícias se tornam ins- tantâneas], La Revue des Medias, 20 out. 2016. Disponível em: https://larevuedesme- dias.ina.fr. 2 Citado por Thierry Devars, La Politique en continu. Vers une “BFMisation” de la commu- nication? [Política 24 horas. Rumo a uma “BF- Mização” da comunicação?], Les Petits Ma- tins, Paris, 2015. 3 Jean-Jacques Bourdin, L’Homme libre [O ho- mem livre], Cherche Midi, Paris, 2014. 4 Ler Maxime Audinet, “La voix de Moscou trouble le concert de l’information internatio- nale” [Voz de Moscou perturba o concerto das notícias internacionais], Le Monde Di- plomatique, abr. 2017. 5 Números: Médiamétrie. 6 Cf. Maxime Friot, “BFM TV, mode d’emploi” [BFM TV, modo de usar], Action Critique Mé- dias, 30 jun. 2020. Disponível em: www.acri- med.org. 7 Thierry Devars, “Élections présidentielles et information en continu: les mutations télévi- sées du récit de campagne” [Eleições presi- denciais e notícia 24 horas: as mudanças tele- visionadas da narrativa de campanha], Télévision, n.8, Paris, 2017. 8 Mathieu Deslandes, “‘Le journalisme, c’est pas du spectacle’: rencontre avec un repenti des chaînes info” [“Jornalismo não é espetá- culo”: conversa com um arrependido dos ca- nais de notícias], La Revue des Médias, 14 out. 2020. 9 Benjamin Meffre, “Audiences: comment CNe- ws enchaîne les records en ce début de sai- son” [Audiências: como a CNews acumula recordes nesse início da temporada], Pure Médias, 4 nov. 2020. Disponível em: www. ozap.com. 10 Jamal Henni, “CNews: l’arrivée d’Éric Zem- mour n’a pas fait fuir les annonceurs... pour l’instant” [CNews: a chegada de Éric Zem- mour não espantou os anunciantes... até o momento], Capital.fr, 31 ago. 2020. 11 François Rousseaux, “Serge Nedjar, patron de CNews: ‘On ne s’interdit aucun thème ni inter- venant’” [Serge Nedjar, chefe da CNews: “Aqui não há assunto nem convidado proibi- do”], Le Parisien, 27 jun. 2020. 12 “Nous, journalistes de Cnews, ne sommes pas Éric Zemmour. Nous sommes une rédac- tion” [Nós, jornalistas da CNews, não somos Éric Zemmour. Nós somos uma equipe de re- dação], comunicado à imprensa da Associa- ção de Redatores da CNews, 1º out. 2020. 13 O assassinato de um padre ortodoxo na- quele dia em Lyon foi motivado por um caso de adultério. 14 Andrea Semprini, CNN et la mondialisation de l’imaginaire [A CNN e a globalização do imagi- nário], CNRS Éditions, Paris, 2000. 15 Citado por Pierre Péan e Christophe Nick, TFI, un pouvoir [TF1, um poder], Fayard, Pa- ris, 1997. 16 Respectivamente, candidato do Novo Partido Anticapitalista (NPA) nas eleições presiden-ciais de 2012 e 2017, magistrada ambientalis- ta e porta-voz do partido Lutte Ouvrière. 17 Guillaume Dubois, Priorité au direct [Ao vivo em primeiro lugar], Plon, Paris, 2015. 18 Pauline Bock, “LCI remplit ses quotas de gau- che la nuit” [LCI preenche suas cotas de es- querda à noite], Arrêt sur Images, 10 dez. 2020. Disponível em: www.arretsurimages.net. Riva 11ABRIL 2021 Le Monde Diplomatique Brasil O desaparecimento do debate A proliferação de fake news ilustra a invasão do espaço público pela mentira. Seria simples incriminar as redes sociais e os mentirosos que perturbam a vida pública. No entanto, sufocando a livre e racional troca de ideias sobre a “comunicação”, nossas democracias destroem o sentido das palavras e impedem que a verdade surja POR ANNE-CÉCILE ROBERT* NÃO HÁ DEMOCRACIA SEM VERDADE, NÃO HÁ VERDADE SEM DIÁLOGO A evolução das mentalidades e o progresso das ideias redese- nham, em cada época, os con- tornos daquilo que a sociedade escolhe para si mesma como sendo o Bem. Existe, portanto, uma parte ne- cessária de indeterminação no inte- resse geral. Por exemplo, a lenta con- quista dos direitos sociais a partir do século XVIII e, sobretudo, do XIX ilus- tra o caráter ao mesmo tempo contin- gente e evolutivo do interesse geral. Com a democratização, este deve se aproximar dos anseios do povo e, pa- ra esse fim, submeter-se a uma deli- beração pública sancionada pelo su- frágio universal. Uma democracia viva, de cidadãos atuantes e atentos aos negócios públicos, em princípio demonstra a extensão dos possíveis, desvela as opções existentes e fornece uma visão mais ampla e, assim, mais justa, mais verdadeira da realidade. Aqui, a verdade desempenha um pa- pel crucial porque, sem ela, a deter- minação do interesse geral não passa de um disfarce dos interesses parti- culares. Ele é, de algum modo, falso. A verdade está ligada à obrigação de “transparência” dos poderes pú- blicos, mas não se resume a isso. Ora, desde os anos 1990, a fronteira entre ambas vem ficando cada vez mais fluida. Um poder autoritário pode muito bem defender os interesses de casta com a maior transparência. O cinismo que rompe com a linguagem oficial afetada, como o do ex-presi- dente norte-americano Donald Trump, pode se passar por uma transparência habilmente elaborada. Não se trata aqui de verdade, pois es- sa atitude é intrinsecamente unilate- ral e exclui toda partilha genuína do espaço social e intelectual. Um go- verno transparente pode, portanto, ser um governo falso. Os programas de ajuste estrutural, impostos aos países do Sul pelas instituições fi- nanceiras internacionais, preconiza- vam ao mesmo tempo medidas eco- puramente individuais e desligados da organização da manutenção da or- dem. Podemos, com razão, ver nessas recusas uma nova demonstração do “desconhecimento ideológico da ideologia”, tão bem analisado por Claude Lefort,5 com as classes diri- gentes, presas a determinadas esco- lhas filosóficas, procurando eliminar suas consequências concretas pela re- jeição das palavras que as designam. Para que exista “pós-verdade”, é preciso que exista “verdade”, isto é, um espaço público de discussão “li- vre e racional” no sentido que lhe da- va Condorcet – a qual permitisse não apenas descrever o real, mas também pô-lo em discussão. Ora, uma situa- ção dessa não existe mais, pois os es- paços de discussão desaparecem em proveito de uma tagarelice incessan- te, superficial. Alguns recusam o de- bate; outros fingem aceitá-lo, mas substituindo-o por uma forma de diálogo mais próxima da invectiva. As sociedades modernas padecem de uma dolorosa carência de política, aliada à gestão leviana das reivindi- cações particulares, ao policiamento do espaço público e à adoção dos im- perativos contábeis a serviço de pro- jetos muitas vezes improvisados ou mal concebidos. Daí a constatação, amplamente disseminada, de que as “palavras” já não têm “sentido”. O re- curso aos elementos de linguagem constitui a forma acabada de um des- prezo absoluto pela verdade e a ex- pressão de uma institucionalização cínica da mentira. Essa evolução está bem perto de um autêntico suicídio da política, que naufraga com mau tempo. A capacidade de dar nomes não é um atributo monárquico unila- teral que confere à autoridade pública um poder de reconhecimento arbi- trário. É por delegação da coletivida- de e sob seu controle que designamos as coisas e os fatos. Ora, a coletivida- de não pode exprimir verdades sem admitir o debate e as diferenças de pontos de vista. Do contrário, a ver- dade social não pode aparecer. *Anne-Cécile Robert é jornalista do Le Monde Diplomatique e autora do recém- -publicado Dernières nouvelles du men- songe [Últimas notícias da mentira], de on- de este texto foi tirado. 1 “Prise directe” [Contato direto], France 2, 25 jan. 2011. 2 Eles invocam também argumentos mais práti- cos, como a dificuldade extra ocasionada pela necessidade de demonstrar o caráter propriamente antifeminino de um assassinato. 3 Christophe Dejours, Souffrance en France. La banalisation de l’injustice sociale [Sofrimento na França. A banalização da injustiça social], Points, Paris, 2014. 4 Commission des Lois de l’Assemblée Natio- nale, Paris, 28 jul. 2020. 5 Claude Lefort, “L’ère de l’idéologie” [A era da ideologia], Encyclopaedia Universalis, Sym- posium – Les Enjeux, tome 2, Paris, 1994. nômicas e regras de “boa governança”, situando em primeiro lugar uma ges- tão transparente dos poderes públi- cos (manutenção rigorosa das contas públicas sob a supervisão dos órgãos de controle). Os países que seguiram essas prescrições ao pé da letra viram abrir-se um abismo entre as institui- ções e as populações, além de sofre- rem golpes de Estado e violências pós-eleitorais (Costa do Marfim, Quênia, Mali, para só citar países africanos). A ordem social, caracteri- zada pela extrema desigualdade, po- dia estar apoiada em uma gestão transparente, mas não se adequava às realidades da vida cotidiana dos habitantes. É, pois, necessário que se garanta a liberdade de expressão e de deliberação pública para abrir espa- ço à determinação da verdade pelos cidadãos esclarecidos. Entre as funções da política, a de dar nome às coisas é uma das mais delicadas e essenciais, já que permite determinar os pontos de referência e distinguir elementos a priori confu- sos, qualificando-os. Arte da palavra e do ordenamento do real, a política designa os objetos, as funções, as si- tuações; desse modo, atribui posi- ções, estabelece hierarquias e confe- re sentido à realidade. Por exemplo, qualificar de “encargos” as “cotiza- ções sociais” é revelador da escolha de uma ordem social. Segundo suas convicções, os responsáveis políticos empregam uma ou outra expressão. Evocar, como fez a jornalista Béatrice Schönberg, o “assassinato de Luís XVI” e não sua “execução” significa que a assembleia que julgou a monar- quia deposta era ilegítima e, na reali- dade, cometeu um crime.1 Os exem- plos são numerosos. Como exercem uma função públi- ca, representativa, os dirigentes con- ferem às suas palavras uma autorida- de inigualável. Os governantes podem não deter o poder de dar no- mes, mas ocupam um lugar essen- cial, que consiste em selar o consenso estabelecido na sociedade. As reivin- dicações dos cidadãos, das associa- ções e dos partidos se traduzem tam- bém por escolhas terminológicas que exprimem sua análise do mundo ou de uma realidade específica. O obje- tivo consiste, então, em dar a conhe- cer essas escolhas e impô-las como símbolo de aquiescência da socieda- de. Os movimentos feministas, por exemplo, lutam a fim de inserir no código penal o termo “feminicídio”, para que as violências perpetradas contra as mulheres sejam reconheci- das em sua especificidade. Os pode- res públicos hesitam em efetuar essa distinção e consideram que o termo “homicídio” se aplica a todos, não importa o sexo.2 TAGARELICE INCESSANTE
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