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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E METODOLOGIA DAS CIÊNCIAS BEHAVIORISMO RADICAL, ÉTICA E POLÍTICA : ASPECTOS TEÓRICOS DO COMPROMISSO SOCIAL (vol. I) Alexandre Dittrich1 Tese desenvolvida sob a orientação do Prof. Dr. José Antônio Damásio Abib, apresentada ao Programa de Doutorado em Filosofia da Universidade Federal de São Carlos, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor SÃO CARLOS/SP 2004 1 Bolsista FAPESP (processo 02-02734-7). Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitária/UFSCar D617br Dittrich, Alexandre. Behaviorismo radical, ética e política: aspectos teóricos do compromisso social / Alexandre Dittrich -- São Carlos : UFSCar, 2004. 480 p. Tese (Doutorado) -- Universidade Federal de São Carlos, 2004. 1. Behaviorismo (psicologia). 2. Cultura. 3. ètica. 4. Política cultural. I. Título. CDD: 150.1943 (20a) RESUMO Utilizando-se do método epistemológico-hermenêutico e da análise estrutural de texto, o presente trabalho visa, inicialmente, expor os fundamentos filosóficos e metodológicos da análise do comportamento. Para tanto, busca desenhar uma metáfora que – diferentemente das tradicionais metáforas arquitetônicas – retrate a irregularidade e a assimetria das relações entre método e metafísica, bem como o controle exercido pelas conseqüências da atividade filosófica e científica sobre sua própria configuração. Em seguida, aborda-se o modelo de seleção por conseqüências – fundamento das explicações causais na análise do comportamento –, com o objetivo de avaliar as semelhanças e diferenças entre os processos seletivos nos três níveis estabelecidos pelo modelo. A partir dessa avaliação, procura-se extrair um julgamento sobre a validade das analogias ali contidas, assim como sobre seus méritos e limites. Na seqüência, busca-se caracterizar o sistema ético skinneriano – analisando, em especial, a adeqüabilidade da sobrevivência das culturas enquanto diretriz ética fundamental da tecnologia comportamental e a tensão entre os aspectos descritivos e prescritivos daquele sistema. Procura-se, em seguida, caracterizar a filosofia política skinneriana, a partir de suas concepções sobre agências de controle governamentais e do modelo de governo apresentado no projeto utópico skinneriano. Por fim, busca-se localizar o behaviorismo radical no espectro da filosofia política, através de uma análise preliminar sobre as possíveis similaridades e divergências entre esta filosofia e as correntes comumente identificadas pela filosofia política tradicional. Paralelamente, o trabalho aponta algumas das conseqüências éticas e políticas de suas conclusões para a prática dos analistas do comportamento. Palavras-chave: behaviorismo radical; cultura; ética; política. AGRADECIMENTOS Tudo o que você faz, permanece Muito tempo após a sua partida - Neil Finn Essas são as últimas palavras que escrevo para este trabalho – e são, sem dúvida, as mais prazerosas. Esse prazer, porém, surge-me acompanhado por uma vaga melancolia. Durante os últimos quatro anos de minha vida, dediquei minhas melhores energias para a realização dessa tese de doutorado. Quando olho para trás, vejo-a em seus inícios, ainda como uma dissertação de mestrado, ainda sem forma e sem direção. Mas vejo muito mais: vejo-me deixando para trás a segurança de Blumenau – e como foi difícil!; vejo-me chegando a São Carlos em um dia de chuva, feliz mas apreensivo, com algumas roupas, alguns discos e alguns livros; vejo-me dando um último abraço em minha mãe... foi como o derradeiro corte do cordão umbilical! Consigo lembrar-me de muitos bons momentos em minha infância e juventude, mas os quatro anos que passei em São Carlos estão entre os mais felizes de minha vida. Vou tentar explicar os motivos disso (embora não esteja certo do interesse do leitor em tais pormenores!). Em primeiro lugar, aqui encontrei minha realização intelectual. Sob esse aspecto, devo meus principais agradecimentos ao meu orientador, Prof. Abib. Já tive a oportunidade de falar pessoalmente a ele muito do que relatarei a seguir – e espero que ele me perdoe a indiscrição de tornar isso público! Prestei os exames para o mestrado no Departamento de Filosofia sabendo que o Prof. Abib fazia parte dele – e por causa disso. Ainda na graduação, via-me intrigado e estimulado por alguns de seus textos. A partir desses textos, descobri que o behaviorismo radical podia, sim, responder às minhas inquietações intelectuais. Contudo, essas inquietações permaneceriam, provavelmente, sem resposta, não fosse a confiança depositada em mim pelo Prof. Abib, do começo ao fim de nosso trabalho conjunto. O que eu pedia do behaviorismo radical não era muito: basicamente, eu queria compreender o mundo e achar um sentido na vida. Eu não sou pretensioso, mas acho que consegui! Contudo – e isso é o mais importante –, hoje consigo ver nitidamente que as verdades que me servem e satisfazem não precisam ser as verdades que servem e satisfazem ao outro (e nem por isso o outro precisa ser meu inimigo!). Uma das vantagens de se estudar filosofia e psicologia é que, não raro, o crescimento intelectual traduz-se em crescimento pessoal. Por tudo isso, Prof. Abib – por ter me ajudado a crescer –, sou-lhe e serei sempre muito grato. O Departamento de Filosofia da UFSCar serviu-me como uma espécie de segunda casa em São Carlos. Ali, sempre me senti absolutamente à vontade. E quantas coisas importantes em minha vida aconteceram naquele pequeno espaço! Gostaria de agradecer a todas as pessoas que fazem o Departamento – em especial, aos professores com quem tive a oportunidade de aprimorar meus conhecimentos e à Rose, secretária do Departamento, que vou lembrar também pela presteza, mas sobretudo pelo bom humor e pelo carinho. Alguns dos professores do Departamento, e outros de fora dele, dispuseram-se, gentilmente, a participar de minhas bancas de qualificação e defesa. Sua contribuição para o progresso de minhas reflexões e para a qualidade deste trabalho foi inestimável. Tenho orgulho em citá-los e agradecê-los, pois sei que representam o melhor em suas respectivas áreas: Bento Prado Jr., Bento Prado Neto, Deisy das Graças de Souza, João de Fernandes Teixeira, Júlio César C. de Rose, Kester Carrara e Tereza Maria de Azevedo Pires Sério. Quando cheguei a São Carlos, precisei contar com a ajuda financeira de meus pais por alguns meses – não bastasse tê-lo feito durante toda a minha vida até ali, quer estivesse empregado ou não! Pouco tempo após minha entrada no mestrado, enviei à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) uma solicitação de bolsa – que, para minha alegria, foi aprovada. Isso me permitiu tirar o máximo proveito de meus estudos. Para além do apoio financeiro, o alto grau de exigência acadêmica da FAPESP cria em seus bolsistas uma disciplina intelectual que contribui marcadamente para seu desempenho. Longe de sentir-me compelido a cumprir uma tarefa formal, quero registrar meu sincero agradecimento às pessoas que fazem a FAPESP – e, em especial, ao assessor(a) anônimo(a) que avaliou meu trabalho durante os últimos quatro anos. Penso ter honrado todo o investimento realizado, emborasaiba que meu trabalho está apenas começando. Ao iniciar meus estudos na UFSCar, tive a grata satisfação de perceber que conviveria com diversas pessoas que partilhavam de meus interesses intelectuais. Com essas pessoas, aprendi tanto quanto em meus estudos formais. Nesse agradável ambiente, também surgiram minhas primeiras amizades em São Carlos – e com quanta saudade relembro desses primeiros momentos! Para muitos de nós que chegávamos à cidade e ao mestrado naquele momento – alguns vindos de longe –, a apreensão inicial transformou-se, rapidamente, no prazer de compartilhar essas novas experiências com pessoas de espírito aberto e amigável: a Naiene, a Fátima, a Fernanda, o Isaías, o Kinouchi, a Léa e o Alessandro, o Manoel, a Maria, a Marília, o Péricles, o Saulo... As pessoas vão e vêm; assim é a vida. Com alguns desses primeiros amigos, ainda tenho bastante contato; com outros, nem tanto; e com outros, nenhum. Mas todos estão eternizados em minha memória como a minha primeira “turma” em São Carlos. Com o passar do tempo, conforme ia me habituando à cidade, fui conhecendo muitas outras pessoas, dentro e fora do ambiente acadêmico. Excelentes amizades surgiram a partir daí. Fiquei um bom tempo imaginando formas de agradecer a todas essas pessoas, mas sem ter que citar os nomes delas! Quando começo a pensar em todas as pessoas que conheci nesses quatro anos, vejo que são muitas, e tenho medo de esquecer alguém. Eu poderia, simplesmente, recorrer àquela velha frase: “Vocês sabem quem são!” Mas isso seria muito impessoal – e, além disso, é um recurso demasiadamente cômodo, pois transfere a responsabilidade para o leitor. Também pensei em solucionar o problema dizendo algo mais ou menos assim: “Considere-se lembrada, abraçada e agradecida toda e qualquer pessoa com quem eu tive a oportunidade de tomar uma cerveja no saudoso Bar da Tia ou na chácara da Lili”. (Catedrais, armazéns, ócios e cafés, que me desculpem!) Não consigo lembrar de ninguém entre essas pessoas com quem eu não tenha tido, na pior das hipóteses, uma conversa simpática – e, na melhor, uma grande amizade. Porém, é claro que, dentre as tantas pessoas que conhecemos durante nossas vidas, algumas tornam-se especiais – afetivamente especiais. Às vezes, é difícil distinguir amizades de meros encontros casuais – e, afinal, uma pessoa não tem menos valor apenas pelo fato de não termos tido a chance de aprofundar nossos laços com ela. Mas eu sei que os nomes exercem um certo poder de encantamento sobre seus proprietários – portanto, vou correr o risco. Andréa, Camila, Carmen, Cláudia, Dani, Fernanda e Lili: jamais antes em minha vida eu havia tido um círculo de amizades do qual sentisse tanto orgulho ao estar perto, e tanta saudade ao estar longe. Vocês foram minha alegria e meu abrigo durante uma etapa muito importante da minha vida, e por isso eu as guardarei na lembrança para sempre, com todo o cuidado e o carinho que vocês merecem. Apenas duas pessoas acompanharam toda a minha trajetória em São Carlos, do início ao fim. Para minha sorte, elas se revelaram minhas maiores amizades, meus pontos de apoio, minha família longe de casa. Chan: se bem me lembro, você foi a primeira pessoa com quem tive contato ao chegar de mudança em São Carlos; e – ironia do destino! – provavelmente será também a última! Lembro-me bem da Casa do Estudante, quando dividíamos a moradia com mais treze ou quatorze pessoas, e contávamos cada centavo para poder comprar o básico. Foi uma época difícil, mas também muito divertida! Dizem que a primeira impressão é a que fica, mas você me fez mudar de idéia. Como você sabe, eu te achava antipático e arrogante quando te conheci. Mano, como pode alguém se enganar tanto assim? Não só descobri o quanto você é gentil e prestativo, como tive com você muitas lições de ética e honestidade, nas pequenas coisas do dia-a-dia. Eu, que passei quatro anos estudando ética na academia, descobri o quanto podia aprender com uma pessoa completamente “leiga” no assunto! Acredite: eu morei com muitas pessoas em São Carlos, mas só com você eu me sentia – e ainda me sinto – como se estivesse em casa. Chinês e Galego: uma dupla imbatível! Naiene: você sabe o quanto foi especial para mim. Você foi meu ponto de apoio, minha referência em todos os momentos – e eu tentei, na medida do possível, retribuir isso. Uma nostalgia alegre e levemente dolorosa toma conta de mim quando olho para trás e lembro tudo o que passamos juntos – como nossa amizade foi evoluindo até tornar-se o que é hoje: a forma mais pura e honesta de relacionamento que pode haver entre duas pessoas. Eu aprendi a dar muito valor à nossa amizade – primeiro, porque ela é fruto de uma longa construção; mas sobretudo porque ela é rara, muito rara... Sempre tememos por esse momento, mas chegou, enfim, a hora de trilharmos caminhos diferentes. A lembrança e o carinho permanecerão para sempre, é claro – mas as amizades se sustentam pela convivência, e saber disso é o que me dói mais. Sei que, nesse momento, a dor que sinto é apenas uma fração da dor que ainda virá. Mas também sei que a vida seguirá seu rumo – e que, como dizem, o tempo tudo cura. Espero que a vida ainda nos dê a chance de muitos reencontros. Em cada um deles, nossa história nos lembrará do que fomos um para o outro – dos sentimentos que não podem ser comprados. Minhas raízes estão em Blumenau. No momento em que redijo essas palavras, ainda não sei se voltarei para junto delas – um dia voltarei, mas não sei quando. Lá estão algumas das pessoas mais importantes em minha vida. Elas também estiveram junto de mim nos últimos quatro anos, e sei que estarão para sempre. Meu amigo Mueller: ainda somos muito novos, mas é impressionante olhar para trás e ver que já temos vinte anos de amizade. Quantas pessoas da nossa idade preservam amizades por tanto tempo? Fico feliz em saber que nossos interesses convergem cada vez mais, pois é isso o que nos une. Espero que nossas vidas façam o mesmo – e sei que farão. Meu irmão Cícero e minha cunhada Adriana: a vida seria terrível se não tivéssemos com quem partilhar alegrias e tristezas. É por isso que valorizo, sinceramente, a presença e o companheirismo de vocês. Todos ainda temos muito a aprender da vida – mas dizem que aprender em grupo é muito melhor! Alegra-me pensar que estaremos juntos, lado a lado, nesse aprendizado – celebrando a vida e, se necessário, sofrendo por ela. Meus pais, Haraldo e Úrsula: sei que ninguém, mais do que vocês, trabalhou e torceu para o meu sucesso. Nesses últimos quatro anos, passamos por alguns momentos bastante difíceis – e é nessas horas, sem dúvida, que pais e filhos provam seu amor recíproco. Nada me doeu mais do que deixá-los e ir para longe. Parece-me que, na vida, todos procuram por segurança – e vocês sempre foram, para mim, a tradução perfeita dessa palavra. Ao deixar nossa cidade – ao deixar vocês – senti- me, por alguns momentos, como se essa segurança me faltasse. Mas hoje percebo, com toda a clareza, que o amor incondicional que vocês me dedicam ignora qualquer distância – e como sou feliz por isso! Pai e mãe: devo-lhes tudo; devo-lhes a vida. Ao leitor, peço desculpas por acrescentar mais páginas a um trabalho já relativamente volumoso. Trabalhei basicamente com palavras nos últimos quatro anos, e aprendi a gostar muito delas. Tento usá-las com economia e parcimônia, para que minha afeição não se transforme em excesso – mas nem sempre consigo! Com essas palavras – essas últimas palavras –, sinto-me como que encerrando um capítulode minha vida, marcado por novas experiências, novas descobertas, novos amores e novas amizades. Em meu coração, experimento uma inédita e estranha conjunção de sentimentos, cada um deles buscando sua expressão através das palavras que escrevo. (Novamente as palavras! Nunca antes, como agora, percebo quão limitadas são elas!) Sinto uma grande satisfação pelo dever cumprido; sinto excitação e apreensão, pelos desafios que me esperam na construção de minha trajetória profissional; e sinto, sobretudo, uma profunda, indizível tristeza por deixar para trás tudo o que esse pequeno pedaço do mundo chamado São Carlos significou para mim. . SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................... 01 1. O BEHAVIORISMO RADICAL E A CIÊNCIA DO COMPORTAMENTO .............................................. 06 1.1. Método e metafísica: o projeto científico de Skinner ................................ 06 1.1.1. O método skinneriano: a análise experimental do comportamento .. 34 1.1.2. A metafísica skinneriana: ontologia .............................................. 60 1.1.3. A metafísica skinneriana: epistemologia ........................................ 71 Adendo: O conceito skinneriano de verdade ................................. 104 2. O MODELO DE SELEÇÃO DO COMPORTAMENTO POR CONSEQÜÊNCIAS .................... 121 2.1. O que é selecionado? ............................................................................. 123 2.1.1. Nível 1 ..................................................................................... 123 2.1.2. Nível 2 ..................................................................................... 126 2.1.3. Nível 3 ..................................................................................... 131 2.2. Reprodução e variação das unidades de seleção ....................................... 142 2.2.1. Nível 1 ...................................................................................... 143 2.2.2. Nível 2 ...................................................................................... 145 2.2.3. Nível 3 ...................................................................................... 159 2.3. Como ocorre a seleção? .......................................................................... 169 2.3.1. Nível 1 ...................................................................................... 170 2.3.2. Nível 2 ...................................................................................... 172 2.3.3. Nível 3 ...................................................................................... 173 2.4. Méritos e limites do modelo de seleção por conseqüências .......................... 199 3. O SISTEMA ÉTICO SKINNERIANO E A TECNOLOGIA DO COMPORTAMENTO ................................ 210 3.1. A questão dos valores na filosofia moral skinneriana .............................. 211 3.2. A sobrevivência das culturas enquanto valor na filosofia moral skinneriana ....................................................... 239 3.3. O sistema ético skinneriano e a tecnologia do comportamento ................... 268 4. AGÊNCIAS GOVERNAMENTAIS E FILOSOFIA POLÍTICA SKINNERIANA ................................... 287 4.1. Filosofia política skinneriana: considerações preliminares ......................... 287 4.2. Filosofia política skinneriana: um roteiro de análise ............................... 303 4.2.1. Agências de controle na filosofia política skinneriana .....................304 4.2.2. Agências governamentais na filosofia política skinneriana ............. 307 4.2.3. A crítica de Skinner à filosofia política e às agências governamentais ......................................................... 311 Adendo 1: O welfare state e o behaviorismo radical ........…………… 317 Adendo 2: A economia em Walden II e os dois efeitos das conseqüências reforçadoras positivas ................................... 323 5. A UTOPIA SKINNERIANA E A FILOSOFIA POLÍTICA DO BEHAVIORISMO RADICAL ........................... 329 5.1. Características gerais de Walden II ....................................................... 329 5.2. A agência governamental em Walden II e a filosofia política skinneriana ........................................................... 333 5.3. Possibilidades de universalização da utopia skinneriana: a expansão do modelo Walden II .......................................................... 377 5.4. O analista do comportamento enquanto agente político .............................389 5.4.1. O projeto utópico de Skinner enquanto alternativa de ação política ......................................... 395 5.4.2. Alternativas de ação política não comprometida com projetos utópicos ..................................... 400 6. A POSIÇÃO DO BEHAVIORISMO RADICAL NO ESPECTRO DA FILOSOFIA POLÍTICA ........................... 411 6.1. Considerações preliminares ..................................................................... 411 6.2. Conservadorismo .................................................................................... 414 6.2.1. Caracterização .................................................................................... 414 6.2.2. Análise comparativa ........................................................................... 416 6.3. Fascismo ............................................................................................... 418 6.3.1. Caracterização .................................................................................... 418 6.3.2. Análise comparativa ........................................................................... 421 6.4. Socialismo ............................................................................................. 427 6.4.1. Caracterização .................................................................................... 427 6.4.2. Análise comparativa ........................................................................... 430 6.5. Liberalismo ........................................................................................... 436 6.5.1. Caracterização .................................................................................... 436 6.5.2. Análise comparativa ........................................................................... 441 6.6. Anarquismo .......................................................................................... 444 6.6.1. Caracterização .................................................................................... 444 6.6.2. Análise comparativa ........................................................................... 448 6.7. Ecologismo e feminismo .......................................................................... 455 6.8. Behaviorismo radical: novidade na filosofia política? ................................ 459 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................ 465 1 INTRODUÇÃO A teoria da seleção do comportamento por suas conseqüências, elaborada por B.F. Skinner (1981/1984b), prevê a ação de variáveis selecionadoras nos níveis filogenético, ontogenético e cultural. O primeiro nível é compreendido no âmbito da teoria da seleção natural darwiniana; o segundo, no âmbito da seleção do comportamento operante por contingências de reforço;o terceiro, por fim, refere-se à seleção de práticas culturais que promovem a sobrevivência das culturas que as executam. De acordo com Skinner, culturas são compostas pelas contingências de reforço mantidas pelos diversos grupos sociais (1953/1965, p. 419; 1974, p. 203). A tecnologia comportamental permite, em princípio, o planejamento e manipulação das práticas que compõem uma cultura – e que, portanto, controlam o comportamento de seus integrantes: as práticas governamentais, educacionais, organizacionais, comunitárias, etc. Estaríamos, assim, ao transformar o comportamento dos membros de um grupo social, gerando as “mutações” culturais que trarão certas conseqüências para as possibilidades de manutenção das culturas. Esse tipo de intervenção, porém – em especial, ao lidar com populações amplas – suscita questionamentos sobre as diretrizes éticas e 2 políticas da análise do comportamento. Contudo, Skinner (1953/1965, cap. 28; 1971, cap. 6) trata das questões éticas e políticas de forma divergente da usual. Tradicionalmente, assume-se que juízos de valor estão fora da alçada científica, cabendo a esta o juízo sobre “fatos”. Para Skinner, questões éticas e políticas situam-se, sim, no âmbito da ciência do comportamento – e, portanto, a ciência do comportamento é, também, ciência dos valores e ciência da política. Se valores estão nas contingências, valores são objeto de estudo da ciência do comportamento. Parte-se do princípio de que o estudo da ética e da política é o estudo de fatos comportamentais. Porém, assim como nos demais sistemas filosóficos dedicados ao estudo da ética e da política, também no behaviorismo radical impõe-se a tensão entre descrição e prescrição. Este trabalho visa caracterizar, a partir do texto skinneriano, a posição do behaviorismo radical em relação às questões éticas e políticas. A partir dessa caracterização, busca indicar algumas das possibilidades para a promoção de ações ética e politicamente comprometidas por parte da comunidade dos analistas do comportamento. A estrutura do trabalho compreende seis capítulos: o primeiro busca descrever as relações entre método e metafísica no projeto científico skinneriano; o segundo analisa os detalhes do modelo de seleção do comportamento por conseqüências, bem como os méritos e limites da analogia entre os três níveis seletivos; o 3 terceiro aprofunda o tema da sobrevivência das culturas, relacionando-o com o sistema ético skinneriano e investigando algumas de suas possíveis conseqüências para a prática dos analistas do comportamento; o quarto capítulo aborda o conceito de agências governamentais no interior da filosofia política skinneriana; no quinto capítulo, aprofunda-se a caracterização dessa filosofia política – agora, com auxílio do projeto utópico de Skinner – e aponta-se, também, algumas possibilidades para a ação politicamente orientada por parte dos analistas do comportamento; por fim, o sexto e último capítulo busca localizar a filosofia política behaviorista radical diante das correntes tradicionais da filosofia política. De acordo com Abib (1996), a pesquisa epistemológica tem como objeto o discurso – em forma de texto – das diversas formas de conhecimento – dentre estas, o conhecimento psicológico. Trata-se, portanto, de discurso de segunda ordem, realizado sobre um discurso de primeira ordem. No caso da psicologia, os paradigmas e tradições de pensamento fundadas por tais discursos são notavelmente plurais, e a pesquisa epistemológica busca, exatamente, esclarecer tal pluralidade, investigando os fundamentos do discurso psicológico. Para realizar essa tarefa, o método epistemológico lança mão: 1) das categorias clássicas da epistemologia, em suas diversas vertentes e variações semânticas: possibilidade, fundamentos e verdade do 4 conhecimento – supondo que tais categorias, mesmo que não declaradas, atravessam subliminarmente o texto, compondo seu pré-texto; 2) do estudo do horizonte cultural e intelectual no qual o texto foi concebido, visando, através desta análise de seu contexto, ampliar a compreensão do texto e do pré-texto; 3) da hermenêutica, que, além do sentido do texto – circunscrito ao contexto de sua produção –, busca também seu significado – isto é, as possibilidades que oferece para além de seu próprio contexto. Tal método caracteriza-se como transdisciplinar, pois não restringe a epistemologia enquanto disciplina filosófica; do contrário, busca um intercâmbio dinâmico não só com outras áreas da filosofia (lógica, metafísica, ética, filosofia política e social), como também com as disciplinas científicas cujos textos lhe servem de objeto. Em assim fazendo, o pesquisador pretende obter o quadro mais completo possível da situação investigada, utilizando, além de sua competência filosófica, sua competência no campo científico gerador do texto que interpela. O método de investigação do presente projeto baseia-se, em parte, nas diretrizes do método epistemológico-hermenêutico descrito acima, e, em parte, em uma análise estrutural do texto de B.F. Skinner. Assim, da perspectiva de uma análise estrutural, foram selecionados, inicialmente, textos de Skinner diretamente relacionados aos temas investigados no presente trabalho. Em seguida, foram identificadas e 5 definidas as principais categorias conceituais encontradas nesses textos. Por fim, outras categorias referidas por Skinner nos textos sob investigação foram investigadas, na medida em que identificá-las, defini- las e relacioná-las às categorias conceituais originais tenha-se mostrado importante para esclarecê-las. Da perspectiva das diretrizes do método epistemológico- hermenêutico, foram utilizados textos básicos relativos aos assuntos investigados, através dos quais fosse possível definir as principais categorias conceituais dessas áreas de conhecimento, a fim de utilizá-las como recursos auxiliares na identificação de categorias dessa natureza nos textos de Skinner. Finalmente, ainda dessa perspectiva, foram utilizados também textos que pudessem contribuir para formar uma perspectiva do horizonte intelectual de onde o discurso de Skinner pudesse ser melhor compreendido. 1. O BEHAVIORISMO RADICAL E A 6 CIÊNCIA DO COMPORTAMENTO 1.1. Método e metafísica: o projeto científico de Skinner Um projeto científico, qualquer que seja o campo do saber ao qual se aplique, não pode ser adequadamente retratado apenas através da descrição de suas atividades empíricas. A atividade científica está sempre sustentada por um conjunto de pressupostos sobre (1) seu objeto de investigação e (2) o método adequado para investigar tal objeto. Trata-se, respectivamente, dos pressupostos ontológicos e epistemológicos do método – este produzindo, por fim, os enunciados do discurso científico. A ontologia e a epistemologia integram, em conjunto, a metafísica do método científico (Abib, 1993a).1 Assim, a metafísica – uma disciplina pertencente ao campo filosófico – não apenas integra um projeto científico, mas constitui seu próprio fundamento. Isso é válido mesmo quando essa metafísica não é declarada, não é explicitada, ou ainda quando sua necessidade é negada ou ignorada: uma vez de posse de uma descrição do método de determinada ciência, sempre será possível, em princípio, percorrer o caminho que liga o método à sua raiz metafísica. O 1 O termo “metafísica” será aqui utilizado apenas nesse sentido de conjunção entre epistemologia e ontologia (embora seja comumente utilizado também com referência apenas à ontologia).A palavra também pode ser entendida, nesse sentido, como sinônimo de “filosofia da ciência”, enquanto investigação dos fundamentos metafísicos da ciência (Abib, 1993a). Embora tal definição permita-nos afirmar que a metafísica é um tema freqüente na obra de Skinner, é preciso deixar claro, desde já, que o autor não emprega o termo em seus escritos. 7 método, por si só, não é auto-suficiente. A atividade científica não parte do vazio. Skinner (1963/1969b, p. 221; 1974, p. 03; 1977/1980, p. 200) percebeu claramente esse fato. Tanto que constituiu seu projeto científico através de uma ciência do comportamento – cujo método é a análise experimental do comportamento – e de uma metafísica desta ciência – o behaviorismo radical. O trajeto de Skinner (1956/1972j; 1977/1980; 1989e) na constituição deste projeto científico, porém, inicia-se na prática da ciência do comportamento, para só depois estabelecer seus fundamentos filosóficos. A ciência do comportamento praticada por Skinner no início de sua carreira científica tinha como principal base filosófica o behaviorismo clássico – este tendo em Watson (1913/1995) seu maior expoente. Nesta ciência, o reflexo era o conceito central – e foi balizado por este conceito que Skinner realizou e reportou suas primeiras experiências sobre o comportamento animal. À certa altura dessas experiências, porém, Skinner passou a dirigir seu interesse para determinadas relações entre comportamento e ambiente cuja descrição não era contemplada pelo estudo do reflexo realizado pela ciência do comportamento de então. Nos primórdios de seu trabalho experimental, Skinner (1956/1972j, pp. 104-108; 1977/1980, pp. 192-193) estudou, de forma 8 breve, o efeito de estímulos sonoros sobre o comportamento exploratório de ratos. Em seguida, passou a estudar seus reflexos posturais. Durante essa última atividade, porém, o efeito do alimento presente no aparato experimental sobre o comportamento dos sujeitos fez com que Skinner modificasse completamente a direção de suas pesquisas. Em seu primeiro artigo experimental (On the conditions of elicitation of certain eating reflexes, citado em Skinner, 1977/1980, p. 193), descreveu a relação funcional entre a quantidade de alimento ingerida pelo sujeito experimental e a taxa de ingestão subseqüente. Para analisar tal processo com mais detalhe, modificou seu aparato experimental até chegar próximo ao que se conhece hoje, popularmente, como Skinner box ou “caixa de Skinner”. Esse aparato, conforme notou Skinner (1977/1980, p. 193), assemelhava- se ao utilizado por Thorndike na demonstração da Lei do Efeito. Porém, na preparação de seu setting experimental, Skinner (1977/1980, p.193; 1987/1989a, p. 62) seguiu as recomendações de Pavlov quanto aos cuidados para perturbar ao mínimo possível o animal sob estudo.2 Com isso, evitou a ocorrência de comportamentos “malsucedidos” por parte do sujeito experimental – comuns no processo de aprendizagem tal como analisado por Thorndike. 2 Esse processo é descrito com detalhes em Skinner (1938/1966, pp. 55-57). 9 Nos experimentos realizados por Skinner (1956/1972j, pp. 108-110; 1977/1980, pp. 193-194; 1989e, pp. 123-124) com o auxílio desse aparato, o acréscimo na taxa de respostas “bem sucedidas” tornou-se, rapidamente, um dado importante – bem como, em seguida, a extinção dessas respostas em função da desconexão entre sua ocorrência e a apresentação de alimento (utilizado como reforçador).3 Essa taxa tornou-se significativa porque apresentava mudanças ordenadas em face de certas modificações nas variáveis independentes. Além disso, mostrou-se teoricamente relevante por sua relação com outro conceito central na teoria do comportamento operante: a probabilidade de ocorrência de certa resposta por parte do organismo, durante determinado período de tempo (1966/1969c, pp. 75-78; 1977/1980, p. 194; 1989e, p. 124). Skinner, porém, continuou a utilizar-se do conceito de reflexo, mesmo após a construção do delineamento experimental típico do estudo do comportamento operante – que completou-se com a inclusão, no aparato experimental, de um estímulo luminoso que possibilitava o reforçamento diferencial das respostas emitidas pelo animal (Skinner, 1977/1980, p. 195; 1989e, pp. 127-128).4 A distinção entre o condicionamento experimental realizado por Skinner e o 3 Skinner (1977/1980, p. 194) nota que Thorndike não havia investigado o processo de extinção. 10 condicionamento pavloviano fazia-se clara já em Two types of conditioned reflex and a pseudo-type (1935/1972a), mas o termo operante só apareceria em 1937, no artigo Two types of conditioned reflex: A reply to Konorski and Miller (1937/1972b) (no qual Skinner aplicou também o termo respondente em referência ao condicionamento pavloviano). No ano seguinte, porém, Skinner ainda aplicaria o conceito de reflexo em seu primeiro livro, The Behavior of Organisms (1938), com referência tanto ao comportamento respondente quanto ao operante. Posteriormente, ele mesmo comentaria a situação: “Levei muitos anos para libertar-me de meu próprio controle por estímulos no campo do comportamento operante. Desse ponto em diante, contudo, eu claramente não era mais um psicólogo S-R” (1977/1980, p. 196). A noção de contingência de reforço surge como um desenvolvimento original em relação ao modelo respondente, estabelecendo um novo campo de estudos: a análise experimental do comportamento operante. Trata-se de uma mudança dramática, que impõe uma cisão entre as duas tradições de pesquisa – já que a compreensão do comportamento em ambas é sumamente incompatível. Porém, se temos, 4 Trata-se, obviamente, do estímulo discriminativo, com o qual Skinner chegou à definição dos três termos do conceito de contingência de reforço: estímulo discriminativo, resposta e estímulo reforçador. 11 agora, duas tradições experimentais diversas, os pressupostos metafísicos de ambas as tradições devem ser, também eles, diversos entre si. Havíamos afirmado que o trajeto de Skinner na constituição de seu projeto científico teve início na prática da ciência do comportamento. Foi exatamente esse aspecto de tal trajeto que procuramos apontar até aqui, ainda que de forma breve. O que houve nesse primeiro momento, no nascimento do projeto científico skinneriano? Inicialmente, Skinner observou experimentalmente a existência de determinadas relações entre comportamento e ambiente. Além disso, constatou que os métodos de investigação apoiados pelo behaviorismo clássico não eram adequados para o estudo dessas relações. Urgia, portanto, a criação de um novo método, que pudesse ser aplicado a tal estudo. Skinner criou esse método – que seria denominado, posteriormente, análise experimental do comportamento. Contudo, também havíamos afirmado que um método, que produz enunciados científicos, está sempre apoiado por pressupostos ontológicos e epistemológicos – isto é, por uma metafísica. De fato, Skinner viria a lançar, posteriormente, a estrutura metafísica que apóia seu projeto científico; a essa estrutura chamamos behaviorismo radical. Esclareça-se, portanto, que o sentido do trajeto percorrido por Skinner nesse momento inicial – da metodologia à metafísica – é perfeitamente 12 admissível (Abib, 1993a) – e mesmo freqüente na ciência em geral. A construção de um projeto científico não precisa seguir um ordenamento estrito – isto é, partir,obrigatoriamente, de bases filosóficas, para só então desenvolver um método. É importante tornar isso claro, pois é recorrente na história da filosofia e da ciência a utilização de certas metáforas arquitetônicas para a descrição de projetos científicos.5 Mesmo no presente texto temos nos utilizado de tais metáforas – por exemplo, quando nos valemos de termos tais como construção, sustentação, fundamentos, estrutura, apoio ou bases com referência à constituição desses projetos. Assim, o estabelecimento de um método científico desprovido de seus “fundamentos” filosóficos poderia soar, à primeira vista, como algo condenável: uma “construção” desse tipo – sem infra-estrutura – pareceria condenada à ruína. 5 Alguns exemplos clássicos podem, facilmente, ilustrar essa afirmação. Descartes foi pródigo na utilização de metáforas arquitetônicas. O filósofo desenvolveu seu trabalho solitariamente, pois notou que “(...) os edifícios empreendidos e concluídos por um só arquiteto costumam ser mais belos e melhor ordenados do que aqueles que muitos procuraram reformar, fazendo uso de velhas paredes construídas para outros fins” (1637/1991a, p. 34). Ao invés de destruir por inteiro os edifícios de opiniões infundadas, Descartes procurou simplesmente solapar seus alicerces, “(...) visto que a ruína dos alicerces carrega consigo todo o resto do edifício” (1641/1991b, p. 167). Só aí poderia “(...) começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e constante nas ciências” (p. 167). Kant também valeu-se da analogia, ao realizar a descrição dos fundamentos subjetivos a priori dos – então já erigidos – “monumentos da razão” (lógica aristotélica, geometria euclidiana, física newtoniana): “Na verdade, parece natural que, tão logo se tenha abandonado o solo da experiência, não se erija imediatamente, com conhecimentos que se possui sem saber de onde e sobre o crédito de princípios de origem desconhecida, um edifício, sem antes estar assegurado dos fundamentos mediante cuidadosas investigações (...)” (1787/1999, p. 56). 13 É preciso deixar claro, portanto, que a metáfora arquitetônica é um artifício lingüístico limitado. A metafísica, de fato, constitui o fundamento de todos os projetos científicos. Porém, a gênese de tais projetos não segue, obrigatoriamente, a lógica arquitetônica: seus fundamentos podem, sem prejuízo de legitimidade, ser lançados a posteriori. A censura deve dirigir-se, isto sim, aos projetos científicos que, arrogando-se uma existência independente de fundamentos metafísicos, desconhecem que os carregam em seu próprio cerne, ou tratam-nos como corpos estranhos, os quais cabe extirpar. Nesse sentido, o trajeto de Skinner é particularmente legítimo. Tão logo estabelece a originalidade de seu método, o autor lança-se à tarefa de fundamentá-lo filosoficamente – uma tarefa que exigirá parte significativa de seus esforços posteriores. Ainda é preciso, porém, aprofundar a análise das relações entre método e metafísica em Skinner. Assim como é pobre a metáfora arquitetônica – na qual a metafísica fornece, unilateralmente, os fundamentos do método –, também a metáfora oposta não parece satisfazer completamente à necessidade de retratar o trajeto de Skinner na construção de seu projeto científico. A escassez de detalhes no relato feito há pouco sobre as atividades experimentais iniciais de Skinner pode criar uma falsa impressão de ordem e simplicidade: abandona-se um método insatisfatório para o estudo de certo problema, elabora-se outro mais 14 apurado e lança-se suas bases metafísicas. Ao invés de uma passagem simples e ordenada da metafísica ao método, teríamos, assim, uma passagem simples e ordenada do método à metafísica. Ambas as descrições são atraentes em sua economia; porém, devem ser aprofundadas se pretendemos discursar sobre a atividade científica – e, em especial, sobre a relação entre behaviorismo radical e análise experimental do comportamento – de modo menos idealizado. Seria possível reformular nossa metáfora original, a fim de que ganhe mais consistência? A resposta deriva de certas características especiais do projeto científico skinneriano, que discutiremos a seguir. Cabe notar, de início, que há algo diferenciado em uma psicologia definida como estudo do comportamento: ela pode, em algum estágio de seu desenvolvimento, passar a discursar cientificamente sobre a atividade de conhecer o mundo – e, mais ainda, sobre a atividade de conhecer o mundo cientificamente (Abib, 1993b; Skinner, 1945/1972c, p. 380; 1963/1969b, p. 228; 1974, pp. 234-237; Zuriff, 1980).6 Tal psicologia pode, dessa forma, fundar um discurso metodológico e metafísico original, penetrando em campos tradicionalmente reservados apenas à filosofia. Se a atividade científica é comportamento, não poderia a 6 Zuriff (1980) sintetiza a situação desta forma: “Uma ciência do comportamento inevitavelmente volta-se para dentro de si mesma” (p. 337). 15 psicologia, com mais propriedade do que a metafísica ou a metodologia, investigar a natureza do comportamento denominado “científico”? Essa é, de fato, a opinião de Skinner. Entretanto, tal opinião é justificada com afirmações como esta: “(...) nós, como psicólogos, nos encontramos em posição de recordar-lhes [aos estudiosos de metodologia e estatística] de que não contam com os métodos apropriados para a observação empírica ou a análise funcional de tais dados” (1956/1972j, p. 102, nosso itálico). Os “tais dados” aos quais Skinner se refere nessa passagem são, exatamente, o conjunto de comportamentos denominado “científico”. Algo, porém, torna-se confuso e paradoxal na compreensão desse percurso: não afirmávamos, há pouco, que um projeto científico fundamenta-se sempre em uma metafísica – isto é, em uma filosofia da ciência? Se assim ocorre, pode um projeto científico gerar seus próprios fundamentos metafísicos? Em princípio, tal projeto deixa transparecer certa pretensão de libertar-se da necessidade da metafísica, constituindo- se em um empreendimento independente da filosofia. O paradoxo aprofunda-se se notarmos que a ciência do comportamento operante, ao mesmo tempo em que lança um discurso sobre a natureza do conhecimento científico, tem sua própria cientificidade questionada por outras áreas do saber, dentro e fora da psicologia (Abib, 1993b). Assim 16 sendo, como Skinner pode afirmar que a análise experimental do comportamento é o método apropriado para o estudo do comportamento científico – ou mesmo para o estudo de qualquer comportamento em qualquer organismo? É possível fazer tal afirmação sem recorrer a uma metafísica derivada de reflexão filosófica? É necessário retomar com mais detalhe o desenvolvimento do projeto científico skinneriano para compreender como esse paradoxo situa-se em tal contexto. Realizamos há pouco uma descrição pouco acurada do processo que levou Skinner a reformular seu método de investigação do comportamento. O que teria, de fato, ocorrido durante tal trajeto? É possível descrevê-lo em poucas palavras? Alguns poucos princípios de metodologia científica podem explicá-lo? Certamente que não, diria Skinner (1945/1972c, p. 380; 1956/1972j; 1974, p. 236). Daí deriva a crítica que o autor lança contra certas disciplinas (metodologia, lógica, estatística) que, ao resumirem o trabalho do cientista através de certas regras, oferecem uma descrição idealizada e incompleta desta atividade. O comportamentodo cientista está, em grande parte, sob controle das contingências da situação experimental. Nesse contexto, muito do que ocorre é de natureza acidental, imprevista, fortuita. Descobertas relevantes ocorrem sem que tenham sido antevistas ou explicitamente perseguidas. Modificações metodológicas importantes ocorrem porque 17 certas características da situação experimental – até então ignoradas ou tidas como pouco interessantes – tornam-se conspícuas. Características aparentemente banais das condições materiais de suporte ao experimento levam a reformulações importantes nos procedimentos experimentais. E assim, acidentalmente e sem planejamento prévio, modifica-se, aperfeiçoa-se, refina-se o método experimental. Em paralelo, mudam também as características da situação experimental que controlam a atenção do cientista em sua busca por ordem e regularidade. Como resumiu precisamente o próprio Skinner (1956/1972j), “o organismo cuja conduta é mais amplamente modificada e mais completamente controlada na pesquisa (...) é o próprio experimentador” (p. 122). A criação de um novo método experimental não pode, portanto, ser explicada meramente apelando-se ao “comportamento criativo” do pesquisador. As próprias características da situação experimental exercem influência decisiva sobre os procedimentos empregados. O desenvolvimento do método skinneriano – a análise experimental do comportamento – não se deu através de um percurso estável e ordenado, mas sim acidentado e irregular (o que o torna, por vezes, irônico, para quem acompanha o relato do processo na expectativa de encontrar uma história dentro dos padrões habituais da metodologia). Compreende-se mais claramente as particularidades de tal percurso 18 notando-se que as contingências da situação experimental que modelam o comportamento dos cientistas também não são inteiramente ordenadas e planejadas: eventualmente, também elas são acidentais e irregulares. Descrever verbalmente tal processo de modo relativamente simples e facilmente inteligível é uma exigência da metodologia, enquanto disciplina. Essa ordem é útil para a construção e transmissão de regras, mas há algo nas regras que “congela” a experiência original, ao dela subtrair os detalhes e nuances que lhe conferem sua singularidade (Abib, 1993b, p. 481; Skinner, 1966/1969d, pp. 146-152; pp. 166-171; 1969h, p. 289). Assim, o comportamento inicialmente gerado por tais regras será tão “frio”, “mecânico” e incompleto quanto as próprias regras. Esse repertório comportamental incompleto deverá ser modificado e suplementado pelas contingências da situação experimental – quando, aí sim, surgirá um repertório comportamental condizente com a atividade científica, porque modelado pelas contingências típicas dessa atividade. Variedade e novidade são características das contingências, em oposição à uniformidade das regras (Skinner, 1966/1969d, p. 170; 1989c, p. 44). Assim, embora as regras tenham óbvia utilidade, a ciência progride e evolui exatamente porque expõe-se às contingências geradas por sua própria atividade.7 7 Em última análise, as regras são sempre secundárias em relação às contingências que 19 Havíamos formulado duas indagações no decorrer de nossa reflexão. Abordemos a primeira, que diz respeito à tentativa de retratar, através de uma metáfora, as relações entre método e metafísica no projeto científico skinneriano. Já concluímos, anteriormente, que se a metáfora arquitetônica – da metafísica ao método – não é adequada para tanto, tampouco o é a metáfora inversa – do método à metafísica. Ambas idealizam e simplificam um processo que, quando de sua ocorrência, é freqüentemente desordenado, irregular, acidental. Restam duas opções: tentar construir uma metáfora aceitável ou desistir da tarefa. Considerando que as metáforas – assim como as regras – possuem limitações inerentes, é preciso reconhecer, ainda assim, sua utilidade e necessidade: metáforas são tão inevitáveis quanto suas limitações, e sua virtual capacidade de gerar reveses não deve privar-nos de seus potenciais benefícios. Basta que se reconheça as metáforas pelo que são: artifícios úteis – porém imperfeitos – empregados pelo homem no controle de seu próprio comportamento. Dito isso, quais seriam as características de uma metáfora minimamente adequada para lidar com a relação entre método e metafísica, em especial no interior do projeto científico skinneriano? modelaram o comportamento original, pois surgem a partir de descrições dos efeitos deste comportamento. Assim, de acordo com Skinner (1989c), “novas ciências surgem apenas a partir de contingências (...) As contingências sempre vêm primeiro” (p. 44). 20 Considerando-se que a separação estrita entre método e metafísica é, por si só, meramente um artifício que visa facilitar sua compreensão, comecemos por remover qualquer barreira rígida entre ambos. Para evitar que se tornem indistinguíveis, porém, separemo-los com uma nova barreira, desta vez com certo grau de permeabilidade. Essa permeabilidade, porém, é oscilante. Varia da permeabilidade total à impermeabilidade absoluta, admitindo diversos graus entre estes extremos. Podemos, agora, admitir alguma troca entre esses dois pólos. Tais trocas, porém, não apresentam qualquer característica de constância ou regularidade. Uma pequena modificação em um dos pólos pode acarretar grandes modificações em outro; por outro lado, grandes mudanças em um pólo podem ser acompanhadas por pequenas mudanças em seu par, ou pela ausência de qualquer mudança correspondente. Um dos pólos pode sofrer modificações por longo tempo sem influenciar o outro; porém, uma rápida mudança em um dos pólos pode acarretar um longo processo de reestruturação no outro. Nossa metáfora começa a ganhar novos contornos. Antes, era necessário que um dos pólos sofresse uma mudança integral, para que, só então, seu par fosse submetido a mudança correspondente. Além disso, era necessário que algum dos pólos possuísse “prioridade causal” sobre o 21 outro. Sob nossa nova concepção, há movimento, troca e influência constantes entre método e metafísica. A metáfora torna-se ainda mais complexa ao assumirmos o seguinte pressuposto: enquanto partes integrantes de um projeto científico, método e metafísica são comportamento8 – e, desta forma, são processos contínuos, e não objetos estáveis (Skinner, 1953/1965, p. 15). Enquanto processos comportamentais contínuos, método e metafísica estão constantemente sujeitos a modificações – a despeito de qualquer tentativa de sistematizá-los e apresentá-los como disciplinas com algum tipo de existência independente da ação humana. Assim, no interior de um projeto científico, uma modificação pode ocorrer tanto no método quanto na metafísica. Essa modificação, por sua vez, influenciará, em maior ou menor grau, as atividades que 8 Em especial no caso da metafísica, a afirmação pode soar estranha num primeiro momento. A idéia será desenvolvida adiante – mas cabe, desde já, apontar a forma pela qual a metafísica apresenta-se de modo mais freqüente, qual seja: como comportamento verbal gerador de estímulos verbais textuais (Skinner, 1957, pp. 65-69). Em outras palavras, certos falantes (em geral, filósofos ou cientistas) produzem, através de seu comportamentoverbal, estímulos discriminativos verbais (em geral, na forma de texto) que afetam o comportamento de certos ouvintes (em geral, a comunidade filosófica ou científica). Essas comunidades, por sua vez, modelam o comportamento verbal inicial de seus falantes, tendo como critério certas regras que abordaremos em seguida. Assim considerada, a metafísica está sujeita às mesmas leis que governam qualquer comportamento. Poderíamos mesmo adotar a sugestão de Hineline (1980, citado em Chiesa, 1994, p. 39), “(...) transformando palavras que soam como coisas (...) em descrições do comportamento (...)”. Assim, no presente caso, seria suficiente lembrar que a utilização da palavra “metafísica” refere-se a “comportamento verbal metafísico” ou “discurso metafísico” – com o adjetivo “metafísico” indicando as conseqüências que controlam este tipo de comportamento. (A natureza dessas conseqüências será analisada em breve.) Essa forma de abordagem ao problema coaduna-se com as considerações de Skinner (1945/1972c, p. 380; 1963/1969b, p. 228; 1974, pp. 234-237) quanto às possibilidades de uma análise funcional do comportamento científico e filosófico. 22 integram as outras partes desse projeto. Qual seria, porém, a fonte primária de tais modificações? Para responder a essa pergunta, é preciso esboçar uma análise funcional do projeto científico skinneriano.9 Ao assim agir, evitamos em definitivo qualquer aproximação com uma descrição de cunho estruturalista desse projeto – prática freqüentemente condenada por Skinner (1953/1965, cap. 13; 1966/1969c, p. 96; 1974, pp. 11-13; pp. 64-68; p. 225). O comportamento, de acordo com Skinner (1953/1965, p. 59; 1963/1969a, p. 108; 1974, p. 46), é modificado por suas conseqüências. Método e metafísica são palavras que descrevem certos conjuntos de comportamentos. Assim, para que sejam modificados, método e metafísica devem ser afetados por suas conseqüências. O próprio Skinner (1956/1972j) descreve claramente o processo através do qual, na situação experimental, as conseqüências do método retroagem sobre ele e modificam-no. Isso acrescenta um terceiro elemento à metáfora que vínhamos desenvolvendo. Método e metafísica influenciam-se mutuamente em graus variáveis, mas as mudanças que dinamizam essa interação não surgem espontaneamente: são fruto das conseqüências geradas pelo método na situação experimental. Porém, se o método é, 9 “Esboçar” é o verbo adequado para a tarefa, dadas as dimensões do problema abordado. O rigor de uma análise funcional completa – por impossível, neste caso – não faz parte de nossas pretensões. (Sobre esse assunto, ver também a nota 69.) 23 assim como a metafísica, modificado por suas conseqüências, que tipo de conseqüências modifica a metafísica? Não nos basta afirmar que, uma vez modificado o método, a metafísica deve acompanhar naturalmente essa mudança, pois estamos procurando, exatamente, compreender como se dá tal processo. Sendo a metafísica um certo conjunto de comportamentos verbais – isto é, um conjunto de pressupostos que buscam justificar e sustentar um método10 –, esta só será reforçada enquanto constituir-se, de fato, em justificativa e sustentação para o método. Modificando-se o método por suas conseqüências, também a metafísica está sujeita – ainda que não obrigada – a modificar-se para adaptar-se ao método. Uma metafísica que não justifica e não sustenta um método correspondente tende a gerar conseqüências que levam à sua modificação ou extinção. Em outras palavras, uma metafísica é reforçada exatamente porque justifica e sustenta um método, e continuará sendo reforçada conquanto desempenhe satisfatoriamente esta função.11 10 Note-se que essa definição ajusta-se não apenas à epistemologia, mas também à ontologia – posto que ambas visam fundamentar práticas metodológicas. 11 “Justificar e sustentar um método” é, por certo, uma designação bastante genérica para um amplo conjunto de comportamentos verbais, governados por regras provenientes de diversas subdivisões da filosofia (em especial da lógica, como indicam os verbos “justificar” e “sustentar”). Da mesma forma, as condições sob as quais esses comportamentos verbais serão reforçados – isto é, a determinação de seu grau de sucesso na justificação e sustentação do método – também dependem da análise especializada de tais comportamentos de acordo com as regras filosóficas convenientes. Assim, as conseqüências sutis que controlam o comportamento verbal metafísico são dispensadas pela comunidade verbal no interior da qual 24 Enquanto conjunto de comportamentos verbais, portanto, uma metafísica é afetada por suas conseqüências em relação ao método. O método, por sua vez, enquanto conjunto de comportamentos, é afetado por suas conseqüências em relação à situação investigada no âmbito de determinado projeto científico. Esse quadro, no qual as conseqüências da atividade científica são analisadas a partir de seus efeitos sobre a própria configuração desta atividade, permite-nos também explicar porque a barreira que utilizamos em nossa metáfora a fim de mediar as relações entre método e metafísica apresenta permeabilidade variável. Um método modificado por suas conseqüências pode implicar a obsolência da metafísica que o sustenta, mas não é necessário que o faça. O aperfeiçoamento de um determinado equipamento, por exemplo12, pode trazer mudanças dramáticas para o método de certa ciência, mas isso não implica que a metafísica de tal método deixe de sustentá-lo. Outras variações no método, no entanto, podem implicar profundas mudanças na metafísica que o apóia.13 Verifica-se, portanto, uma relação assimétrica se dá este discurso – mais especificamente, pela comunidade científica ou filosófica que constitui a audiência para o falante em questão. 12 É o caso do desenvolvimento, por parte de Skinner (1956/1972j, pp. 108-109), do registro da taxa de respostas em forma de curva, em substituição ao registro poligráfico original. 13 O exemplo óbvio, neste caso, ocorre quando Skinner (1956/1972j, pp. 106-108) constata o efeito exercido pelas conseqüências sobre o comportamento operante. A relação entre ambiente e comportamento apresenta-se, a partir daí, muito mais complexa do que aquela retratada pela psicologia S-R. Note-se que, tanto neste caso quanto no anterior, o método foi modificado por suas conseqüências sobre a situação experimental. Ainda mais: em ambos os casos, essas conseqüências foram acidentais – isto é, reforçaram procedimentos metodológicos de importância aparentemente secundária. 25 entre as modificações ocorridas no método e a influência destas sobre a metafísica. Para saber em que grau as modificações no método exercem influência sobre a metafísica, pode-se perguntar o seguinte: em que medida as novas características do método implicam diferentes pressupostos epistemológicos e/ou ontológicos sobre o método e sobre o objeto investigado? A resposta a essa pergunta determina a permeabilidade da barreira entre método e metafísica, quando ocorre alguma modificação no método. Temos privilegiado, até aqui, uma análise da influência das modificações metodológicas sobre seus pressupostos metafísicos. Fizemo-lo porque é este o enfoque utilizado por Skinner (1956/1972j) ao relatar a história do desenvolvimento de seu projeto científico. Mas é preciso lembrar – como sugeríamos ao iniciar o delineamento de nossa metáfora – que pode ocorrer uma dupla direcionalidade nesse processo: uma alteração nos pressupostosmetafísicos de um método também pode modificá-lo (Abib, 1993a, pp. 457-459). Como a metafísica é, em princípio, modificada por suas conseqüências (isto é, por sua capacidade de justificar e sustentar um método), é natural que qualquer alteração que lhe ocorra seja considerada – como foi até o momento – uma decorrência óbvia de alguma modificação no próprio método (esta decorrente, por sua vez, das conseqüências do método sobre a situação experimental). Se 26 assim ocorresse em todas as ocasiões, o método teria “prioridade causal” na relação método-metafísica.14 Porém – e este é o cerne de nossa discussão –, ciência é comportamento, e o comportamento escapa às especificações aparentemente lógicas que as regras procuram conferir-lhe ao descrevê-lo. Assim, uma metafísica, enquanto parte de um projeto científico, pode ser afetada por outras conseqüências além daquelas advindas de sua função de justificação e sustentação do método (assim como um método também pode ser afetado por outras conseqüências além daquelas verificadas na situação experimental). Fora da relação método-metafísica, é possível apontar diversas situações nas quais uma metafísica pode ser modificada por suas conseqüências. Para utilizar um exemplo simples, um cientista pode, como participante de uma discussão sobre filosofia da ciência, concluir que a metafísica que utiliza é inadequada para o tipo de problema que estuda. Pode, a partir daí, adotar novos pressupostos sobre seu objeto de investigação – isto é, ontológicos – e sobre o método adequado para investigar tal objeto – isto é, epistemológicos. Dependendo da natureza e da extensão dessas mudanças em relação aos pressupostos que utilizava originalmente, tal cientista pode 14 Apontar “prioridades causais” é, obviamente, um artifício, pois todo e qualquer comportamento – incluindo, naturalmente, o comportamento científico – é controlado por contingências (Skinner, 1974, p. 206; p. 234; 1957, p. 460). Tal prática justifica-se por sua utilidade diante de fins específicos, da mesma forma que a criação de metáforas e a utilização de regras. 27 modificar ou não seu método, em maior ou menor grau, para que se adeqüe à nova metafísica que adotou. Para saber em que grau as modificações na metafísica exercem influência sobre o método, pode-se perguntar o seguinte: em que medida os diferentes pressupostos epistemológicos e/ou ontológicos sobre o método e o objeto investigado implicam novas características para o método que apóiam? A resposta a essa pergunta determina a permeabilidade da barreira entre método e metafísica, quando ocorre alguma modificação na metafísica. Até o momento, portanto, procuramos justificar nossa metáfora sobre as relações entre método e metafísica, com o auxílio da noção de modificação do comportamento por suas conseqüências. Vimos que tanto o método quanto a metafísica são modificados pelos efeitos que ocasionam. Certos tipos de conseqüências são mais comuns em cada caso, mas, em princípio, admite-se que qualquer tipo de conseqüência pode modificar algum dos pólos. Ocorrendo uma modificação em um deles, o outro pode ou não ser modificado, em maior ou menor grau, dependendo da natureza e da extensão da modificação no pólo original.15 Porém, a 15 Algo como essa bidirecionalidade não obrigatória entre método e metafísica repete-se também nas relações entre epistemologia e ontologia (Abib, 1993a). Em certos momentos, porém, os limites entre epistemologia e ontologia tornam-se nebulosos. Ambas as disciplinas surtem efeito sobre o método, e isso torna difícil determinar quando certa asserção sobre o objeto da pesquisa refere-se ao próprio objeto ou à forma escolhida para estudá-lo. 28 metafísica deve sempre providenciar justificativa e sustentação para o método, pois esta é sua função básica enquanto prática verbal. Em princípio, essa metáfora aplica-se a qualquer projeto científico, pois permite a interpretação de um amplo espectro de comportamentos no âmbito da ciência. Lembremo-nos, agora, daquela característica especial de uma ciência do comportamento: ao estudar o comportamento científico, ela volta-se sobre sua própria atividade. Com isso, sempre que surgem dados capazes de lançar alguma luz sobre a natureza do comportamento científico, essa mesma ciência vê-se compelida a revisitar seus métodos de investigação, podendo também reformular, a partir daí, seus pressupostos metafísicos. Novos dados gerados por esse método ampliado ou refinado, por sua vez, podem aprofundar ainda mais a compreensão do comportamento científico, revelando sutilezas até então insuspeitas e promovendo novas modificações no método e em seus pressupostos metafísicos. Ainda além, a análise do comportamento científico pode incluir uma análise do comportamento de filósofos que produzem o comportamento verbal classificado como epistemologia, ontologia, lógica, etc. – já que, como afirmamos, estas atividades integram qualquer projeto científico. Os resultados dessa análise podem modificar os pressupostos metafísicos da 29 análise experimental do comportamento, tais modificações gerando (ou não) reflexos neste método. Uma ciência do comportamento possui, portanto, uma característica adicional em relação às demais ciências. É essa característica que confere a tal ciência a possibilidade de fundar um discurso original sobre a atividade científica (Abib, 1993b). Podemos agregar tal característica à estrutura da metáfora que vínhamos desenvolvendo até o momento, se considerarmos que fatos científicos16 sobre o comportamento de cientistas e filósofos da ciência são conseqüências do comportamento de cientistas. Enquanto conseqüências, aqueles fatos exercem um efeito óbvio sobre essa atividade – isto é, eles reforçam as características do comportamento dos cientistas que levaram à sua obtenção. Assim, se a utilização de um determinado método resulta na obtenção de fatos científicos, este método tende a ser reforçado por tais resultados.17 Trata-se, nesse caso, de modelagem por contingências, mas há um segundo efeito possível. O poder reforçador dos fatos científicos deriva, em grande parte, de sua capacidade de permitir ações efetivas 16 “Fatos científicos” são entendidos, aqui, como regras para a ação efetiva sobre o mundo (Skinner, 1953/1965, p. 14; 1974, p. 235; 1989c, p. 43). 17 O processo é, obviamente, muito mais complexo. Nenhum cientista trabalha “para obter fatos científicos”, assim como nenhum agricultor planta na primavera “para colher no outono” (Skinner, 1968c, pp. 155-156). A questão não é simplesmente evitar explicações teleológicas do comportamento, mas sim lembrar que os comportamentos que, por fim, produzem reforçadores finais temporalmente remotos – como “colheitas” e “fatos científicos” – são 30 sobre o ambiente físico e social. Fatos científicos sobre o comportamento de cientistas e filósofos revelam as variáveis das quais o comportamento de cientistas e filósofos é função. Uma vez de posse de tais fatos – ou de tais regras para a ação efetiva – é possível, em princípio, manipular essas variáveis, direcionando a atividade científica e filosófica para modos de proceder cada vez mais efetivos.18 Assim, enquanto conseqüências da atividade científica, fatos científicos podem modificar o comportamento de cientistas de duas formas: 1) como estímulos reforçadores nas contingências de reforço atuantes nas comunidades científicas; 2) como regras para a ação efetiva em relação ao comportamento de cientistas e filósofosda ciência. Dessa forma, ao modelar e/ou governar o comportamento de cientistas e filósofos, tais fatos geram modificações metodológicas, epistemológicas e ontológicas na atividade científica e filosófica. A partir daí, toda sorte de comércio pode ocorrer entre essas disciplinas, como havíamos sublinhado anteriormente: podem influenciar-se (ou não) mutuamente, nos mais diversos graus e extensões. Com isso, adicionamos um último elemento à nossa metáfora: no âmbito de uma ciência do comportamento, o sustentados por conseqüências intermediárias mais sutis. É essa cadeia de contingências que liga os comportamentos científicos a seus resultados finais, justificando a presente analogia. 18 Esse é um bom exemplo de como “uma ciência do comportamento (...) volta-se para dentro de si mesma” (Zuriff, 1980, p. 337). No presente caso, o processo pode ser chamado 31 comportamento dos cientistas não é controlado apenas pelas conseqüências imediatas da situação experimental, mas também por conseqüências mais remotas, às quais denominamos “fatos”, “leis”, “teorias”, etc., estas podendo funcionar tanto como reforçadores quanto como regras.19 É preciso, a bem da verdade, deixar claro que a análise do comportamento de cientistas e filósofos ainda é um procedimento interpretativo, possibilitado pelas regularidades comportamentais observadas pela análise experimental do comportamento. A noção de modificação do comportamento por suas conseqüências oferece uma chave interpretativa de amplo espectro, aplicável a virtualmente todas as atividades humanas. Porém, o próprio Skinner (1956/1972j, p. 102) admite que sabemos pouco sobre o comportamento do cientista. Talvez ainda não seja possível, portanto, substituir as disciplinas que tradicionalmente retratam a atividade científica por uma análise científica desta própria atividade. Não obstante, Skinner (pp. 122-124) sugere que sejam abandonadas, desde já, as tentativas habituais de descrição da “autocontrole”, embora Skinner (1953/1965) tenha utilizado o termo com referência apenas a indivíduos (cap. 15). 19 É óbvio, repita-se, que conseqüências de outros tipos fazem parte desse controle. Analisamos aqui apenas as conseqüências mais óbvias – presumivelmente, comuns à maioria dos empreendimentos científicos. 32 atividade científica, substituindo-as pela análise do comportamento dos cientistas – mesmo que esta análise seja, ainda, de cunho interpretativo. Temos, agora, uma metáfora que se assemelha ao processo que busca descrever: menos ordenada e mais caótica, menos regular e mais variável, menos planejada e mais acidental. Emerge dessa metáfora um retrato da ciência muito diferente daquele que tínhamos de início. Temos que lidar, agora, com um quadro instável e irregular. A elegância e a simplicidade cedem lugar a uma imagem de formas complexas, na qual há espaço para o erro, a sutileza e a mudança. Completamos, desta forma, a primeira tarefa que havíamos proposto durante nossa discussão: construímos uma metáfora que descreve as relações entre método e metafísica, buscando manter alguma fidelidade aos processos comportamentais que controlam essas atividades. Como qualquer metáfora, também essa é imperfeita e incompleta, pois a riqueza do comportamento humano escapa a qualquer tentativa de especificação verbal.20 É óbvio que, uma vez reconhecidos tais limites, algo pode e deve ser feito, por imperfeito que seja. No entanto, é impossível esgotar qualquer assunto com palavras. 20 Paradoxalmente, uma metáfora perfeita – se exeqüível – não mais seria uma metáfora, mas uma descrição completa. Essa descrição completa – ou absolutamente “verdadeira” – é, obviamente, uma impossibilidade. Descrições são exemplos de comportamento verbal, e, enquanto tais, são funções das variáveis que as controlam. Provém daí não só suas possibilidades, mas também suas limitações (Skinner, 1974, p. 136). 33 Havia-nos restado uma segunda tarefa. Vimos que um projeto científico fundamenta-se sempre em uma metafísica. Também vimos que o projeto científico skinneriano começa a demarcar sua originalidade em relação ao projeto científico watsoniano a partir de seu método. Além disso, vimos ainda que esse método original acaba por fomentar uma metafísica também original – pois que esta metafísica apresenta certa autonomia em relação à filosofia (Abib, 1993b, p. 484). Seria lícita essa pretensão de constituir um projeto científico independente da filosofia? Pode um projeto científico gerar seus próprios fundamentos metafísicos? Até que ponto esses fundamentos deixam de ser filosóficos apenas porque surgem do discurso científico? Como é possível à ciência do comportamento operante lidar com o paradoxo de ter sua própria cientificidade questionada por outras áreas do saber, dentro e fora da psicologia (Abib, 1993b), e ao mesmo tempo lançar um discurso sobre a natureza do conhecimento científico? Repitamos, ainda, mais duas perguntas que já havíamos formulado: como Skinner pode afirmar que a análise experimental do comportamento é o método apropriado para o estudo do comportamento científico – ou mesmo para o estudo de qualquer tipo de comportamento? É possível fazer tal afirmação sem recorrer a uma metafísica derivada da reflexão filosófica? Nossa discussão até o momento deve ter esclarecido alguns dos aspectos relacionados a 34 tais questões. Porém, para responder a essas perguntas, precisamos discorrer com mais detalhe sobre o método skinneriano. 1.1.1. O método skinneriano: a análise experimental do comportamento Um método é um modo de proceder (Ferreira, 1986, p. 1128). Um método científico é um modo de proceder na obtenção de certos objetivos, específicos a cada ciência. Enquanto modo de proceder, o método é comportamento, podendo ser: 1) governado por regras de uma comunidade científica e/ou 2) modelado por contingências de reforço próprias à atividade científica. Por muito tempo, porém, o método científico foi, majoritariamente, modelado por contingências. A metodologia científica, enquanto disciplina, surgiu muito recentemente na história da ciência, e várias descobertas científicas ocorreram sem o apoio de regras metodológicas específicas (Skinner, 1956/1972j, p. 101). Enquanto disciplina, a metodologia científica é descritiva e prescritiva: descreve o comportamento dos cientistas – isto é, observa suas características regulares e deriva regras desta observação – e prescreve o comportamento a ser seguido pelos cientistas – isto é, reforça a obediência às regras que apresenta à comunidade científica. Enquanto disciplina, portanto, a metodologia científica lida, essencialmente, com regras derivadas da descrição do comportamento dos cientistas. Como 35 vimos, porém, o alcance das regras é limitado. Regras jamais descrevem, de modo completo e acurado, os comportamentos dos quais são derivadas. São uma simplificação útil, mas imperfeita, das contingências. E mais: conferem à metodologia científica, enquanto disciplina, uma aparência de ordem, planejamento e previsão absolutos – características freqüentemente ausentes do trabalho experimental (Skinner, 1956/1972j). Ao método desenvolvido por Skinner denomina-se análise experimental do comportamento. Dentro do behaviorismo e da psicologia, seu surgimento representou um modo original de proceder no estudo do comportamento
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