Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
FACULDADE DOM ALBERTO ESTUDOS DA MATEMÁTICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL SANTA CRUZ DO SUL – RS 2 1 REFERENCIAL CURRICULAR NACIONAL PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL Fonte: basenacionalcomum.mec.gov.br Há mais de dez anos, foi lançado pelo Ministério da Educação brasileiro o Documento “Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil” — RCNEI (Brasil, 1998), com o objetivo de constituir-se como “um guia de reflexão para os profissionais que atuam diretamente com crianças de 0 a 6 anos”. Passados todos esses anos desde sua publicação, o Documento continua tendo sua validade referendada não apenas pela Secretaria de Educação Básica do MEC, mas também por inúmeras instituições de Educação Infantil, que o compreendem como um “guia de reflexão” e, na falta de outros instrumentos de organização pedagógica, como o instrumento oficial para “o planejamento, o desenvolvimento e a avaliação de práticas educativas”, embora não possua caráter mandatório. Logo após a publicação do RCNEI, pudemos observar uma intensa produção acadêmica, tratando especificamente desse tema. AULAS 51 A 60 3 Destacam-se o trabalho organizado por Ana Lúcia Faria e Marina Silveira Palhares (1999) e a produção do Grupo de Trabalho Educação de Crianças de 0 a 6 anos, da Associação Nacional de Pós- Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), sobretudo no ano de 2001. Atualmente, o tema sobre a organização curricular na Educação Infantil permanece em pauta nos círculos acadêmicos e também se apresenta na agenda do MEC. Evidência disso foi a publicação da Resolução CNE/CEB n° 5/2009, em 18 de dezembro de 2009, que fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, esse sim, documento de caráter mandatário. Ou seja, em termos legais, deve ser observado seu cumprimento. Ainda que o RCNEI não se apresente como centro das discussões, isso não significa que este seja um debate superado. No que diz respeito ao ensino de matemática para a Educação Infantil, essa é uma discussão ainda por fazer. No momento, encontra- se aberta, no site do MEC, uma consulta pública sobre Orientações Curriculares Nacionais da Educação Infantil, documento em construção, que visa a elaborar orientações para a implementação das diretrizes estabelecidas em 2009. No eixo de matemática, a proposta intitula-se: “As crianças e o conhecimento matemático: experiências de exploração e ampliação de conceitos e relações matemáticas”. Acreditamos que este seja um momento relevante para discutirmos sobre referenciais para a organização curricular de matemática para a infância. Nosso estudo recai sobre o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil — RCNEI (Brasil, 1998), na área de Matemática, visto ser o documento ainda vigente. Todavia, esperamos que as contribuições deste trabalho possam ser incorporadas na nova proposta de orientação curricular que se encontra em desenvolvimento. O RCNEI (Brasil, 1998), mesmo não se constituindo legalmente como parâmetro curricular obrigatório, em muitas instituições assim se estabeleceu, a despeito de desconsiderar as realidades regionais, locais e, sobretudo, a possibilidade apresentada pela LDB de a instituição de ensino organizar sua proposta pedagógica. Seu uso é frequentemente justificado porque, apesar das inúmeras críticas ao RCNEI, este pode ser, de certa forma, considerado um avanço, por tratar-se de um documento que se diz voltado especificamente para a Educação Infantil. Ainda que possamos ter muitas reservas em relação a ele, seja pela forma pouco participativa com que foi elaborado; pela visão em relação ao processo de ensino e aprendizagem; pela compreensão cosmopolita presente nas atividades 4 sugeridas, ele foi uma primeira tentativa de conferir uma sistematização curricular à Educação Infantil, mérito que não pode ser desprezado. Kulhmann Jr. (1999, p. 6), ao tratar do uso do documento, acrescenta que as propostas, [...] embora contribuam para o trabalho dos educadores, não têm esse caráter mandatório. Isso reafirma a autonomia das instituições, que podem adotar essas ou outras propostas na íntegra ou associadas, sendo indispensável, entretanto, que se norteiem pelas Diretrizes Curriculares Nacionais. Em termos legais, a normatização da organização dessas propostas pedagógicas para a Educação Infantil deu-se com a Resolução CEB nº 1, de 7 de abril de 1999, que instituiu as “Diretrizes Curriculares para Educação Infantil”, recentemente substituída pela Resolução CNE/CEB n° 5/2009 . Chama a atenção o fato de que a Resolução CEB nº1/1999 seja posterior ao RCNEI. Talvez isso justifique por que algumas de suas diretrizes, especialmente a expressa no Art. 3º, inciso II, que trata particularmente da elaboração das propostas pedagógicas, pareçam ir de encontro à própria conformação do RCNEI: As Instituições de Educação Infantil ao definir suas Propostas Pedagógicas deverão explicitar o reconhecimento da importância da identidade pessoal de alunos, suas famílias, professores e outros profissionais, e a identidade de cada Unidade Educacional, nos vários contextos em que se situem. (BRASIL, 1999b) Os princípios instituídos pelas Diretrizes Curriculares para a Educação Infantil ainda não são, na maioria das vezes, considerados, quando da elaboração de propostas pedagógicas para essa modalidade de ensino. Na prática, revela-se certo desconhecimento desse documento e seu caráter mandatório, seja por parte dos órgãos municipais, seja por parte dos educadores. Isso demonstra que não basta a legalização de tais princípios, é necessária sua legitimação. Nesse sentido, o documento Política Nacional de Educação Infantil: pelo direito das crianças de zero a seis anos à Educação, apresentado em 2006 pela Secretaria de Educação Básica (SEB) do MEC (Brasil, 1994), por meio da Coordenação Geral de Educação Infantil (COEDI), do Departamento de Políticas de Educação Infantil e 5 do Ensino Fundamental (DPE), foi um marco para as diretrizes da política nacional de Educação Infantil, das quais cumpre ressaltar: A Educação e o cuidado das crianças de 0 a 6 anos são de responsabilidade do setor educacional. A Educação Infantil deve pautar-se pela indissociabilidade entre o cuidado e a educação. A Educação Infantil tem função diferenciada e complementar à ação da família, o que implica uma profunda, permanente e articulada comunicação entre elas. É dever do Estado, direito da criança e opção da família o atendimento gratuito em instituições de Educação Infantil às crianças de 0 a 6 anos (Brasil, 2006). Esse documento representou um avanço nas políticas públicas para Educação Infantil. Resta-nos trilhar, igualmente, o caminho entre a legalidade e a legitimação. O que nos parece claro é a defesa de uma função pedagógica na Educação Infantil e a solicitação de uma nova prática por parte dos profissionais envolvidos. Isso significa, entre outras questões, que a legitimidade do RCNEI ou de outro documento que venha a tomar seu lugar em termos de forma e conteúdo continua sendo um tema que merece estar na agenda de debate dos que defendem uma Educação Infantil de qualidade para todos. E, também, dos que defendem que o conhecimento matemático, como produção humana, pode e deve ser apropriado pelas crianças desde a Educação Infantil. Desse modo, realizamos uma análise crítica do documento Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil de Matemática (Brasil, 1998), à luz da teoria histórico-cultural e da Teoria da Atividade de Leontiev (1988). O objetivo do trabalho foi o de analisar a organização do ensino de matemática na Educação Infantil defendida pelo RCNEI. Para desenvolver o trabalho analítico apoiamo-nos nas contribuições da teoria histórico-cultural, por meio de seus principais autores, Vygotsky e Leontiev, bem como em autoresque defendem o ensino de matemática nessa perspectiva, particularmente Manoel Oriosvaldo de Moura. Obviamente, outros tantos pesquisadores foram fundamentais, no que se refere à Educação Infantil; podemos destacar Bernard Charlot e Moiysés Kuhlmann Jr., entre outros. Na questão sobre legislação dialogamos, sobretudo, com Ana Beatriz Cerisara, Marina Palhares e Cláudia Martinez. 6 Apresentaremos, a seguir, os fundamentos da teoria histórico- cultural, destacando, particularmente, o conceito de criança e de educação matemática que servirão de critérios para a análise dos conteúdos matemáticos propostos pelo RCNEI. Então traremos a análise sobre o documento, considerando a sua estrutura organizacional, a sua concepção de infância e de matemática e os conteúdos matemáticos. Na última parte, “Considerações Finais”, apontaremos algumas possibilidades de discussão sobre a organização do ensino de matemática na Educação Infantil, a partir da realização deste trabalho. 1.1 Infância e Matemática A discussão sobre a infância, no âmbito deste trabalho, implica, inicialmente, uma discussão sobre a Educação Infantil. Em outros trabalhos (Araujo,1998), ao discorrer sobre a visão que a sociedade possui acerca da escola de Educação Infantil, salientamos que: Ainda é corrente, tanto por parte dos professores como da sociedade em geral, uma visão equivocada em relação à Escola de Educação Infantil. A consideração sobre sua concepção é normalmente perpassada pelo preconceito, o que acarreta necessariamente um “pré- juízo”, na medida em que esta é percebida como um período anterior ao processo de escolarização, de caráter preparatório à primeira série e/ou ainda com uma intensa função, na maioria das situações, assistencialista e/ou “recreacionista” (Araujo, 1998, p. 14, grifos da autora). Na última década, em especial, o caráter assistencialista da Educação Infantil tem sido revisto, por meio de um entendimento da inter-relação entre educar e cuidar (Kuhlmann Jr, 1999; ECA, 1990; Brasil, 1996). Nesse sentido, é difícil sustentar, legal e teoricamente, o assistencialismo como função exclusiva da Educação Infantil. Todavia, o caráter preparatório para a escola permanece. Exemplo explícito disso é a propaganda que foi amplamente veiculada na mídia nacional, em agosto de 2007, sobre o Plano de Desenvolvimento da Educação, em que a Educação Infantil é declarada como “a que prepara para a escola”. Ao fazer ampla propaganda sobre a natureza preparatória da Educação Infantil, o governo federal confirma, na verdade, o seu entendimento sobre a infância presente 7 no RCNEI: “As crianças possuem uma natureza singular, que as caracteriza como ser que sentem e pensam o mundo de um jeito muito próprio” (Brasil, 1998, p. 213). Tal compreensão acerca da Educação Infantil, como período preparatório, vai de encontro ao sentido que a teoria histórico-cultural atribui ao termo. A função da Educação Infantil que defendemos não é a de preparar para a escola, para o primeiro ano do Ensino Fundamental. O sentido de preparatório para a teoria histórico-cultural é outro. A função preparatória da primeira etapa da educação básica relaciona-se com a assunção de um papel central na criação das condições e circunstâncias para a ocorrência do processo de formação histórica dos indivíduos, na formação de funções psíquicas e formas de comportamentos essencialmente culturais, que tem início desde a infância. (Araujo et al., 2009). Soma-se a essa discussão sobre a função social da Educação Infantil o entendimento abstrato da condição infantil, que não considera, de fato, a situação real da criança em relação à classe social à qual pertence (Charlot, 1979), compreensão disfarçada por um pretenso discurso de respeito à diversidade cultural do Brasil. Entretanto, não se trata apenas de uma diversidade cultural, há que considerar as desigualdades sociais e econômicas que marcam a sociedade brasileira. No nosso entendimento, a concepção de criança, como sujeito histórico que ocupa um lugar no sistema das relações sociais, fundamenta-se na compreensão marxista do homem como ser social, rompendo, assim, com a ideia de que a infância é apenas uma fase que antecede a vida adulta, fase essa marcada, sobretudo, pela dimensão cronológica, no sentido biológico do termo, ou seja, de idade. Aqui cabe lembrar que, por viver a criança em um ambiente socializado, até as próprias características biológicas da infância tomam um sentido social, sem, no entanto, perder sua matriz biológica (Charlot, 1979). Isso não significa, como alerta Charlot (1979, p. 107), que se possam negligenciar “os traços biológicos próprios à infância, mas que é preciso conceder- lhes seu sentido no processo dinâmico de ações entre a criança e o adulto que define a infância”. Por isso, é importante compreender que, para uma determinada concepção de criança, corresponde uma determinada organização de ensino. Isso é claramente percebido pela forma como o RCNEI discorre sobre o conhecimento matemático: Fazer Matemática é expor idéias próprias, escutar a dos outros, formular e comunicar procedimentos de resolução de problemas, confrontar, 8 argumentar e procurar validar seu ponto de vista, antecipar resultados de experiências não realizadas, aceitar erros, buscar dados que faltam para resolver problemas, entre outras coisas. Dessa forma as crianças poderão tomar decisões, agindo como produtoras de conhecimento e não apenas executoras de instruções (Brasil, 1998, p. 2007). Assim, para o RCNEI, a ideia fundamental é a de proporcionar aos sujeitos o acesso a um conjunto de signos e regras que articulam o conhecimento matemático, de modo que o sujeito possa resolver problemas. Mas será apenas esse o papel da matemática? Da escola? Na educação de infância, segundo Moura (2007), o objetivo principal é o de fazer com que a criança compreenda o mundo simbólico que a cerca. Nesse sentido, ainda de acordo com Moura, a aprendizagem da matemática, como ferramenta simbólica, é imprescindível para que a criança, ao mesmo tempo que se aproprie de uma determinada linguagem, aproprie-se, também, dos seus modos de produção: Aprender matemática não é só aprender uma linguagem, é adquirir também modos de acção que possibilitem lidar com outros conhecimentos necessários à sua satisfação, às necessidades de natureza integrativas, com o objectivo de construção de solução de problemas tanto do indivíduo quanto do colectivo. (Moura, 2007, p. 62). A teoria histórico-cultural, ao defender o conhecimento matemático como produção humana, atribui aos saberes um valor social que não se restringe à produção de conhecimento. De fato, os saberes matemáticos já estão dados e são, portanto, conhecimento pronto. Todavia, a criança, ao apropriar-se do significado social desses conhecimentos, atribui-lhes, também, um sentido pessoal. Isso faz com que esse seja um conhecimento feito e fazendo-se (Diadema, 1992). A ideia de que, desde que nascemos, estamos inseridos em um mundo no qual a Matemática está presente é amplamente difundida no RCNEI. (Brasil, 1998, p. 207, p. 212) A partir dessa ideia, o documento expõe quais objetivos e conteúdos devem ser aprendidos pelas crianças nas instituições de Educação Infantil, destacando o recurso das situações-problema: “Historicamente a Matemática tem-se caracterizado como uma atividade de resolução de problemas de diferentes tipos. A instituição de EducaçãoInfantil poderá constituir um contexto favorável para propiciar a exploração de situações-problema.” (Brasil, 1998, p. 211). 9 O ensino de matemática, nesse sentido, passa pela resolução de problemas. Mas, quais são as situações-problema para a Educação Infantil? A matemática, nessa etapa de educação se resume a isso? A teoria histórico-cultural preconiza a necessidade de ruptura com um ensino deslocadodo processo cognitivo e cultural da criança. O conhecimento matemático é entendido a partir de seu valor cultural, da construção social, abre possibilidades para que o sujeito se veja como aquele que se apropria de conhecimentos, que é capaz de confrontar teorias e estabelecer relações com outros sujeitos e objetos (Araujo, 2005, p. 3). Por essa razão, defendemos a dimensão histórico-lógica para ensinar a matemática, o que significa perceber o movimento histórico- cultural do homem, ao transformar a natureza em busca de melhores condições de vida. No caso específico da matemática, a necessidade de contar promoveu o controle das quantidades por meio de sistemas de signos, conhecimentos matemáticos que foram sendo desenvolvidos ao longo do tempo, desencadeando a necessidade de serem compartilhados com todos os membros do grupo, com a finalidade de promover a comunicação entre os sujeitos, para a realização de ações colaborativas. (Moura, 2007). O objetivo da situação-problema, para o RCNEI, é o de desenvolver o raciocínio lógico da criança, como se a aprendizagem de matemática fosse uma iniciação, para que o sujeito, ao adquirir competência para resolver problemas de seu cotidiano, torne-se capaz de lidar satisfatoriamente com as situações que irá resolver mais tarde, em sua vida profissional. Essa é uma visão restrita ao utilitarismo e tem como meta educacional, como salienta Duarte (2001, p. 63), “a formação de um indivíduo preparado para a constante adaptação às demandas do processo de reprodução do capital”. O RCNEI afirma que a situação-problema é aquela que [...] deve ser criteriosamente planejada, a fim de que esteja contextualizada, remetendo a conhecimentos prévios, possibilitando a ampliação de repertórios de estratégias no que se refere à resolução de operações, notação numérica, formas de representação e comunicação etc., e mostrando-se como uma necessidade que justifique a busca de novas informações (Brasil, 1998, p. 212). 10 Na teoria histórico-cultural, o papel principal da escola é humanizar através da instrução, e isso significa que ela possui o poder de intervir na realidade dos sujeitos, por isso deve ser significativa. Nesse contexto, o ensino de Matemática deve ser tomado como situação- problema, como define Moura: Tomar o ensino na perspectiva de uma situação- problema envolve assumir a educação como significativa, isto é, os objetivos serão relevantes para o conjunto de sujeitos no processo educacional. Assumir que os objetivos sejam relevantes passa a exigir que se escolham conteúdos que os traduzam na ação educativa e na criação de atividades que coloquem os sujeitos na perspectiva de aprender algo que os desenvolva tanto do ponto de vista psicológico como o da instrumentalização para resolver problemas onde aquele conteúdo específico se faz necessário (Moura, 1996, p.34). Nessa perspectiva de Educação Matemática, evidencia-se a importância do planejamento das ações educativas pelo professor, responsáveis por possibilitar a apropriação do conhecimento através de condições específicas e objetivas e, principalmente, de atividades significativas para os alunos. O RCNEI, em diversos momentos, afirma que se deve considerar o conhecimento prévio dos alunos para, a partir destes, desenvolver estratégias de ensino que permitam a aquisição de novos conteúdos. A perspectiva histórico-lógica não despreza a importância desses conhecimentos, mas amplia o seu papel na apropriação da linguagem matemática, como assevera Moura: A atividade de ensino que traduz em conteúdos os objetivos de uma comunidade e que considera as diferenças individuais e as particularidades dos problemas deve ter como preocupação básica colocar em ação os vários conhecimentos presentes em sala de aula no processo de construção de novos conhecimentos. A atividade de ensino que respeita os diferentes níveis dos indivíduos e que define um objetivo de formação como problema coletivo é o que chamamos de Atividade Orientadora de Ensino (Moura, 1996, p. 32, grifos do autor). Portanto, o jogo é considerado como parte do universo da criança que a auxiliará na apropriação do conhecimento produzido historicamente pelo homem. Assim, humaniza-se através da instrução, como afirma Moura em relação à matemática: 11 Tratar a aprendizagem da matemática com uma actividade implica fazer com que a criança tenha um motivo para aprendê-la, que defina as ações necessárias para a sua aprendizagem, que utilize instrumentos que lhe permitam ter acesso à linguagem matemática, para ter acesso a novos conhecimentos em que ela se faz presente. Isso significa que, ao estudá-la e apreendê-la, irá adquirindo um modo de actuar frente a outros conhecimentos a serem adquiridos. (Moura, 2007, p. 62). De modo geral, podemos dizer que o RCNEI assume um discurso ambíguo, “que o torna mais facilmente assimilável por um grande contingente de educadores” (Duarte, 2001, p. 65), sobretudo quando ressalta a formação de cidadania: O trabalho com a Matemática pode contribuir para a formação de cidadãos autônomos, capazes de pensar por conta própria, sabendo resolver problemas. Nessa perspectiva, a instituição de educação infantil pode ajudar as crianças a organizarem melhor as suas informações e estratégias, bem como proporcionar condições para a aquisição de novos conhecimentos matemáticos. O trabalho com noções matemáticas na educação infantil atende, por um lado, às necessidades das próprias crianças de construírem conhecimentos que incidam nos mais variados domínios do pensamento; por outro, corresponde a uma necessidade social de instrumentalizá-las para melhor viver, participar e compreender um mundo que exige diferentes conhecimentos e habilidades (Brasil, 1998, p. 207). O que vemos aqui é que a criança “construiria” conhecimento, pensamento, representações, capacidades. Como já afirmamos anteriormente neste texto, isso delega uma responsabilidade à criança pelo seu processo de aprendizagem e desenvolvimento. Sem uma compreensão histórico-cultural de infância, qualquer proposta curricular configura-se como vácuo epistemológico e filosófico do conhecimento. Por essa razão é que priorizamos, também em educação matemática, essa discussão. A compreensão sobre o processo de aprendizagem e desenvolvimento infantil deveria pautar a organização do ensino de matemática. Discussão que parece ausente no RCNEI, ao tratar da definição dos conteúdos matemáticos para a Educação Infantil, questão que apresentaremos a seguir. 12 1.2 Conteúdos matemáticos No título sobre os conteúdos matemáticos, o documento apresenta uma divisão para tratar deles para as crianças de zero a três anos e para as de quatro a seis anos. Na primeira parte, destaca que: Os bebês e as crianças pequenas estão começando a conhecer o mundo e a estabelecer as primeiras aproximações com ele. As situações cotidianas oferecem oportunidades privilegiadas para o trabalho com a especificidade das idéias matemáticas. As festas, as histórias e, principalmente, os jogos e as brincadeiras permitem a familiarização com elementos espaciais e numéricos, sem imposição. Assim, os conceitos matemáticos não são o pretexto nem a finalidade principal a ser perseguida. As situações deverão ter um caráter múltiplo para que as crianças possam interessar-se, fazer relações sobre várias áreas e comunicá-las (Brasil, 1998, p. 218, grifos nossos). Essas considerações vão de encontro ao assinalado no próprio documento em trecho anterior: “aprender matemática é um processo contínuo de abstração no qual as crianças atribuem significados e estabelecem relações com base nas observações, experiências e ações que fazem, desde cedo, sobre elementos do seu ambiente físico e sociocultural” (Ibidem, p. 217, grifos do autor), ou seja, ao mesmo tempo que afirma a aproximação com a matemáticapor meio das experiências, acaba negando essa afirmação, ao dizer que “os conceitos matemáticos não são o pretexto nem a finalidade principal a ser perseguida” (Ibidem, p.218). A definição dos conteúdos para as crianças de zero a três anos é exemplo da confusão conceitual entre objetivos, conteúdos e estratégias: • Utilização da contagem oral, de noções de quantidade, de tempo e de espaço em jogos, brincadeiras e músicas junto com o professor e nos diversos contextos nos quais as crianças reconheçam essa utilização como necessária. • Manipulação e exploração de objetos e brinquedos, em situações organizadas de forma a existirem quantidades individuais suficientes para que cada criança possa descobrir as características e propriedades principais e suas possibilidades associativas: empilhar, rolar, transvasar, encaixar etc. (Brasil, 1998, p. 217, grifos do autor). 13 Poderíamos aludir que essa confusão se dê, por um lado, em função dos poucos estudos dedicados à educação matemática para crianças pequenas, sobretudo para as com idade entre 0 e 3 anos. E, por outro, mais especificamente, porque ainda não temos acúmulo suficiente de pesquisa e debates sobre a relação entre organização curricular e desenvolvimento infantil que focalizem o conhecimento matemático no espaço creche, instituição que legalmente atende crianças nessa faixa etária. Todavia, esses fatos não justificam uma indiferenciação entre conteúdos, objetivos e estratégias, conceitos básicos da teoria didática. O título dos conteúdos dedica maior expressão às crianças de 4 a 6 anos, talvez por entender que: “Nesta faixa etária aprofundam-se os conteúdos para as crianças de zero a três anos, dando-se crescente atenção à construção de conceitos e procedimentos especificamente matemáticos.” (Ibidem, p. 219, grifos nossos). Após a introdução, há três blocos de conteúdos, o de Números e Sistema de Numeração, o de Grandezas e Medidas e o de Espaço e Forma. O primeiro deles “envolve contagem, notação e escrita numéricas e as operações matemáticas”, (Ibidem, p. 218). A seguir, traremos alguns extratos do documento que mostram como esses conteúdos são apresentados. Buscaremos fazer as discussões cabíveis sobre cada um deles, fundamentadas na teoria histórico-cultural. Sobre a contagem, cabe salientar que a importância de contar está no fato de que quem domina a contagem domina a ideia de quantidades, ou seja, o movimento de controlar, comparar e representar as quantidades (Moura, 1996). Para entender o movimento de controle de quantidades, remetemo-nos à história da humanidade que, em busca de melhores condições de vida e diante de necessidades que exigiam o domínio dessas quantidades, desenvolveu um sistema de contagem que é conhecido como correspondência um a um (Ifrah, 1992), que consiste em associar a cada objeto de um conjunto um objeto de um outro conjunto. A correspondência um a um foi um dos passos decisivos para o surgimento da noção de número. A forma como o RCNEI define contagem não revela o movimento de produção humana no conceito de contagem, cuja ideia basilar reside na correspondência entre um conjunto que conta e um conjunto contado. Para o documento, contar 14 é uma estratégia fundamental para estabelecer o valor cardinal de conjuntos de objetos. Isso fica evidenciado quando se busca a propriedade numérica dos conjuntos ou coleções em resposta à pergunta “quantos?” (cinco, seis, dez etc.). É aplicada também quando se busca a propriedade numérica dos objetos, respondendo à pergunta “qual?”. Nesse caso está também em questão o valor ordinal de um número (quinto, sexto, décimo etc.). Na contagem propriamente dita, ou seja, ao contar objetos as crianças aprendem a distinguir o que já contaram do que ainda não contaram e a não contar duas (ou mais) vezes o mesmo objeto; descobrem que tampouco devem repetir as palavras numéricas já ditas e que, se mudarem sua ordem, obterão resultados finais diferentes daqueles de seus companheiros; percebem que não importa a ordem que estabelecem para contar os objetos, pois obterão sempre o mesmo resultado. Pode-se propor problemas relativos à contagem de diversas formas. É desafiante, por exemplo, quando as crianças contam agrupando os números de dois em dois, de cinco em cinco, de dez em dez, etc. (Brasil, 1998, p. 220). A Atividade Orientadora de Ensino (AOE) estabelece as diretrizes do ensino da contagem a partir do movimento histórico do conceito. Ifrah (1992) esclarece-nos que contar é uma faculdade humana, não é uma aptidão natural e, por ser um atributo exclusivamente humano, diz respeito a um fenômeno mental muito complicado, intimamente ligado ao desenvolvimento mental. Contar, ou seja, controlar quantidades faz com que a criança trabalhe não apenas com o aspecto cardinal do número, como afirma Moura, mas também com seu aspecto ordinal (1996, p. 23): “Através da contagem um a um lida principalmente com o aspecto cardinal do número, possibilitando a conquista da conservação das quantidades. E através da comparação de quantidade, desenvolve outro aspecto constitutivo do número: o aspecto ordinal”. O aspecto ordinal do número é importante porque possibilita a organização da contagem em uma determinada sequência, desenvolvendo o conceito de inclusão hierárquica, que “é a compreensão de que cada quantidade se forma a partir da anterior, acrescentando mais um” (Moura, 1996, p. 61). A questão da notação numérica é discutida no RCNEI, sem considerar o movimento humano de criação de um conjunto finito de signos com os quais se podem representar quantidades infinitas, que é o atual sistema de numeração decimal. A contagem por agrupamento é limitada, pois não permite representar quantidades 15 muito grandes. Esse problema foi resolvido com a criação do valor posicional dos algarismos, cada um dos quais representa uma quantidade; e do zero, que vem consolidar a ideia do valor posicional e ordinal dos números. É sabido que foram os hindus que criaram tal sistema, por sua vez divulgado pelos árabes. Daí o nome de sistema de numeração indo- arábico, ou sistema de numeração decimal que, a partir do século XVI, passou a ser usado amplamente e hoje podemos considerar de âmbito universal. A proposta do RCNEI, relativa ao sistema de numeração decimal, centra-se, sobretudo, no uso do número como registro: A importância cultural dos números e do sistema de numeração é indiscutível. A notação numérica, na qual os símbolos são dotados de valores conforme a posição que ocupam, característica do sistema hindu-arábico de numeração, é uma conquista do homem, no percurso da história, e um dado da realidade contemporânea. [...] Para as crianças, os aspectos relevantes da numeração são os que fazem parte de suas vidas cotidianas. Pesquisar os diferentes lugares em que os números se encontram, investigar como são organizados e para que servem, é tarefa fundamental para que possam iniciar a compreensão sobre a organização do sistema de numeração. Quando o professor lê histórias para as crianças, pode incluir a leitura do índice e da numeração das páginas, organizando a situação de tal maneira que todos possam participar. É importante aceitar como válidas respostas diversas e trabalhar a partir delas. Histórias em capítulos, coletâneas e enciclopédias são especialmente propícias para o trabalho com índice. Fichas que indicam a ordinalidade — primeiro, segundo, terceiro — podem ser sugeridas às crianças como material para uso nas brincadeiras de faz-de- conta, quando é necessário, por exemplo, decidir a ordem de atendimento num posto de saúde ou numa padaria; em jogos ou campeonatos (Brasil, 1998, p. 222). O conceito de aprendizagem apresentado no RCNEI é fundamentado nas experiências cotidianas. Sabemos que o argumento de que o conhecimento matemático é necessário para ser utilizadona vida (daí seu aspecto cotidiano) tem predominado não apenas nos documentos oficiais, mas também no cenário escolar, seja da Educação Infantil, seja no Ensino Médio. Um discurso comum repousa na interrogação: para que serve a matemática que aprendemos na escola? E, com isso, reforça-se a ideia do caráter utilitarista do 16 conhecimento. Nessa lógica, os conteúdos que deveríamos ensinar na escola estariam justificados pela sua utilização no dia a dia, pela sua natureza empírica. A marca da perspectiva empírica de organização do ensino passa pelo pensamento classificante e empírico (Davidov, 1982). Um exemplo desse tipo de pensamento, pautado na observação das aparências dos objetos, é descrito por Rosa, Moraes e Cedro (2010) ao apresentarem o modo como normalmente se trabalha com formação do conceito de número: Como é bem conhecido, para fazer as crianças se familiarizarem com essa noção, são mostrados a elas conjuntos de objetos (tais como conjuntos de palitos, bolas, carrinhos, etc.). As crianças observam esses conjuntos, os comparam, abstraem os atributos característicos desses conjuntos, extraem as características numéricas idênticas ou comuns, e os nomeiam com signos numéricos ou com palavras numerais. Como resultado disso, temos um conjunto que pode ser como o signo numérico ou palavra numérica zero (conjunto vazio), outro conjunto, um, outro dois, e assim por diante. (Rosa et al., 2010, p.138-139). A crítica a esse tipo de ensino reside no fato de que tal atividade não possibilita que a criança supere o conhecimento empírico. A esse respeito, Davidov (1982) salienta a necessidade de ultrapassarmos o nível das representações sobre os objetos reais circundantes, pois essa prática impossibilita que a criança tenha acesso à formação de conceitos genuinamente matemáticos. Poderíamos, então, nos perguntar: “Mas isso também vale para a Educação Infantil?”. E nossa resposta é afirmativa. É afirmativa porque consideramos que, desde que a criança nasce, está imersa em um mundo que utiliza a matemática como ferramenta simbólica que a humanidade construiu. Ainda que na Educação Infantil ela não complete a aquisição dessas ferramentas, é nela que teve ter início. Ou seja, desde a Educação Infantil a criança tem o direito de apropriar-se da experiência social da humanidade, tem o direito de tornar sua a conquista que a humanidade alcançou em forma de conhecimento. Mesmo que o conteúdo dessa conquista signifique apenas uma pequena parcela de todo conhecimento acumulado, trata-se da primeira de muitas outras conquistas. Nesse sentido, o documento menciona o valor posicional como uma conquista da humanidade, mas não apresenta, de fato, o que significou esse avanço. Ao tratar 17 o sistema de numeração decimal (SND) apenas no seu aspecto de notação, o documento não discute nem apresenta as principais características que o compõem. Essa questão não revela apenas um descuido, mas demonstra o entendimento de que a criança aprende o SND pelo uso e de que cabe ao professor proporcionar situações nas quais seu uso se faça necessário. Nesse sentido, a notação numérica é compreendida apenas como uma marcação para diferenciar objetos ou localizar dados, subtraindo a questão fundamental, que é a compreensão do número em relação ao sistema de numeração. A esse respeito, Moura comenta: Mesmo antes de entrar para a escola, as crianças estão acostumadas a observar e utilizar os números em seu cotidiano, e muitas vezes sabem “ler” e escrever a seqüência numérica até determinada quantidade. Entretanto, na maior parte das vezes, os numerais aparecem na realidade em contextos de indicação para especificar determinados elementos. Por exemplo: números de casa, telefone, ônibus, canal de tv, relógio, placa, dinheiro, entre outros. O numeral indo-arábico é a abstração de todos os conceitos presentes nos outros numerais, pois os signos não fazem nenhuma referência explicita às quantidades representadas. Estão presentes em sua estrutura de funcionamento: ordenação e seqüência; agrupamento e propriedade aditiva; base e valor posicional; valor operacional do zero (Moura, 1996, p. 119). Desse modo, a apropriação do sistema de numeração decimal solicita que se compreendam as regras que o compõem, particularmente a relacionada com o valor posicional do número. Este não é um processo que possa ser realizado pelas crianças apenas com a matemática cotidiana ou por meio de descobertas das regularidades. Por ser de natureza abstrata, é preciso que alguém ensine à criança; para isso existe o professor, e, embora na Educação Infantil a compreensão dessas regras não se complete, reafirmamos, tal compreensão deve ter seu início nessa primeira etapa do ensino fundamental. A forma como o documento inicia a discussão sobre operações remete para a contagem por agrupamento. Os conteúdos de operações apresentados no RCNEI são novamente fundamentados na experiência das crianças, e as atividades propostas não enfatizam a mediação do professor, que é fundamental no processo de aprendizagem de um conteúdo matemático completamente operatório, como as operações: 18 [...] Quando as crianças contam de dois em dois ou de dez em dez, isto é, quando contam agregando uma quantidade de elementos a partir de outra, ou contam tirando uma quantidade de outra, ou ainda quando distribuem figuras, fichas ou balas, elas estão realizando ações de acrescentar, agregar, segregar e repartir relacionadas a operações aritméticas. O cálculo é, portanto, aprendido junto com a noção de número e a partir do seu uso em jogos e situações- problema (Brasil, 1998, p. 223). O entendimento de que o cálculo é aprendido junto com a noção do número é um aspecto que a perspectiva histórico-cultural defende, porém essa não é a única questão que deve ser considerada, quando do ensino das noções de operação. Primeiramente, há que compreender que “acrescentar, agregar, segregar e repartir” (Brasil, 1998, p. 223) foram formas que o homem criou para controlar o movimento das quantidades. E, nesse sentido, há que considerar as principais ideias presentes em cada uma das operações, questão não abordada pelo Referencial. Moura e Lanner de Moura (1992) discorrem a respeito das quatro operações, apresentando as principais ideias matemáticas presentes em cada uma delas. A adição representa um nível de abstração mais elevado que a contagem, pois envolve a compreensão de que um todo e outro todo formam um novo todo. A ideia principal é a do acréscimo. Na subtração há várias ideias: a comparativa procura perceber a diferença e está normalmente presente em questões que envolvem saber “quanto é mais que...?” ou “quanto é menos que...?”. Outra ideia presente é a subtrativa, que implica retirada, quando se quer saber “quanto fica?”. E, por fim, podemos ter na subtração a ideia aditiva, utilizada com frequência pelas crianças em resposta à pergunta “quanto falta para?”. Essa compreensão não está presente no RCNEI; pelo contrário, as operações são tratadas apenas na esfera do cotidiano e não fornecem para o professor a fundamentação teórica necessária para elaborar atividades de ensino. Com relação ao conteúdo grandezas e medidas, o documento não considera a questão fundamental para a aprendizagem das medidas: a criação de uma unidade padrão: As medidas estão presentes em grande parte das atividades cotidianas e as crianças, desde muito cedo, têm contato com certos aspectos das medidas. O fato de que as coisas têm tamanhos, pesos, volumes, temperaturas diferentes e que tais diferenças freqüentemente são assinaladas pelos outros 19 (está longe, está perto, é mais baixo, é mais alto, mais velho, mais novo, pesa meio quilo, mede dois metros, a velocidade é de oitenta quilômetros por hora etc.) permite que as crianças informalmente estabeleçam esse contato,fazendo comparações de tamanhos, estabelecendo relações, construindo algumas representações nesse campo, atribuindo significado e fazendo uso das expressões que costumam ouvir. Esses conhecimentos e experiências adquiridos no âmbito da convivência social favorecem a proposição de situações que despertem a curiosidade e interesse das crianças para continuar conhecendo sobre as medidas (Brasil, 1998, p. 225). Na teoria histórico-cultural, a noção de grandezas e medidas enfatiza a questão da comparação através de uma unidade padrão. Para medir, utiliza-se a comparação dos objetos. Mas isso não quer dizer que medir signifique apenas estabelecer que um seja maior que o outro. Nesse sentido, a atividade de ensino deve considerar, segundo Lanner de Moura, “três fases, três aspectos distintos: a escolha da unidade; a comparação com a unidade; a expressão numérica do resultado dessa comparação por um número” (Lanner de Moura, 1995, p. 51). Aspectos que não são explicitados pelo RCNEI, que continua dando ênfase ao conhecimento cotidiano, como se ele fosse suficiente para a criança apropriar-se desse conteúdo. Ainda de acordo com a perspectiva histórico-cultural, as noções de medida e espaço e forma — que podem ser representadas pela geometria — são historicamente interdependentes, como mostra Lanner de Moura: As primeiras considerações que o homem faz da geometria parecem ter sua origem em simples observações provenientes da capacidade humana de reconhecer configurações físicas, comparar formas e tamanhos. Inúmeras circunstâncias de vida devem ter levado o homem às primeiras elaborações geométricas como, por exemplo, a noção de distância, a necessidade de delimitar a terra, a construção de muros e moradias e outras. Podemos afirmar que na origem de problemas geométricos concretos com os quais o homem se envolve desde suas atividades práticas, está a necessidade de controlar as variações de dimensões com as quais se defronta ao delimitar seu espaço físico para morar e produzir (Lanner de Moura, 1995, p. 54). 20 O RCNEI novamente não destaca o percurso da humanidade em relação à “numeralização” do espaço e assume a posição de defesa da aprendizagem pela experiência. Nesse sentido, curiosamente, ele não faz menções ao fato de que, para a Educação Infantil, em relação à geometria, faz-se necessário considerar que a criança se apropria do espaço a partir de seu próprio corpo e de seus deslocamentos, construindo noções geométricas gradativamente mais complexas. O pensamento geométrico compreende as relações e representações espaciais que as crianças desenvolvem, desde muito pequenas, inicialmente, pela exploração sensorial dos objetos, das ações e deslocamentos que realizam no meio ambiente, da resolução de problemas. Nesse sentido, o trabalho na educação infantil deve colocar desafios que dizem respeito às relações habituais das crianças com o espaço, como construir, deslocar-se, desenhar etc., e à comunicação dessas ações. Assim, à educação infantil coloca-se a tarefa de apresentar situações significativas que dinamizem a estruturação do espaço que as crianças desenvolvem e para que adquiram um controle cada vez maior sobre suas ações e possam resolver problemas de natureza espacial e potencializar o desenvolvimento do seu pensamento geométrico. O trabalho com o espaço pode ser feito, também, a partir de situações que permitam o uso de figuras, desenhos, fotos e certos tipos de mapas para a descrição e representação de caminhos, itinerários, lugares, localizações etc. (Brasil, 1998, p. 229). Dessa forma, na teoria histórico-cultural, o trabalho envolvendo espaço e forma não deve limitar-se ao reconhecimento e à memorização de formas geométricas. Há que desenvolver propostas que considerem o espaço sob a perspectiva do esquema corporal, da percepção do espaço, além das noções geométricas propriamente ditas. Segundo Lanner de Moura (1995), a evolução das noções geométricas como formas e medidas foi possível devido à capacidade e à necessidade do homem de transformar a natureza, em busca de aumentar o seu conforto, permitindo a realização de construções, primeiramente precárias, as quais ele procurava aperfeiçoar cada vez mais, acumulando sempre mais conhecimentos. Na evolução de seus conhecimentos, para o homem que ainda não produzia excedentes, ou seja, apenas coletava da natureza o que precisava para sobreviver, o ponto de referência da organização do espaço era o próprio corpo, pois ele não construía relações entre os objetos. 21 Estas, porém, desenvolveram-se à medida que o homem passou a produzir o seu alimento, possibilitando dar formas aos objetos, visando a sua utilidade e praticidade. Assim, ele recria os objetos encontrados na natureza, aperfeiçoando-os sempre de acordo com sua necessidade, superando os limites da própria natureza. Diante dessa perspectiva, a autora afirma que este seria o princípio norteador para o ensino de geometria. 2 BIBLIOGRAFIA 2.1 Referências Básicas CERQUETTI-ABERKANE, F.; BERDONNEAU, C. O ensino de matemática na Educação Infantil. Artes Médicas, 2001. DAVID, Maria Manoela. TOMAZ, Vanessa Sena. Interdisciplinaridade e aprendizagem da matemática. Autentica, 2008. FERREIRA, Viviane Lovatti. Metodologia do Ensino da Matemática. Cortez, 2011. 2.2 Referências Complementares ALVES, Eva Maria Siqueira. A ludicidade e o ensino de matemática: uma prática possível. Campinas, SP: Papirus, 2001. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. Brasília: MEC/SEF, 2001, vol.1,2 e 3. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. Brasília: MEC/SEF, 1998, vol.2. BOSSANEZI, Rodney Carlos. Ensino-aprendizagem com modelagem matemática. Contexto, 2011. CARRAHER, Terezinha. Aprender pensando. Vozes, 1992. GOLBERT, Clarissa. Novos rumos na aprendizagem da matemática. Mediação, 2009. LORENZATO, Sérgio. Educação Infantil e percepção matemática. Campinas, SP: Autores Associados, 2006. OLIVEIRA, Juliana Cecília de. A geometria na educação infantil: desafios da prática docente, 2008. Disponível IN: 22 http://www.ufscar.br/~pedagogia/novo/files/tcc/tcc_turma_2005/261270.pdf:Acesso em 23 maio, 2012. PIAGET, Jean; INHELDER, Barbe. A Representação do Espaço na Criança. Porto Alegre: artes médicas, 1993. SMOLE, K.S; Diniz, M.I. e Cândido, Patrícia Coleção Matemática de 0 a 6. Porto Alegre: Artmed, 2003. WALLE, John. Matemática no ensino fundamental. Artmed, 2009. ZUNINO, D. L. de. A matemática na escola: aqui e agora. Trad. Juan A. Lorens. Artes Médicas, 1995.
Compartilhar