Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
A CIÊNCIA LINGUÍSTICA: CONCEITOS BÁSICOS Maringá 2010 EDITORA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ REITOR: Prof. Dr. Mauro Luciano Baesso VICE-REITOR: Prof. Dr. Julio César Damasceno DIRETORA DA EDUEM: Profa. Dra. Terezinha Oliveira EDITORA-CHEFE DA EDUEM: Profa. Dra. Sonia Silva Marcon CONSELHO EDITORIAL PRESIDENTE: Profa. Dra. Terezinha Oliveira EDITORES CIENTÍFICOS: Profa. Dra. Ana Lúcia Rodrigues Profa. Dra. Angela Mara de Barros Lara Profa. Dra. Analete Regina Schelbauer Prof. Dr. Antonio Ozai da Silva Profa. Dra. Cecília Edna Mareze da Costa Prof. Dr. Eduardo Augusto Tomanik Profa. Dra. Elaine Rodrigues Profa. Dra. Larissa Michelle Lara Prof. Dr. Luiz Roberto Evangelista Profa. Dra. Luzia Marta Bellini Prof. Me. Marcelo Soncini Rodrigues Prof. Dr. Márcio Roberto do Prado Prof. Dr. Mário Luiz Neves de Azevedo Profa. Dra. Maria Cristina Gomes Machado Prof. Dr. Oswaldo Curty da Motta Lima Prof. Dr. Raymundo de Lima Profa. Dra. Regina Lúcia Mesti Prof. Dr. Reginaldo Benedito Dias Profa. Dra. Rozilda das Neves Alves Prof. Dr. Sezinando Luiz Menezes Profa. Dra. Valéria Soares de Assis EQUIPE TÉCNICA FLUXO EDITORIAL Edneire Franciscon Jacob Mônica Tanamati Hundzinski Vania Cristina Scomparin PROJETO GRÁFICO E DESIGN Luciano Wilian da Silva Marcos Kazuyoshi Sassaka Marcos Roberto Andreussi MARKETING Marcos Cipriano da Silva COMERCIALIZAÇÃO Gerson Ribeiro de Andrade Paulo Bento da Silva Solange Marly Oshima COPYRIGHT © 2016 EDUEM Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo mecânico, eletrônico, reprográfico etc., sem a autorização, por escrito, do autor. Todos os direitos reservados desta edição 2016 para a editora. EDUEM - EDITORA DA UNIV. ESTADUAL DE MARINGÁ Av. Colombo, 5790 - Bloco 40 Campus Universitário 87020-900 - Maringá - Paraná Fone: (0xx44) 3011-4103 Fax: (0xx44) 3011-1392 http://www.eduem.uem.br eduem@uem.br Maringá 2010 FORMAÇÃO DE PROFESSORES EM LETRAS - EAD Cristiane Carneiro Capristano (Organizadora) 3 A Ciência Linguística: conceitos básicos Endereço para correspondência: Eduem - Editora da Universidade Estadual de Maringá Av. Colombo, 5790 - Bloco 40 - Campus Universitário 87020-900 - Maringá - Paraná Fone: (0xx44) 3011-4103 / Fax: (0xx44) 3011-1392 http://www.eduem.uem.br / eduem@uem.br Coleção Formação de Professores em Letras - EAD Apoio técnico: Rosane Gomes Carpanese Edna Barbosa Bergstron Normalização e catalogação: Ivani Baptista CRB - 9/331 Revisão Gramatical: Manoel Messias Alves da Silva Edição, Produção Editorial e Capa: Carlos Alexandre Venancio Eliane Arruda Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Copyright © 2010 para o autor 2a reimpressão - 2016 - Revisada Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo mecânico, eletrônico, reprográfico etc., sem a autorização, por escrito, do autor. Todos os direitos reservados desta edição 2010 para Eduem. A ciência linguística: conceitos básicos / Cristiane Carneiro Capristano, organizadora. -- Maringá : Eduem, 2010. 120p. 21cm. (Formação de Professores em Letras – EAD; n. 3) ISBN 978-85-7628-246-4 1. Linguística – Conceitos. 2. Ciência linguística - Estudo e ensino. I. Capristano, Cristiane Carneiro, org. CDD 21. ed. 410 C569 5 Sobre os autores Apresentação da coleção Apresentação do livro Capítulo 1 A ciência linguística: objeto, objetivos e métodos Cristiane Carneiro Capristano Capítulo 2 Panorama dos estudos linguísticos Juliano Desiderato Antonio / Sonia Aparecida Lopes Benites Capítulo 3 A visão saussuriana de linguagem Cristiane Carneiro Capristano / Dulce Elena Coelho Barros Capítulo 4 As concepções de linguagem Sonia Aparecida Lopes Benites Capítulo 5 Gramática e ensino Cristiane Carneiro Capristano / Dulce Elena Coelho Barros > 7 > 9 > 11 > 13 > 35 > 63 > 89 > 101 umárioS 7 SONIA APARECIDA LOPES BENITES Mestre em Letras pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) -1978, Doutora em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp/Assis) e Pós-Doutora em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É professora de graduação e pós-graduação na Universidade Estadual de Maringá (UEM), desenvolvendo pesquisas em duas linhas: Ensino-aprendizagem de línguas e Estudos do Texto e do Discurso. Integra três grupos de pesquisa inscritos no CNPq: GEPOMI Grupo de Estudos Político-midiáticos (UEM), Leitura e Literatura na Escola (Unesp Assis/UEL/ UEM/PUCRS/UFG) e Questões de teoria e análise em Análise do Discurso (Unicamp). JULIANO DESIDERATO ANTONIO Mestre em Linguística e Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp/Araraquara) e Doutor em Linguística e Língua Portuguesa pela mesma universidade. É professor de graduação e pós-graduação na Universidade Estadual de Maringá (UEM). Sua linha de atuação é a de Descrição Linguística, com ênfase no Funcionalismo. Participa do grupo de pesquisa do CNPq Gramática de usos do português do Brasil e é líder do Grupo de Pesquisas Funcionalistas do Norte/Noroeste do Paraná (CNPq/UEM). DULCE ELENA COELHO BARROS Mestre em Linguística e Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp/Araraquara) e Doutora em Linguística pela Universidade de Brasília (UnB). É professora de graduação na Universidade Estadual de Maringá (UEM). Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Análise do Discurso Crítica. Atua principalmente nos seguintes temas: discurso parlamentar, argumentação, contexto social e gramática. Integra o Grupo de Pesquisa Estudos de discurso, pobreza e identidade – rede latino-americana de estudos do discurso ( REDLAD– UnB/CNPq) obre os autoresS A CIÊNCIA LINGUÍSTICA: CONCEITOS BÁSICOS 8 CRISTIANE CARNEIRO CAPRISTANO Mestre em Estudos Linguísticos pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp/São José do Rio Preto) e Doutora em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É professora de graduação na Universidade Estadual de Maringá (UEM). Desenvolve pesquisas na área de Linguística, atuando principalmente nos seguintes temas: letramento, escrita, aquisição da escrita e relação fonologia/convenções ortográficas. Integra o Grupo de Pesquisa Estudos sobre a linguagem (CNPq). 9 Os 54 títulos que compõem a coleção Formação de Professores em Letras fazem parte do material didático utilizado pelos alunos matriculados no Curso de Licenciatu- ra em Letras, habilitação dupla, Português-Inglês, na Modalidade a Distância, da Uni- versidade Estadual de Maringá (UEM). O curso está vinculado à Universidade Aberta do Brasil (UAB) que, por seu turno, faz parte das ações da Diretoria de Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (Capes). A UEM, na condição de Instituição de Ensino Superior (IES) proponente do curso, assumiu a responsabilidade da produção dos 54 livros, dentre os quais 51 títulos fica- ram a cargo do Departamento de Letras (DLE), 2 do Departamento de Teoria e Prática da Educação (DTP) e 1 do Departamento de Fundamentos da Educação (DFE). O pro- cesso de elaboração da coleção teve início no ano de 2009, e sua conclusão, seguindo o cronograma de recursos e os trâmites gerais do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), está prevista até 2013. É importante ressaltar que, visando a atender às necessidades e à demanda dos alunos ingressantes no Curso de Graduação em Letras-Português/Inglês a Distância, da UEM, no âmbito da UAB, nos diferentes polos, serão impressos 338 exemplares de cada livro. A coleção, não obstante a necessária organicidade que aproxima e estabelece a comunicação entre diferentes áreas,busca contemplar especificidades que tornam o curso de Letras uma interessante frente de estudos e profissional. Deste modo, as três principais instâncias que compõem o curso de Letras na modalidade a distância (Língua Portuguesa, Teoria da Literatura e Literaturas de Língua Portuguesa e Língua Inglesa e Literaturas Correspondentes) são contempladas com livros que são organizados tendo em vista a construção do saber de cada área. Semelhante cons- trução não apenas trabalha conteúdos necessários de modo rigoroso tal como seria de esperar de um curso universitário, como também atua decisivamente no sentido de proporcionar ao aluno da Educação a Distância a autonomia e a posse do discurso de modo a realizar uma caminhada plenamente satisfatória tanto em sua jornada acadê- mica quanto em sua vida profissional posterior. Isso só é possível graças à competência e comprometimento dos organizadores e autores dos livros dessa coleção, em sua maior parte ligados aos departamentos da Universidade Estadual de Maringá envol- vidos neste curso, além de convidados que enriqueceram a produção dos livros com sua contribuição. A excelência e a destacada contribuição científica e acadêmica desses presentação da ColeçãoA A CIÊNCIA LINGUÍSTICA: CONCEITOS BÁSICOS 10 autores e organizadores são outros elementos que garantem a seriedade do material e reforça a oportunidade que se abre ao aluno da Educação a Distância. Além disso, o material produzido poderá ser utilizado por outras instituições ligadas à Universidade Aberta do Brasil, abrindo uma perspectiva nacional para os livros do curso de Letras a Distância. Além do trabalho desses profissionais, essa coleção não seria possível sem a con- tribuição da Reitoria da UEM e de suas Pró-Reitorias, do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da UEM e seus respectivos representantes e departamentos, da Diretoria de Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (Capes) e do Ministério da Educação (MEC). Todas essas esferas, de acordo com suas atribuições, foram de suma importância em todas as etapas do traba- lho. Diante disso, é imperativo expressar, aqui, nosso muito obrigada. Por último, mas não menos importante, registramos nosso agradecimento especial à equipe do NEAD-UEM: Pró-Reitoria de Ensino, Coordenação Pedagógica e equipe técnica, pela dedicação e empenho, sem os quais essa empreitada teria sido muito mais difícil, se não impossível. Rosângela Aparecida Alves Basso, Organizadora da coleção. 11 Este livro, como o próprio título sugere, é uma obra introdutória que visa a permi- tir ao aluno/leitor uma primeira aproximação com alguns dos principais conceitos que atravessam e constituem a Linguística. Mas não só. Nele, o aluno/leitor verá também delinearem-se discussões sobre fatos históricos que cercaram a construção da Linguís- tica como ciência, ponderações sobre seus fundamentos teóricos e metodológicos, bem como reflexões sobre o ponto de vista que essa ciência tem assumido diante desse particular objeto de conhecimento que é a linguagem humana. Neste livro, nosso objetivo é, ainda, o de possibilitar ao aluno/leitor a apreensão de um conjunto de conhecimentos que possa favorecer o desenvolvimento de uma visão científica, crítica e reflexiva sobre os fenômenos linguísticos. Desejamos, portanto, que, a partir dos debates instaurados ao longo dos cinco capítulos que compõem essa obra, o aluno/leitor seja capaz de assumir uma posição diferenciada frente à visão ex- clusivamente prescritiva e normativa da linguagem que predomina no senso comum – visão que, em última instância, fornece-nos uma concepção de linguagem falseada e fundamentada em suposições muitas vezes equivocadas. Embora os capítulos que formam este livro sejam independentes, o aluno/leitor observará que eles dialogam entre si. Esse diálogo pode ser notado, por exemplo, no fato de alguns tópicos serem explorados, embora com propósitos distintos, em mais de um capítulo, tal como o tópico gramática. Essa recorrência temática emerge da importância que atribuímos a certos tópicos para o entendimento do recorte singular que a ciência Linguística tem feito em sua tarefa de compreender e explicar as múlti- plas e diferentes faces da linguagem humana. O livro está organizado da seguinte maneira: no primeiro capítulo, é examinado o modo como alguns paradigmas teóricos da Linguística delimitaram seu objeto de es- tudo, estabeleceram objetivos e defenderam certos dispositivos metodológicos, ações que, juntas, permitiram o alçamento da Linguística como disciplina científica. Esse olhar retrospectivo é acompanhado da reflexão sobre alguns caminhos que a Linguís- tica contemporânea tem trilhado e do debate sobre o ponto de vista assumidamente descritivo/explicativo que tem caracterizado essa ciência. O segundo capítulo, por sua vez, apresenta um panorama de como os estudos lin- guísticos se desenvolveram ao longo da história e coloca em cena diferentes propostas teóricas que surgiram após o estabelecimento da Linguística como ciência, no início presentação do livroA A CIÊNCIA LINGUÍSTICA: CONCEITOS BÁSICOS 12 do século XX. É intenção dos autores deste capítulo oferecer uma visão não cumula- tiva da constituição histórica desta disciplina; uma visão, portanto, que contemple as mudanças e as rupturas que caracterizaram os diferentes momentos que se sucederam nos estudos sobre a linguagem. O terceiro capítulo traz uma discussão sobre as contribuições de Saussure, consi- derado por muitos como o “pai” da Linguística moderna. Nele, o propósito central é dar ênfase para alguns conceitos que balizaram a construção do chamado projeto saus- suriano, tais como os conceitos de valor linguístico, língua, fala e signo linguístico. No quarto capítulo, são abordadas diferentes formas de conceber a linguagem, não só aquelas propostas por linguistas, mas, também, concepções aventadas por outros estudiosos, tais como filósofos, psicólogos, antropólogos e sociólogos. Neste capítulo, intenciona-se permitir que o aluno/leitor confronte essas diferentes concepções com aquelas que ele traz de sua experiência cotidiana – essas últimas atreladas, em geral, ao senso comum e que, muitas vezes, carecem de rigor teórico e científico. No quinto e último capítulo, esboça-se uma reflexão sobre a relação entre gramá- tica e ensino, com o fito de possibilitar ao aluno/leitor reavaliar sua(s) própria(s) con- cepção(ções) de gramática e, correlativamente, reexaminar seu posicionamento frente ao papel dos fatos gramaticais no ensino de Língua Portuguesa. Em todos os capítulos, o aluno/leitor encontrará várias indicações de leitura com- plementar e referências bibliográficas variadas que, certamente, permitirão o aprofun- damento dos debates que serão mobilizados pela leitura do livro. Esperamos que este livro possa vir a se constituir como ponto de partida – mas não de chegada! – para a formação linguística de seus alunos/leitores e contribua de maneira efetiva para que eles possam conhecer mais e melhor dessa inquietante capa- cidade humana: a linguagem. Cristiane Carneiro Capristano Organizadora 13 Cristiane Carneiro Capristano CONSIDERAÇÕES INICIAIS O propósito deste capítulo é o de introduzir o leitor no debate sobre algumas possibilidades de abordagem científica da linguagem humana. Para tanto, nas linhas que seguem, fazemos um esboço de alguns dos principais paradigmas teóricos da Lin- guística, observando, em especial, como cada um deles definiu e delimitou seu objeto de estudo, estabeleceu objetivos e elaborou e defendeu certos dispositivos metodoló- gicos. Por inúmeras razões, tais como limites de espaço e complexidade do assunto, o esboço será parcial e lacunoso. Com o intuito de permitir ao leitor preencher as lacunas deste texto e, assim, ter uma visão mais abrangente dos fatos colocados em foco, no transcursodo capítulo são indicadas algumas referências bibliográficas que tratam das temáticas abordadas. Neste capítulo, primeiramente, fazemos uma discussão sucinta a respeito de como certo campo de estudos pode ser reconhecido como ciência, discussão essa que é acompanhada da reflexão sobre a problemática que envolve a delimitação de um ob- jeto de estudo. Em seguida, são feitas algumas considerações sobre estudos que serão nomeados aqui como “pré-saussurianos”, em alusão a um texto de Faraco (2004). Nes- se momento, procuramos mostrar que, embora seja consenso entre vários estudiosos de que o estudo científico da linguagem humana teve início nos períodos iniciais do século XX, a partir da publicação do livro Curso de Linguística Geral e de seus efeitos sobre os pesquisadores da época, muito antes desse marco histórico a linguagem hu- mana já era alvo de vários estudos. Posteriormente, são examinadas contribuições de Saussure e Chomsky. Nesse momento, damos relevo ao modo como esses estudiosos idealizaram um objeto de estudo, estabeleceram objetivos e métodos para a Linguísti- ca. O capítulo é finalizado com duas reflexões: (a) considerando alguns caminhos que a Linguística contemporânea tem trilhado, a partir, justamente, de algumas exclusões A ciência linguística: objeto, objetivos e métodos 1 A CIÊNCIA LINGUÍSTICA: CONCEITOS BÁSICOS 14 feitas pelos chamados paradigmas formais (gerativista e estruturalista); (b) fazendo uma reflexão sobre o que a Linguística não é, enfocando a diferença entre o ponto de vista normativo/prescritivo e o ponto de vista assumidamente descritivo/explicativo que tem caracterizado a ciência Linguística. Sobre a problemática do objeto, [...] Tomada em seu todo, a linguagem é multiforme e heteróclita; cavaleiro de diferentes domínios, ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, ela pertence além disso ao domínio individual e social; não se deixa classificar em nenhuma categoria de fatos humanos, pois não se sabe como inferir sua unidade (SAUS- SURE, 1971, p. 17). Os estudiosos são unânimes em afirmar que uma das mais lembradas qualidades da Linguística foi e, de certo modo, ainda é, a sua cientificidade. Dada essa sua caracte- rística, convém indagar: quais fatores são responsáveis por tornar um campo de saber, tal como os estudos sobre a linguagem, uma ciência? Parece consenso, também, que a resposta a essa questão leva em conta, de alguma forma, a tríade objeto, objetivo e mé- todo. Em outras palavras, o reconhecimento de uma ciência está fortemente atrelado à delimitação de um objeto de estudo, à proposição de objetivos e ao estabelecimento de uma metodologia “própria e adequada à delimitação dos traços fundamentais do objeto selecionado” (BORBA, 1998, p. 301). O problema reside no fato de não ser fácil delimitar um objeto de estudos para a Linguística. Obviamente, poderíamos afirmar que a Linguística é o estudo científico da linguagem humana, no entanto, com a assunção dessa proposição, nos deparamos ao menos com um problema. Isso porque a linguagem humana é um fenômeno comple- xo e multifacetado; nela se entrecruzam vários fatos que, em última instância, permi- tem que a linguagem humana seja descrita e/ou considerada cientificamente a partir de diferentes perspectivas: física, fisiológica, biológica, filosófica, psicológica, sociológica etc. Foi exatamente a constatação desse fato que levou Saussure (1971) a afirmar que: outras ciências trabalham com objetos dados previamente e que se pode con- siderar, em seguida, de vários pontos de vista; em nosso campo nada de seme- lhante ocorre. [...] Bem longe de dizer que o objeto precede o ponto de vista [...] é o ponto de vista que cria o objeto (SAUSSURE, 1971, p. 15). Assim, não haveria um objeto pronto e natural delimitado a priori que possa ser apreendido pelo pesquisador. Será apenas a opção teórica assumida pelo estudioso que permitirá recortar esse fenômeno complexo e, nesse gesto, criar um objeto de estudo. Vejamos o que dizem Dascal e Borges Neto (1991, p. 45) a esse respeito: 15 [...] não há um ‘objeto natural’ delimitado anteriormente a qualquer opção ou trabalho teórico ‘prontinho’ para ser investigado. Se assim fosse, o progresso das teorias a respeito da linguagem consistiria em nada mais do que uma suces- são linear de aproximações, que nos levaria pouco a pouco, a uma descrição e a uma compreensão cada vez mais perfeita desse objeto. [...] cada opção teórica recorta o ‘mundo’ dos fenômenos de forma diferente e, desta maneira, consti- tui – ‘cria’ – o seu objeto de estudos. Por isso, a sucessão de teorias não é uma aproximação linear da verdade sobre um objeto previamente dado. Convém destacar que a inexistência de um “objeto natural e pronto” não é prer- rogativa dos estudos sobre a linguagem humana. A irredutibilidade dos fenômenos à apreensão científica é também fato constatado em outras áreas do saber. Ocorre que os fatos do chamado “mundo natural”, ao serem capturados pelo olhar do cientista, são irremediavelmente afetados por ele. Ou seja, em ciência, em nome de um certo rigor, ficamos, na maioria das vezes, impedidos de abrigar todas as facetas que constituem os fenômenos com os quais nos deparamos no processo de investigação; o que nos resta é um objeto de estudo que resulta de um corte sempre moldado pelo gesto do “cortador”. Para nossa reflexão, é necessário reter o seguinte: é justamente a determinação de um ponto de vista que preceda a delimitação do objeto que permite identificar uma abordagem propriamente linguística e diferenciá-la das demais disciplinas que, de uma forma ou de outra, interessam-se (ou interessaram-se) pelo fenômeno linguístico. Como veremos neste capítulo, cada momento histórico da Linguística correspondeu a uma forma de delimitação de um objeto que, por sua vez, determinou o recalque de certos aspectos do fenômeno linguístico e a escolha/exclusão de certos objetivos e métodos. “Estudos pré-saussurianos” Conforme adiantamos, parece ser consensual entre os estudiosos a ideia de que o estudo científico da linguagem humana teve início nos períodos iniciais do século XX, quando foi publicado, em francês, o livro Curso de Linguística Geral (doravante CLG), do professor suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913). O livro foi publicado três anos após a morte de Saussure por Charles Bally e Albert Sechehayes que reuniram, nesse livro, anotações de aulas ministradas por Saussure no período de 1907 a 1911. Não seria sensato, no entanto, considerar que a Linguística, assim como qualquer outra ciência, tenha sido iniciada com “data e hora marcada” e seja produto do tra- balho exclusivo de um pesquisador. Ao contemplarmos a história de constituição dos saberes a respeito da linguagem humana, descobrimos, como destaca Petter (2002, p. 12), que o interesse pela linguagem é bastante antigo e pode ser examinado em A ciência linguística: objeto, objetivos e métodos A CIÊNCIA LINGUÍSTICA: CONCEITOS BÁSICOS 16 mitos, lendas, cantos, rituais ou em trabalhos eruditos que buscavam conhecer essa capacidade humana. Esse interesse, sem dúvida, deixou suas marcas na forma como, na atualidade, explicamos, interpretamos e descrevemos o funcionamento da lingua- gem humana. No entanto, grande parte dos estudos e reflexões sobre a linguagem feitos antes da publicação do livro de Saussure, desde a Antiguidade Clássica até o início do sé- culo XIX, foi assinalada por atributos que não permitiam caracterizar esses estudos como científicos – pelo menos, não no sentindo que atribuímos a esse termo/concei- to na atualidade – uma vez que eles não tinham como interesse primordial a lingua- gem em si mesma e, em geral, estavam comprometidos com outras exigências, ligadas aos campos de saber do qual emergiam: dos estudos filosóficos, lógicos, retóricos, históricos etc. Se pensarmos apenas nas reflexões sobre a linguagem que parecem ser fundadorasda chamada Linguística ocidental, será possível verificar que: Durante séculos, dos pré-socráticos aos estóicos e aos alexandrinos, e depois no renascimento aristotélico que estende o pensamento grego até o fim da idade média latina, a língua permaneceu como objeto de especulação e não de observação (BENVENISTE, 1995, p. 20). Benveniste (1995) afirma que os estudiosos, nesse longo período, não tinham como preocupação central a descrição ou o estudo da língua(gem) por si mesma, nem mesmo o interesse em verificar, por exemplo, se as categorias fundadas com base em gramáticas gregas ou latinas poderiam ser as mesmas para outras línguas – e, analoga- mente, para todas elas. O mesmo aconteceu, de seu ponto de vista, durante o século XVIII – conferir mais informações a respeito dessa temática no capítulo Panorama dos estudos linguísticos. Foi apenas no final do século XVIII, com a descoberta do sânscrito – língua sagrada da cultura indiana que, à época, estava preservada apenas em livros sagrados –, que os estudos sobre a linguagem começaram a ganhar certa autonomia e, principalmente por essa razão, muitos historiadores reconhecem esse período, chamado período his- tórico-comparativista, como o primeiro paradigma real da Linguística – o que significa dizer que os estudos históricos e comparativos teriam sido os primeiros estudos verda- deiramente científicos sobre a linguagem humana. Segundo Faraco (2004, p. 29), “a Linguística comparativa e histórica desenvolveu um método de manipulação de dados linguísticos enquanto dados linguísticos”, ou seja, diferentemente dos estudos sobre a linguagem que antecederam esse período, a linguagem humana passou a ser observada e avaliada “em si mesma e por si mes- ma”, desvinculada de outros interesses. A novidade das pesquisas sobre linguagem 17 no século XIX, quando comparada a estudos anteriores, estava centrada no esta- belecimento do chamado método comparativo que, segundo Weedwood (2002, p. 103), consistia em uma série de princípios que permitiam que línguas particulares fossem sistematicamente comparadas. Nessa comparação sopesava aspectos dos sis- temas fonéticos dessas línguas, suas estruturas gramaticais e seus vocabulários e o intuito era o de “demonstrar que eram [as línguas] ‘genealogicamente’ aparentadas” ( WEEDWOOD, 2002, p. 103). Supunha-se, nesse sentido, que línguas particulares como o latim, o grego, o germânico e o persa poderiam ser comparadas e, dessa comparação, chegaríamos à descoberta de uma língua mais antiga, da qual aquelas teriam procedido. Os estudos sobre a linguagem humana, nesse período, fixavam-se, pois, quase que exclusivamente na face histórica das línguas: tinham a história como perspectiva funda- mental e apostavam no entendimento da evolução das formas linguísticas, por meio da reconstituição, feita por comparações e inferências, da origem de cada uma delas. Faraco (2004) afirma que a Linguística comparativa e histórica foi inaugurada por Bopp, em seus trabalhos sobre o sistema de conjugação da língua sânscrita em com- paração com a língua grega, latina, persa e germânica, mas foi sistematizada, de fato, pelos chamados neogramáticos – grupo de linguistas da Universidade de Leipzig (Ale- manha) que, nos anos finais do século XIX, passaram a questionar os pressupostos tradicionais da prática histórico-comparativa e estabeleceram orientações metodoló- gicas e postulados teóricos diferentes para o estudo da mudança linguística. Para uma reflexão mais detalhada sobre esse período, conferir capítulo Panorama dos estudos linguísticos, neste volume. O reconhecimento do período de pesquisas históricas e comparativas como o pri- meiro paradigma real da Linguística está estreitamente ligado à constatação de que, nesse período, era possível distinguir um objeto – as línguas historicamente constituí- das –, um objetivo – a necessidade de estabelecer correlações sistemáticas que apon- tassem para uma origem comum entre as línguas – e, por fim, um método – a com- paração de dados linguísticos – que permitiam avaliar esses estudos como científicos. Convém destacar que a apresentação que fizemos pode levar o leitor a concluir que, durante o século XIX, havia certa homogeneidade entre os estudos sobre a lingua- gem humana, ou seja, que os estudiosos seguiam basicamente, os mesmos princípios. Essa conclusão, talvez autorizada pelo recorte que vimos realizando, está, entretanto, bastante distante da realidade. Nesse período da história da Linguística, assim como em outros momentos subsequentes, havia discordâncias entre os estudiosos sobre a constituição de seu objeto de estudo – discordâncias que, evidentemente, tinham efei- tos nos objetivos traçados e na metodologia empregada. Essas discordâncias, se não A ciência linguística: objeto, objetivos e métodos A CIÊNCIA LINGUÍSTICA: CONCEITOS BÁSICOS 18 implicaram a constituição de “objetos” radicalmente diferentes, deram a esse “objeto” um caráter complexo1. A delimitação de um objeto para a Linguística: as contribuições de Saussure [ ] Saussure é em primeiro lugar e sempre o homem dos fundamentos. Vai por instinto aos caracteres primordiais, que governam a diversidade dos dados empíricos. Naquilo que pertence à língua, pressente certas propriedades que não se encontram em nenhum outro lugar a não ser aí. Com o que quer que a comparemos a língua aparece sempre como diferente. Mas em que é diferente? Considerando essa atividade, a linguagem, na qual tanto fatores estão associa- dos [...] ele se pergunta: a qual deles pertence a língua? (BENVENISTE, 1995, p. 35). Embora reconhecendo que a Linguística, instituída como disciplina científica, teve suas origens no decurso do século XIX, por meio dos estudos comparativos e históri- cos, não podemos ignorar a radical alteridade da proposta de Saussure relativamente aos estudos linguísticos feitos até a sua época – mesmo se considerarmos que ele nada mais fez do que sintetizar e dar corpo a uma série de intuições já presentes nos estudos sobre a linguagem feitos por seus pares e antecessores. O modo como con- cebeu e idealizou o objeto de estudos da Linguística, definiu certos objetivos e, de certa maneira, determinou formas de abordagem do fenômeno linguístico, contribuiu para a construção de uma ciência sincrônica e imanente da linguagem ou, em outras palavras, por meio de suas propostas “[...] não houve mais razões para não se construir uma ciência autônoma a tratar exclusivamente da linguagem [...] e sob o pressuposto da separação estrita entre a perspectiva histórica e não-histórica” (FARACO, 2004, p. 28). Quais foram, então, as contribuições de Saussure? Já destacamos anteriormente que Saussure considerava que a linguagem huma- na era multiforme e heteróclita; cavaleiro de diferentes domínios. Para além dessa característica fundamental, do ponto de vista saussuriano ela seria, também, a facul- dade, própria do ser humano, de produzir sentidos, de “comunicar-se”. Designaria, então, todas as formas de comunicação (verbais e não verbais) e teria uma abrangência universal, pois envolveria vários domínios: seria ao mesmo tempo física, fisiológica e 1 Existe uma farta bibliografia que apresenta e discute esse período da Linguística Histórico- -Comparativa. Recomendamos a leitura dos seguintes textos introdutórios: BORBA, F. S. Breve história da Linguística. In: _____. Introdução aos estudos linguísticos. Campinas, SP: Pontes, 1998. p. 301-317; FARACO, C. A. Estudos pré-saussurianos. In: BENTES, A.; MUSSALIN, F. (Org.) Introdução à Linguística: fundamentos epistemológicos. São Paulo: Cortez, 2004, p. 27-52; WEEDWOOD, B. História concisa da Linguística. São Paulo: Parábola, 2002. 19 psíquica, pertencendo concomitantemente ao domínio individual e social. Por ser heteróclita e multifacetada, a linguagem, segundo Saussure, não poderia ser transformada em objeto de estudos de uma ciência,nem mesmo ser apreendida como uma unidade. Assim, para que se pudesse estudar a linguagem humana seria preciso, segundo o autor, colocar-se no terreno da língua (langue), uma vez que ape- nas a língua (langue) seria suscetível de uma definição autônoma justamente por cons- tituir um objeto bem definido no conjunto heteróclito dos fatos da linguagem. Assim, Saussure retira do todo da linguagem a língua (langue), definida em seus termos como um sistema de signos, e a elege como o objeto precípuo da Linguística. Para Saussure, a língua seria, então, um sistema de valores cujos elementos só podem ser determinados em razão de suas relações com outros elementos do mesmo sistema e por suas funções no interior desse sistema. Os conceitos de sistema, de relação, de valor e de funcionalidade – como veremos, mais adiante, no Capítulo in- titulado A visão saussuriana de linguagem – são fundamentais para compreendermos seus postulados e sua particular forma de conceber o modo como a Linguística deveria delimitar-se e definir-se a si própria (SAUSSURE, 1971, p. 13). A partir do conceito de língua supramencionado, Saussure forja um ponto de vista nitidamente sincrônico sobre o fenômeno linguístico, em oposição ao ponto de vista histórico que prevalecia até então. Nessa abordagem sincrônica, um determinado es- tado de uma língua é isolado de suas mudanças através do tempo e passa a ser exami- nado como um sistema homogêneo, que possui uma ordem própria, completamente independente daquilo que, nesta perspectiva, lhe é exterior. É necessário notar que a língua saussuriana – esse conjunto de elementos que se relacionam organizadamente dentro de um todo – é também concebida como a parte social da linguagem, produto do trabalho coletivo do homem, instrumento psíquico cria- do e fornecido pela coletividade, exterior aos indivíduos falantes – que, portanto, não podem modificá-la. A língua, tal como delineada no projeto saussuriano, obedeceria a leis de um contrato social estabelecido pelos membros da comunidade; seria, assim, um tesouro depositado pela prática da fala em todos os indivíduos pertencen- tes a mesma comunidade, um sistema gramatical que existe virtualmente em cada cérebro ou, mais exatamente, nos cérebros dum conjunto de indivíduos, pois a língua não está completa em nenhum, só em massa ela existe de modo completo (SAUSSURE, 1971, p. 21). Esse conceito de língua opõe-se, por sua vez, a uma espécie de resíduo da pro- posta saussuriana: ao conceito de fala (parole). Ao definir a língua tal como exposto nas linhas anteriores, Saussure deixa em segundo plano as manifestações individuais de nossa capacidade linguística, ou, ainda, abdica do ato individual de vontade e A ciência linguística: objeto, objetivos e métodos A CIÊNCIA LINGUÍSTICA: CONCEITOS BÁSICOS 20 inteligência, no qual os falantes colocariam em uso o sistema da língua com o pro- pósito de exprimir seu pensamento pessoal, bem como de todo o mecanismo psico- físico que permite aos falantes exteriorizarem as combinações permitidas pela língua (SAUSSURE, 1971, p. 22). Na proposta saussuriana, língua e fala, apesar de metodologicamente disjuntas, estão estreitamente ligadas e se implicam mutuamente: “a língua é necessária para que a fala seja inteligível e produza todos os seus efeitos; mas esta é [também] necessária para que a língua se estabeleça” (SAUSSSURE, 1971, p. 27). Existe, pois, uma interde- pendência entre língua e fala: é, por exemplo, “ouvindo o outro que aprendemos a lín- gua materna; ela se deposita em nosso cérebro somente após inúmeras experiências” (SAUSSURE, 1971, p. 27), embora, para efeitos de estudo, a fala esteja numa posição muito diferente da língua: sua natureza acessória e acidental não permitiria alçá-la a objeto de estudo da Linguística. Assim, podemos dizer que, para Saussure, a tarefa do linguista deveria ser a de es- tudar e descrever a realidade linguística em seus elementos formais próprios, a partir de uma sincronia. O foco é, pois, a realidade intrínseca da língua, como ela funciona ou, ainda, como seus elementos constitutivos, independentemente de qualquer fator exterior, relacionam-se entre si – e apenas entre si. Ao conceber as relações entre linguagem, língua e fala – e, consequentemente, a própria caracterização do fenômeno linguístico – e ao estabelecer as tarefas fun- damentais da Linguística da maneira como vimos expondo até aqui, Saussure fez, portanto, escolhas e renúncias – como a escolha da língua e a renúncia da fala e da linguagem como objeto de estudo; a escolha de um ponto de vista eminentemente sincrônico e a renúncia de uma abordagem diacrônica (histórica) do fenômeno lin- guístico, dentre outras escolhas e renúncias que serão abordadas posteriormente. Veremos, em capítulos ulteriores, que muito do desenvolvimento contemporâneo da ciência Linguística deve-se justamente à crítica às escolhas saussurianas e ao investi- mento em suas renúncias. Convém salientar que as ideias de Saussure encontraram terreno fértil entre mui- tos estudiosos e, em certo sentido, foram responsáveis, direta ou indiretamente, pela constituição de um campo bastante heterogêneo de pesquisas tradicionalmente cha- mado de Estruturalismo. Neste campo heterogêneo de saber, conjugaram-se nume- rosos estudos sobre a estrutura e funcionamento da linguagem humana. Em geral, a literatura especializada reconhece a existência de duas grandes correntes: o chamado Estruturalismo Europeu – que mais diretamente desenvolveu os pressupostos teóri- co-metodológicos alinhavados no projeto saussuriano – e o chamado Estruturalis- mo Americano – desenvolvido nos Estados Unidos, no período de 1920 a 1950, cuja 21 referência principal é Leonard Bloomfield. Para uma reflexão pormenorizada sobre as diferentes propostas estruturalistas, conferir o Capítulo Panorama dos estudos lin- guísticos, neste volume2. Podemos dizer que, de certa forma, o que uniu esse campo heterogêneo de pes- quisa foi a proposta, diversamente levada a efeito, de estudar a estrutura e o fun- cionamento da língua, entendida sempre como um sistema autônomo e homogêneo – subjacente a e determinante das manifestações individuais –, cujas propriedades e regularidades eram possíveis de ser apreendidas por meio de procedimentos descri- tivos de descoberta. É possível afirmar, também, que os estruturalistas, cada um a sua maneira, romperam de forma definitiva com o paradigma histórico e comparatista do século XIX, principalmente porque projetaram um olhar exclusivamente descritivo e sincrônico sobre a linguagem humana. Em síntese: a Linguística, tal como idealizada por Saussure e, depois, desenvolvida, embora de formas às vezes bastante diferentes, pelos chamados estruturalistas, tinha como objeto a língua – entendida como um sistema formal e abstrato de signos lin- guísticos; seu objetivo era a depreensão da estrutura das línguas ou, ainda, a descrição da funcionalidade do sistema linguístico; e o método, por sua vez, era predominante- mente descritivo. As contribuições do paradigma gerativista Podemos dizer que, de certa forma, foi como uma reação ao chamado estrutura- lismo que surgiu, na década de 50, nos Estados Unidos, um movimento de estudos da linguagem, encabeçado pelo linguista Noam Chomsky – professor de Linguística do Massachusetts Institute of Technology –, que propunha outra forma de conceber o objeto de estudos da Linguística e, correlativamente, passou a estabelecer outros objetivos e métodos. Nesse sentido, a chamada Gramática Gerativa (doravante GG) é entendida como outro paradigma científico no âmbito da ciência Linguística. Em geral, costuma-se considerar que o marco histórico da GG é a publicação, em 1957, de Syntactic Struture, livro no qual Chomsky desenvolve o conceito de gramá- tica gerativa, conceito marcadamente distante da ideia de língua que era desenvolvi- da no âmbito do chamado estruturalismoamericano. Segundo Borges Neto (2004), em Syntactic Struture, a preocupação principal de Chomsky estava voltada para a 2 Para um aprofundamento da discussão sobre as contribuições de Saussure e dos estruturalistas, recomendamos, também, a leitura de: SAUSSURE, F. Curso de Linguística geral. São Paulo: Cultrix, 1971; ILARI, R. O estruturalismo linguístico: alguns caminhos. In: BENTES, A.; MUSSALIN F. (Org.) Introdução à Linguística: fundamentos epistemológicos. São Paulo: Cortez, 2004. p. 53-92. A ciência linguística: objeto, objetivos e métodos A CIÊNCIA LINGUÍSTICA: CONCEITOS BÁSICOS 22 necessidade de se supor a existência de algo anterior à língua tal como entendida pelos estruturalistas: a capacidade que os falantes têm de produzir exatamente os enuncia- dos que podem ser produzidos em uma língua. Ou ainda, da perspectiva chomskyana, os falantes de uma língua possuem “um conhecimento partilhado sobre os enuncia- dos que podem e não podem ser produzidos, e é justamente esse conhecimento que precisa ser descrito e explicado pela teoria linguística” (BORGES NETO, 2004, p. 99). O principal argumento para a defesa desse conhecimento partilhado está centrado na noção de criatividade linguística. Para Chomsky, os falantes de uma língua detêm a habilidade de produzir sentenças as quais nunca foram expostos, habilidade que de- notaria que os falantes possuem um conhecimento que está muito além daquele que é possível adquirir por meio do contato com dados da experiência. Assim, para ele. A linguagem humana se baseia numa propriedade elementar que também parece ser uma propriedade biologicamente isolada: a propriedade da infi- nidade discreta, manifestada da forma mais pura pelos números naturais 1, 2, 3,... As crianças não aprendem essa propriedade do sistema numeral. A menos que a mente já possua os princípios básicos, nenhuma quantidade de evidências poderia fornecê-lo; [...] Do mesmo modo, nenhuma criança tem de aprender que há sentenças de três palavras e sentenças de quatro palavras, mas não sentenças de três palavras e meia, e que é sempre possível construir uma mais complexa, com uma forma e significados definidos. Tal conheci- mento tem que nos chegar pela ‘mão original da natureza’ (the original hand of nature), segundo expressão de David Hume, como parte do nosso dote biológico (CHOMSKY, 1998, p. 18). É possível observar que o argumento de Chomsky – e, também, dos estudiosos que assumiram a sua proposta de que haveria um conhecimento partilhado, de natureza universal, biológica e, portanto, inata, que precederia a nossa capacidade de produzir as sentenças de uma língua – fundamenta-se também na complexidade que envolve a aquisição de língua. Para ele, no processo de aquisição de língua, as crianças têm acesso a dados linguísticos parciais, limitados e pobres, uma vez que elas são expostas normalmente a uma fala precária, fragmentada, cheia de frases truncadas, altamente ambíguas ou incompletas. Entretanto, ainda assim, levam um tempo relativamente curto para adquirir sua língua materna (mais ou menos de 18 a 24 meses) e o conheci- mento que adquirem sobre ela é altamente complexo e sofisticado. Tal paradoxo (o Dilema de Platão!) só poderia ser explicado, do ponto de vista de Chomsky, se supormos que as crianças possuem, como parte de uma herança ge- nética, um conhecimento linguístico que permita especificar a forma da gramática de uma língua humana possível e que, ao mesmo tempo, possibilite às crianças supera- rem a qualidade inferior dos dados linguísticos aos quais elas são expostas (DASCAL; BORGES NETO, 1991, p. 39). 23 Na proposta chomskyana, o pressuposto é, então, o de que grande parte do co- nhecimento linguístico que os falantes demonstram possuir é interna à mente/cérebro humanos. Chomsky conclui, a partir desse pressuposto, que um estudo apropriado da linguagem humana precisa tratar de seu construto mental. Assume, então, a tarefa de descrever esse conhecimento implícito dos falantes, ou ainda, as propriedades e os princípios do estado inicial da faculdade de linguagem e, para tanto, busca construir um aparato formal, a chamada gramática gerativa (ou gramática universal). Essa gramática deveria ser capaz de gerar “regras de boa-formação de uma língua qualquer L e de relacionar esse aparato formal a algum conjunto de princípios gerais (que deter- minem o que pode valer como ‘gramática gerativa’ para as línguas em geral)” (BORGES NETO, 2004, p. 100-101). Nesse empreendimento, a Linguística, tal como idealizada por Chomsky, tem como desafio mostrar que todas as línguas são variações de um mesmo tema e, ao mesmo tempo, registrar as propriedades de cada uma das línguas particulares (CHOMSKY, 1998, p. 24). Precisa, pois, dar uma explicação satisfatória para as propriedades da língua, le- vando em consideração o que o falante da língua sabe. Analogamente, tem que mostrar que cada língua particular é a manifestação específica do estado inicial uniforme. Vê-se, nas linhas precedentes, que Chomsky adota uma visão inatista da linguagem e a coloca num domínio cognitivo e biológico; passa a considerar que o linguista deve se preocupar em descrever e, sobretudo, explicar esse componente inato que vai carac- terizar a competência linguística dos indivíduos: sua gramática gerativa. A ação dos indivíduos particulares – ou, ainda, o uso concreto que eles fazem da linguagem em situações concretas – não é posta em causa. Para o quadro da teoria gerativa, as ações individuais colocariam em jogo variáveis de natureza social e psicológica que seriam in- dependentes do conhecimento gramatical da língua. Em outras palavras, as expressões linguísticas (sua estrutura, sua organização e seu conteúdo) pronunciadas em condi- ções naturais seriam “determinada [s] por uma combinação muitas vezes complexa de fatores que têm apenas parcialmente a ver com a competência” (RAPOSO, 1992, p. 31). Assim, de forma semelhante ao que ocorreu na proposta saussuriana, os atos indivi- duais de linguagem (o desempenho ou a performance, na ótica da GG) se tornam um resíduo da teoria. A teoria gerativa, em seu empenho em estudar a gramática gerativa – e, consequentemente a competência linguística dos falantes – faz uma abstração dos diversos fatores em jogo nos atos de fala concretos. Nesse sentido, impõe-se a consideração de “um falante-ouvinte ideal, situado em uma comunidade linguística completamente homogênea” (RAPOSO, 1992, p. 33). A teoria gerativa, entretanto, diverge fundamentalmente da proposta saussuriana e das propostas estruturalistas que a precederam. Tal divergência não se reduz à maneira A ciência linguística: objeto, objetivos e métodos A CIÊNCIA LINGUÍSTICA: CONCEITOS BÁSICOS 24 particular como, na GG, são definidos os objetivos e o objeto da Linguística. Também em termos metodológicos, as duas propostas são diferentes. Enquanto as teorias es- truturalistas eram, em geral, explicitamente descritivas, a GG se pretendia explicativa, no sentido de que os fenômenos deviam ser deduzidos de um conjunto de princípios gerais. Assim, a preocupação não é mais, como no estruturalismo, a de “descrever os dados que se revelam à percepção dos linguistas, mas trata-se de encontrar princípios gerais a partir dos quais as descrições dos dados observáveis possam ser logicamente derivadas” (BORGES NETO, 2004, p. 100). Convém destacar que, segundo Borges Neto (2004), o programa de investigação da GG define que a tarefa fundamental do linguista é “a criação de sistemas computacio- nais que sirvam de modelo para o conhecimento linguístico dos falantes/ouvintes de uma língua” (p. 97). Borges Neto afirma também que a pretensão da GG é a de cons- truir “um mecanismo computacional capaz de formar e transformar representações, que ‘simule’ o conhecimento linguístico de um falante de uma língua natural, regis- trado em sua mente/cérebro” (2004, p. 97). Para o autor, podemosassim sintetizar as diferentes propostas gerativistas: A história da GG conhece três grandes “estratégias” na delimitação do conhe- cimento sobre a língua presente na mente/cérebro dos falantes. Num primeiro momento (Teoria de SS [Syntactic Struture]), a gramática deveria gerar direta- mente as sentenças da língua (em suas formas superficiais). [...]. No segundo momento (Teoria-padrão), a gramática passa a gerar objetos abstratos que são interpretados nas sentenças da língua (na sua forma fonética e no seu significa- do), ou seja, o conjunto de objetos abstratos gerados pela gramática é projeta- do na língua, descrevendo-a enquanto um conjunto de significantes possíveis relacionados a um conjunto de significados possíveis [...]. Aqui, a noção de gra- mática gerativa sofre uma pequena modificação com relação ao sentido anterior [...]. Permanece, no entanto, o compromisso com a noção de língua, uma vez que a gramática vai gerar tantos objetos abstratos quantas forem as sentenças da língua e nenhum a mais. [...]. No terceiro momento (P&P [Princípios e Pa- râmetros]), a gramática gera objetos abstratos que explicitam as propriedades que os falantes levam em consideração no momento de emitir juízos de gra- maticalidade sobre objetos linguísticos. As sentenças de uma língua qualquer constituem apenas um subconjunto desse conjunto de objetos linguísticos e, portanto, em nenhum momento, e sob nenhum critério, é possível dizer que a gramática gera as sentenças da língua – no máximo, é possível dizer que a gramática permite (licencia), entre outras coisas, as sentenças de uma língua dada (BORGES NETO, 2004, p. 124-125). Embora a configuração do sistema computacional tenha sido alterada ao longo do desenvolvimento da teoria – como é razoável supor pela síntese feita por Borges Neto –, seus axiomas fundadores, sobre os quais tratamos anteriormente, permaneceram (e 25 ainda permanecem!) constantes3. A título de síntese, podemos afirmar, então, que a Linguística, tal como idealizada por Chomsky e desenvolvida por seus inúmeros seguidores, tinha (e tem) como objeto a gramática gerativa – entendida como um sistema formal de regras, depositada na mente/cérebro de um falante/ouvinte ideal, um objeto, nesse sentido, psicológico; seu objetivo tem sido o de descrever e, principalmente, explicar a estrutura supostamente sintática dessa gramática gerativa (ou universal); o método, por sua vez, é predomi- nantemente indutivo explicativo – procura-se mostrar como o fenômeno linguístico deriva de leis gerais, situadas a um nível mais profundo: a mente humana. Alguns caminhos da linguística contemporânea As perspectivas teóricas exemplificadas nas duas últimas seções pelos trabalhos fundadores de Saussure e Chomsky, de cunho essencialmente formalista, optaram, metodologicamente, pela descrição de um sistema de signos, no caso de Saussure, e pela explicação de uma gramática gerativa, no caso de Chomsky. Ambas as pers- pectivas, embora reconhecendo a heterogeneidade e a complexidade do fenômeno linguístico, optaram por excluir, do âmbito da pesquisa Linguística o uso, o sujeito falante, o contexto, a história. Fizeram isso, na crença de que o uso, o sujeito falante, o contexto, a história seriam regulados por um sistema homogêneo (Saussure) ou por uma gramática gerativa (Chomsky). Atualmente, algumas pesquisas e pesquisadores estão justamente construindo seus objetos de estudo e estabelecendo seus objetivos e métodos através da crítica às ex- clusões e às renúncias da chamada Linguística Formal – aqui representada pelas con- tribuições de Saussure e de Chomsky. Dentre elas, podemos citar, a título apenas de exemplificação e correndo o risco de uma simplificação excessiva, as seguintes: (a) a Pragmática, disciplina que considera o ato de fala como uma ação que se faz ao dizer, e, assim, traz para a análise da língua os atos que se fazem com a linguagem, passando a considerar que o sentido de um enunciado não está circunscrito às palavras, mas de- pende das pessoas, das circunstâncias, das intenções dos falantes; (b) a Sociolinguís- tica, campo do saber que estabelece para si a tarefa de lidar com a heterogeneidade muitas vezes conflitante das línguas naturais, considerando-as como profundamente afetadas pelo espaço, pelo tempo, pelos indivíduos e pelos grupos; (c) a chamada, genericamente, Teoria da Enunciação, que traz para a análise dos enunciados as mar- cas linguísticas do sujeito que enuncia e, nesse sentido, coloca em foco a existência 3 Para maiores informações sobre a proposta gerativista, cf. capítulo seguinte: Panorama dos estudos linguísticos. A ciência linguística: objeto, objetivos e métodos A CIÊNCIA LINGUÍSTICA: CONCEITOS BÁSICOS 26 de certos fatos que impedem que consideremos a língua como um sistema imanente, ou melhor, chama a atenção para pontos específicos – o sistema de pronomes, os indicadores da dêixis, a forma de expressão da temporalidade nas línguas – em que é possível detectar a presença inequívoca do homem na língua4. Certamente, as disciplinas que nos serviram de exemplo no parágrafo anterior es- tão longe de comporem espaços homogêneos de constituição do saber; na verdade, seria mais correto falarmos em pragmáticas, sociolinguísticas e teorias da enuncia- ção, dada a heterogeneidade que caracteriza e funda esses campos do saber. Bem longe de objetos delimitados uniformemente, objetivos e métodos traçados de forma unívoca, deparamo-nos com o conflito e embate de posições. Tanto do ponto de vista da pluralidade de espaços de saber voltados para o estudo da linguagem humana, quanto do ponto de vista da pluralidade que constitui esses próprios campos, não podemos afirmar que, atualmente, a Linguística tenha um ob- jeto de estudo consensual. Em outras palavras, não há concordância sobre qual seja a Linguística Atual. A esse respeito, Maingueneau (2008, p. 160) afirma o seguinte: Aqueles que estão situados fora do campo linguístico evocam ‘a’ Linguística como uma disciplina que acreditam ser homogênea. Ao contrário, aqueles que se definem como linguistas experimentam a maior dificuldade em dominar a unidade de seu próprio campo, tal disparidade que nele percebem. Segundo Maingueneau (1989), muitos espaços de saber que, para alguns, cons- tituiriam o campo legítimo de uma Linguística que teria alargado o domínio de seus conhecimentos são tidos, por outros, como um espaço exterior à Linguística. Deste ponto de vista, portanto, haveria um centro e/ou interior (a Linguística da língua ou da competência) e uma periferia e/ou exterior que se ocuparia da fala saussuriana ou do desempenho chomskyano. Maingueneau (1989) argumenta, entretanto, que as discussões sobre a tentativa de oposição centro X periferia são estéreas, na medida em que é justamente a oposição entre o que é interno/externo à chamada “língua” que é, muitas vezes, colocado em xeque. Para finalizar as discussões propostas para este Capítulo, consideramos necessário fazer uma reflexão concisa a respeito daquilo que, certamente, a Linguística não é. Essa é a temática que norteará as reflexões na seção subsequente. 4 O esboço feito aqui será retomado em capítulo posterior intitulado Panorama dos estudos linguísticos. 27 Considerações finais: algumas palavras sobre aquilo que a Linguística não é: A matéria da Linguística é constituída inicialmente por todas as manifestações da linguagem humana, quer se trate de povos selvagens ou de nações civiliza- das, de épocas arcaicas, clássicas ou de decadência, considerando-se em cada período não só a linguagem correta e a ‘bela linguagem’, mas todas as formas de expressão (SAUSSURE, 1971, p. 13). Na grande maioria das vezes, é na escola de ensino fundamental e médio que entra- mos em contato com o conhecimento teórico sobre a linguagem humana e, em especial, sobre a nossa língua materna. Esse conhecimento chega até nós por meio dos estudos quefazemos nas chamadas aulas de Língua Portuguesa ou, simplesmente, de Português. Infelizmente, ainda hoje – e apesar do desenvolvimento de inúmeras pesquisas sobre o funcionamento e a organização das línguas em geral e do português brasileiro em particular –, as aulas de Língua Portuguesa são quase que exclusivamente guiadas por uma visão normativa/prescritiva da língua(gem). Essa visão é difundida por meio da chamada Gramática Tradicional (doravante GT)5, que constitui a base epistemoló- gica sobre a qual, por exemplo, é elaborada a maioria dos livros e materiais didáticos disponíveis no mercado brasileiro. A GT tem como preocupação principal assegurar a conservação de certos usos das línguas. Para Petter (2002, p. 19, grifos da autora), “A tarefa do gramático se desdobra em dizer o que é a língua, descrevê-la e privilegiar alguns usos, dizer como deve ser a língua.” Do ponto de vista de Petter (2002), a conjunção de uma perspectiva descritiva e de uma perspectiva normativa, levada a cabo pela GT, reduz o objeto de análise (a língua portuguesa, em nosso caso), inerentemente heterogêneo, a apenas uma de suas manifestações: a do uso considerado correto da língua (PETTER, 2002, p. 19), deixan- do de lado suas outras diversas – e muitas vezes divergentes! – formas de expressão. Esse modo de conceber e de lidar com a língua(gem) acaba levando ao equívoco de que existiriam apenas alguns usos da língua que poderiam ser tidos como corretos e ao desconhecimento da variação intrínseca das línguas naturais. Ou seja, a percepção que, em geral, desenvolvemos na escola sobre o funcionamento de nossa língua ma- terna não engloba a ideia de diversidade linguística. Existe um nítido desacordo entre o ponto de vista normativo/prescritivo que norteia e norteou a construção de gramáticas das línguas – que, de forma concisa, apresenta- mos acima – e o ponto de vista assumidamente descritivo/explicativo da Linguística, na 5 Para uma discussão mais detalhada a respeito da gramática tradicional, cf. os trabalhos de Marcos Bagno, especialmente, Bagno (1999, 2001, 2003). A ciência linguística: objeto, objetivos e métodos A CIÊNCIA LINGUÍSTICA: CONCEITOS BÁSICOS 28 abordagem que essa última faz dos fatos da linguagem humana – ponto de vista que pode ser observado, por exemplo, na citação em epígrafe. Independentemente da linha teórica assumida pelo linguista, sua preocupação es- tará voltada para todas as formas de manifestações linguísticas. O interesse é sempre o de descrever e explicar os fatos linguísticos, sem, no entanto, atribuir-lhes juízo de valor. Analisemos os exemplos abaixo, com o intuito de tornar as afirmações que vimos fazendo mais precisas. 01) Eu gosto de comida mexicana. 02) Tu gostas de comida mexicana. 03) Você gosta de comida mexicana. 04) Ele gosta de comida mexicana. 05) Nós gostamos de comida mexicana. 06) A gente gosta de comida mexicana. 07) Nós gosta de comida mexicana. 08) Vós gostais de comida mexicana. 09) Vocês gostam de comida mexicana. 10) Vocês gosta de comida mexicana. 11) Eles gostam de comida mexicana. 12) Eles gosta de comida mexicana. Certamente, uma avaliação baseada em preceitos da GT nos levaria a avaliar os exemplos em 1, 2, 3, 4, 5, 6, 8, 9 e 11 como “corretos”. A percepção inversa ocorreria com os exemplos 7, 10 e 12. Além disso, poderíamos, seguindo esses mesmos precei- tos, ficar em dúvida com relação aos exemplos 3, 6 e 9: será que eles estariam mesmo “corretos”? A avaliação, a percepção e a dúvida que anunciamos estão estreitamente vinculadas ao que aprendemos na escola, durante anos, sobre o funcionamento do paradigma verbal do português. Por meio dos preceitos da GT, aprendemos que o paradigma verbal do português brasileiro é constituído por seis formas, ligadas às pessoas gramaticais ou, de forma mais ou menos correlativa, aprendemos que os verbos devem ser conjugados da seguinte ma- neira: eu gosto, tu gostas, ele gosta, nós gostamos, vós gostais, eles gostam – trataremos, aqui, apenas das formas do presente do indicativo. Entretanto, essa descrição não cor- responde, de fato, com o que observamos em nossas atividades diárias com a linguagem. Nelas, podemos observar que o paradigma verbal do português brasileiro falado é bastante heterogêneo6. Sem entrar na instigante discussão sobre os fatores que desen- 6 Não tematizaremos, aqui, a importante discussão sobre as diferenças entre os modos de enun- ciação falados e escritos da linguagem. Convém destacar, entretanto, que, como veremos mais adiante, a GT baseia suas descrições e prescrições na idealização de formas linguísticas mais diretamente ligadas a um padrão escrito. Essas descrições e prescrições, no entanto, pretendem- -se válidas para qualquer forma de manifestação linguística: falada ou escrita. Ao contrário, as pesquisas em Linguística não deixam de reconhecer que algumas formas linguísticas são mais comuns às nossas enunciações escritas do que às enunciações faladas e vice-versa. 29 cadeiam essa heterogeneidade, é possível afirmar que algumas manifestações do por- tuguês brasileiro envolvem a simplificação das conjugações verbais ocasionada, dentre outros fatos, por mudanças no quadro dos chamados pronomes pessoais. Vejamos, o mais sinteticamente possível, como isso ocorre7. As formas tu gostas e vós gostais são hoje já bastante incomuns na grande maioria das variedades linguísticas faladas no Brasil. Nessas variedades, o tu tem sido majo- ritariamente substituído por você – antiga forma de tratamento que passou por pro- cessos de gramaticalização, tornando-se um pronome –, substituição que promoveu mudanças diretas na morfologia verbal, com o apagamento de desinência de segunda pessoa e o consequente alinhamento da segunda e terceira pessoas do singular: tu gostas/ele gosta passaram a tu ou você gosta/ele gosta. A forma vós gostais, por sua vez, praticamente não é mais usada no português brasileiro, tendo sido substituída, na maioria das variedades, pela forma vocês gostam. Novamente, observamos mudanças na morfologia verbal, com o apagamento de desinência de segunda pessoa plural e o consequente alinhamento da segunda e terceira pessoas do plural: vós gostais/eles gostam passaram a vocês gostam/eles gostam. A constatação dessas mudanças nos leva a afirma que, em geral, as gramáticas normativas – que se fundamentam nos preceitos da GT – prescrevem certas formas linguísticas como “corretas” que já não são mais usadas pela maioria da população brasileira. Algo diametralmente oposto ocorre com os exemplos 7, 10 e 12. Essas formas lin- guísticas são usadas por uma grande parcela da população brasileira, mas totalmente ignoradas e condenadas pelas gramáticas normativas, livros didáticos, etc. Essas formas sofrem o mesmo tipo de processo que apontamos para as formas de segunda e terceira pessoas do singular e do plural: alinhamento de pessoas gramaticais e consequente apagamento das desinências verbais. Nesse outro padrão de conjugação, em seu pro- cesso mais radical, configura-se da seguinte forma: é mantida apenas a oposição entre a primeira pessoa e as restantes. Assim, um quadro mais “real” do funcionamento do paradigma verbal do português brasileiro, feito sem apreciação valorativa – e, sobretudo, sem preconceito –, deveria incorporar essas formas em conflito, tal como tentamos fazer no quadro seguinte: 7 Para uma discussão detalhada sobre a mudança no paradigma verbal do Português brasilei- ro, bem como sobre os fatos que a determinam, cf. o texto de Dante Lucchesi Parâmetros sociolinguísticos do português brasileiro (Disponível em: <http://www.abralin.org/revista/ RV5N1_2/RV5N1_2_art4.pdf>. Acesso em: 7 set. 2009). A ciência linguística: objeto, objetivos e métodos A CIÊNCIA LINGUÍSTICA: CONCEITOS BÁSICOS 30 Norma padrão Normas “reais” eu gosto tu gostas ele gosta nós gostamos vós gostais eles gostam. eu gosto tu ou você gosta elegosta nós gostamos/nós gostamo/nós gosta/a gente gosta vocês gostam/ vocês gosta eles gostam/eles gosta. O fato de essas formas em conflito serem ignoradas, por exemplo, pelas gramáti- cas normativas e materiais didáticos e, consequentemente, não serem alvo de estudo nas aulas de Português ocorre porque, quando pensamos em diversidade linguística, entram em jogo fatos como a valoração social diferenciada que recai sobre as formas linguísticas: “algumas têm muito prestígio social (e constituem aquilo que chamamos de norma padrão), enquanto outras são menos prestigiadas e até ridicularizadas e cen- suradas” (FARACO, 2006, p. 16). No caso que ora analisamos, formas como nós gosta e eles gosta não são legitimadas, embora não contenham em si mesmas nada que as tornem melhores ou piores que as formas nós gostamos/eles gostam. Concordamos com Faraco quando afirma que essa valoração positiva ou negativa intervém em nossas atitudes em relação às variedades linguísticas e seus falantes “li- mitando, pela força dos pré-conceitos, nossa capacidade de julgar com a necessária clareza os fatos da língua e a diversidade sociocultural” (FARACO, 2006, p. 16) e, nesse sentido, limitando, também, nossas possibilidades de entendermos o real funciona- mento da linguagem humana em geral e de nossa língua materna em particular. Uma última observação: quando, no processo de divulgação científica, o ponto de vista descritivo/explicativo que a Linguística adota é lembrado, geralmente provoca efeitos não previstos pelos linguistas. Falamos aqui da redução e/ou da simplificação da complexa tomada de posição dessa disciplina frente aos dados linguísticos, ou ain- da, da imagem equivocada que circula no senso comum de que, em Linguística, “tudo pode”. De acordo com essa imagem, para os linguistas e para a Linguística, não haveria “certo” ou “errado” e todos os usos da linguagem seriam possíveis porque se presta- riam a uma função primordial: a comunicação! Afirmamos que essa imagem é equivocada e simplificadora porque a Linguística (e os linguistas) não ignoram que o “erro” é uma realidade para os falantes. Ocorre que a Linguística credita, em geral, a noção de erro à existência de complexas relações de força e de poder que, por assim dizer, determinam os usos que fazemos da linguagem. Assim, como vimos acima, para a Linguística, o julgamento de “certo” ou “errado” para uma forma linguística qualquer não está atrelado a nada intrínseco a elas – que, sem os 31 julgamentos sociais, não são melhores nem piores umas que as outras, são meramente equivalentes. Na verdade, o que determina o status de uma expressão linguística qual- quer está vinculado ao status do falante, do prestígio (ou não) da região em que ele mora, etc. Em outras palavras, a valoração ou não de uma forma linguística qualquer está associada a fatores de ordem cultural, política e social. Voltaremos às discussões sobre as temáticas apenas anunciadas nesta seção em capítulo subsequente em que trataremos das relações entre gramática e ensino. A ciência linguística: objeto, objetivos e métodos BAGNO, M. A norma oculta: língua e poder na sociedade brasileira. São Paulo: Parábola, 2003. ______. Dramática da língua portuguesa. São Paulo: Loyola, 2001. ______. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 1999. BENVENISTE, E. Problemas de Linguística geral I. São Paulo: Pontes, 1995. BORBA, F. S. Breve história da Linguística. In: ______. Introdução aos estudos linguísticos. Campinas, SP: Pontes/Unicamp, 1998. p. 301-317. BORGES NETO, J. O empreendimento gerativo. In: BENTES, A.; MUSSALIN, F. (Org.). Introdução à Linguística: fundamentos epistemológicos. São Paulo: Cortez, 2004. p. 93-129. CHOMSKY, N. Linguagem e mente. Brasília, DF: Editora da Universidade de Brasília, 1998. DASCAL, M.; BORGES NETO, J. De que trata a Linguística, afinal? Historie, Épistémologie, Langage, v.13, n. 01, p. 13-50, 1991. FARACO, C. A. Estudos pré-saussurianos. In: BENTES, A.; MUSSALIN, F. (Org.). Introdução à Linguística: fundamentos epistemológicos. São Paulo: Cortez, 2004. p. 27-52. Referências A CIÊNCIA LINGUÍSTICA: CONCEITOS BÁSICOS 32 FARACO, C. A. Ensinar x não ensinar gramática: ainda cabe esta questão? Calidoscópio, São Leopoldo, RS, v. 4, n. 1, p. 15-26, 2006. ILARI, R. O estruturalismo linguístico: alguns caminhos. In: MUSSALIM, F.; BENTES, C. A (Org.). Introdução à Linguística: domínios e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2004. v. 3. p. 53-92. LUCCHESI, D. Parâmetros sociolinguísticos do português brasileiro. Revista da Abralin, Brasília, DF, v. 5, p. 83-112, 2006. MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso. Campinas, SP: Pontes; Unicamp, 1989. ______. A unidade da linguística. Calidoscópio, São Leopoldo, RS, v. 6, n. 3, p. 160-163, 2008. PETER, M. Linguagem, língua, Linguística. In: FIORIN, J. L. (Org.). Introdução à Linguística: objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2002. p. 11-23. RAPOSO, E. P. A língua como sistema de representação mental. In: ______. Teoria da gramática: a faculdade da linguagem. Lisboa: Editorial Caminho, 1992. p. 25-63. SAUSSURE, F. Curso de Linguística geral. São Paulo: Cultrix, 1971. WEEDWOOD, B. História concisa da Linguística. São Paulo: Parábola, 2002. Proposta de Atividade 1) Elabore um texto argumentativo em que você refute a definição de língua apresentada a seguir, bem como a noção de linguagem humana nela pressuposta. Na elaboração do texto, considere as reflexões teóricas que fizemos no transcurso deste Capítulo: “O QUE É UMA LÍNGUA? É um conjunto de sons e ruídos, combinados, com os quais um ser humano, o falan- te, transmite a outros seres humanos, o ouvinte ou os ouvintes, o que está na sua men- te, emoções, sentimentos, vontades, ordens, apelos, ideias, raciocínios, argumentos e 33 A ciência linguística: objeto, objetivos e métodos combinações de tudo isso” (Trecho recolhido e adaptado de: <http://agronomia.catoli- ca-to.edu.br/documentos/02020094/2009_Aula%20sobre%20a%20%20l%EDngua.doc>.) Acesso em: 29 set. 2009. Anotações A CIÊNCIA LINGUÍSTICA: CONCEITOS BÁSICOS 34 Anotações 35 Juliano Desiderato Antonio / Sonia Aparecida Lopes Benites CONSIDERAÇÕES INICIAIS Neste capítulo, procuramos apresentar um panorama de como os estudos linguís- ticos se desenvolveram ao longo da história e de diferentes propostas teóricas que surgiram após o estabelecimento da Linguística enquanto ciência, no início do século XX. Assim, este capítulo estabelece diálogos diretos com o primeiro e com o terceiro capítulos deste livro, que tratam, respectivamente, do estabelecimento da ciência lin- guística e dos postulados de Saussure, considerado o “pai” da Linguística moderna. Muitos dos trabalhos que versam sobre a história da Linguística apontam para uma visão contínua, cumulativa ou evolutiva dos estudos linguísticos (CAMPBELL, 2002). No entanto, neste capítulo, salientaremos também as mudanças e rupturas entre di- ferentes estágios que se sucederam nos estudos da linguagem. Essa visão nos parece mais coerente e é corroborada pela abordagem do físico Thomas S. Kuhn, que, em seu livro The structure of scientific revolutions (1962), afirma que toda ciência caminha segundo dois períodos distintos: períodos de concordância unânime ou quase, sobre valores acumulados, e períodos de crise, quando esses valores são refutados em fun- ção de novas descobertas e hipóteses. A pré-linguística, a paralinguística e a linguística Em uma sociedade estruturada em classes, é comum que a linguagem e o com- portamento da classe superior sejam considerados mais corretos e superiores que os das outras classes. Como afirma Gnerre (1987, p. 4), “Uma variedade linguística ‘vale’ o que ‘valem’ na sociedade os seus falantes, isto é, vale como reflexo do poder e da autoridade que eles têm nas relações econômicas e sociais”. Daí resulta o interesse em preservaros traços característicos que opõem essa mo- dalidade às demais, tidas como inferiores. O estudo sistemático desses traços caracte- rísticos ou dessa gramática é o que Câmara Júnior (1975) denomina Estudo do Certo e Errado. Conforme o autor (p. 13), esse estudo “nada mais é que uma prática do comportamento linguístico”, sem nenhuma cientificidade. Também não é ciência o 2 Panorama dos estudos linguísticos A CIÊNCIA LINGUÍSTICA: CONCEITOS BÁSICOS 36 estudo da língua estrangeira, voltado basicamente para a compreensão linguística, e efetuado segundo uma abordagem experimental, resultante de contatos amistosos ou hostis, entre sociedades que falam línguas distintas. Para Câmara Jr., o caráter de cientificidade é decorrente da aplicação de um método científico, na focalização do material linguístico. Enquanto o estudo do certo e errado e o estudo da língua estrangeira voltam-se para a comparação de modalidades contemporâneas de língua, o estudo filológico, situado no campo literário e igualmente acientífico, busca a compreensão de “traços linguísticos obsoletos a fim de captar a mensagem artística” (CÂMARA JÚNIOR, 1975, p. 11). Esses três estudos constituem o que o autor denomina pré-linguística. O autor classifica como paralinguísticos os estudos filosófico (ou lógico) e biológi- co, uma vez que eles não se voltam para o domínio da linguagem propriamente dita, mas permanecem em seus limites. O primeiro entrelaça os estudos de linguagem e filosofia, buscando “tornar a linguagem um instrumento eficiente para o pensamento filosófico e [...] disciplinar o pensamento através do disciplinamento da linguagem” (CÂMARA JÚNIOR, 1975, p. 11). O segundo consiste no estudo das características bio- lógicas que permitem ao homem usar a linguagem. Como Saussure, o autor considera propriamente linguísticos os estudos histórico (diacrônico) e descritivo (sincrônico) da linguagem, uma vez que ambos tomam a linguagem como um traço cultural da sociedade e tentam “chegar à sua natureza, ou explicando sua origem e desenvolvimento através do tempo ou o seu papel e meio de funcionamento real na sociedade” (CÂMARA JÚNIOR, 1975, p. 12). Afirmar que a Linguística é uma ciência é dizer que ela possui objeto e métodos próprios e, de acordo com Robins (1981, p. 7), é guiada pelos princípios científicos da exaustividade, consistência e economia. Em outras palavras, é entender que ela trata adequadamente todo o material importante, não apresenta contradição, e, “quando certas coisas são iguais”, prefere uma “afirmação ou análise menor” a “uma mais longa ou mais complexa”. Câmara Júnior (1975) enfatiza a importância dos estudos realizados pela pré e a paralinguística para o surgimento da Linguística, e acrescenta que a pré-linguística e a paralinguística não desapareceram com o advento da Linguística. “Ambas continuaram a seguir o seu caminho, ora ganhando novos aspectos do ponto de vista da linguística, ora contribuindo para esta com seu próprio background” (CÂMARA JÚNIOR, 1975, p. 14). Os estudos da linguagem na Antiguidade Há relatos de estudos linguísticos entre vários povos da antiguidade motivados por questões religiosas ou por necessidade de continuar a compreender textos escritos 37 após mudanças linguísticas. Dentre esses estudos, apresentaremos aqui, a título de exemplo, o caso das línguas suméria e acádia, na Babilônia, e o caso dos Vedas, escri- tos em sânscrito, na Índia. Na antiga Mesopotâmia, por volta do ano 2000 a.C., a língua acádia havia substi- tuído a língua suméria como língua falada naquela região (ENCYCLOPAEDIA, 1993a). O sumério permanecia como a língua escrita dos textos legais e dos textos religiosos. Para que esses textos pudessem continuar a ser lidos, paradigmas com listas de pala- vras e verbos com as correspondências em ambas as línguas tiveram que ser elabora- das (CAMPBELL, 2002). Deve-se observar que o sumério foi a primeira língua escrita conhecida. Tratava-se da escrita cuneiforme, a qual era feita com auxílio de objetos em forma de cunha. A escrita acádia também era cuneiforme e teve origem no sumério. Por volta de 1700 a.C., o código de Hamurabi, um dos mais antigos e conhecidos con- juntos de leis, foi escrito em acádio. Na figura 1 a seguir, observam-se alguns exemplos da escrita cuneiforme (EN- CYCLOPAEDIA, 1993b, p. 1035). pássaro Peixe sol, dia ficar em pé, ir Figura 1 – Exemplo de escrita cuneiforme. Na Índia, por volta do século V a.C., o gramático Pãnini, motivado por questões re- ligiosas, fez uma detalhada descrição do sânscrito (CÂMARA JÚNIOR, 1975). A tradição religiosa exigia que os Vedas, textos sagrados da religião hindu, fossem declamados exatamente como quando foram criados, por volta de 1200 a.C. Como o sânscrito havia naturalmente passado por mudanças nesse período, havia necessidade de se ga- rantir que as orações continuassem a ser ouvidas. A descrição de Pãnini serviu, então, Panorama dos estudos linguísticos A CIÊNCIA LINGUÍSTICA: CONCEITOS BÁSICOS 38 para que formas e regras arcaicas do sânscrito pudessem ser compreendidas e realiza- das durante os cultos religiosos. Em ambos os casos, os motivos que levaram ao estudo da língua nada têm a ver com o interesse pela reflexão sobre a linguagem, de forma que os estudos do sumério e do acádio, bem como do sânscrito, por Pãnini, podem ser considerados estudos paralinguísticos. A descrição do sânscrito por Pãnini, no entanto, também tem cará- ter normativo, uma vez que apresenta regras a serem seguidas para que as orações sejam compreendidas, de forma que esse estudo pode ser considerado pré-linguístico (CÂMARA JÚNIOR, 1975). Os estudos da linguagem na Antiguidade Clássica É incomensurável a contribuição da Antiguidade Clássica para os estudos da lin- guagem. A gramática tradicional que hoje conhecemos talvez seja o maior exemplo da herança que recebemos dos clássicos nos estudos linguísticos, mas há ainda outras contribuições, como as discussões a respeito da natureza convencional ou natural das palavras, da relação entre linguagem e pensamento e a delimitação das classes de palavras. Para Mattos e Silva (1989), a gramática tradicional origina-se em Platão e em Aristó- teles. Em seu diálogo Crátilo, Platão trata da oposição entre a natureza e a convenção (NEVES, 1987). Para os gregos, o que era natural era imutável, pois não havia sido es- tabelecido pelo homem, ao passo que o que era convencional era resultado de algum contrato entre os membros de uma comunidade e, por isso, esse contrato podia ser “quebrado” (LYONS, 1979). Os naturalistas postulavam que havia alguma relação entre a palavra e a sua forma. Isso ficava claro em palavras que “imitam” algum som, por exemplo, as onomatopeias (tique-taque, piar, cuco). Como há poucas onomatopeias, os naturalistas demonstravam que muitas palavras refletiam o que representavam porque os sons que as constituíam tinham qualidades que remetiam a características físicas1. Ainda assim, isso não ficava evidente em todas as palavras, o que motivou o estudo da etimologia, ou seja, do “verdadeiro significado” das palavras para revelar alguma verdade da natureza (LYONS, 1979). Alguns dos principais fundamentos da gramática grega foram lançados por Platão, expandidos por Aristóteles e continuados pelos estoicos. É o caso da divisão das par- tes do discurso (ou classes de palavras) (CÂMARA JÚNIOR, 1975). Platão inicialmente fez a distinção entre substantivos e verbos (ainda que sua distinção não corresponda 1 É como se hoje, por exemplo, alguém quisesse explicar que a palavra “ovo” tem essa forma pelo fato de ter duas letras “o”, cujo formato se assemelha ao de um ovo. 39 exatamente ao que se entende hoje por substantivo e por verbo). Aristóteles acrescen- tou a essa divisão as conjunções. Os estoicos, por sua vez, acrescentaram a classe do artigo e separaram os substantivos comuns dos substantivos próprios,
Compartilhar