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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA Franciele Rocha de Oliveira DOS LAÇOS ENTRE JOSÉ E INNOCÊNCIA: TRAJETÓRIAS DE UMA FAMÍLIA NEGRA ENTRE A ESCRAVIDÃO E A LIBERDADE NO RIO GRANDE DO SUL Santa Maria, RS 2017 Franciele Rocha de Oliveira DOS LAÇOS ENTRE JOSÉ E INNOCÊNCIA: TRAJETÓRIAS DE UMA FAMÍLIA NEGRA ENTRE A ESCRAVIDÃO E A LIBERDADE NO RIO GRANDE DO SUL Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em História. Orientador: Diorge Alceno Konrad Coorientadora: Beatriz Ana Loner Santa Maria, RS 2017 Franciele Rocha de Oliveira DOS LAÇOS ENTRE JOSÉ E INNOCÊNCIA: TRAJETÓRIAS DE UMA FAMÍLIA NEGRA ENTRE A ESCRAVIDÃO E A LIBERDADE NO RIO GRANDE DO SUL Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em História. Santa Maria, RS 2017 DEDICATÓRIA Dedicado aos antepassados negros que construíram Santa Maria. Àqueles que deram cor e formas às ruas e bairros. Aos antigos moradores do Vila Rica, Bairro do Rosário. Aos irmãos e irmãs negros e negras, que ergueram a Capela do Rosário, depois destruída. Aos operários negros e negras desta cidade e as gerações que vieram depois. Aos seus frutos da liberdade! A José e Innocência, mas também, a Micaela e Zeferina. A Francisca, João Francisco e João Moleque. Aos filhos destes, seus netos e bisnetos. A todos aqueles que, pela cor que tinham, foram lidos como "mais ou menos morigerados". Foram tidos como suspeitos, barrados de frequentar lugares e então criaram seus próprios. Aos construtores do União, do Treze, do Recreio, do 77777, do Succo e outros tantos. Aos moradores que não moraram em palacetes. Àqueles das casas de paredes de barro, madeira e tetos de zinco. Aos moradores dos cortiços desta cidade! Aos operários negros urbanos, as lavadeiras, carroceiros, jornaleiros, costureiras, doceiras e ferroviários negros e negras. Aos egressos do cativeiro e seus descendentes, protagonistas destas Histórias e trajetórias, que procuramos aqui remontar. Construtores da liberdade! Uma liberdade, em constante luta. A Nei D’Ogum, “afrogay periférico e intelectualizado”, em agradecimento por tudo que me ensinou em vida e por tudo que ainda tem me ensinado na partida pro orun. AGRADECIMENTOS É importante iniciar estes agradecimentos dizendo que a trajetória desta pesquisa não está circunscrita no tempo de um ou dois anos, muito menos foi realizada sozinha. Ainda que alguns discursos acadêmicos queiram forjar a noção de um conhecimento fundamentado em reflexões individuais, nosso trabalho, definitivamente, não anda neste sentido. Na verdade, sinto que, se foi possível escrever mais de 300 páginas, com reflexões, minimamente, justas sobre as experiências de José, Innocência, seus ancestrais e descendentes é porque, em nossa caminhada, uma série de diálogos e aprendizados foram sendo construídos, num processo de encontros que envolveram não só as vivências na universidade, mas, sobretudo, fora dela. Por isso, estes agradecimentos consideram as pessoas com quem cresci no Rosário, meus familiares, os aprendizados junto ao movimento negro local, dentro e fora do Museu Treze de Maio e também junto da academia e dos espaços de pesquisa, ao lado de colegas, professores e outros pesquisadores. Primeiramente, agradeço a minha mãe, Luzitania Rocha de Oliveira, uma das mulheres mais importantes em minha vida. Deu a mim e minhas irmãs amor incondicional e o conhecimento necessário para lutar pelo que é justo (mesmo que a justiça seja cheia de falhas e tardia). Professora por muitos anos, nunca negou sua profissão, nem deixou de nos incentivar. Foram inúmeras as vezes que me estendeu a mão e até mesmo se colocou na pesquisa ao meu lado, quis ler meus textos, ouvir minhas formulações, me ajudar a pensar, também, sobre o bairro onde morava desde pequena e onde hoje permanece. Uma das principais responsáveis na família pela valorização dos livros, da leitura e dos estudos. Ensinou-me a amar o Rosário e me apresentou a outros tantos que ali viveram e vivem. Mesmo com todos os empecilhos médicos, nunca deixou de sonhar conosco, de ver suas filhas bem, vivendo dignamente do trabalho. Obrigada mãe pelo amor, incentivo e força para seguir. Na verdade, somos um time de mulheres muito fortes (mais fortes do que nós imaginamos e do que muitos nos fazem acreditar). Agradeço, também, às minhas irmãs Luciele e Luziane. Mesmo na distância e com “feridas abertas” damos um jeito de tirar forças e nos ajudarmos a viver. Vocês todas, mais do que qualquer outros, sabem a realidade de dificuldades em que este trabalho foi gerado. Os tempos não foram nada fáceis (e ainda continuam não sendo), mas juntas tomamos outras formas e tentamos enfrentar o que nos fere. A tia Litiele também entra, sem dúvida, nesta lista! Outra pessoa a quem sou grata pela força e inspiração na luta por uma vida melhor para todas nós. Agradeço ao meu querido companheiro William. Pela escuta incondicional, pelo equilíbrio junto a mim. Minha calmaria em tempos de tempestade. Companheiro de fato, e não por expressão da palavra. Obrigada por estar comigo nos momentos mais difíceis e conturbados, serei sempre grata a ti e as mulheres em tua volta, Leandra e Maria Olinda. Obrigada por me ajudar, também, no trabalho (Tu com a tal da formatação cruzada, mágica pura!), mesmo quando só queria estar do meu lado. Agradeço, também, aos meus queridos amigos e amigas, que se colocaram ao meu lado não só quando enfrentava dificuldades na pesquisa. Muitos dos quais, generosamente, se somaram às minhas reflexões e vieram dar apoio nos momentos mais aflitos do trabalho: Luciele, William e Helen, nunca vou esquecer o apoio de vocês e o cuidado que tiveram comigo. Agradeço, também, as manas que me fortalecem nesta caminhada toda para seguir em frente. Juntas somos maiores e com vocês ando muito melhor! Marta Nunes, Luciele, Martina Schaedler, Melissa Budke, Débora Rorato, Helen da Silva Silveira, Izadora Dorneles e Laura Wottrich, obrigada por me ouvirem quando mais precisava. Obrigada a todos vocês por compartilharem afeto, pela companhia e pelas cervejas divididas, que nunca nos falte! Após 7 anos de meu primeiro contato, retomo, novamente, agradecimentos ao Museu Treze de Maio, um importante espaço de resistência histórica, cultural e artística da comunidade negra de Santa Maria. Mesmo não atuando ao lado da comunidade como voluntária desde 2014, sempre reafirmo a importância das vivências neste lugar, implicando, fundamentalmente, em minha formação, em minha vida, na forma de compreender e formular História. Lá, no Treze, conheci pessoas maravilhosas com quem trabalho até hoje, aos quais também sou grata, como o querido amigo Nei D’Ogum, “afrogay periférico intelectualizado”, “Pobre, preto e puto!”, como se definia. Grande referência, com quem aprendi muito sobre justiça, luta e sobre felicidade, mesmo em condições difíceis, duras e desiguais, até nos últimos momentos de sua vida, quando, na noite do dia 23, dois dias depois desta defesa, partiu e foi brilhar no Orun. Sou grata, também, ao seu companheiro Ricardo Pereira, Babalossain de Agué. O amor de vocês é uma das coisasmais lindas que pude ver, é inspiração pra seguir neste mundo torto. Amo vocês dois! Obrigada, obrigada, obrigada! Foi Nei quem me apresentou Romeu do Nascimento, neto de José e Innocência, portanto, este trabalho guarda muito destes encontros. Traz, em seu cerne, um tanto de Nei, que compartilhou comigo e muitos outros, seu conhecimento sobre a comunidade negra local. No Treze, também conheci Marta Nunes, outra mulher incrível em minha vida. Mulher negra, mãe, cientista doutora, produtora e militante! Quem, também, admiro por sua História e suas lutas. Aquela em quem, também, me fortaleço, que esteve ao meu lado no momento de sair de casa, no momento de cuidar de mim mesma. Que me ajudou a enfrentar dores. Obrigada por tudo Nei e Marta! Ênio Grigio talvez não se lembre do dia em que nos conhecemos, mas foi, de igual forma, no Museu Treze de Maio. Desde lá, admiro muito seu trabalho sobre a Irmandade do Rosário. Quem é que diria, naquela época, que, anos depois, estaríamos trabalhando juntos nas pesquisas? Sou muito grata ao Ênio, pela parceria nos estudos, pela humildade em compartilhar “as chaves”, que abriram inúmeras portas em nossos trabalhos. Agradeço pelos diálogos, pelas orientações, pelo empréstimo de livros, pelo compartilhamento de documentos. Sem dúvida este trabalho, também, tem muito de ti Ênio! (Como pode ver, és bastante referenciado!). Obrigada por estar no “time”, que me faz redefinir o que é a academia, o que é conhecimento, o que é História. Sinto-me honrada e grata por conhecer Romeu do Nascimento (apresentado a mim por Nei D’Ogum) e Rossy do Nascimento, sua irmã mais velha (apresentada a mim por Romeu) e, também, Romilda do Nascimento, irmã de Romeu e Rossy, recentemente apresentada a mim por ambos. Foi incrível poder ouvi-los, poder ter a honra de compartilhar com vocês momentos importantes de rememoração de seus ancestrais. Agradeço por abrirem as portas para esta pirralha pesquisadora branca, que mal sabia muita coisa sobre as realidades e experiências negras em nossa cidade, realidades suas, de seus antepassados e descendentes destes. Obrigada por me ajudarem a formular História, a escrever História, a tentar construir este trabalho dentro do que seria uma espécie de justiça histórica, se é que podemos assim chamar. O que, na verdade, também, compreendo como uma gota, em meio a um oceano. Espero ter conseguido, minimamente, colocar minha profissão e ofício à disposição de suas lutas. Obrigada por, também, me apresentarem Innocência, a vó com quem conviveram, seus pais, tios e tias, irmãs e irmãos. Obrigada por me ajudarem a construir esta árvore familiar negra, que possui grandes e fortes galhos e por me revelarem a imagem dos ancestrais José e Innocência, mostrando a todos nós, os rostos de quem tanto falávamos. Quero agradecer, também, a outra mulher maravilhosa e essencial em minha formação, Beatriz Ana Loner. Uma das maiores pesquisadoras que conheci e, também, uma das mulheres mais fortes na luta pela vida. Quando eu menos esperava, apareceu como minha professora e, a partir dali, se tornou uma das principais responsáveis por me fazer acreditar que era possível conceber História com respeito ao protagonismo negro, à visibilidade e audição de vozes muitas vezes silenciadas. Loner me fez perceber a importância de observar as resistências e as lutas, mesmo em contextos extremamente violentos e desiguais. Fez-me ver as coisas de uma forma mais complexa e nada homogênea. Ela é responsável pelas minhas principais leituras (das quais se encontram muitos de seus escritos), por me fazer conhecer e me apaixonar pelos escritos sobre história social da escravidão e da liberdade e sobre o pós- Abolição. Ela é a responsável por me iniciar nos arquivos de Porto Alegre e por me ensinar a mexer em mecanismos de buscas. Nunca me esquecerei da primeira vez que conheci o APERS ao seu lado, meu primeiro documento encontrado foi um processo crime, de 1926, que é trabalhado, hoje, nesta Dissertação. Sou muito grata a esta mulher e me inspiro ao lê-la e escutá-la. Inspiro-me ao vê-la lutar pela vida! Obrigada professora! Obrigada por tudo! Vou aguardar ansiosa, como sempre, por mais um de nossos encontros e pelo dia em que possamos conversar, também, sobre mais este trabalho, que não pode contar com sua presença, mas que, sem dúvida, não teria existido, sem a senhora. Agradeço, também, aos professores da Universidade Federal de Santa Maria, muitos dos quais me acompanham desde a Graduação e, especialmente, àqueles que me deram apoio no Mestrado, com quem encontrei espaço para discussões teóricas e metodológicas, com quem encontrei importantes conselhos e “tirei” dúvidas, àqueles a quem solicitei livros, compartilhei caronas e ideias. Sou grata ao orientador deste trabalho, Diorge Konrad, ao professor Luis Augusto Farinatti, a professora Glaucia Konrad e a professora Beatriz Weber. Agradeço a Diorge e Farinatti pelos diálogos e orientações, por me ouvirem várias vezes, mesmo em minha insegurança e sempre nervosismo. Agradeço ao Farinatti, também, por me apresentar a micro-história e os trabalhos maravilhosos dentro desta prática. Agradeço a professora Mariana Thompson Flores que, também, se colocou à disposição para me ouvir. Sou grata a todos os professores que deram apoio ao meu trabalho, reconhecendo sempre a importância do tema. É preciso dizer que, mesmo enfrentando dificuldades encontradas no ambiente acadêmico da Pós-Graduação, somadas às dificuldades particulares de nossas realidades (que tangenciam nossas histórias de vida), encontramos algumas pessoas que compartilham estas mesmas experiências, que passam a ser fundamentais para que possamos nos fortalecer neste processo e seguir em frente. Neste sentido, destaco, além das importantes relações estabelecidas com alguns professores, as relações constituídas com colegas, por isso, agradeço a Aline Flores, Mariana Milbradt e Guilherme Catto, meus queridos colegas e parceiros! Inúmeras foram as vezes que nos demos as mãos e nos somamos nas dificuldades. Agradeço muito pelo apoio nos momentos difíceis que enfrentamos (e não foram poucos), bem como nos momentos de alegria. Quero guardar comigo as lembranças de nossas comemorações, dos nossos suspiros de alívio, da nossa cooperação como amigos e colegas de sala de aula e de profissão. Somos mais fortes do que pensávamos e aprendemos, coletivamente, a não dar ouvidos para aqueles que nos diminuem! Obrigada por me fazerem ver isso! Agradeço, também, aos colegas que sempre foram solícitos e companheiros, obrigada Tamires Xavier, Roberta Specht, João Davi Oliveira Minuzzi, Simone Margis, Rayssa Almeida Wolf, Gilvan Moraes, Giovan Sehn Ferraz, Adriano Avello, Aiman Franco e Atílio Alencar. Agradeço, imensamente, ao GEPA, um grupo que é uma experiência transformadora! Quando estudantes da Graduação (em sua maioria) se ligam a alguns da Pós-Graduação em História, para pensar sobre as realidades e experiências negras em escravidão e, essencialmente, em luta pela liberdade, sendo a maioria destes, também, negros e negras. Um grupo que, além de se unir nas leituras e estudos, se junta para pensar e construir espaços de diálogos com a comunidade acadêmica e não acadêmica, pensando a universidade enquanto local de produção do conhecimento e, também, de retorno para as comunidades. Um espaço que, também, promove trocas sobre as nossas vivências, que permite reconhecermos nossas diferenças e privilégios (de alguns), o que não nos impede de construir projetos lado a lado, colocando o nosso pensar à disposição de um conhecimento histórico anti racista. Sinto muito orgulho de estar ao lado destes colegas! Obrigada Helen da Silva Silveira, Taiane Lima, Alexon Messias da Rocha, Izadora Dorneles, Felipe Farret, Gabriela Rotilli, Jéssica Silva, Késsia Machado, Nara Ilha Rodrigues e Luis Augusto Farinatti. Aproveito paragradecer, também, a outros pesquisadores, colegas e professores da UFSM e de outras instituições, que têm se somado neste mesmo intuito, que me apresentaram outras possibilidades de pensar, ver, escrever e escutar História, de reconhecer protagonismos e outras epistemologias. Agradeço, em especial, aos companheiros do campo de estudos, aos membros dos GTS Emancipações e Pós-Abolição e Mundos do Trabalho, onde estão minhas grandes inspirações para seguir pesquisando e escrevendo, pesquisadores que tratam de temáticas semelhantes, que têm como eixos de estudos as diversas organizações, trajetórias e protagonismos negros no Rio Grande do Sul e no país, realizando assim, construções profícuas e necessárias de conhecimento histórico. Repito aqui, o que uma vez tive a oportunidade de dizer para Fernanda Oliveira da Silva e Ana Flávia Magalhães Pinto, que talvez não tenham noção do que representam ou da “revolução” que fizeram em nossas cabeças! Obrigada Fernanda Oliveira da Silva, Beatriz Ana Loner, Paulo Staudt Moreira, Marcus Vinicius Freitas Rosa, Sherol dos Santos, Melina Perussatto, Rodrigo Weimer, Álvaro Nascimento, Giovana Xavier, José Antônio dos Santos, Sarah Amaral, Tiago Silva, Ângela Oliveira, Liane Müller, Letícia Marques, Tamires Xavier, Micaele Scherer e Nauber Silva. Agradeço, também, aos historiadores Miquéias Mugge, Eliege Moura Alves e Vinicius Pereira de Oliveira. Obrigada pelas referências repassadas, pelos documentos e fichamentos compartilhados e pelos diálogos construídos. Obrigada por me ouvirem e pensarem junto comigo, sem nem mesmo me conhecerem. Agradeço, também, Micaele Scherer e Tamires Xavier, que, gentilmente, compartilharam fontes comigo e ajudaram-me a ter acesso a elas. Agradeço, da mesma forma, Felipe Kuhn Braun, que compartilhou comigo as fotos do acervo, que ajudou a salvaguardar em sua cidade. Agradeço aos coletivos culturais, artísticos e intelectuais negros da cidade, com quem aprendo muito, construídos por muitos daqueles que, também, incentivam este e outros trabalhos, sem os quais minha formação não seria a mesma. Obrigada ao Coletivo Ará Dudu e ao Coletivo Negressencia! Sou grata a Marta Nunes, Nei D’Ogum, Manoel Luthiery, Isadora Bispo, Flávia Nascimento, Izabella Gutierres, Lucia Chaves – Baiana, Alexon Messias da Rocha, Rozan Borges, Kauane Cabral. Obrigada aos “corpos negros contadores de Histórias” Manoel Luthiery, Lenora Shimit, Amanda Silveira, Karen Tolentino, Jaine Barcellos, Letícia Ignácio, Vinicio do Carmo, Gabrielle Barcelos e Venir Xavier. Por fim, e não menos importante, agradeço, também, as instituições de pesquisa, cultura e ensino, que tornaram possível este trabalho, ao Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria, a Casa de Memória Edmundo Cardoso, a Biblioteca Municipal, ao Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, ao Museu da Comunicação Hipólito José da Costa e, de forma geral, ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria e ao auxílio de bolsa junto a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, salientando a importância do acesso a tal recurso, que, muitas vezes, torna-se a condição sine qua non para seguir atuando dentro dos programas. Eu não sei nenhuma palavra africana Eu não sei se é a hora certa ou... Eu não sei se o céu está como deveria estar Mas eu sei... Que você é meu primeiro bebê que não nasceu escravo. O primeiro bebê que não é de ninguém... Mas, não quer dizer que não precisa ser guerreira. Ainda tem que lutar para continuar livre todo o dia. Sempre vai ter alguém querendo tirar a sua liberdade. Eu não posso manter essa família unida, se não ensinar você de onde nós viemos. Quem você é Se não me lembrar quem eu sou É por isso que eu tenho que contar essa História... Pra poder ser o pai que eu quero ser. (Série Raízes, 2016 adaptação de Alex Haley, 1976). Palavras de Tom (Tom Lea/ Lee Murray) à sua primeira filha. RESUMO DOS LAÇOS ENTRE JOSÉ E INNOCÊNCIA: TRAJETÓRIAS DE UMA FAMÍLIA NEGRA ENTRE A ESCRAVIDÃO E A LIBERDADE NO RIO GRANDE DO SUL AUTORA: Franciele Rocha de Oliveira ORIENTADOR: Diorge Alceno Konrad COORIENTADORA: Beatriz Ana Loner A fim de compreender o processo complexo da “passagem” da escravidão à liberdade no Rio Grande do Sul, reduzimos nossa escala de análise e acompanhamos as trajetórias de José, que foi escravizado, talvez por 29 anos, em São Leopoldo/RS, e Innocência, uma criança nascida de Ventre Livre, no então Rincão de São Pedro, em Santa Maria/RS. Nos caminhos da vida em liberdade, José e Innocência se unem e, na Santa Maria da Boca do Monte, constituem o operariado local, iniciam uma numerosa família, comungando de uma cultura popular negra e periférica, marcada pelas suas lutas na efetivação de seus projetos de liberdade, que envolveram, também, a participação e a constituição de sociedades negras. Assim, nos levaram à compreensão do pós-Abolição na cidade de Santa Maria e seus meandros, que envolvem questões como as experiências da escravidão e liberdade, territorialidade, moradia, constituição de laços afetivos, conflitos, trajetórias profissionais e sociais organizativas. Dialogando com a história social do trabalho, os estudos de escravidão, liberdade e do pós- Abolição, e por meio da prática microanalítica em nosso estudo, que remonta ao período de 1859 a 1936, José, Innocência e seus filhos apontam os seus significados da liberdade em uma realidade marcada pela precariedade e pela hierarquização racial. Palavras-Chave: Pós-Abolição. Escravidão. Liberdade. Clubes Sociais Negros. Operariado. Rio Grande do Sul. ABSTRACT FROM THE BONDS BETWEEN JOSÉ AND INNOCÊNCIA: A BLACK FAMILY’S TRAJECTORY BETWEEN SLAVERY AND FREEDOM IN RIO GRANDE DO SUL AUTHOR: Franciele Rocha de Oliveira ADVISOR: Diorge Alceno Conrad COADVISOR: Beatriz Ana Loner In order to comprehend the complex process of “transition” between slavery and freedom in Rio Grande do Sul, we’ve reduced our scale of analysis and observed the trajectories of José, that was slaved for about 29 years, in São Leopoldo, and Innocência, a child born within the Ventre Livre period, at the place today known as Rincão de São Pedro, in Santa Maria. In the paths of life in freedom, José and Innocência come together and, in Santa Maria da Boca do Monte, aggregate to the local operariate, start a numerous family, sharing a popular and pheriperal black culture, marked by its struggles in the effectivation of its freedom projects, that also involves the participation and constitution of black societies. Thus, leading us to the comprehension of the Post-Abolition in the city of Santa Maria, revolving questions like the experience of slavery and freedom, territorial questions, housing, constitution of affective bonds, conflicts, professional trajectories and social organizatives. Dialogating with the local history of work, the studies of slavery, freedom and post-abolition, and by the means of the microanalytics practice in our study, involving the period from 1859 to 1936, José, Innocência and its children point to their meanings of liberty in a reality marked by struggleness and social hierquization. Keywords: Post-Abolition. Slavery. Liberty. Black Social Clubs. Operariate. Rio Grande do Sul. LISTA DE IMAGENS Imagem 1 - Igreja Nossa Senhora da Conceição, à esquerda. .................................................. 58 Imagem 2 - Igreja Nossa Senhora da Conceição, ao fundo. Foto tomada da ponte. ................ 59 Imagem 3 - Trabalhadores e Igreja Nossa Senhora da Conceição, ao fundo. .......................... 59 Imagem 4 -Intendência Municipal, 21 de agosto de 1896. ...................................................... 86 Imagem 5 - Casa da Feitoria antes da reforma de 1941 – São Leopoldo. .............................. 113 Imagem 6 - Casa que abrigou os primeiros colonos alemães – São Leopoldo. ..................... 113 Imagem 7 - Capitão Joaquim José Joaquim de Paula. ............................................................ 123 Imagem 8 - Manuel, escravizado pela Baronesa Joaquina Rita Von Schlabrendorff Bier, que vendia doces nas ruas de São Leopoldo. Foto do final do século XIX. ................................. 127 Imagem 9 - Maria, escravizada pela família Hoffmann, tendo trabalhado por décadas para tal família de São Leopoldo. ........................................................................................................ 128 Imagem 10 - Oito pessoas que foram escravizadas pela família Kraemer, de Hamburgo Velho na década de 1880................................................................................................................... 129 Imagem 11 - Família de descendentes africanos, em casamento. .......................................... 129 Imagem 12 - População negra em São Leopoldo. No rio, embarcações da Navegação Blauth. ................................................................................................................................................ 130 Imagem 13 - Cônego José Marcellino de Souza Bittencourt. ................................................ 161 Imagem 14 - Sotéia ou Solar dos Niederauer, desenhada por Theodoro Poettcke. ................ 187 Imagem 15 - Felippe Leonardo Niederauer (Philipp Leonhard Niederauer). ........................ 188 Imagem 16 - Mapa: As linhas de Viação Férrea Sul-Rio-Grandenses, em 1898. .................. 227 Imagem 17 - Estação da estrada de ferro. ............................................................................... 240 Imagem 18 - Armazém da Cooperativa dos Empregados da Estrada. ................................... 240 Imagem 19 - Praça Saldanha Marinho. .................................................................................. 242 Imagem 20 - Procissão de Santo Antão. ................................................................................. 244 Imagem 21 - Antiga capela de Santo Antão Abade................................................................ 244 Imagem 22 - Nova capela de Santo Antão Abade. ................................................................. 245 Imagem 23 - Maria Theresa da Conceição ............................................................................. 246 Imagem 24 - Maria Costa da Conceição. ............................................................................... 247 Imagem 25 - O Ponta Grossa, com 109 anos de idade (veterano da revolução de 35). ......... 247 Imagem 26 - Domingos e Maria dos Santos. Um casal com mais de cem anos. ................... 248 ../../../../../../../../../Documents/UNIÃO%2004.10.2016/união/MESTRADO/QUALIFICAÇÃO/DISSERTAÇÃO%20FINALIZADA%2023.07.2017/REVISÃO%20VERSÃO%20FINAL/VERSÃO%20PC%20HELEN%2021.11.2017%20PARA%20GRÁFICA/VERSÃO%20LEANDRO%20FORMATADOR.doc#_Toc499188536 ../../../../../../../../../Documents/UNIÃO%2004.10.2016/união/MESTRADO/QUALIFICAÇÃO/DISSERTAÇÃO%20FINALIZADA%2023.07.2017/REVISÃO%20VERSÃO%20FINAL/VERSÃO%20PC%20HELEN%2021.11.2017%20PARA%20GRÁFICA/VERSÃO%20LEANDRO%20FORMATADOR.doc#_Toc499188539 Imagem 27 - Planta de Santa Maria de 1902, elaborada pelo agrimensor José Nehrer. ........ 251 Imagem 28 - Um trecho da Avenida Rio Branco. .................................................................. 253 Imagem 29 - Entrada na Rua do Acampamento .................................................................... 253 Imagem 30 - Outro trecho da Avenida Rio Branco. .............................................................. 254 Imagem 31 - Rua Venancio Ayres. ........................................................................................ 254 Imagem 32 - Uma mesa no Hotel Leon. ................................................................................ 255 Imagem 33 - Mapa de Santa Maria de 1902 e localização da Capela do Rosário. ................ 271 Imagem 34 - Vila Rica e a Igreja de Nossa Senhora do Rosário – 1911. .............................. 272 Imagem 35 - Vila Operária Brasil. Extraída do Álbum de Santa Maria, editado em 1914. .. 283 Imagem 36 - Assinatura de Zeferina em requerimento para a Secção de Obras. .................. 291 Imagem 37- Localização da casa de José e Innocência e organizações negras próximas, no mapa de 1902, a partir de Grigio (2016, p. 207). ................................................................... 294 Imagem 38 - Assinatura do casal, José Francisco do Nascimento Filho e Jenny da Rosa, que sabiam escrever. ..................................................................................................................... 300 Imagem 39 - Foto de Lucio José da Silva, matriculado no número 127 do Livro de Matrículas de Boleeiros, Chauffeurs e Carroceiros. ................................................................................ 308 Imagem 40 - Localização da casa de José e Innocência, André Rodrigues da Silva, José Pereira e organizações negras próximas, no mapa de 1902, a partir de Grigio (2016, p. 207). ................................................................................................................................................ 309 Imagem 41 - Foto de Alexandre Grauna, em sua carteira de conductor de automóvel profissional, expedida pela Diretoria do Trafego da Intendencia Municipal de Santa Maria. Fotografia tirada em 30 de janeiro de 1934. .......................................................................... 311 Imagem 42 - Local do crime, na Montanha Russa, de acordo com a perícia do processo. ... 326 Imagem 43 - Assinatura de José e Innocência na Habilitação de Casamento do Filho Juvenal. ................................................................................................................................................ 329 Imagem 44 - Quadro de Innocência e José. ........................................................................... 352 Imagem 45 - Quadro com fotos da família: à esquerda Zilda, Esmeraldino e neta. Ao fundo, Esmeraldino e à direita, Waldemar. ....................................................................................... 353 Imagem 46 - Quadro na casa de Rossy do Nascimento. Na foto: Luiza, Esmeraldino neto, Esmeraldino, Zilda e Roque. .................................................................................................. 353 Imagem 47 - Quadro na casa de Rossy. Na foto: Jeci, Rubens, Romilda, Romeu e Rossy. .. 354 Imagem 48 - Quadro na casa de Rossy. Nas fotos 3X4 abaixo: Luzia, Yolanda, Rossy, Romilda, Jeci e Julieta. .......................................................................................................... 354 Imagem 49 - Romilda, Romeu e Rossy, segurando o quadro dos avós Innocência e José. ... 361 LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Número total de alforrias ....................................................................................... 107 Tabela 2 - Propriedade de escravos: lusos e alemães (inventários/São Leopoldo/1850-1870) ................................................................................................................................................ 120 Tabela 3 - Condições, sexos e raças da população em Santa Maria, 1872. ........................... 143 Tabela 4 - Percentual de brancos livres, não brancos livres e não brancos escravizados em Santa Maria, 1872. .................................................................................................................. 144 Tabela 5 - Batizados de ingênuos entre os anos de 1871 e 1882, em Santa Maria. ............... 146 Tabela6 - Distribuição da população por sexo e estado civil. População livre e escrava. Números absolutos. Paróquia de Santa Maria da Boca do Monte. 1858 e 1872. ................... 147 Tabela 7 - Desenvolvimento predial de Santa Maria 1893 – 1913. ....................................... 250 LISTA DE QUADROS Quadro 1- Escravizados pela família Rocha ............................................................................ 89 Quadro 2 - Sujeitos que batizaram escravos na propriedade de Cipriano. ............................ 165 Quadro 3- Moradores do Bairro Vila Rica, membros da Irmandade do Rosário e vizinhos. 279 Quadro 4 - Moradores do Bairro Vila Rica, Ruas Silva Jardim e Conde de Porto Alegre, a partir do Livro de Terrenos Aforados. ................................................................................... 282 Quadro 5 - Organizações Negras de Santa Maria .................................................................. 349 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 - Percentual total de brancos e não brancos livres e escravizados em Santa Maria, 1872. ....................................................................................................................................... 144 Gráfico 2 - Percentual das crianças filhas de mulheres escravizadas, por cor declarada, batizadas em 1875 em Santa Maria. ....................................................................................... 149 Gráfico 3 - Número de visitas paroquiais para batismos em propriedades privadas, no Rincão de São Pedro, distrito de Santa Maria..................................................................................... 164 Gráfico 4 - População de Santa Maria – 1872/1920. .............................................................. 234 Gráfico 5 - Profissões encontradas entre os 13 membros da família...................................... 347 Gráfico 6 - Sociedades encontradas entre os 13 membros da família. ................................... 348 LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Representação da família Rocha – ANEXO A ....................................................... 83 Figura 2 - Representação da família Teixeira Cezar – ANEXO C ........................................ 163 Figura 3 - O batizado de escravos de José Luiz de Medeiros na propriedade de Cipriano. .. 171 Figura 4 - Representação parcial da família Niederauer – ANEXO D .................................. 188 Figura 5 - Representação da 1ª e 2ª geração da família. ........................................................ 267 Figura 6 - Representação da família Nascimento. ................................................................. 298 ../../../../../../../../../Documents/UNIÃO%2004.10.2016/união/MESTRADO/QUALIFICAÇÃO/DISSERTAÇÃO%20FINALIZADA%2023.07.2017/REVISÃO%20VERSÃO%20FINAL/VERSÃO%20PC%20HELEN%2021.11.2017%20PARA%20GRÁFICA/VERSÃO%20LEANDRO%20FORMATADOR%20e%20fran%2023.11.doc#_Toc499188672 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ACAB Acervo da Cultura Afro Brasileira ACDSM Arquivo da Cúria Diocesana de Santa Maria ACMEC Acervo Casa de Memória Edmundo Cardoso ACMSM Arquivo da Câmara Municipal de Santa Maria AFSM Arquivo do Fórum de Santa Maria AHMSM Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria AHRGS Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul AMTM Arquivo do Museu Treze de Maio APERS Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul APNSC-SM Arquivo Paróquia Nossa Senhora da Conceição – Santa Maria DGE Diretoria Geral de Estatística do Império HDB Hemeroteca Digital Brasileira IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística MCHJC Museu da Comunicação Hipólito José da Costa MHVSL Museu Histórico Visconde de São Leopoldo SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 31 1 JOSÉ, FILHO DE MICAELA: NASCER FILHO DE MULHER ESCRAVIZADA EM SÃO LEOPOLDO, 1859 .................................................... 53 1.1. NASCE JOSÉ ............................................................................................................. 57 1.2. UM CERTO JOAQUIM JOSÉ DA ROCHA............................................................. 64 1.3. DE JOAQUIM JOSÉ DA ROCHA A ANTÔNIO JOSÉ DA ROCHA JUNIOR...... 79 1.3.1. Domingos, o Mordomo ............................................................................................. 94 1.3.2. Pedro, o depoente ................................................................................................... 100 1.3.3. Cândido, o substituto de “cabelos carapinhos” ................................................... 104 1.4. UMA COLÔNIA DE IMIGRAÇÃO ALEMÃ REPLETA DE MÃOS NEGRAS . 109 1.5. E AGORA JOSÉ? .................................................................................................... 131 2 INNOCÊNCIA, FILHA DE ZEFERINA: NASCER FILHA DE MULHER ESCRAVIZADA EM SANTA MARIA, 1873 ...................................................... 135 2.1. NASCE INNOCÊNCIA ........................................................................................... 135 2.2. LIVRES, PORÉM TUTELADOS ............................................................................ 172 2.3. PRECISAMOS FALAR SOBRE LAURA .............................................................. 183 3 QUANDO JOSÉ FRANCISCO DO NASCIMENTO E INNOCÊNCIA MARIA JOAQUINA SE UNEM: CAMINHOS DA VIDA EM LIBERDADE NA SANTA MARIA DA BOCA DO MONTE.......................................................................... 197 3.1. LIBERDADE DE ASAS QUEBRADAS ................................................................ 198 3.2. JOSÉ SAI, INNOCÊNCIA FICA! A ESCOLHA DA MIGRAÇÃO NA VIDA EM LIBERDADE ........................................................................................................... 220 3.3. SANTA MARIA DA BOCA DO MONTE, UMA OPÇÃO PARA JOSÉ E OUTROS TANTOS .................................................................................................................. 226 3.4. LAÇOS NEGROS NA BOCA DO MONTE: FAMÍLIA, SOCIABILIDADES, MORADIA, INSTRUÇÃO E TRABALHO ............................................................ 260 3.5. A 3ª GERAÇÃO: TRABALHO E SOCIABILIDADE A PARTIR DOS FILHOS DE JOSÉ E INNOCÊNCIA............................................................................................ 299 3.5.1. José Filho ................................................................................................................. 299 3.5.2. Waldemar, Oscar e Arlindo .................................................................................. 318 3.5.3. Juvenal ..................................................................................................................... 328 3.5.4. Ernani ...................................................................................................................... 329 3.5.5. Esmeraldino ............................................................................................................ 339 3.5.6. Edelmira .................................................................................................................. 341 3.5.7. Antenor .................................................................................................................... 342 3.5.8. Antônio ..................................................................................................................... 343 3.5.9. Glacindo ................................................................................................................... 345 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................. 355 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................................363 FONTES.................................................................................................................................. 377 ANEXO A ............................................................................................................................... 384 ANEXO B ............................................................................................................................... 385 ANEXO C ............................................................................................................................... 392 ANEXO D ............................................................................................................................... 393 31 INTRODUÇÃO Antes de introduzirmos os leitores na composição textual desta Dissertação, é necessário explicar de que forma esta pesquisa se originou. Para isto, precisamos falar sobre a vivência no Bairro do Rosário, no Museu Treze de Maio, como, também, sobre José do Nascimento Filho, um dos muitos nomes que faziam parte de uma extensa lista nominal, elaborada por mim, quando estudei o Clube Social Negro União Familiar, fundado em 1896, na cidade de Santa Maria, e sua “rede”. Vivendo desde o nascimento no Bairro Nossa Senhora do Rosário, local em que não só morei, mas, também, estudei e em que fiz a primeira comunhão, conforme mandava a família, foi apenas a partir do ano de 2010, quando cursava Graduação em História que passei a me dar conta da ignorância que ronda muitos de nós, ditos, vistos e privilegiados, enquanto brancos e brancas com relação às Histórias e trajetórias negras da cidade. Tudo começou, quando uma disciplina de prática do historiador em museu apontava para a necessidade de estágio em museus da cidade. Uma grande listagem destes lugares nos havia sido apresentada, havendo, porém, apenas um deles que era “museu comunitário”, o Museu Treze de Maio. Escolhi, então, estagiar naquele local, também, pela proximidade com o lugar onde morava. Lá, foi onde me dei conta da ignorância (no sentido de desconhecimento) sobre as realidades e as vivências negras locais. Estava conhecendo um lugar que carregava uma História mais que centenária, no bairro onde vivia e sobre o qual eu nunca havia ouvido falar. Lá, no Treze, um mundo se abriu e esse mundo era negro. Foi neste espaço, que não só sua História e seus protagonistas me foram apresentados. Nas várias Rodas de Lembranças construídas pelo Museu, momentos em que antigos sócios e sócias eram chamados para rememorar suas vivências e de suas famílias no Clube, também, ficava conhecendo sobre outros espaços, de igual forma, fundamentais para a comunidade, como outros clubes sociais negros, blocos de carnaval e escolas de samba. E, entre eles, o Clube União Familiar era bastante citado, espaço que escolhi, então, estudar em meu Trabalho de Conclusão de Graduação em História1. Aprofundando nestas realidades, a percepção sobre a invisibilidade negra na cidade só se acentuava. Crítica feita e denúncia apontada pelos integrantes dos movimentos negros, que demarcavam a existência de todo um processo de apagamento de suas Histórias, não evidenciadas como outras tantas, relativas aos brancos na cidade, que não só estavam nos livros de História e cronologias, como, também, nos bustos da cidade, em nomes de ruas, de 1 Esta retomada, também, encontra-se em Oliveira (2016). Sobre as Rodas de Lembranças ver: Escobar (2010). 32 centros de cultura, pesquisa, educação e memória. Indivíduos e suas famílias (brancos), muitos dos quais foram responsáveis pela escravização de inúmeros antepassados de famílias negras locais, que, como veremos, em escravidão e no pós-Abolição, construíram várias formas de resistência e estratégias para lutar contra a desigualdade social em uma sociedade, hierarquicamente, racializada, erguendo espaços através de Clubes Sociais Negros, como o Treze e o União, locais em que, também, pudessem vivenciar suas culturas e lazer, já que eram impedidos de frequentar outros espaços da cidade. A vivência como estagiária pela disciplina e depois voluntária do Treze durou quatro anos. Lá pude conhecer lideranças negras da cidade, pessoas com quem trabalho até hoje. Estes encontros, diálogos e aprendizados promovidos pelas vivências junto à comunidade negra do Treze tornaram possível pensar a História de outra forma, reconhecendo a importância destes protagonistas e a necessidade urgente de ouvi-los. Foi dentro deste espaço, também, que, entre tantas pessoas, conheci Romeu do Nascimento, apresentado por Nei D’Ogum, com quem trabalhamos dentro de um projeto cultural2. Anos depois, estaríamos novamente em contato para falar sobre a sua família, personagens que protagonizam esta outra pesquisa em nível de mestrado. Antes, porém, eu fui estudar o União Familar e entre os nomes vinculados aquele Clube, encontrei José do Nascimento Filho, como abaixo me reporto. *** Resumidamente, as fontes orais e documentais da pesquisa realizada na Graduação, levaram a compreender o Clube União Familiar correlacionado ou “em rede”, já que o mesmo estava situado onde se ergueu a Vila Operária Brasil, em 1910, sendo que, entre os anos de 1920, o Clube teria fundado o bloco carnavalesco Rancho Succo, do qual teria emergido, também, um dos mais antigos exemplares da imprensa negra local, de nome O Succo, onde encontramos o nome de José do Nascimento Filho. Em 1928, José do Nascimento Filho era diretor de O Succo, ao lado de Francisco de Assis Elias Marques. O jornal se autodeclarava como “órgão crítico, humorístico e noticioso”, estando em exercício desde o início dos anos 1920. Tratava-se de um periódico representativo da imprensa negra local. 2 A vivência no Museu Treze de Maio seguiu até 2014, por meio do trabalho voluntário. Nesse período construímos um projeto de exposição fotográfica, intitulado “Olhares Negros”, que evidenciava a trajetória de algumas personalidades negras da cidade. 33 De maneira geral, a pesquisa, que resultou em um livro3, ajudou a fortalecer a percepção sobre uma parte da comunidade negra local, a qual estava organizada e articulada em diversos segmentos associativos, desde o século XIX, e que iam muito além do Clube Social Negro União Familiar. Então, desde a pesquisa sobre o Clube União Familiar, passamos a nos preocupar com muitos nomes, culminando na elaboração de uma extensa lista nominal, sobre a qual nos debruçávamos em busca de fontes, tarefa que nem sempre foi tão efetiva. José do Nascimento Filho, porém, foi o personagem que nos permitiu a maior imersão dentro do campo de possibilidades acerca das realidades do passado. José “abriu inúmeras portas” e tornou possível a construção de todo um projeto de estudos em torno dele e de sua família, como veremos. Entretanto, sozinhos não conseguiríamos, de forma tão efetiva, ter reunido tão grande acervo. Como veremos na sequência, os diálogos com outra pesquisa, foram essenciais para chegarmos aonde chegamos. *** Em agosto de 2015, os diálogos com o historiador Ênio Grigio, que pesquisa a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, em Santa Maria, foram fundamentais para entender as relações em torno de alguns nomes, como, por exemplo, José do Nascimento Filho. Ao ouvir o nome de José, o historiador, prontamente, indicou que seus pais eram José Francisco do Nascimento e Innocência Maria Joaquina, um dos casais articuladores daquela Irmandade e sobre os quais ele vinha reunindo documentação, a qual, gentilmente, compartilhou conosco. De lá pra cá, iniciamos uma busca contínua de documentos, a fim de expandir nosso acervo documental sobre esta família, sobre a qual tivemos muitos êxitos nestas procuras, sendo possível reunir inúmeros documentos relacionadosàs experiências desta família entre a escravidão e a liberdade. Entre eles encontram-se processos crimes, registros de batismos, óbitos e casamentos, fotografias, jornais, documentos associativos, décimas urbanas e demais registros da Intendência Municipal, envolvendo, por exemplo, registros de pagamentos, listas escolares, registros de trabalho, bem como fontes orais, relacionadas às memórias da quarta 3 O livro Moreno rei dos astros a brilhar, querida União Familiar: trajetória e memórias do clube negro fundado em Santa Maria, no pós-Abolição é uma publicação da Câmara Municipal de Vereadores de Santa Maria, resultado do Prêmio Lei Municipal do Livro. 34 geração desta família, representada pelos irmãos Romeu do Nascimento e Rossy do Nascimento, os quais tivemos a honra de entrevistar. Todas estas importantes fontes permitiram conhecer mais sobre o universo de José Francisco Nascimento Filho e daqueles que estavam em seu entorno, como os seus ancestrais. Grosso modo, estávamos diante de um grupo familiar constituído por pessoas que vivenciaram contextos de escravidão e de liberdade, cujas trajetórias eram possíveis de serem, minimamente, reconstituídas - a partir da microanálise, problematização e cruzamento documental - para que pudéssemos entender, de forma mais aprofundada, o contexto histórico que viveram e suas experiências. Diante deste quebra-cabeça de muitas peças, elaborou-se a pesquisa intitulada “Dos laços entre José e Innocência: trajetórias de uma família negra entre a escravidão e a liberdade no Rio Grande do Sul”4, que se esforça para compreender o pós-Abolição através de uma redução de escala. Portanto, olhar “mais de perto” esse processo complexo, que envolve a “passagem” do trabalho escravo ao livre, em diálogo com alguns autores, que levantam critica com relação à concepção de transição do trabalho, quando abordada de forma mecanicista, ligando-se a ideia de substituição da mão de obra, como veremos. A pesquisa, portanto, desenvolvida nos três capítulos que transcorrem nesta Dissertação tem como tema a cidade de Santa Maria em um contexto de pós-Abolição, delimitando o olhar sobre uma família negra, constituída a partir do laço matrimonial entre José Francisco do Nascimento e Innocência Maria Joaquina, em 1890. Procura-se compreender o pós-Abolição na cidade e seus meandros por meio do acompanhamento desta família e seus percursos, que envolvem questões como as experiências da escravidão e liberdade, territorialidade, moradia, constituição de outros laços afetivos, conflitos, trajetórias profissionais e sociais organizativas. Desta forma, as principais questões que mobilizaram o nosso trabalho, giraram em torno de responder dois grandes problemas, sendo eles: 1. É possível compreender o pós-Abolição através das reflexões proporcionadas acerca das trajetórias de José, Innocência e seus descendentes em Santa Maria? Em que medida estas trajetórias nos ajudam a compreender o contexto pós-Abolição? 2. Como José, Innocência e seus descendentes “moveram-se” dentro do processo de “passagem” do trabalho escravo ao trabalho livre? Como e porque se engajaram em organizações negras da cidade e como as consolidaram? Que conflitos encontraram e como 4 Projeto vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria. Tem a orientação do Prof. Dr. Diorge Alceno Konrad e a coorientação da Profª. Drª. Beatriz Ana Loner. 35 agiram frente aos conflitos? Que estratégias podemos identificar como sendo adotadas por essa família na construção de uma vida melhor para si e seus iguais? Neste sentido, abrimos aqui as principais reflexões teórico-metodológicas que circundam nosso trabalho e nos ajudam a responder, ainda que de forma não definitiva, os problemas apontados acima. *** Em 1997, Beatriz Loner já dizia, ao trabalhar com a situação de escravizados e libertos contratados em Pelotas, que “O término de uma luta significa o início de outra”. A autora se referia, também, as posteriores movimentações encampadas pela comunidade negra na integração como trabalhadores livres e cidadãos, ou seja, seus movimentos dentro do que entendiam como liberdade. (LONER, 1997, p. 49). O pós-Abolição é momento fértil para se pensar em uma nova organização, que traz consigo arranjos diferentes na estrutura social, de modo que muitos historiadores têm pensado como central ao campo de estudos, muito mais o problema que a liberdade negra representa (aqui se lê, também, o acesso a direitos civis, a cidadania e as suas matérias) do que a escravidão que vivenciaram quando cativos foram. Ao que as pesquisas vêm mostrando, o pós-Abolição também cria, remonta, reordena, reorganiza mecanismos de “controle social”5, de criminalização e exclusão da comunidade negra, a partir de várias ideologias refugadas e atualizadas, mas, também, vê um boom de respostas negras, combatentes e irredutíveis de resistência, de questionamento, de tensionamento e conflito para fazer valer as suas compreensões do que era a liberdade, os direitos e a cidadania. Isto é, suas lutas na consolidação das suas visões de liberdade. 5 Utiliza-se, nesta Dissertação, o termo “controle” – entre aspas – a fim de relativizá-lo, considerando a não existência de um controle totalizante, o que evidência as formas de resistência negra à ordem social vigente, bem como a configuração de uma luta de classes. Konrad (2004) considera o conceito de controle, quando usado de maneira funcional, como anti-histórico, porque trata os sujeitos do processo como passivos à dominação. Segundo o autor: “nem tampouco, apesar da repressão, trabalhadores e sindicatos podem ser vistos apenas como vítimas de um “controle” governamental absoluto. Conclusões historiográficas que se resumem a aceitar a passividade dos trabalhadores no processo histórico, geralmente tem feito uso do conceito funcionalista de “controle social” (e seus sinônimos como controle do Estado, controle governamental, controle da ordem social, controle das mudanças sociais, controle dos sindicatos e organizações sociais, controle coletivo e outros, como vimos em passagens desse capítulo), transformando o desejo histórico das classes dominantes, como única explicação possível da relação entre o Estado e a classe trabalhadora. Como se fosse possível na dinâmica do processo da luta de classes, uma classe ter o domínio absoluto sobre outra, ou mesmo o Estado sobre qualquer classe. Nada mais anti-histórico do que essa interpretação, que leva junto com o conceito toda uma teoria social e uma visão de mundo...”. (KONRAD, 2004, p. 124). 36 Se, hoje, a historiografia pode conceber algumas destas questões, estudos têm apontado que nem sempre fora assim. Como veremos, na sequência, e melhor contextualizado no capítulo três, é possível que as ditas versões brancas das liberdades negras tenham, também, influenciado a historiografia, que concebeu, muitas vezes, o mundo do trabalho livre no Brasil sem o protagonismo de negros e negras. Vejamos o que se tem apontado. Em termos historiográficos, as problemáticas que passam a incidir, diretamente, sobre o pós-Abolição, afloram, consideravelmente, a partir dos anos 1980, através das pesquisas de autores, tais como Sidney Chalhoub, Silvia Lara, Regina Xavier, João José Reis, entre outros, havendo, também, uma importante ampliação dos estudos a partir dos anos 1990. Atribuída, também, ao contexto de Centenário da Abolição da Escravatura e a redemocratização do país, o período é de grandes avanços historiográficos, de modo a se revisitar a historiografia da escravidão e da liberdade sobre outros olhares, abrindo novas problemáticas de pesquisa, revisitando e ampliando fontese repensando metodologias. Entre os principais destaques deste contexto, volta e meia, os trabalhos que contemplam revisões historiográficas tem se reportado à importância das adaptações thompsonianas à História da escravidão e liberdade no Brasil, de forma que a influência destas leituras levaram muitos historiadores a perceberem a história do trabalho de forma diferente do que se tinha, especialmente, nos anos 1960 e 1970, reconhecendo o protagonismo de negros e negras, sua ampla cultura de resistência, de forma a compreender a importância de suas experiências para história do trabalho no Brasil e do movimento operário. Em artigo publicado pela revista Projeto História, Silvia Lara (1995) explicava como se deram tais aproximações com a historiografia do trabalho inglesa, elaborada por Edward Palmer Thompson, defendendo, justamente, sua aplicabilidade no que tange a observação das experiências negras em escravidão e liberdade, ou seja, uma aproximação que era, nas palavras dela, “essencialmente teórica e política e não temática” (Ibid., p.49). De acordo com a autora, a inspiração thompsoniana fez com que alguns historiadores passassem a perceber as experiências escravizadas, não só procurando entender como estes sujeitos viviam e percebiam a escravidão e a liberdade, mas considerando, principalmente, uma nova abordagem das relações entre senhores e escravizados, evidenciando suas lutas, conflitos, resistências, negociações, relações cheias de ambiguidades. Nas palavras dela: Assim, as relações entre senhores e escravos são frutos das ações de senhores e de escravos, enquanto sujeitos históricos, tecidas nas experiências destes homens e mulheres diversos, imersos em uma vasta rede de relações pessoais de dominação e exploração. Uma relação de dominação e exploração que, de modo contraditório, unia horizontalmente e separava verticalmente homens e mulheres como senhores e 37 escravos e que, através de suas práticas cotidianas, costumes, lutas, resistências, acomodações e solidariedades, de seus modos de ver, viver, pensar e agir, construíram isso que, no final das contas, chamamos de “escravidão”, de “escravismo”. (Ibid., p.46). Desta forma, tais historiadores passaram a conceber que, ainda dentro dos esforços de dominação senhorial, havia ampla cultura de resistência e que, tensionando tais formas de dominação, muitas vezes, os escravizados “jogaram e testaram” aquele universo de modo a construir noções de direitos para si e para os seus semelhantes. Na avaliação da autora, os diálogos entre a historiografia da escravidão e da liberdade no Brasil com Thompson renderam bons frutos, especialmente para os críticos da concepção conhecida como “teoria do escravo-coisa”, reafirmando-se, portanto, que, apesar da escravidão, negros e negras não deixaram de ser sujeitos, percepção que incidiu sobre uma série de estudos em que se passou a observar as experiências e relações de escravizados e libertos, suas experiências de emancipação e que, também, apontavam para as implicações no pós-Emancipação. Sugerindo, portanto, que a experiência negra no Brasil não se encerrava com a Abolição da Escravatura e “que estas pesquisas e seus argumentos revelam outras possibilidades de abordagem da história social dos trabalhadores no final do século XIX e início do XX” (Ibid., p.55)6. Neste mesmo sentido, três anos depois desta publicação, a autora tensionou o debate dentro da história social do trabalho. Lara (1998) questionava a invisibilização que parte da historiografia do trabalho no Brasil promoveu, ao distanciar-se das discussões sobre escravidão, entendendo, muitas vezes, a história do trabalho enquanto trabalho livre, e este, por sua vez, sendo atrelado às relações de trabalho assalariado e ao operariado, que no imaginário desta historiografia se traduzia em sujeitos brancos, especialmente imigrantes, em realidades urbanas. A autora constatava, portanto, um movimento de exclusão de trabalhadores negros da história do trabalho, de modo que suas experiências, como escravizados e ex-escravizados, muitas vezes, foram ocultadas das discussões. Assim, nas palavras dela: “milhares de trabalhadores que, durante séculos, tocaram a produção e geraram a riqueza no Brasil ficam ocultos, desaparecem num piscar de olhos”. (LARA, 1998, p. 26). Ela também associava á gênese destas concepções, a noção de “transição” e a “teoria da substituição”, quando tomadas de formas mecanicistas, a construir concepções que 6 Sobre a importância das concepções thompsonianas aos estudos da escravidão e liberdade no Brasil, ver também: Chalhoub (2001). 38 forjavam uma imagem do processo, como uma troca dos trabalhadores escravizados por imigrantes na história do trabalho, concepções que a autora fortemente critica. Em ambos os textos, Lara já dimensionava o tamanho do problema na historiografia brasileira. Apelando para leituras thompsonianas, na compreensão do processo, a autora também trazia as falas do intelectual negro estadunidense e ativista dos direitos civis da comunidade negra W.E.B. Du Bois, que, em 1934, já reivindicava que a escravidão fazia parte da História do movimento operário (para o caso dos EUA), noção que, de acordo com Lara, ainda esteve submersa na história do trabalho brasileira, negando-se, portanto, a importância das experiências de escravidão e liberdade como essenciais para experiências posteriores, na formação da classe operária nacional. Na contramão destas percepções historiográficas e, justamente, por reconhecer as experiências de escravizados, suas realidades em lutas pelas libertações e, também, em diálogo com os estudos que tratavam das experiências negras no pós-Abolição, essencialmente, vinculados à forma como trabalhadores negros entendiam a liberdade e lutavam pela sua efetivação, a autora propõe outras formulações, de maneira a defender que “as experiências acumuladas durante a escravidão por escravos e libertos foram compartilhadas com trabalhadores livres, antes e depois da abolição”. (LARA, 1998, p. 25). Na realidade, também, tratava-se de reconhecer que o pós-Abolição e o dito mundo do trabalho livre é, da mesma forma, território de pessoas que vivenciaram a escravização e situações complexas entre escravidão e liberdade, sendo que estas realidades são essenciais na formulação deste universo livre, que, também, conta com o protagonismo, as concepções e as resistências destes sujeitos. No interior desta discussão, proposta pela autora, ela entendia que a noção de uma transição era fundamentada na percepção dicotômica de um Brasil que iria transitar do mundo escravo para o mundo livre, de modo a se formular o que chamou de uma “oposição irreconciliável entre a escravidão e liberdade”. Entre tantos problemas identificados no seio destas compreensões, havia não só a separação dos universos do trabalho, que acabava, muitas vezes, por atrelar negros e negras apenas ao cativeiro, sendo impossível percebê-los em outros tipos de relações de trabalho, como, também, não reconhecia os protagonismos dos mesmos nestes processos, na medida em que o foco era o trabalho dito livre, e este era associado a sujeitos brancos. Como o problema ainda é recente na historiografia e persiste, Álvaro Nascimento (2016), em artigo publicado na revista Estudos Históricos, reavivou esta discussão proposta 39 por Lara nos anos 19907. No texto intitulado “Trabalhadores negros e o ‘paradigma da ausência’: contribuições à história social do trabalho no Brasil”, o autor defendeu que os historiadores que estudam as realidades de trabalhadores pobres e o movimento operário na República (adentrando os séculos XX e XXI), raramente dialogam com historiadores da escravidão, de modo que ainda não trazem a importância “da cor” dos sujeitos estudados em suas pesquisas,promovendo ainda a invisibilidade negra em seus trabalhos8. Avançando na crítica a tais compreensões, dentro da história do trabalho, Nascimento (2016) atenta para o perigo da história única, e, também, atrela o problema à centralidade em epistemologias e referenciais civilizatórios europeus e norte-americanos, de modo que “... nos impede de compreender o mundo a partir do próprio mundo em que vivemos e das epistemes que lhes são próprias”. (PORTO-GONÇALVES, 2005, p.3 apud NASCIMENTO, 2016, p.615). Também apontando a gravidade destas percepções, o autor afirma que: Essa ausência leva-nos à reafirmação da história única, marcada pela superioridade cultural e racial dos imigrantes que se avolumaram no sudeste e sul do país no fim da escravidão. Retira-nos o conhecimento de uma sociedade cuja diversidade racial era imensa, reduzindo-a à branquidade e à mestiçagem (Sovik, 2004, p.376), estando a primeira nos melhores ofícios e posições e a segundo nos limites da pobreza e da sujeição. Impede-nos, ainda, a compreensão dos males provocados pelo racismo para a sobrevivência e ascensão socioeconômica da população negra e indígena do século XIX até os dias atuais. (Ibid., p.610). Ainda que o autor indicasse, no texto, uma série de trabalhos (inclusive recentes) dentro destas perspectivas, ele oferece, por outro lado, um repertório de estudos que promovem o esforço contrário, de modo a enriquecer a história do trabalho no Brasil, na medida em que percebe outros aspectos compondo as realidades destes trabalhadores9. 7 Ver também em: Chalhoub; Silva (2009) e Negro; Gomes (2006). 8 Nascimento (2016) fala sobre as justificativas acionadas por tais pesquisadores no exercício destas perspectivas, que acabam por promover a exclusão negra da historiografia. Entre as explicações, estaria o “problema das fontes”, além do amparo na argumentação teórica da transição do trabalho escravo para o livre por meio da substituição, como vimos em Lara (1995; 1998), concepções que orientaram esta ocultação da cor, a negação de trabalhadores negros na história do trabalho, suas participações na formação do mundo do trabalho na República e no movimento operário. Chalhoub; Silva (2009) realizam uma excelente discussão historiográfica, evidenciando os abalos que passa a sofrer o “paradigma da ausência” em detrimento do que seria o “paradigma da agência”. Negro; Gomes (2006) apresentam também o mesmo debate em termos historiográficos e também falam da influência de Thompson e outros historiadores como Hobsbawm na historiografia do trabalho brasileira, indicando, porém ainda as dificuldades de diálogos entre os estudos de escravidão e pós-Abolição com os estudos de imigração e as experiências do trabalho livre, o que muitos historiadores vêm se lançando a transpor. 9 Nascimento (2016) percebe que o salto começa a ser dado quando pesquisadores passaram a pensar sobre a herança da escravidão e a ter o racismo na centralidade das suas análises, incluindo trabalhadores negros e negras. Desta forma, cita nestes debates nomes da sociologia tais como Oracy Nogueira, Florestan Fernandes e seus orientandos e Carlos Hasenbalg, que teriam evocado discussões também na historiografia, especialmente, a partir de 1980, tais como Sheldom Maram, Emilia Viotti da Costa, Sidney Chalhoub, Gladys Ribeiro e Lúcio Kowarick. Ainda que o autor reconheça os questionamentos e críticas a muitos destes autores, principalmente, aos sociólogos das décadas de 1960 e 1970, feitas por trabalhos que avançam na discussão, ele parece os 40 Refletindo sobre os esforços necessários para sanar tais exclusões e apagamentos, o autor apontou a importância dos diálogos com os historiadores da escravidão e do pós- Abolição, na busca por fontes e ferramentas teórico-metodológicas “sensíveis à participação da experiência de negros e negras na formação do mundo do trabalho e do próprio movimento operário” (Ibid., p.609) nas mais diversas escalas. Desta forma, o texto abre caminhos e aponta uma série de estudos10 que, na contramão da invisibilidade, evidenciaram a importância das movimentações escravas pela liberdade para a história do trabalho no Brasil e do movimento operário, como vem sendo feito pelos historiadores da escravidão e do pós-Emancipação, que percebem negros e negras, envolvidos nas mais diversas atividades produtivas, sejam nos campos ou nas cidades, nas fábricas, portos, estradas de ferro, etc., como operários, em sindicatos e greves, em meio a imigrantes e trabalhadores nacionais, de todas as cores, nos serviços domésticos, em ofícios liberais, das mais diversas formas, buscando compreender como viveram estes universos, não longe de conflitos, mas, também, promovendo solidariedades, em seus aspectos culturais e de cotidiano, vendo-os em espaços organizativos variados, políticos, religiosos, de ajuda mútua, de sociabilidade e lazer, locais importantes na construção das identidades destes trabalhadores. Nas palavras do autor, “histórias reveladas através da investigação das trajetórias individuais e coletivas dessas pessoas no processo que extinguiu juridicamente a escravidão”. (Ibid., p.612). Nesse sentido, Nascimento também menciona a importância dos estudos que tomaram os nomes como importante categoria de análise, que souberam “buscar a cor”, que entenderam, “que o resultado das suas pesquisas é enriquecido quando sabemos mais sobre o indivíduo e seus antepassados”. (Ibid., p.619). Hebe Mattos e Ana Rios (2004), no importante artigo O pós-abolição como problema histórico: balanços e perspectivas, demonstravam como o pós-Abolição no Brasil esteve marcado pelos conflitos entre o que seriam as expectativas dos negros e negras, que, muitas vezes, definiam-se em torno de um “projeto camponês”, do acesso a terra e garantias da sobrevivência. Para o caso do sudeste brasileiro, avaliado por elas “paralelamente à formação compreender como fundamentais no pontapé inicial, do que significou “ver com desconforto as condições enfrentadas pela população negra” e das “tentativas para explicar as diferenças raciais entre brancos e negros, verificadas em estatísticas sociais e raciais do meado do século XX”, o que ainda faltaria muito na historiografia. Ver também: Chalhoub; Silva (2009) 10 Entre os trabalhos citados pelo autor, encontram-se: Batalha (1999), Andrews (1998); Cruz (2005); Souza (2010), Castellucci Junior (2008); Graham (1992); Damasceno (2011), Gomes; Domingues (2013; 2014); Bongiovanni (2014), Abreu (2010), Reis (2008), Ribeiro (1990); Chalhoub (1986); Hertzman (2013); Santos (2003); Pereira (2010); Pinto (2014), Pereira (2000); Nascimento (2005; 2016); Weimer (2013); Karasch (1996; 2010); Loiola (2008); Abreu; Pereira (2011); Castellucci (2010); Mattos (2014); Rios; Mattos (2005); Cicalo (2015) e Loner (2011). 41 de um campesinato negro, manteve-se a centralidade do liberto, enquanto força de trabalho, nas fazendas das antigas áreas escravistas do sudeste, nas décadas que se seguiram imediatamente à escravidão”. (Ibid., p. 172). As autoras, também destacavam como os estudos sobre a Abolição no Brasil foram norteados pelos pontos de vista econômicos e políticos, em detrimento de perspectivas sociais e culturais. Segundo elas, sobre o ponto de vista econômico, privilegiou-se a noção de substituição do trabalho nas áreas de próspera produção de café, em São Paulo, uma noção que foi generalizada para todo o país, de forma extremamente problemática. Posteriormente, porém, uma perspectiva sociocultural sobre as experiências dos libertos no pós-Abolição para a realidade paulista foi despontando. Considerando os apontamentos das autoras supracitadas,ao olhar para José e Innocência, somos levados a perceber que certos modelos explicativos, tais como o da transição pela substituição, refletindo-se naquilo que alguns teóricos chamaram de “paradigma da ausência”, não comportam, portanto, uma série de realidades negras que ultrapassam o “esquema”. Não comportaria, por exemplo, relações de trabalho complexas que se encontram em zonas limítrofes entre a escravidão e a liberdade, não consegue conceber a realidade de boa parte dos libertos quando a escravidão ainda existia, nem dos negros e negras livres neste contexto, suas trajetórias e protagonismos posteriores à escravidão, ainda como trabalhadores, já que aos seus futuros cabia a explicação da substituição por trabalhadores brancos e imigrantes, a inevitável marginalização e anomia dentro deste processo de formação do mercado de trabalho livre. Em suma, parece que as concepções sobre as liberdades negras que advogavam as elites11 dos contextos, passaram a ser vistas como categorias explicativas do processo por alguns historiadores. Os projetos da liberdade pensados por estes teriam sido concebidos por parte da historiografia como a realidade do processo, portanto, negros e negras não tiveram 11 A apropriação do termo elite, neste trabalho, se dá, em função dos diálogos estabelecidos com as obras referenciadas e consultadas. Neste sentido, observa-se a apropriação do conceito pelos historiadores que têm estudado, também, as experiências negras entre a escravidão e a liberdade, especialmente no século XIX, para referenciar-se aos sujeitos e/ou grupos dominantes, expandindo a percepção sobre tais, para além de uma dominação calcada sob o ponto de vista econômico e material. Neste sentido, observa-se a noção de elite, enquanto um conceito, que, também, é relacional, que abarca, portanto, àqueles que estão em posição de dominação e privilégios, a partir daquilo que mobilizam (recursos diversos, que não apenas econômicos), em detrimento/relação a outros tantos (maioria), em posições desfavoráveis, que, muitas vezes, não acessam tais recursos, lidos, com frequência, por tais sujeitos, que constituem as elites, enquanto inferiores, e, portanto, são excluídos e tratados de forma pejorativa, como veremos. Nossa intensão aqui, ao utilizar o termo elites, não é, de forma alguma, adentrar na discussão sobre a anulação e/ou conflito com as concepções marxistas, que implicam, diretamente, na utilização da noção de classe dominante. O uso deste conceito no trabalho foi apropriado de modo a relacionar-se com a bibliografia, mas, também, compreendendo que o termo abarca, de forma mais ampla, a categoria dos sujeitos que estavam em posição de dominação e mobilização de recursos, promovendo a exclusão de outros. 42 seus protagonismos evidenciados em suas libertações e, com o fim da escravidão, os mesmos passaram a ser compreendidos apenas como sujeitos marginalizados, anômicos, jogados à própria sorte, sujeitos substituídos por trabalhadores brancos e imigrantes. Dialogando por meio de Célia Azevedo (1987), em Onda negra, medo branco, Silvia Lara (1995) alertava, desta forma, sobre como a sociologia e a historiografia dos anos 1960 deram foro científico e transformaram em explicação histórica algumas tendências emancipacionistas, abolicionistas e imigrantistas, que na verdade estavam em luta no século XIX, diante do impacto negro no debate, como é o caso da substituição da mão de obra e do projeto imigrantista12. Na verdade, o que se quer destacar, aqui, é que o discurso das elites que defendia a substituição da mão de obra e seu embranquecimento por meio da imigração, apesar de ser real e ter de fato existido, implicando os esforços de seus propagadores, não deveriam ser tomados, por outro lado, como a base explicativa de todo o processo histórico13. O discurso da transição da mão de obra, através da substituição, em nosso estudo, por exemplo, não dá conta das realidades vivenciadas por pessoas como José e Innocência. Ou seja, a transição e a substituição da forma mecanicista, como branca, imigrante e europeia, da forma como foi pensada por alguns, não pode ser tomada como realidade de um processo que foi bastante complexo e envolveu vários movimentos e concepções, principalmente negros. Neste sentido, acreditamos que as percepções microanalíticas da História, como estamos empreendendo aqui, vêm trazendo grandes ganhos à historiografia social do trabalho escravo e livre no Brasil, na medida em que ultrapassam a aparência dos fenômenos, atravessam os discursos destas elites políticas e observam como operavam outras forças, 12 Investigando a historiografia dos anos 1960 e 1970, marcada pelo “paradigma da ausência”, Chalhoub; Silva (2009) associam tais concepções á referências clássicas, tais como Joaquim Nabuco, por exemplo, que teria, em sua obra, concebido as lutas pela Abolição como delegadas aos abolicionistas e não aos escravizados e seus descendentes, percebidos, muitas vezes, como incapazes e despreparados. Avaliando também as percepções de José de Alencar, os autores defendem que, em ambas as percepções, os escravizados foram tidos como “ausentes do processo histórico de sua própria libertação”. (Ibid., p.18). Segundo os autores, as gerações de historiadores e cientistas sociais dos anos 1960 e 1970, ao combater o mito da democracia racial, teriam acabado por recorrer às versões elaboradas pelos abolicionistas “quanto aos efeitos da escravidão sobre os negros”. 13 Neste sentido as palavras de Mattos; Rios (2004) são importantíssimas. As autoras falam que: “Apesar disto, inúmeros trabalhos se dedicaram a estudar os projetos das elites a respeito dos libertos e da utilização dos chamados “nacionais livres” como mão-de-obra. Detalhes sobre diagnósticos e projetos de construção nacional, produzidos por elites invariavelmente conservadoras, pautaram por muito tempo a discussão historiográfica sobre o período pós-emancipação. Melhor dizendo, o pós-Abolição como questão específica se diluía na discussão sobre o que fazer com o “povo brasileiro” e a famosa “questão social”. Não é nossa intenção desqualificar a importância da análise dos projetos dominantes, que são vários e multifacetados e nos ajudam na compreensão dos projetos de Brasil em debate no cenário político a partir da perspectiva do fim da escravidão. Nossa intenção é tentar demonstrar até que ponto estes projetos estiveram informados por um conhecimento pragmático das elites agrárias sobre as expectativas dos últimos libertos e de que maneira interagiram com as atitudes e opções adotadas por eles após o fim da escravidão”. (Ibid., p.170-171). 43 como pessoas escravizadas estavam vivendo, como que estas pessoas que foram escravizadas passaram a viver a liberdade em tempo de cativeiro, como que passaram a viver a liberdade em tempos de Abolição da escravidão e quais os contornos que estas liberdades tinham. Historiadores da escravidão e do pós-Abolição, mergulhando nas realidades destas pessoas, passam a perceber as complexidades neste processo. E, neste sentido, nossos esforços, também, se somam à transposição do abismo que separaria a escravidão e a liberdade e impossibilitaria de ver estes trabalhadores negros como sujeitos neste processo. É, neste sentido, que advogamos, a percepção do 13 de maio de 1888 como um ponto móvel. Desta forma, a delimitação temporal do nosso estudo recua ao século XIX e atravessa o século XX, justamente para tentar dar conta das experiências de José e Innocência, experiências que não se anulam de fato, que, aliás, parecem ter sentido se vistas juntas14. Caso contrário, como poderíamos compreendê-los, se vivenciaram condições ambíguas de trabalho e vida? Se viveram numa sociedade escravista, ele tendo sido escravizado (por
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