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A SEGUNDA ESCRAVIDÃO E O IMPÉRIO DO BRASIL EM PERSPECTIVA HISTÓRICA Mariana Muaze Ricardo H. Salles Organizadores casa leiria A escravidão brasileira do século XIX, em sua época, foi vista como um legado colonial. Para seus opositores, tratava-se de um entrave a ser superado para a modernização do país; para os que dela viviam e extraíam seus lucros, um mal necessário que, em algum momento, viria a ser gradativamente eliminado no futuro. Essa visão da escravidão oitocentista como herança colonial, em que pesem as inúmeras ressalvas e críticas às concepções da História como um pro- cesso evolutivo, ou talvez até por conta delas, tornou-se um lugar comum na historiografia sub- sequente e mesmo atual. O conjunto de ensaios que compõem esse livro visa problematizar esse aparente consenso. O ponto de partida é a constatação de que a escravidão afro-americana no Brasil, assim como no Sul dos Estados Unidos e em Cuba, não só se manteve, mas expandiu-se e adquiriu po- tência e dimensão inusitadas nos séculos ante- riores. Nas palavras de Dale Tomich, que prefa- cia a obra, ela se constituiu em uma verdadeira segunda escravidão que, longe de ser uma ins- tituição do antigo regime ou do antigo sistema colonial, pressupôs o processo de construção de Estados nacionais e de expansão internacional do mercado capitalista, ao mesmo tempo em que foi uma de suas vertentes constitutivas. Do ponto de vista econômico, esse processo levou à maior procura por novas matérias-primas, como o algodão, e mercadorias tropicais como o café e o açúcar, produtos de consumo de massa incor- porados à dieta básica dos trabalhadores e das classes médias europeias e norte-americanas. Do ponto de vista político, a Era da Revoluções abriu um quadro internacional de contestações à escravidão afro-americana, especialmente após a Revolução Haitiana, a primeira e única a pôr fim ao regime servil por obra dos próprios escravos. Nessas condições, a permanência e expansão da escravidão dependeram decisivamente da prote- ção de Estados nacionais, integralmente escravis- tas, como o Império do Brasil e os Estados Con- federados da América, em sua breve e belicosa existência, ou que defendiam parcialmente sua manutenção, como os Estados Unidos, até 1860, e o Império espanhol. A Segunda Escravidão e o Império do Bra- sil em perspectiva histórica trata a temática da se- gunda escravidão como uma série de questões em aberto. A primeira parte do livro traz um debate mais abrangente sobre as articulações entre a segunda escravidão e o capitalismo his- tórico. A segunda discute a segunda escravidão e a diversidade regional da economia brasileira no século XIX. A terceira considera a pertinência do uso do conceito para o estudo da economia colonial tardia na América portuguesa. A última parte aborda a questão teórica e metodológica da relação entre a perspectiva mais geral e tota- lizante da segunda escravidão, a agência e a mi- cro-história. Esses temas são abordados por his- toriadores com visões distintas sobre o conceito de segunda escravidão, em seguida comentadas por debatedores, alguns dos quais críticos a essa concepção. A SEGUNDA ESCRAVIDÃO E O IMPÉRIO DO BRASIL EM PERSPECTIVA HISTÓRICA CASA LEIRIA Ana Carolina Einsfeld Mattos Gisele Palma Haide Maria Hupffer Isabel Cristina Arendt Luciana Paulo Gomes Luiz Felipe Barboza Lacerda Márcia Cristina Furtado Ecoten Rosangela Fritsch Tiago Luís Gil CONSELHO EDITORIAL (Unisinos) (IFRS) (Feevale) (Unisinos) (Unisinos) (UNICAP) (Unisinos) (Unisinos) (UnB) Editora Casa Leiria Rua do Parque, 470 – B. Padre Reus 93020-270 São Leopoldo/RS A SEGUNDA ESCRAVIDÃO E O IMPÉRIO DO BRASIL EM PERSPECTIVA HISTÓRICA Casa Leiria São Leopoldo / RS 2020 Mariana Muaze Ricardo H. Salles Organizadores A SEGUNDA ESCRAVIDÃO E O IMPÉRIO DO BRASIL EM PERSPECTIVA HISTÓRICA Mariana Muaze Ricardo H. Salles Organizadores Revisão: Luiz Antonio Aguiar, Marisa Sobral e Gabriel Martins Gomes da Silva. Edição: Casa Leiria. Imagem da capa cedida pela Pinacoteca do Estado de São Paulo. Johann Jacob Steinmann (Basiléia, Suíça,1804-1844), “Plantaçaõ de café”, 1839. Água-tinta e aquarela sobre papel, 11,9 x 16,8 cm. Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, Brasil. Coleção Brasiliana/Fundação Estudar. Os textos e imagens são de responsabilidade de seus autores. Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. Catalogação na publicação Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB 10/973 Para os nossos alunos e colegas professores. Senhores, a propriedade não tem somente direitos, tem também deveres, e o estado da pobreza entre nós, a indiferença com que todos olham para a condição do povo, não faz honra à propriedade, como não faz honra aos poderes do Estado. Eu, pois, se for eleito, não separarei mais as duas ques- tões – a da emancipação dos escravos e a da democratização do solo. (Longos aplau- sos.) Uma é o complemento da outra. Aca- bar com a escravidão não nos basta; é pre- ciso destruir a obra da escravidão. (Joaquim Nabuco, discurso em um comício popular em sua campanha política no Reci- fe, a 5 de novembro de 1884)1. 1 1 Joaquim Nabuco, Campanha Abolicionista no Recife [1884]. Brasília: Edições do Senado Federal, 2005, p. 58. SUMÁRIO 13 APRESENTAÇÃO Dale Tomich 19 INTRODUÇÃO Mariana Muaze Ricardo H. Salles PARTE I SEGUNDA ESCRAVIDÃO E CAPITALISMO HISTÓRICO EM PERSPECTIVA ATLÂNTICA 27 A SEGUNDA ESCRAVIDÃO E O DEBATE SOBRE A RELAÇÃO ENTRE CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO. ENSAIO DE HISTORIOGRAFIA Ricardo H. Salles 53 UNIDADES DE ANÁLISE, JOGOS DE ESCALAS E A HISTORIOGRAFIA DA ESCRAVIDÃO NO CAPITALISMO Leonardo Marques 75 COMENTÁRIO ESCRAVIDÃO HISTÓRICA E CAPITALISMO HISTÓRICO: NOTAS PARA UM DEBATE Rafael Marquese PARTE II SEGUNDA ESCRAVIDÃO E DIVERSIDADE ECONÔMICA E REGIONAL 93 RAÍZES ESCRAVAS DA INDÚSTRIA NO BRASIL Luiz Fernando Saraiva Rita Almico 121 ESCRAVIDÃO E CAPITALISMO: DIMENSÕES DE UMA ECONOMIA REGIONAL NO SÉCULO XIX Walter Luiz C. de M. Pereira 141 COMENTÁRIO SEGUNDA ESCRAVIDÃO E RAÍZES ESCRAVAS DA MODERNIZAÇÃO CAPITALISTA DO BRASIL Renato Leite Marcondes 145 COMENTÁRIO SEGUNDA ESCRAVIDÃO, ESPAÇOS ECONÔMICOS E DIVERSIFICAÇÃO REGIONAL NO BRASIL IMPERIAL Gabriel Aladrén PARTE III SEGUNDA ESCRAVIDÃO E PERÍODO COLONIAL TARDIO 175 A INSERÇÃO DOS INGLESES NO IMPÉRIO PORTUGUÊS: O CASO DA FAMÍLIA GULSTON NO RIO DE JANEIRO, c.1710-c.1720 Carlos Gabriel Guimarães 205 O ANACRONISMO DE UM ATAVISMO? A PROPÓSITO DA SEGUNDA ESCRAVIDÃO SOB ÉGIDE MERCANTILISTA Carlos Leonardo Kelmer Mathias 223 COMENTÁRIO BENEFÍCIOS E LIMITES DA SEGUNDA ESCRAVIDÃO COMO MÉTODO PARA UMA RAZÃO DIALÉTICA Rodrigo Goyena Soares PARTE IV SEGUNDA ESCRAVIDÃO, MICRO-HISTÓRIA E AGÊNCIA 241 SEGUNDA ESCRAVIDÃO E MICRO-HISTÓRIA: UM DIÁLOGO POSSÍVEL Mariana Muaze 261 MICROANÁLISE E SEGUNDA ESCRAVIDÃO: A NARRATIVA DOS INDIVÍDUOS E A MODERNIDADE ESCRAVISTA NO VALE DO CAFÉ Thiago Campos Pessoa 279 A SEGUNDA ESCRAVIDÃO: O RETORNO DE QUETZALCOATL? Waldomiro Lourenço da Silva Júnior 287 COMENTÁRIO PARA UMA NOVA DIMENSÃO DOS ESTUDOS SOBRE A HISTÓRIA DA ESCRAVIDÃO: DIÁLOGOS ENTRE A SEGUNDA ESCRAVIDÃO E A MICRO-HISTÓRIA Mônica Ribeiro de Oliveira 295 OS AUTORES 13 APRESENTAÇÃO Dale Tomich1 A segunda escravidão é um conceito aberto que tem o objetivo de repensar a relação entre capitalismo e escravidão e as causas para a destruição desta última no oitocentos. A ideia nasceu de minha insatis- fação com histórias lineares da escravidão que a veem, de alguma forma, como incompatível com o capitalismo industrial e as ideias liberais de propriedade e liberdade. Minha percepção inicial derivou da comparação do desenvolvimento da escravidão de plantation na Martinica e em Cuba ao longo do século XIX. As evidências não se ajustavam à visão linear sobre o capitalismo e a escravidão. O desenvolvimento do capitalismo industrial e do mercado mundial acentuaram rigidezes espaciaise sociais que levaram à crise da escravidão e do sistema de plantation na Martinica. Em Cuba, esses mesmos processos estimularam a expansão sem prece- dentes da produção açucareira e a reconfiguração da escravidão. Uma vez rompida essa visão linear de progresso e do tempo histórico, um novo modo de ver a relação capitalismo-escravidão emergiu, especial- mente nas zonas centrais produtoras de commodities em Cuba, Sul dos Estados Unidos e Brasil (Tomich, 1994). A visão linear é, hoje, menos predominante, mas o problema de como interpretar a relação entre capitalismo e escravidão permanece. Tanto a Nova História Econômica quanto a Nova História do Capitalismo reconhecem o caráter capitalista da escravidão. A primeira assimila a es- cravidão à moldura abstrata e universal do mercado de trocas fornecida pela economia neoclássica onde tudo – e nada – é capitalista. A lucrati- vidade e a produtividade são demonstradas nesse quadro, mas essa con- cepção, sem espaço e sem tempo, é indiferente à segunda escravidão. Ela preocupa-se apenas com o input marginal do trabalho e não distingue o trabalho escravo de outras formas de trabalho produtoras de mercado- rias. Senhores e escravos respondem aos estímulos do mercado através de escolhas econômicas racionais. A relação senhor-escravo é deslocada 1 Fernand Braudel Center – Universidade de Binghampton. 14 A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica para esfera política e ideológica e as causas morais e políticas da eman- cipação são enfatizadas. A Nova História do Capitalismo também trata a escravidão como capitalista, mas, diferentemente da Nova História Econômica, reconhece o seu caráter específico. Os escravos são vistos como propriedade que era vendida e comprada. Eles não faziam escolhas racionais no mercado. As estruturas de força e coerção que instituíam a escravidão e organiza- vam o processo de trabalho. Contudo, essa abordagem simplesmente junta capitalismo e escravidão como entidades separadas. Tipicamen- te, capitalismo e escravidão são formulados como um par interligado. A segunda escravidão é entendida, eventualmente, como escravidão do capitalismo ou mesmo como capitalismo da escravidão. Trata-se do que Maria Sylvia de Carvalho Franco descreveu como “uma dualidade integra- da” e não uma “unidade contraditória” (Franco, 1976, p. 11). Cada uma dessas abordagens, a seu modo, trata a escravidão e a relação senhor-escravo como um conceito fechado em si e internamente integrado que está ligado externamente a – ou é influenciado por – outras relações autonomizadas do mesmo tipo (Sayer, 1987). Há aqui uma clara distinção entre o que é “interno” e “externo” em um sistema escravista. Diferentemente de tais formulações, a abordagem da segunda escravidão trata a escravidão e a relação senhor-escravo como relações históricas concretas e substantivas. Vistas dessa perspectiva, as relações escravistas históricas reais são constituídas não apenas pela forma das relações se- nhor-escravo, mas também, por um lado, por processos de produção ma- terial específicos (açúcar, café, algodão), pela ecologia e pela geografia, e, por outro, por sua posição relativa na divisão internacional do trabalho e no mercado mundial (que se constitui de uma configuração histórica particular da inter-relação econômica entre produção, distribuição, tro- cas e consumo). Consequentemente, cada formação escravista forma um complexo histórico-geográfico específico (Godinho, 1961) no interior da divisão mundial do trabalho que se transforma historicamente. Em cada um desses casos a relação senhor-escravo adquire características especí- ficas que a distingue de outras formações escravistas desse tipo. (Aqui o foco na economia e na produção de mercadorias, apesar de importante por si só, visa também fornecer um fio condutor para o estudo dos aspec- tos políticos, sociais e culturais da segunda escravidão.) Deste ponto de vista, escravidão e trabalho assalariado são partes constitutivas de um todo econômico-mundial abrangente. Não são consi- derados como duas entidades isoladas, mas como polos de uma mesma relação. São inter-relacionados e mutuamente formativos; diferenciáveis, 15 Apresentação porém inseparáveis. O capitalismo é um atributo do todo econômico- -mundial e não de uma de suas partes tratada de modo isolado. Aqui reside a reformulação essencial oferecida pela perspectiva da segunda escravidão: não o capitalismo definido por uma concepção abstrata de trabalho assalariado e capital; não a escravidão definida como não capi- talista pela ausência de trabalho assalariado, ou capitalista por produzir para um mercado; não a economia-mundo como um “todo” fixo que pai- ra sobre as suas partes constitutivas. E sim o capitalismo histórico: uma concepção de capitalismo que transcende as definições abstratas para focar na interdependência concreta e histórica, na interação e na forma- ção mútua das redes de relações histórico-geográficas diversas que cons- tituem o capitalismo mundial. Vista por essa perspectiva, a escravidão é capitalista (ou, mais precisamente, uma forma específica de capital), e o capitalismo é um todo estruturado multiforme e diferenciado que abarca tanto a escravidão quanto o trabalho assalariado, dentre outras formas. Nesse quadro, a segunda escravidão aponta para as mudanças na relação entre a escravidão e o trabalho assalariado quando este e o capi- tal industrial se tornaram o centro organizador dos processos de acumu- lação mundial do século XIX, gerando novos espaços produtivos e novos ritmos temporais. Aqui, nenhuma formação escravista específica é como qualquer outra. Semelhanças e diferenças aparecem não através de uma comparação formal entre “casos” independentes, mas como pontos de partida para uma investigação que busque diferenciar e especificar cada formação e analisar sua inter-relação e interação no interior das estrutu- ras mais abrangentes do capitalismo histórico. Tais investigações podem examinar a relação entre a segunda escravidão e os regimes escravistas que a precederam, com as formas de trabalho no pós-abolição ou entre diferentes formações da própria segunda escravidão. Consequentemen- te, o conceito de segunda escravidão não descreve as histórias nacionais específicas de Brasil, Cuba e Estados Unidos como reações aos estímulos externos da revolução industrial, descolonização e consolidação de um mercado mundial no século XIX. Em vez disso, ele aponta para a criação de novos espaços econômicos e políticos por meio da expansão e inten- sificação do trabalho escravo como parte de uma reestruturação históri- ca da economia-mundo oitocentista. O foco é nos processos históricos que formam cada espaço geográfico e econômico e em como a nossa compreensão de cada espaço contribui para o nosso entendimento das relações específicas que formam a economia-mundo. O conceito de segunda escravidão é construído, desse modo, a partir de um quadro teórico distinto que abarca o capitalismo histórico e 16 A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica o Atlântico no oitocentos, que depende de uma forma de análise e expli- cação histórica metodologicamente distinta (Tomich, 2018). É desse pon- to de vista que os capítulos de A Segunda escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica podem ser avaliados. Ao levantar a questão de como entender e escrever a história de um espaço particular com a abordagem metodológica e teórica oferecida pela segunda escravidão, eles oferecem uma contribuição teórica e historiográfica à crescente produção acadê- mica realizada sob essa perspectiva. Não se trata da história particular de uma unidade nacional específica. Tampouco, se trata de simplesmente de explicitar a estrutura do todo econômico-mundial e explicar a história nacional por meio de sua posição nesse todo. Essas duas alternativas são descartadas. Em vez disso, os artigos consideram o Brasil como uma unidade de ação socialconstituída no interior dos processos formativos das economias-mundo e atlânticas, ao mesmo tempo que contribui para a formação do capitalismo mundial. Isto é, eles historicizam o Brasil, que aparece como uma zona de convergência de múltiplos campos de força com tamanho, duração e força variáveis, como objeto de investigação. O objetivo é especificar os processos e relações que formam e reformam o Brasil, estabelecendo suas interações e formação mútua na conjuntura histórica específica da segunda escravidão. As relações, e consequente- mente as próprias unidades de observação são, assim, modeladas e re- modeladas continuamente pelos próprios processos sob investigação. Os autores deixam aberta a questão em torno das fronteiras dos processos avaliados em vez de presumir que tais limites estão dados. Eles tratam as delimitações do Brasil como uma unidade de observação que é formada nas relações em transformação do capitalismo histórico, do Atlântico e do espaço nacional, em vez de uma demarcação fixa entre o que é in- terno e o que é externo. Ao mesmo tempo, atentam para as diferenças espaciais e temporais tanto no Brasil quanto entre o Brasil e outras zonas da economia-mundo oitocentista. Partindo do modelo conceitual da se- gunda escravidão eles buscam explorar novas questões que atravessam múltiplas escalas espaço-temporais: o desenvolvimento de formações regionais no Brasil, a escravidão em diversos setores econômico-sociais e seu papel no desenvolvimento socioeconômico, e as condições para a hegemonia dos grupos políticos e econômicos que unificaram o espaço nacional. A atenção para a micro-história também nos lembra dos limites de uma história conceitual. O foco no micro não é na pequena escala e sim na ação individual irredutível (a “margem especulativa não suprimí- vel”) que se encontra atrás do que Carlo Ginzburg chama de “equalização dos indivíduos” que inevitavelmente acompanha a generalização concei- 17 Apresentação tual (Ginzburg, 1993). O exame dessas agências individuais heterogêneas ilumina seus contextos históricos ou revela atos que, por meio de sua re- petição contínua, assumem características estruturais e efetividade cau- sal. Os autores vão além do modelo conceitual oferecido pela segunda escravidão para incorporar tais processos históricos e depois retornam ao começo para progressivamente modificar o modelo à luz de suas pes- quisas. Dessa forma, eles estendem e aprofundam criticamente a nossa compreensão da segunda escravidão e do capitalismo mundial por meio da construção de uma imagem mais complexa do capitalismo histórico no Brasil e do Brasil no capitalismo histórico. Ao fazê-lo, oferecem no- vas soluções para antigos problemas enquanto também formulam novas questões. O valor do livro está tanto no que fizeram quanto em como o fizeram. Referências FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens Livres na Ordem Escravocrata. São Paulo: Editora Ática, 1976. GINZBURG, Carlo. Microhistory: Two or Three Things I Know about It, Critical Inquiry 20, 1, 1993, p. 10-35. GODINHO, Vitorino Magalhães. “Complexo Histórico-Geográfico.” In J. Serrão (ed.), Dicionario de História de Portugal. Porto: se, 1961. SAYER, Derek. Violent Abstractions: The Analytic Foundations of Historical Materialism. Oxford: Basil Blackwell, 1987. TOMICH, Dale. Small Islands and Huge Comparisons: Caribbean Planta- tions, Historical Unevenness, & Capitalist Modernity, Social Science History 18, 3, 1994, p. 339-358. TOMICH, Dale. 2018. The Second Slavery and World Capitalism: A Per- spective for Historical Inquiry, International Review of Social History 63, 3, 2018, p. 477-501. 19 INTRODUÇÃO Mariana Muaze Ricardo H. Salles Longe de ser uma instituição moribunda durante o século XIX, a escravidão demonstrou toda a sua adaptabilidade e vitalidade. Dale Tomich (Pelo prisma da escravidão). Nos últimos anos, os estudos sobre a escravidão oitocentista têm tomado uma nova dimensão com a ideia de que essa escravidão não seria apenas remanescente do regime colonial, mas uma escravidão em interação com a construção de Estados nacionais e com a expansão internacional do mercado capitalista. Portanto, uma escravidão renova- da, uma segunda escravidão, conforme conceito cunhado pelo historiador norte-americano Dale Tomich (1988). Essa segunda escravidão se expan- diu exatamente no momento em que a escravidão colonial era abolida pela Revolução Haitiana e por guerras e reformas em outras regiões americanas. Ela alimentou e, ao mesmo tempo, derivou de um conjun- to de tendências e acontecimentos históricos na virada do século XVIII para o XIX, cujo epicentro foi a Revolução Industrial e a consolidação da hegemonia britânica no plano internacional. Esses acontecimentos e processos levaram à maior procura por novas matérias-primas, como o algodão, e mercadorias tropicais como o café e o açúcar, que se tor- naram produtos de consumo de massa ao serem incorporados à dieta básica dos trabalhadores e das classes médias urbanas. Nas novas regiões – Cuba, Sul dos Estados Unidos e Vale do Paraíba no Brasil – a escravidão se expandiu em escala maciça, antes nunca experimentada, para atender a uma crescente demanda mundial por estas commodities. Nessas áreas, à margem do comércio Atlântico até fins do Setecentos, surgiram imen- sas plantations cultivadas intensamente através da mão de obra negra africana e viabilizadas através do tráfico Atlântico. Seu modus operandi se diferenciava da escravidão colonial por suas conexões com os Estados, a formação de classes senhoriais de caráter regional e mesmo nacional, a modernidade tecnológica, principalmente com investimentos em fer- rovias e máquinas de desenvolvimento agrícola, os bancos nacionais e estrangeiros, e o compromisso com a alta produtividade. Assim, durante 20 A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica a segunda escravidão, os centros escravistas emergentes se constituíram como partes fundamentais do mercado industrial e de sua cadeia produ- tiva, impulsionando a expansão e a reprodução do capitalismo no mun- do. Desse modo, o conceito de segunda escravidão traz como princípio e proposição fundamental assinalar e investigar as relações historicamente intrínsecas, mesmo quando contraditórias, entre o desenvolvimento do capitalismo e da escravidão no século XIX. Não se trata apenas de uma questão de interpretação sobre o passado. A reflexão sobre as relações entre capitalismo e escravidão no Mundo Atlântico e no Brasil em particular traz consigo o problema his- tórico de como a escravidão moldou o capitalismo brasileiro no século XIX e na atualidade. Na base das grandes fortunas das elites pós-inde- pendência estão os lucros provenientes do tráfico internacional (legal ou ilegal) de escravos, do comércio de artigos ligados à escravidão, da expropriação de direitos e da exploração do trabalho de inúmeros criou- los, africanos e africanos livres por gerações. Por mais que a campanha abolicionista e o movimento dos escravos pela emancipação tenham sido vitoriosos no 13 de Maio, eles não foram capazes de se transformar em lutas nacionais por direitos sociais e igualdade racial. Hoje, mais de 130 anos depois, essa pauta é cada vez mais urgente no país que mais mata jovens negros em idade entre 15 e 29 anos, que possui a quinta maior taxa de feminicídio do mundo, sendo a maioria das vítimas mulheres negras, e que insiste em retirar direitos das populações mais pobres em prol de um capitalismo de agenda neoliberal. Tais índices não são meros acidentes de percurso. Eles têm fundamento histórico e se justificam, dentre outras coisas, pela construção de uma nação calcada na hierarquia e na exploração da mão de obra escrava. A partir desse pano de fundo, um grupo crescente de pesquisa- dores, nacionais e estrangeiros, têm se voltado para o uso do conceito de segunda escravidão, no sentido de abrir novos problemas e roteiros investigativos dentro do campo dos estudosda escravidão. Boa parte desse esforço se realizou, direta ou indiretamente, através de uma rede internacional de pesquisadores articulados em torno da Second Slavery Research Network, que tem seu centro de animação no Fernand Braudel Center for the Study of Economies, Historical Systems, and Civilizations, em Binghamton, EUA. No Brasil, o debate foi fomentado, principalmente, no âmbito do Laboratório de Estudos sobre o Brasil e o Sistema Mundial (La- b-Mundi/USP), que organizou, entre outros eventos, o seminário inter- nacional e o livro homônimo Escravidão e Capitalismo histórico no século XIX (Marquese; Salles, 2016), e do grupo interinstitucional O Império do 21 Introdução Brasil e a Segunda Escravidão (antigo Vale do Paraíba e a segunda escravi- dão). Este último foi formado, em 2010, por pesquisadores, professores e alunos de graduação e pós-graduação da UNIRIO, MAST, UFF, USP, UNIFESP, UFJF e UFSC, e promoveu, além de seminários internos, diver- sas edições do simpósio temático O Vale do Paraíba, a Segunda Escravidão e a Civilização Imperial nos Encontros Regionais da Associação Nacional dos Historiadores (ANPUH), seção Rio de Janeiro, dos anos de 2012, 2014, 2016 e 2018. Como resultado, foram publicadas a coletânea O Vale do Paraíba e o Império do Brasil nos quadros da Segunda Escravidão (Muaze; Salles, 2015) e, agora, o livro que o leitor tem em mãos, que consagra os 10 anos do grupo. Em abril de 2016, em uma reunião do grupo O Império do Brasil e a Segunda Escravidão, realizada em Vassouras, Rio de Janeiro, foi ava- liada a importância de promover um evento não endógeno, almejando o amplo debate com historiadores não inteiramente familiarizados ou mesmo contrários ao conceito de segunda escravidão, mas que se dis- pusessem a discuti-lo no âmbito da historiografia brasileira. O evento, intitulado Segunda Escravidão: desafios e potencialidades, ocorreu em abril de 2017 e contou o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, que também patrocinou a publicação desta obra. O seminário foi organizado a partir de quatro eixos temáticos propositalmente escolhidos por serem pontos nevrálgicos do embate de opiniões interno e externo aos pesquisadores do grupo. Estes eixos ago- ra nomeiam as quatro partes deste livro: segunda escravidão e capitalis- mo histórico em perspectiva atlântica; segunda escravidão e diversidade econômica e regional; segunda escravidão e período colonial tardio; e segunda escravidão, Micro-História e agência. A primeira traz o debate entre Ricardo Salles e Leonardo Mar- ques, com comentários de Rafael Marquese, acerca das relações entre se- gunda escravidão e capitalismo. Ricardo Salles, utilizando-se do conceito gramsciano de bloco histórico, salienta a importância dos processos de construção do Estado nacional e da formação de classes dominantes es- cravistas nacionais para entendermos a segunda escravidão como um sistema próprio, ainda que integrado ao desenvolvimento do mercado internacional capitalista, que se tornou contraditório e antagônico ao de- senvolvimento interno de relações sociais capitalistas. Leonardo Marques adota uma perspectiva global, na qual a segunda escravidão constituiria uma das múltiplas formas de trabalho que caracterizariam diferentes es- paços de produção integrados no desenvolvimento do capitalismo global do século XIX, que transcenderia, assim, as fronteiras políticas nacionais. 22 A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica Em seus comentários, Rafael Marquese propõe o investimento em uma teoria dos tempos históricos que permita aos historiadores da escravidão transitarem pelos ritmos próprios dos processos históricos em questão e que traga ao proscênio as relações entre teoria e historiografia. Luiz Fernando Saraiva e Rita Almico, em texto conjunto, e Wal- ter Luiz Pereira são os autores dos dois capítulos da segunda parte que receberam comentários de Renato Marcondes e Gabriel Aladrén. Dedi- cando-se ao tema da diversidade econômica e regional, os trabalhos cri- ticaram a noção de arcaísmo e os limites que a mesma impõe à análise da sociedade e da economia luso-americanas nos séculos XVIII e XIX. No artigo Raízes escravas da indústria no Brasil, Rita Almico e Luiz Fernando Saraiva utilizam-se do conceito de segunda escravidão para proporem uma compreensão da economia brasileira no Oitocentos que destaque sua complementaridade e integração com o mercado mundial pela via da escravidão. Desta forma, além da região Centro-Sul, o Sul e o Nordes- te do Brasil seriam economias regionais com culturas baseadas na mão de obra escrava, com desdobramentos para a urbanização, industrializa- ção e modernização de serviços etc. O texto de Walter Luiz Pereira traz um estudo detalhado da região de Campos dos Goytacazes, aponta sua grande prosperidade econômica e tecnológica na segunda metade do século XIX e relaciona esse desenvolvimento com a segunda escravidão e a expansão do capitalismo no mundo. Os comentários de Renato Leite Marcondes e Gabriel Aladrén discutem a própria percepção de região dos autores e nos levam a pensar sobre como o processo de modernização da economia brasileira deitou raízes profundas na escravidão. A terceira parte do livro discute a Segunda Escravidão e o período colonial tardio. Em seu capítulo, Carlos Gabriel Guimarães busca pensar a economia setecentista e a inserção de negociantes ingleses no Império Colonial Português, através do caso dos negociantes ingleses Joseph e Ralph (ou Raphael) Gulston, que atuaram na Cidade do Rio de Janeiro, no período de 1710 a 1720, mas mantiveram uma poderosa rede mercantil com negócios em Nova York, Lisboa, Ilha da Madeira, Costa da Mina e An- gola. Já Carlos Leonardo Kelmer Mathias discute o conceito de segunda escravidão e sua eficiência para analisar as relações sociais de produção escravista à luz do sistema mercantilista. Essas colocações são comenta- das por Rodrigo Goyena Soares, a partir de uma reapreciação do conceito de segunda escravidão à luz da Crítica da Razão Dialética, de Sartre. A quarta e última parte contém três artigos sobre Segunda Es- cravidão, Micro-História e Agência que refletem, cada um a sua maneira, acerca dos desafios e ganhos interpretativos do conceito de segunda es- 23 Introdução cravidão para as pesquisas que enfocam, mais diretamente, as vidas dos sujeitos históricos, sejam senhores, escravos, homens e mulheres livres e pobres etc. Enquanto Mariana Muaze e Waldomiro Lourenço da Silva Júnior apresentam discussões teórico-metodológicas sobre a relação en- tre segunda escravidão e a Micro-História, e o lugar da estrutura e da experiência na análise histórica; Thiago Campos Pessoa toma o caso dos irmãos Breves, importantes traficantes e senhores de escravos e terras no Vale do Paraíba Fluminense para pensar a segunda escravidão no Bra- sil Império. O debate é pontuado por Mônica Ribeiro de Oliveira no texto Para uma nova dimensão dos estudos sobre a história da escravidão: diálogos entre a segunda escravidão e a Micro-História. Certamente, o que o leitor irá encontrar a seguir não são confor- midades e unanimidades. Pelo contrário, desde que o seminário e o livro foram rascunhados, seus organizadores almejaram provocar o embate, a polêmica e o dissenso em torno dos desafios e potencialidades do con- ceito de segunda escravidão e suas relações com o capitalismo. O que se almeja é a retomada, em novas bases, como a própria noção de segunda escravidão indica, das discussões acaloradas que já foram de grande im- portância para os estudos da escravidão e que, nos últimos anos, ficaram encobertas por um certo consenso superficial sobre a importância da dis- cussão de questões teóricas e de natureza mais ampla para a construção do conhecimento histórico. Nesta obra, mais do que um caminho único a ser seguido, apostamos na potência do debate historiográfico e dos dife- rentes pontos de vista para os estudos daescravidão. Contudo, pelo me- nos entre os autores vinculados ao grupo de estudos interinstitucional O Império do Brasil e a Segunda Escravidão, vigora a ideia de que capitalismo e escravidão no longo século XIX não foram, desde sempre, sistemas incompatíveis, sendo aquele mais moderno e este mais atrasado. Ao con- trário, as relações entre a segunda escravidão e o capitalismo integraram uma totalidade complexa e contraditória que não pode deixar de ser levada em consideração no entendimento das relações entre senhores, escravos e demais grupos sociais. Apesar das divergências, e mesmo que as metodologias de análise variem, acredita-se que escravidão não mais pode ser vista como uma entidade abstrata, sempre igual a si mesma. Portanto, este livro é menos uma bússola dotada de um norte que sempre aponta caminhos certeiros e únicos para se trabalhar com os conceitos de segunda escravidão, capitalismo e sociedades escravistas; e mais um mapa composto de vários caminhos e trajetos passíveis de serem percorridos, onde o leitor pode se perder e se achar, à luz de um debate historiográfico qualificado e atualizado sobre o tema. PARTE I SEGUNDA ESCRAVIDÃO E CAPITALISMO HISTÓRICO EM PERSPECTIVA ATLÂNTICA 27 A SEGUNDA ESCRAVIDÃO E O DEBATE SOBRE A RELAÇÃO ENTRE CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO. ENSAIO DE HISTORIOGRAFIA Ricardo H. Salles Para discutir a questão das relações entre capitalismo e escravi- dão no século XIX, esse ensaio vai tratar, principalmente, dos Estados Unidos. Isto porque foi lá que o problema dessas relações se apresentou de forma mais aguda e porque, em certa medida, é lá que essa questão, depois de ficar adormecida por pelo menos duas décadas, volta, hoje, às discussões historiográficas. O tema, no entanto, não é apenas de interes- se norte-americano, mas também brasileiro, uma vez que o Brasil foi a outra grande nação escravista do século XIX. A escravidão no Sul dos Estados Unidos e no Brasil no século XIX foi objeto de comparação em texto de Richard Graham, publicado em 1990. Segundo o historiador norte-americano, o fato de que os Esta- dos Unidos, na mesma época, também estivessem se transformando em uma grande economia industrial levou a que a historiografia do país no período fizesse comparações entre o Norte, onde se desenvolvia esse capitalismo, e o Sul escravista, onde isso não ocorreu. Diversos pesqui- sadores, principalmente Eugene Genovese e Elizabeth Fox-Genovese, tal- vez os mais afamados historiadores da escravidão estadunidense naquele período, argumentavam que, isoladamente, tratava-se da principal causa dessa diferença. O fato de que o Brasil e outras regiões escravistas tam- bém não tivessem se industrializado parecia corroborar essa avaliação. Entretanto, apesar de concordar em linhas gerais com os Genovese, na comparação entre o grau de desenvolvimento do Velho Sul e do Brasil, Graham considerava que outros fatores deveriam ser levados em conta. O Sul era bastante adiantado e, até mesmo, industrializado, se compara- do com outras sociedades escravistas, para que a escravidão fosse consi- derada a única linha divisória entre desenvolvimento e atraso econômi- cos. Certamente, o Sul não era tão industrializado quanto o Norte, mas poucas áreas do mundo, naquela época, o eram. Assim sendo, outros fatores, de ordem cultural, poderiam melhor avaliar e descrever o dina- 28 A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica mismo, ou a falta dele, das economias escravistas. Comparar o Sul com o Brasil poderia aumentar significativamente nosso entendimento sobre a instituição da escravidão e sua relação com o desempenho econômico (Graham, 1990, p. 97). Quando Graham publicou a primeira versão reduzida de seu tex- to, em 1981, o debate sobre as relações entre escravidão e capitalismo nos Estados Unidos, que vinha desde, pelo menos, os anos de 1960, es- tava em seu auge.1 Eugene Genovese, para ficar no autor mais consa- grado, em livro de 1967, assinalava o atraso econômico das economias escravistas, se comparadas com as economias capitalistas. Esse atraso econômico manifestava-se em termos de menor taxa de crescimento, de diversificação de atividades, menor volume da produção, de avanço tec- nológico e de expansão do consumo e incremento do padrão de vida. Simplificando em muito a discussão, dois fatores distinguiriam o capi- talismo da escravidão. Por um lado, o trabalho livre e assalariado seria superior ao trabalho escravo em termos de produtividade. Por outro, também a mentalidade mais racional, mercadológica,2 objetivando o lu- cro dos empresários capitalistas, seria mais eficaz do que a mentalidade patriarcal dos senhores de escravos, focada principalmente na busca de status e poder. Tal mentalidade, advinda das relações sociais escravistas, os impediria de optar racionalmente pela exploração dos trabalhadores livres, que lhes seria, em tese, mais vantajosa (Genovese, 1976 [1967]). Essas ideias foram atacadas por estudos cliométricos, que busca- ram demonstrar que o trabalho escravo era tão ou mais produtivo do que o trabalho assalariado livre da época. Portanto, a opção econômica pela escravidão era altamente lucrativa e, assim, racional e capitalista. Nessa interpretação, até mesmo a superioridade dos padrões de vida dos traba- lhadores livres em relação aos escravos era colocada em questão (Fogel; Engerman, 1995 [1974]). Outros historiadores, sem corroborar essa últi- ma conclusão, viram os senhores sulistas como verdadeiros capitalistas, que exploravam os trabalhadores escravos assentando essa exploração em uma dominação racial (Oakes, 1998 [1982]). Em livro posterior, escri- to a quatro mãos, Genovese e sua esposa, Elizabeth Fox-Genovese, reco- nheceram que os senhores de escravos sulistas, ao lado de sua mentali- 1 Essa primeira versão apareceu na Comparative Studies in Society and History, v. 23, n. 4, p. 620-655, out. 1981. Uma versão em português, sob o título Escravidão e desenvolvimento econômico: Brasil e Estados Unidos no século XIX, apareceu em 1983, na Estudos Econômicos, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 223-257. 2 Empregarei a palavra mercadológica no sentido de atividade voltada para o mercado com fim de obtenção de lucro, sem o sentido usual relativo ao marketing, enquanto conjunto de práticas e saberes específicos relativos ao mercado. 29 A segunda escravidão e o debate sobre a relação entre capitalismo e escravidão. Ensaio de historiografia dade patriarcal e paternalista, tinham uma forte propensão para o lucro e para o mercado. No entanto, mantiveram a caracterização do Sul como uma sociedade e uma economia escravistas e pré-capitalistas, e continua- ram a considerar as relações de trabalho e de propriedade como critérios fundamentais para definir a natureza das sociedades. Nesse sentido, a característica distintiva do capitalismo seria a transformação da força de trabalho em uma mercadoria que pode ser comercializada no mercado, o que só passou a acontecer plenamente com o advento da indústria moderna. No Sul, ao contrário, prevaleciam as relações de trabalho e de propriedade escravistas (Fox-Genovese; Genovese, 1983). Graham concordava com essa definição, mas advertia que isso não deveria se transformar em uma tautologia, que visse nas relações de trabalho assalariadas a própria causa do surgimento do capitalismo (Graham, 1990, p. 98). Outros fatores, de ordem cultural, teriam de ser levados em consideração para explicar o surgimento desse sistema e responderiam pelas distintas formas de desenvolvimento entre as so- ciedades, inclusive entre aquelas com relações de trabalho da mesma natureza. A comparação entre o Sul dos Estados Unidos e o Império do Brasil, ao salientar a profunda defasagem, em termos de desenvolvimen- to econômico, entre as duas sociedades igualmente escravistas, atestava este fato. O exercício de comparação permitia ainda que os historiadores pudessem “se livrar da falácia simplista de concluir que o que aconteceutinha que acontecer” (Graham, 1990, p. 97). Capitalismo e escravidão no debate teórico-histórico O perigo da tautologia apontado por Graham está sempre pre- sente no trabalho do historiador. No caso das relações entre capitalismo e escravidão, não apenas em relação ao primeiro termo, mas também em relação ao segundo, ainda que, na maioria das vezes, de maneira desper- cebida. Analisar as relações entre capitalismo e escravidão remete sem- pre, implícita ou explicitamente, a uma discussão sobre o que venha a ser capitalismo, mas não do que estamos falando quando utilizamos o termo escravidão. Os sentidos dicionarizados dessas palavras deixam isso claro. Para capitalismo, o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa traz duas acep- ções principais. Em Economia, trata-se de “sistema econômico baseado na legitimidade dos bens privados e na irrestrita liberdade de comércio e indústria, com o principal objetivo de obter lucro”. Em Sociologia, é um “sistema social em que o capital está em mãos de empresas privadas ou 30 A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica indivíduos que contratam mão de obra em troca de salário”.3 Ambos os aspectos dicionarizados, o econômico e o sociológico, são conceituais. Dizem respeito a um sistema, econômico ou social, e estão contidos e se combinam em quase todas as definições teóricas e interpretações his- tóricas mais aprofundadas do que foi e do que tem sido o capitalismo. Sem aprofundar uma discussão conceitual mais elaborada, pode-se dizer que há duas grandes tendências teórico-historiográficas a esse respeito. Uma primeira tendência assinala, como aspecto fundamental do capita- lismo, a propriedade privada e a produção voltada para o mercado, para o lucro e para a acumulação pela acumulação. Ainda que na definição dicionarizada não haja menção a qualquer forma de trabalho, no campo teórico e historiográfico essa tendência assume que o assalariamento seria a principal, mas não exclusiva, forma de trabalho do capitalismo, podendo conviver em determinadas fases e situações, por exemplo, na Época Moderna, e/ou em determinadas zonas, nas periferias, com outras formas de trabalho, como o escravo, o servil, o forçado, o familiar. A segunda tendência, na linha daquela esposada por Graham, se- guindo os Genovese, e aqui defendida, vê na generalização das relações de trabalho assalariado o aspecto central e distintivo do capitalismo. Dessas relações, decorre um regime específico de propriedade privada em que os trabalhadores são desprovidos de seus meios de trabalho e subsistência, mas gozam de direitos sobre si mesmos e da propriedade sobre sua força de trabalho, sem o que esta não poderia ser vendida e comprada no mercado. Esse sistema não nasceu pronto. Foi fruto de um longo processo de transformações históricas, desencadeadas em determinadas regiões da Europa Ocidental, a partir dos séculos XV e XVI, estendendo sua domi- nação em escala planetária, principalmente pelo mundo atlântico. Essas transformações envolveram, por um lado, a expropriação dos trabalha- dores de seus meios de subsistência, isto é, dos seus meios de produção, obrigando-os a vender sua força de trabalho no mercado. Por outro, im- plicaram a acumulação de capital nas mãos de uma classe, a burguesia, com disposição e meios para comprar essa força de trabalho em troca de salários. Mais especificamente, tudo isso se deu com a desapropriação dos camponeses de suas terras e/ou das terras comunais; a revitalização do comércio e das finanças; a penetração do capital na organização e, a partir do século XVIII, principalmente, no controle da produção artesanal 3 Dicionário Houaiss da língua portuguesa online. Disponível em: https://houaiss.uol.com.br/ pub/apps/www/v3-3/html/index.php#3. Acesso em 25 mai. 2018. https://houaiss.uol.com.br/ 31 A segunda escravidão e o debate sobre a relação entre capitalismo e escravidão. Ensaio de historiografia com as manufaturas domésticas e coletivas. Em escala atlântica, envol- vendo a América e a África, e secundariamente outras regiões do mundo, acarretou a exploração colonial, a escravização de africanos, o trabalho forçado de trabalhadores americanos, o extermínio de populações intei- ras, pirataria e guerras. A partir de fins do século XVIII, até a primeira metade do XIX, em determinadas áreas da Europa Ocidental, notadamente na Inglaterra, e mesmo no Norte dos Estados Unidos, o capital penetrou no interior do próprio processo de trabalho com o advento da indústria moderna e a subordinação completa do trabalho ao capital. Na fábrica moderna, o trabalhador individual, já despossuído de seus meios de subsistência, deixou de contar com sua destreza individual, tornando-se parte de um corpo mais amplo, o trabalhador coletivo, inteiramente subsumido ao capital-máquina. Foi nesse momento que o capital no processo produti- vo, mas também se estendendo por todas as esferas da vida econômica, passou a se acumular em ritmo e escala nunca antes experimentados, em um processo de ação ampliada, de forma aparentemente espontânea, através do livre jogo do mercado de compra e venda de mercadorias, inclusive de força de trabalho. É possível que isso ocorra porque toda forma econômica depende de aparatos político-jurídicos, assim como de práticas, crenças e concepções culturais que garantam suas condições de reprodução. O fato de que, no capitalismo, esses nexos não sejam imediatamente percebidos não os torna menos reais, nem menos efe- tivos.4 Somente nesse momento, em que se consolida como tendência dominante na primeira metade do século XIX, é que se pode falar de ca- pitalismo enquanto um sistema socioeconômico propriamente dito. Não por acaso, foi nessa altura que o neologismo foi cunhado e passou a ser empregado nas línguas das principais regiões em que essa nova forma de produção se desenvolvia: inglês, francês e alemão.5 A contraposição entre essas duas tendências na discussão sobre a natureza do capitalismo reflete e, ao mesmo tempo, implica diferentes interpretações do processo histórico e de eventos específicos. Não se trata de uma sequência lógica imediata, do tipo se esta concepção teórica, 4 Sobre processo histórico de formação do capitalismo e a subordinação completa do trabalho ao capital, O Capital e os Grundrisse, assim como seus muitos comentaristas, permanecem como primeira referência (Marx, 1971; 2011).Ver também Harvey (2013). Sobre o debate a respeito do capitalismo, ver Hilton; Dobb; Sweezy et al. (1977), Aston; Philpin (1987) e Wood (2017). 5 Raymond Williams rastreou também as palavras capital e capitalista na língua inglesa (Wil- liams, 2007 [1983], p. 70-72). Fernand Braudel o fez com ênfase no francês (Braudel, 1996 [1979], p. 201-216). 32 A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica logo aquela análise historiográfica, mas de uma correspondência não linear, entre teoria e interpretação historiográfica. Entre o constante ir e vir da teoria à historiografia, há espaço para contradições, hiatos, omissões, correções. A correspondência entre historiografia e teoria é sempre im- perfeita e inconclusa. Refazer e aclarar os nexos dessa correspondência deve servir para enriquecer o conhecimento historiográfico e também o teórico. Se levada ao extremo teórico-abstrato, a discussão torna-se fala- ciosa, nominativa, formalista, irredutível e bizantina. Cai-se, facilmente, na tautologia assinalada acima, que Graham apontou em suas considera- ções. Varrer o debate para debaixo do tapete em nome da superioridade da análise empírica e daquilo que os documentos dizem, por sua vez, não resolve o problema. É um retorno, muitas vezes disfarçado, ou mal dis- farçado, em técnicas e metodologias de pesquisa sofisticadas, à falácia da História metódica, dita positivista, do século XIX. É uma forma de natura- lizar conceitos e noções, implícitas ou ditas de passagem, que informam e informaram a imaginação dos historiadores, dosagentes históricos e de seus tempos. Isso pode ser constatado quando verificamos a falta de penetra- ção de uma discussão teórica e historiográfica na definição dicionarizada do vocábulo escravidão. Segundo o Houaiss, escravidão é a “condição de escravo”, sendo que escravo é “... aquele que, privado da liberdade, está submetido à vontade absoluta de um senhor, a quem pertence como propriedade”. O antônimo de escravidão é liberdade. Há ainda uma se- gunda definição, segundo a qual a escravidão é um “sistema socioeco- nômico baseado na escravização das pessoas; escravismo, escravagismo, escravatura”.6 Liberdade, propriedade e escravidão, no entanto, nem sempre tiveram o mesmo conteúdo no processo histórico. Deixando de lado a Antiguidade, pode-se dizer, simplificadamente, que essa constelação se- mântica foi uma, no período colonial, marcado pelo Antigo Regime e pela sujeição à Metrópole; e outra, no século XIX, marcado pela ascensão dos Estados nacionais, do liberalismo, do abolicionismo e pela inserção das economias escravistas na economia-mundo dominantemente capitalista. No primeiro caso, a liberdade, além de antônimo da escravidão, era tam- bém, em larga medida e entre outras coisas, a liberdade de escravizar e ter escravos. Não qualquer um, nem em qualquer lugar, mas africanos ne- 6 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa online, ibidem. Não deixa de ser significativo, para os propósitos deste texto, que o neologismo escravismo não exista na língua inglesa. Signi- ficativo também é o fato de que, ainda segundo o Houaiss, sua aparição dicionarizada em português, de 1885, anteceda a de capitalismo, que é de 1899. 33 A segunda escravidão e o debate sobre a relação entre capitalismo e escravidão. Ensaio de historiografia gros e seus descendentes, na África e na América. No século XIX, quando a liberdade ganhou o sentido de antônimo da escravidão, inclusive com sua extensão para o campo moral e político, essa constelação semântica foi se desfazendo com a deslegitimação, primeiro, do direito de escra- vizar, e, segundo, da própria propriedade escrava. Essas mudanças se- mântico-conceituais não aconteceram em um vazio, mas acompanharam transformações e incidiram sobre as economias e sociedades escravistas. Numa primeira leitura, tais mudanças e transformações pareceram ter um sentido linear, da escravidão ao capitalismo, e da escravidão à liber- dade, acarretando ou acompanhando seu desaparecimento. Entretanto, no Sul dos Estados Unidos, no Brasil e em Cuba, a escravidão do século XIX esteve longe de ser apenas uma herança evanescente do passado colonial. Nessas regiões, conheceu um dinamismo e uma dimensão nun- ca antes experimentada no período colonial. Mais do que isso, vemos a escravidão como a principal base material para a construção desses Estados nacionais liberais e do Segundo Império Espanhol. A segunda escravidão Percebendo essas diferenças significativas entre a escravidão colonial e a escravidão do século XIX, principalmente no plano econô- mico, e antevendo suas consequências mais amplas, o historiador nor- te-americano Dale Tomich formulou, em 1988, o conceito de “segunda escravidão”. O conceito, revisado em capítulo de livro de 2004 (Tomich, 2011 [2004]), tem ganhado crescente aceitação entre os historiadores da escravidão afro-americana do século XIX, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil. Numa leitura pontual, indica quatro especificidades his- tórico-estruturais da escravidão afro-americana que seriam próprias do século XIX no Sul dos Estados Unidos, no Brasil, particularmente no Vale do Paraíba e suas zonas adjacentes, e em Cuba. Em primeiro lugar, enquanto declinava ou entrava em processo de abolição em outras regiões das Américas, a escravidão afro-americana renovou-se e se expandiu, em escala inédita nessas áreas. Em segundo lugar, isso ocorreu em íntima conexão com o desenvolvimento do capita- lismo industrial e a consolidação da hegemonia internacional britânica, fatores que, direta ou indiretamente, contribuíam para o declínio e a abolição da escravidão no restante das Américas. Em terceiro lugar, a se- gunda escravidão fez parte e nutriu-se do mesmo processo de expansão do mercado internacional correlato ao desenvolvimento do capitalismo 34 A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica industrial. Finalmente, as zonas produtivas da segunda escravidão ca- racterizaram-se pelo emprego de modernas tecnologias, tanto no que diz respeito ao aspecto técnico e à organização do processo de traba- lho e produção, quanto no que concerne aos meios de transporte e aos mecanismos de comercialização e financiamento, em escala nacional e internacional. Ao salientar esses elementos, Tomich explicitamente diferencia- va sua interpretação de três concepções que, até então, haviam tratado da escravidão moderna em suas relações com o desenvolvimento do ca- pitalismo: a concepção da New Economic History norte-americana, exem- plificada no livro de William Fogel e Stanley Engerman, Time on the cross (Fogel; Engerman,1974); a marxista, personificada por Eugene Genovese, em The political economy of slavery (Genovese, 1976 [1967]); e a do “mo- derno sistema-mundo”, de Immanuel Wallerstein, então consubstanciada nos três volumes de The modern world-system (Wallerstein, 2011 [1974], 2011 [1979] e 2011 [1980]).7 Segundo Tomich, a New Economic History ge- neralizava e utilizava indiscriminadamente categorias econômicas aplicá- veis ao capitalismo como fatores universais, mas válidos e encontráveis também na economia escravista. Assim, deixava de lado as particularida- des históricas das relações sociais escravistas. Genovese, ao contrário, veria escravidão e capitalismo como sis- temas incompatíveis, este mais moderno, fundado na generalização das relações sociais baseadas na exploração do trabalho livre e assalariado, e aquele como pré-capitalista e atrasado. A escravidão moderna havia sido uma fase necessária no processo histórico de acumulação primitiva de capitais, condição necessária para o surgimento do capitalismo, equipa- rado à universalização das relações de trabalho assalariado como forma de produzir mais valor. Mas, a partir de fins do século XVIII, pela natureza mesma de suas relações de trabalho escravistas, com suas implicações sociais, políticas e culturais, havia se tornado um obstáculo à formação e à expansão do capitalismo, enquanto modo de produção pleno. A es- cravidão no Sul dos Estados Unidos, desenvolvendo-se como um sistema social e econômico integrado, com a generalização, a centralidade e a reprodução em escala ampliada das relações de propriedade e trabalho escravistas, havia gestado uma classe dominante peculiar, com sua pró- pria visão de mundo, na qual o ruralismo e o patriarcalismo desempe- nhavam papel central. Tudo isso entrava em choque com o capitalismo, com sua busca do lucro e da acumulação pela acumulação, e seus valores 7 Um quarto volume, sobre o século XIX, principalmente em seus aspectos políticos, apareceu em 2011 (Wallerstein, 2011). 35 A segunda escravidão e o debate sobre a relação entre capitalismo e escravidão. Ensaio de historiografia do individualismo, do imperativo e da superioridade do trabalho livre e assalariado. Finalmente, Wallerstein veria o “moderno sistema-mundo” como uma só estrutura histórica empírica internacional, capitalista, vigente desde o século XVI. Ainda que passando por transformações internas, a característica central dessa estrutura era sua divisão em zonas centrais, semiperiféricas e periféricas. A cada uma dessas zonas, corresponderia uma forma específica de trabalho: livres, no centro, formas de parceria, na semiperiferia, e coercitivas, incluindo a escravidão, na periferia. O sis- tema como um todo, através da integração dessas diferentes zonas e suas formas de trabalho, estaria voltado para a produção dirigida ao mer- cado mundial e para a realização do lucro. Classes e nações hegemônicas seriamaquelas que dominariam os circuitos desse mercado mundial, fi- cando, assim, com a maior parte do sobretrabalho produzido e realizado no sistema. Nesse sentido, a escravidão não apenas seria compatível com o capitalismo, mas estaria mesmo em sua essência enquanto um modo de produção periférico. Por razões que não cabe aqui analisar, o conceito de segunda escravidão hibernou entre sua primeira formulação, de 1988, e sua cres- cente utilização por estudiosos da escravidão afro-americana do século XIX a partir de fins da primeira década do século XXI.8 Nos Estados Uni- dos, Christopher Schmidt-Nowara, pioneira e isoladamente, o utilizou, em 1999, em concomitância com a ideia de “segundo império”, para dar conta da vitalidade e das novas condições da escravidão cubana e por- to-riquenha no Novo Império Colonial Espanhol do século XIX (Schmidt- -Nowara, 1999). No Brasil, a penetração do conceito de segunda escravidão no meio acadêmico experimentou um percurso algo distinto. Em 2004, Ra- fael Marquese o empregou, em Feitores do corpo, missionários da mente, para dar conta das especificidades da administração dos escravos no Bra- sil, nos Estados Unidos e em Cuba no século XIX (Marquese, 2004). Em E o Vale era o escravo, de 2008, analisei a escravidão de Vassouras e, por ex- tensão, do Vale do Paraíba, como segunda escravidão (Salles, 2008). Me- nos do que acentuar o papel da escravidão no desenvolvimento de uma economia capitalista nessas regiões, até porque tal desenvolvimento não ocorrera em Cuba e no Brasil, tratava-se de salientar o caráter moderno, não arcaico, dessa escravidão. Em texto de cunho teórico-historiográfico de 2013, Marquese retomou e aprofundou o tema, ainda que sem empre- 8 Para uma discussão sobre o assunto, ver Marquese; Salles (2016). 36 A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica gar o conceito de segunda escravidão, e tratando da escravidão também no século XVIII e não apenas no XIX. Considerou que o abandono do conceito de capitalismo por correntes historiográficas predominantes na análise da escravidão brasileira do XIX – grosso modo a historiografia do sentido arcaico da escravidão brasileira e a historiografia com ênfase na agência escrava – conduziu a um descaso com os processos históricos de longa duração e com os quadros globais do capitalismo histórico, nos quais se inscreveu o sistema escravista brasileiro. Perdia-se assim a rique- za do acúmulo intelectual produzido anteriormente, na qual a discussão da relação entre escravidão e desenvolvimento capitalista dependente, periférico e excludente no país representava aspecto central (Marquese, 2013a). Três grandes vertentes interpretativas nessa tradição assinalaram lugares distintos para a escravidão na história brasileira. A primeira a viu como momento na formação de uma sociedade e uma economia colo- niais, depois semicoloniais e semifeudais. A segunda analisou a escravi- dão como um dos mecanismos de integração dependente da economia colonial no sistema capitalista dominado pelo mercantil internacional. Finalmente, a terceira e mais recente interpretação a considerou como elemento definidor de um modo de produção próprio, o escravista co- lonial. Em todos esses casos, a escravidão foi vista como um óbice ao desenvolvimento de um capitalismo robusto e autônomo, nos moldes do capitalismo estadunidense.9 A comparação com os Estados Unidos, explícita ou implicitamente, fazia sentido na medida em que ambas as sociedades tinham um passado colonial, abrangiam territórios de dimen- sões continentais e, principalmente, traziam a marca da escravidão afro- -americana em sua formação. Tal debate sobre as relações entre capitalismo e escravidão teve sua contraparte norte-americana. Neste país, também, escravidão foi considerada um obstáculo ao desenvolvimento capitalista, que teria sido uma decorrência da economia livre e não escravista do Norte. Na visão do historiador marxista Eugene Genovese, que teve grande influência na historiografia brasileira e a quem retornarei adiante, a economia e a sociedade do Velho Sul haviam constituído uma civilização em sua in- tegralidade, pré-capitalista, paternalista e patriarcal, ancorada na escra- vidão. Como tal, havia sido um entrave, que necessariamente teve de ser superado para o desenvolvimento do capitalismo (Genovese, 1976 [1967]). Na década de 1970, no entanto, houve quem salientasse o ca- 9 Como representantes dessas vertentes, ver, respectivamente, Sodré (1964 [1962]), Prado Jr. (1973 [1942]) e Gorender (1978). 37 A segunda escravidão e o debate sobre a relação entre capitalismo e escravidão. Ensaio de historiografia ráter capitalista, quer dizer, racional, voltado para o mercado, lucrativo, altamente rentável e tecnológico, da escravidão sulista (Fogel; Engerman, 1995 [1974]). Outros contestaram ainda que a escravidão sulista estives- se ancorada em uma sociedade de natureza pré-capitalista, patriarcal e paternalista, como queria Genovese (Oakes, 1998 [1982]). O capitalismo da escravidão O debate sobre capitalismo e escravidão atingiu seu auge exa- tamente nos anos de 1980, ao final dos quais, lembremos, Dale Tomich forjou a noção de segunda escravidão.10 Em seguida, a discussão hiber- nou, sufocada por sucessivas viradas que dominaram as historiografias norte-americana e atlântica da escravidão moderna nas últimas décadas: virada cultural, micro-histórica, narrativa e da agência, especialmente da agência escrava. Hoje, ao que parece, numa nova virada, a da História Global, a questão é retomada, ainda que se querendo nova em folha. Essa nova interpretação historiográfica é expressa no volume coletivo organizado por Sven Beckert e Seth Rockman, intitulado Capitalismo da escravidão, e sintetizada na introdução por eles redigida, que sumarizo e comento a seguir (Beckert; Rockman 2016, p. 1-27). De acordo com essa perspectiva, a economia escravista do Sul teria desempenhado um papel crucial no deslanche do desenvolvimento capitalista estadunidense. Reconhecer esse fato desafiaria um dos mitos mais persistentes na história americana, que vê a escravidão como uma instituição meramente regional, certamente indispensável para a com- preensão do Sul, mas de importância insignificante para a nação como um todo (Beckert; Rockman, 2016, p. 6). A plantation e a fábrica compu- nham uma mesma e coerente economia nacional, avaliação que, segundo esses autores, era menos controversa, há 175 anos, do que é hoje. O capitalismo estadunidense não teria decolado superando a escravidão, um obstáculo a seu desenvolvimento, como na versão até então predo- minante, mas teve, na escravidão, a raiz de sua pujança. Esta centralidade da escravidão na economia nacional pode ser demonstrada por alguns fatos: até 1860, o algodão foi o principal produto de exportação do país; o capital representado pelo estoque de escravos era maior do que aquele representado por todas as ferrovias e fábricas nor- te-americanas; capitais estrangeiros garantiam a expansão territorial das plantations pela Luisiana e pelo Mississipi; a maior concentração de energia 10 Para um sumário do debate, ver Smith (1998). 38 A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica a vapor do país encontrava-se ao longo do Rio Mississipi e não do Merri- mack (Beckert; Rockman, 2016, p. 1-2). A massa de capitais concentrados em mãos de plantadores sulistas era gigantesca. Eram comerciantes e ban- queiros nortistas, em grande parte, que comercializavam e financiavam a produção sulista, auferindo com isso grandes lucros. Na administração de seus negócios, os plantadores escravistas visavam o lucro e a acumulação. Sua mentalidade era similar à de seus congêneres capitalistas do Norte. As plantations e a economia do Sul eram tecnologicamente avançadas, empre- gando máquinas e métodos modernos de gerenciamento do trabalho e de contabilidade. Toda a região contava com uma sofisticada infraestrutura de transportes.Numa palavra, o Sul era tão moderno quanto o Norte. As pretensões de patriarcalismo e paternalismo dos plantadores caminhavam junto com as práticas de busca da maximização dos lucros e com a sacra- mentalização da propriedade privada, “tornando cada vez mais infrutíferas as rotulações dos senhores de escravos como pre, proto ou quasi-capitalis- tas” (Beckert; Rockman, 2016, p. 14). Tudo isso foi obliterado pela percepção de que a escravidão era uma forma ineficiente de organização do trabalho e um obstáculo para o desenvolvimento econômico. Tal percepção remontava ao século XVIII e se tornou senso comum quando da vitória do Norte industrializado sobre o Sul escravista, na Guerra da Secessão. Senhores de escravos como John Calhoun declararam-se explicitamente anticapitalistas. Tudo isso impregnou a visão dos historiadores, que excluíram o Sul da assim chamada “transição para o capitalismo” (aspas no original). Para Beckert e Rockman, essa visão baseou-se em uma hipótese contrafactual de que as formas de empreendedorismo, inovação e competição no mercado, características do desenvolvimento do Norte, poderiam ter acontecido sem a escravidão. Entretanto, não aconteceram. Tampouco, seria válida a argumentação de que outras sociedades capitalistas desenvolveram-se sem a escravidão e que outras sociedades escravistas possuíam poucas características capitalistas (2016, p. 3). Em contraposição, tópicos polí- ticos atuais, como a questão das reparações, mesmo controversos, susci- tam ricas investigações sobre o papel da escravidão como base material das desigualdades econômicas norte-americanas, passadas e atuais. Mo- vimentos sociais contemporâneos, como a luta global contra o tráfico de seres humanos, por sua vez, demonstram que as economias capitalistas modernas não abrigariam qualquer oposição inerente ao trabalho coerci- tivo (Beckert; Rockman, 2016, p. 7). Os capítulos de Slavery’s capitalism “não fornecem uma teorização explícita da relação entre capitalismo e escravidão”, mas sim salientam 39 A segunda escravidão e o debate sobre a relação entre capitalismo e escravidão. Ensaio de historiografia seu papel central e constitutivo em determinado momento da história do capitalismo (Beckert; Rockman, 2016, p. 10). Uma das características do campo de estudos do “capitalismo da escravidão” seria exatamente a de se afastar das formulações marxistas que “separavam escravidão e capi- talismo em modos de produção antitéticos” (p. 9). Segundo os autores, não se trata de saber “se a escravidão em si era ou não capitalista (uma velha questão), mas sim da impossibilidade de se entender o espetacular padrão de desenvolvimento da nação sem situar a escravidão na primeira linha e em seu centro” (Beckert; Rockman, 2016, p. 27). Velhas questões são duras de matar O antigo debate sobre as relações entre capitalismo e escravidão, com frequência, caiu em discussões estéreis e excessivamente abstratas, nas quais, com facilidade se perdia o nexo entre a teoria e o desenrolar do processo histórico efetivo. O novo debate, como proposto em Sla- very’s capitalism, não contém uma gota desse proselitismo. Mas é farto em julgamentos apressados, como o que decreta, entre parêntesis, que saber se a escravidão era capitalista ou não é uma “velha questão”, infe- rindo-se que, por ser velha, seja ultrapassada. E, talvez por conta disso, deixa de lado importantes problemas de interpretação histórica. Nos li- mites deste ensaio, ressaltarei dois pontos em que isso fica evidente. O primeiro é a explicação sobre as razões da Guerra da Secessão e suas consequências para a história posterior dos Estados Unidos. O segundo, mais diretamente relacionado à história brasileira, trata da relação entre escravidão moderna e desenvolvimento econômico capitalista. No primeiro caso, trata-se de um evento singular – uma guerra –, cujo desenrolar esteve sujeito a decisões, indecisões e ações de in- divíduos, grupos e coletividades delimitados. Um evento marcado por acasos e vicissitudes. Já no segundo, temos um processo histórico geral, impessoal, com abrangência e desenvolvimento disseminados, em que as ações de agentes históricos específicos não aparecem ou não ocupam lugar central. O xis da questão é que a guerra não pode ser explicada sem o processo e este tomou o curso que tomou, da forma que tomou, em larga medida, por consequência da guerra. Vejamos. A Guerra da Secessão foi um conflito de vida ou morte, uma guer- ra total – a primeira do mundo contemporâneo em que duas sociedades engajaram-se integralmente no conflito, que só terminou com a rendição incondicional e a destruição de um dos contendores. Na verdade, foi 40 A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica uma guerra de vida e morte para o Sul, que não apenas perdeu seu status político anterior, no interior da nação, como também teve seu modo de vida, se não completamente destruído, quebrado e transformado para sempre. E quando falamos do Sul, falamos principalmente de sua classe dominante de senhores de escravos e de seu mundo. Hoje há poucas dúvidas que a Guerra da Secessão foi uma guerra em defesa da escravi- dão. Como qualquer guerra, a da Secessão poderia não ter acontecido. Nenhuma força irresistível obrigou a elite política da Carolina do Sul a tomar a decisão de se separar da União. Tampouco obrigou os demais estados do Sul mais profundo e, em seguida, os demais estados do Velho Sul, a seguirem seu exemplo. O Norte, por seu lado, poderia ter aceitado a secessão, negociado a paz numa composição com a Confederação e, assim, até mesmo, conseguir o reestabelecimento da União em novas bases. Nada disso aconteceu. Por quê?11 A questão se torna ainda mais relevante e paradoxal, se aceitarmos a linha interpretativa proposta em Slavery’s capitalism e em análises simila- res de que a escravidão desempenhou papel essencial no desenvolvimento do capitalismo norte-americano. Se é verdade que a escravidão esteve na ponta, ou ao menos teve uma grande relevância para o desenvolvimento econômico norte-americano, isso não se aplica quando consideramos o grande salto da economia, já então capitalista e em rápida transição para o capitalismo industrial, que a região dos Grandes Lagos, no noroeste do país, experimentou, a partir da década de 1840 (Egnal, 2009). No final da década de 1850, aqueles que tinham suas bases políticas no Norte e, prin- cipalmente, no noroeste capitalista, os republicanos, apostaram que o de- senvolvimento dessa economia não só prescindia do aporte trazido pela economia escravista do Sul, como também requeria, de imediato, seu con- finamento no território por ela já ocupado e, a longo prazo, sua abolição (Oakes, 2014). A história provou que estavam mais certos do que pensa- vam. O que aconteceu, tanto em termos da guerra quanto em termos de suas consequências, não estava nas previsões dos republicanos. 11 Sem ter espaço para desenvolver o ponto, descarto a explicação de que foi a incapacidade das lideranças políticas, de um lado e de outro, em lidar com suas divergências de forma pa- cífica, que teria levado ao conflito. Trata-se de uma explicação circular, que toma como causa aquilo que tem de ser explicado: exatamente por que essas lideranças erraram tanto e levaram seus erros às últimas consequências. Uma segunda explicação, também descartada, coloca no centro das divergências as concepções distintas sobre o alcance e o papel do Governo Central na federação e na vida dos estados. Resta explicar, contudo, o porquê de todos os estados escravistas terem aderido à Confederação, e todos sem escravidão, à União. Os três estados na divisa do Sul com o Norte, onde a escravidão era legal, mas residual, e que tinham suas economias dependentes do Norte, sintomaticamente, aderiram à União. Sobre o assunto, ver Ashworth (1995, 2007 e 2012) e Egnal (2009). 41 A segunda escravidão e o debate sobre a relação entre capitalismo e escravidão. Ensaio de historiografiaAté fins de 1862, a disposição inicial da ala dominante do Par- tido, agrupada em torno do presidente Lincoln, foi de firme defesa da União, mas com abertura para aceitar a escravidão como instituição con- finada aos limites do Sul. Apenas no final daquele ano, as circunstâncias da guerra levaram-nos a radicalizar e decretar a abolição em todos os Estados Confederados, e somente em 1865, depois da vitória, a abolição universal foi decretada. Sem que pudessem prever, essa disposição de conduzir a guerra até suas últimas consequências e a qualquer custo, dadas as condições demográficas, sociais e, principalmente, econômicas do Norte, longe de levá-lo à exaustão, catapultou seu desenvolvimento capitalista (Egnal, 2009). Isso aconteceu porque, desde 1840, o ritmo do crescimento eco- nômico e demográfico do eixo noroeste-norte tornou-se cada vez mais acelerado do que o do Sul. A economia da região, a partir da década de 1850, passou a se desenvolver de modo independente da escravidão, crescentemente, em competição por recursos nacionais e em oposição a ela. Um claro sinal do desenvolvimento desse capitalismo é o fato de que, em 1850, o número de trabalhadores assalariados nos Estados Uni- dos já era maior que aquele de escravizados. Uma década mais tarde, ele ultrapassava também o número de trabalhadores por conta própria, que, até então, representavam a base da economia do Norte, do Noroeste e da zona de fronteira no Oeste. Boa parte desses trabalhadores concentrava- -se nas cidades, nas nascentes manufaturas, e na construção de canais e ferrovias, na região (Foner, 1995, p. XV-XVI). É verdade que a economia sulista era tecnologicamente avança- da, lucrativa e capitalizada, mas, mesmo assim, não podia competir com o capitalismo nascente do Norte. O capital escravista tinha peculiaridades que o colocavam em desvantagem se comparado com o capital indus- trial, capitalista, do Norte.12 A maior parte dos capitais sulistas estava empatada em escravos, fato que Beckert e Rockman (2016) veem como 12 Segundo Marx, o capital preexistiu ao sistema capitalista nas formas de capital mercantil e capital usurário. Nessa condição, apropriava-se de parte do mais valor gerado na produção, de maneira independente das formas dessa produção (modos de produção). O capital industrial, ainda segundo Marx, seria a única forma de capital produtivo que cria riqueza, e não apenas se apropria dela. Sobre essa concepção e sua relação com o que denominam capital escravis- ta-mercantil, ver Pires; Costa (2000). Esses autores corroboram a visão de Marx e cunham o conceito de capital escravista-mercantil para dar conta das economias escravistas modernas. Ligado ao modo de produção específico da moderna escravidão, por sua natureza, exportador de mercadorias, e subordinado ao sistema capitalista internacional, o capital mercantil-escra- vista seria uma terceira forma de capital não produtivo. A concepção aqui exposta é distinta. Considero o capital-escravista – sem o complemento mercantil, visto como tautológico, uma vez que todo capital é mercadoria – como uma segunda forma de capital produtivo, caracte- rístico, como o capital industrial, da modernidade. 42 A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica sinal de potência. Isso, entretanto, era indicativo, na verdade, de uma debilidade, uma vez que esses capitais não tinham flexibilidade para se deslocarem para áreas de investimento que, porventura, se mostrassem mais lucrativas. Nesse sentido, a imensa reserva de valor representada pelos escravos estava sempre sujeita a experimentar um processo de desvalorização, caso novos arranjos políticos nacionais apontassem para uma abolição gradual. Finalmente, deve-se notar que parte significativa dos capitais que financiavam a economia sulista era proveniente de ban- queiros e empresários do Norte que, cada vez mais, eram atraídos por negócios mais rentáveis da economia do noroeste. Em 1860, já podiam prescindir e prescindiram do Sul em seus investimentos. A própria guer- ra em si, aliás, foi uma excelente oportunidade nesse sentido (Beckert; Rockman, 2016). Os estados escravistas da zona limítrofe com o Norte, com suas economias mais ligadas ao Norte e onde a escravidão era secundária, compreenderam e aceitaram essa situação. Por isso, alinharam-se com a União. Os estados do Sul profundo, que tinham a escravidão no coração de suas economias e seu modo de vida, responderam a essa perspecti- va de futuro de forma diametralmente oposta. Separaram-se da União e constituíram os Estados Confederados da América. Foram seguidos, mesmo que relutantemente, pelos estados do Velho Sul, que alinhavam com eles sua economia e seu modo de vida. Apostaram no King Cotton, isto é, no fato de que seu algodão, como mercadoria fundamental para indústria que se desenvolvia na Grã-Bretanha e mesmo no Norte dos Es- tados Unidos, traria o apoio da primeira e forçaria o segundo a um com- promisso. No âmbito político e ideológico, os plantadores e as elites intelectuais sulistas sentiam-se confortáveis com o ideário do liberalismo e com suas noções mais caras, como mercado, propriedade privada, lu- cro, capital, indivíduo. Tais noções, basilares da modernidade europeia, normalmente assimiladas ao desenvolvimento do capitalismo, à ascen- são da burguesia, não podem ser separadas da experiência da escravidão e da exploração colonial, e, no século XIX, da segunda escravidão. Essa contemporaneidade da escravidão entre os séculos XVI e XVII e, espe- cialmente, no século XIX, é uma das razões que torna tão difícil sepa- rar escravidão e capitalismo na experiência moderna.13 Por tudo isso, as elites políticas e os plantadores escravistas do Sul acreditaram na força 13 A escravidão moderna, tanto em sua faceta colonial, quanto como segunda escravidão, fugiria assim da noção de “contemporaneidade do não contemporâneo”, apresentada por Reinhart Koselleck em sua interpretação da modernidade, sendo, rigorosamente, tão contemporânea quanto o capitalismo. Cf. (Koselleck, 2006). 43 A segunda escravidão e o debate sobre a relação entre capitalismo e escravidão. Ensaio de historiografia duradoura, no dinamismo e na modernidade da escravidão. Senhores de escravos do Sul, a escravidão e seu mundo não se encontravam em retirada, como muitas das velhas classes agrárias europeias no mesmo período. Pelo contrário, estavam em expansão. Mas, equivocaram-se. O desenvolvimento demográfico e econômico do norte-noroeste demons- trou, na prática, sua superioridade. Uma das condições do desenvolvimento capitalista do Norte foi a expansão da pequena propriedade, produzindo alimentos e demandando implementos agrícolas. Outra foi a existência de uma massa de trabalha- dores livres à procura de empregos em troca de salários. Investimentos em infraestrutura de transportes e comercialização, assim como nas manufa- turas e indústrias nascentes, passaram a atrair o interesse de banqueiros e empresários capitalistas. O tecido social que se urdiu, dessa maneira, pro- piciou e demandou a abertura de espaços para o homem comum através de uma política de massas marcada por concessões democráticas. Nesse ambiente, germinou a ideologia que via no indivíduo li- vre e sua família, inclusive no homem comum, o núcleo do trabalho, do espírito empreendedor e da vida social. Ricos senhores de escravos, com seus ideais aristocráticos e seu poder sobre homens, coisas e sobre a própria República, eram a antítese dessa visão, que passou a consi- derar a escravidão como degradação. Como um fator que, justamente, obstruía o aperfeiçoamento moral dos indivíduos, das famílias e da so- ciedade como um todo. Seu estancamento e futura abolição passaram a compor o horizonte de desenvolvimento da nação. Os abolicionistas, uma minoria, que, no entanto, crescia, queriam-na já e eram, cada vez mais, ouvidos no Norte. A implosão do segundo sistema partidário, com o virtual desaparecimento dos whigs, o maior alinhamento
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