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MOEMA PARENTE AUGEL O DESAFIO DO ESCOMBRO A LITERATURA GUINEENSE E A NARRAÇÃO DA NAÇÃO Rio de Janeiro 2005 AUGEL, Moema Parente. O desafio do escombro: a literatura guineense e a narração da nação. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras-UFRJ, 2005. 387 p. (Tese de Doutorado em Literatura Portuguesa, na especialidade das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa). Orientadora: Profª Drª. Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco. 1.Literatura guineense – análise. 2. Literatura africana. I. Secco, Carmen Lucia Tindó Ribeiro (orientadora) II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Faculdade de Letras III. Título 4 PÓS-COLONIALISMO, NEOCOLONIALISMO, ANTICOLONIALISMO Os ocidentais podem ter saído fisicamente de suas antigas colónias na África e na Ásia, mas as conservaram não apenas como mercados, mas também como pontos no mapa ideológico onde continuaram a exercer domínio moral e intelectual. Edward Said. Cultura e imperialismo A literatura que se tem produzido em Cabo Verde, Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau – e não só, se pensarmos em outros países historicamente herdeiros da descolonização – é geralmente caracterizada como literatura pós-colonial, o que pressupõe e subentende um discurso de resistência às ideologias colonialistas. O pós-colonial é um conceito de múltiplas significações, devendo ser entendido aqui como expressão de uma produção tanto ficcional ou poética quanto teórica que espelha e questiona essa herança e as relações dentro dos binômios colonizador/colonizado, centro/periferia, primeiro/terceiro mundo. Essas dicotomias não refletem, porém, nem a interligação nem a dependência mútua nem tampouco as relações de poder entre os pólos. Trata-se de uma dialética de exclusão segundo a qual o mundo colonial funciona. Pois, como já disse Frantz Fanon, “le monde colonial est un monde coupé en deux. La ligne de partage, la frontière en est indiquée par les casernes et les postes de police” (FANON, 1961, p. 31)123. Essa exclusão se efetiva não apenas na separação física e geográfica, o espaço colonial sendo fronteirizado e departamentado, como também no plano dos direitos e dos privilégios e, inclusive, no plano das representações e dos valores (ib.). O sujeito colonizado, lembra Michael HARDT (2003)124, é concebido no imaginário metropolitano como o “Outro” e, como tal, é alijado tanto quanto possível dos princípios que definem os valores da civilização 123 “O mundo colonial é um mundo cortado em dois. A sua linha divisória, a sua fronteira está indicada por casernas e postos policiais”. A tradução é minha. 124 Michael Hardt é um pensador americano que publicou, entre outros livros e ensaios, em colaboração com o filósofo italiano Antonio Negri, o importante Empire (2000), obra que teve grande repercussão internacional. Em seu artigo “L’hybridité de l’Empire”, saído na revista Futur Antérieur em 1995, e posto na internet em 2003 (e de onde retiro as citações deste capítulo), já estão traçadas muitas das idéias mestras que foram mais tarde desenvolvidas em Empire. Hardt e Negri definem com o termo “Império” a nova ordem mundial que está surgindo e submetendo todo o planeta a uma globalização com efeitos positivos e negativos, criando um novo poder (a “soberania imperial”) que já não se baseia na soberania dos Estados nacionais. Segundo eles, os Estados nacionais perderam grande parte de sua influência, pois a competição na luta pela conquista de mercados não se faz mais entre Estados. E quando a ideologia do mercado mundial se liberta do contexto nacional, ela abre espaço à heterogeneidade, abarcando todas as culturas, religiões, origens étnicas. Todos são benvindos ao “Império” desde que aceitem o lugar que lhes é indicado. As empresas “imperiais” fazem da multicultura e da multi-etnicidade a chave do sucesso, patenteando a capacidade de apropriação e reapropriação do sistema capitalista. Esse Império emergente é fundamentalmente diferente dos imperialismos da dominância européia e expansão do capitalismo. Inclui tradições de identidades híbridas e fronteiras em dilatação. 116 européia. O colonialismo, tal como foi praticado no século XIX e parte do século XX, sob a máscara do zelo civilizatório, desprezava e negava a identidade do colonizado. O poder colonial funcionava como agente de controle social “produzindo”, por assim dizer, o colonizado. Os valores locais, autóctones, relativos ao ambiente não europeu, à cultura, à tradição, às crenças eram considerados inferiores e eram mesmo proibidos e combatidos com a patente intenção de substituí-los. O que predominava era o princípio dos vasos estanques e incomunicáveis, pois o sistema colonial determinava que as identidades fossem demarcadas com uma nítida separação a partir das fronteiras entre a metrópole e a colônia, entre o colonizador e o colonizado; eram válidas regras que se aplicavam diversamente segundo um lado ou outro da demarcação (ib.). “Na álgebra do conquistador, a unidade é a única medida que conta. Um só Deus, um só Rei, uma só Língua: o verdadeiro Deus, o verdadeiro Rei, a verdadeira Língua” (SANTIAGO, 1978, p. 16). O colonizador partia de suas verdades absolutas e da negação absoluta do nativo enquanto sujeito. A estratégia era ignorar ou silenciar as culturas dos colonizados. Silenciar é um não dizer que pode ter conotação histórica e ideológica, dependendo da posição do sujeito que fala. Há um interrelacionamento significativo entre o silenciado, a memória e o esquecimento. Através do instrumento do silenciamento, emudece-se a memória do subalterno, procura-se fazer esquecer a narração do passado vergonhoso ligado à subserviência, ao acapachamento, ao tráfico intercontinental que esvaiu e aviltou todo um continente e, com isso, esvaziam-se as tentativas de resistência. Adormecendo uma memória, acorda-se outra. O silêncio permite que o discurso etnocêntrico, homogeneizador e monolítico, que se quer único e verdadeiro, grite mais alto. O silêncio boicota movimentos que tentam recuperar memórias sufocadas, por exemplo, a história da resistência ao jugo colonial, em suas múltiplas facetas125. Muitas formas de dizer o dito mascaram o não dito, motivam distorções, estereótipos, camuflam os conflitos entre os senhores do poder e os que lutam pela sua visibilidade social (ORLANDI, 1997, p. 14 e ss.). A historiografia eurocentrada silenciou a história africana, apropriando-se da cronologia, iniciando a contagem da história na África com a chegada dos navegadores europeus. As terras foram “descobertas” e a partir de então passaram a existir nos mapas e assim na percepção dos ocidentais. Os regimes autoritários, como em um verdadeiro pacto do esquecimento, fizeram valer sua visão da história, impuseram uma única memória oficial, a memória e a história dos vencedores. No caso específico da Guiné-Bissau, seus escritores, por muitos e diversos caminhos, empenham-se em dar voz ao avesso da história. Isso significa levar em consideração os interstícios das relações coloniais, as concepções que as dominaram e fizeram com que lutas fossem ignoradas e tornadas invisíveis, significa compreender a que interesses essa narrativa 125 Remeto, mais uma vez, ao livro de Peter Mendy, sobre a tradição da resistência na Guiné-Bissau (1994). 117 atende, revelando as rupturas e as experiências compartilhadas, os anseios que não se realizaram, significa trazer à tona o passado emudecido, praticar o exercício da rememoração. Uma obra fundamental que desencadeou uma revisão do modo de embasar as relações estabelecidas entre a Europa e o “resto do mundo” é certamente Orientalism, de Edward SAID (1978), que empreende uma análise pioneira tanto dos processos de cristalização de estereótipos e de juízos de valor que dominam a formação de opinião quanto dos mecanismos pelos quais certas idéias se difundem como indiscutíveis e generalizantes. O “Orientalismo” é baseado em uma estratégiapolítica e ideológica que possibilita subordinar ao Ocidente, metonimicamente, o Oriente cuja representação passa a existir (a “ser”) como uma realidade. Edward Said, mostrando uma importante ligação entre o imperialismo e a cultura, ressalta a grande força estratégica que significa “o poder de narrar, ou de impedir que se formem ou surjam outras narrativas”, e considera a literatura, em especial o romance, a expressão cultural que muito influenciou a “formação de atitudes, referências e experiências imperiais” (SAID, 1999, p. 12), enfatizando que “as histórias estão no cerne daquilo que dizem os exploradores e os romancistas acerca das regiões estranhas do mundo” (ib., p. 13). A literatura colonial é um dos exemplos mais marcantes de uma tal afirmação pois, como disse Homi Bhabha, “o discurso colonial produz o colonizado como uma realidade social que é ao mesmo tempo um ‘outro’ e ainda assim inteiramente apreensível e visível” (BHABHA, 1998, p. 111). Começando por exemplos da literatura colonial na Guiné-Bissau, vou proceder a uma análise de diferentes manifestações literárias no espaço descolonizado. 4.1 Inocência versus força bruta A literatura colonial articula sempre uma apologia do colonialismo, mas também faz transparecer as diversas faces da perfídia do sistema. Denomina-se em geral literatura colonial os textos escritos por metropolitanos que, tendo passado algum tempo na África ou em outros espaços colonizados, produziram textos em que o olhar etnográfico ressaltava a alteridade e onde a descrição dos costumes e do ambiente em que viviam as diferentes “tribos” africanas podia até mesmo representar um interesse verdadeiro pelo país e pela gente, ultrapassando o mero pincelar da cor local. Sempre, porém, um olhar de fora, onde se mesclavam o fascínio e o repúdio, camuflado às vezes em piedade ou paternalismo. Apesar de séculos de presença na África, na metrópole prevalecia um grande descaso e mesmo desinteresse da população portuguesa pelas colônias, não existindo quase obras literárias que tematizassem a vida em “ultramar”. Essa lacuna levou as autoridades competentes a instituírem um concurso literário, pois 118 um dos melhores meios para despertar o espírito dos portugueses é, sem dúvida, a literatura – o romance de assuntos coloniais, a descrição de aventuras de além-mar, a novela, o conto, etc. Por isso, a Agência Geral das Colónias, que não se poupa a quaisquer esforços na propaganda de Portugal ultramarino, tomou a iniciativa dum concurso de Literatura Colonial (POLLACK, 1995, p. 756). Foi a partir dessa motivação imediatista que surgiram obras de maior ou menor qualidade e aqui só interessa destacar as que tiveram a Guiné-Bissau como palco: entre outras Mariazinha em África (1925) e mais tarde O veneno do sol (1928), ambos de Fernanda de Castro; Auá, de Fausto Duarte (primeiro prêmio em 1934); África: da vida e do amor na selva, de João Augusto da Silva (também primeiro prêmio, em 1936). Os prêmios eram uma soma em Escudos, bastante elevada, verdadeiro incentivo para os escritores. Por volta de 1952, torna-se usual a denominação literatura ultramarina e os prêmios, do ponto de vista financeiro ainda mais convidativos, são diferenciados por categoria – poesia, ensaio, novelística e história126. O escritor mais conhecido desse período é o cabo-verdiano Fausto Duarte (1903-1953)127 que escreveu, entre outros, o romance Auá. Novela negra (1934), um “documentário etnográfico” e “também um novo capítulo da psicologia indígena”, segundo suas próprias palavras (ib., p. 31). O autor esforça-se em “apresentar o africano e a sua cultura sob uma luz favorável”, diz Russell HAMILTON (1984, p. 217), embora esteja “patente o conflito entre as culturas africana e europeia” (ROSA, 1993, p. 162). Nesse romance, a trama se desenrola em torno de Malan, jovem fula (etnia islâmica) que viveu na capital e que volta, bastante aculturado, à aldeia natal para desposar Auá, sua prometida segundo os costumes tradicionais. O contraste entre a vida urbana e a rural se mostra em muitas passagens, servindo de ocasião para o louvor à civilização. Considero bastante sintomáticas as referências estereotipadas e reducionistas de Fausto Duarte às diferentes etnias e passo a dar alguns exemplos. Referindo-se a Malan, que foi “servir mais tarde como criado do Administrador de Bissau”, o autor assim o descreve: Inteligente e dócil, servia à mesa com aprumo e fidalguia característicos da raça e altivez da religião. [...] Amoldara-se, sem se adaptar inteiramente à civilização europeia, porque a sua crença islâmica, definida e espiritualista, fôra sempre uma barreira insuperável ao domínio dos brancos, que usavam coisas proibidas pelo Alcorão. A-pesar-disso, Malan era um criado exemplar que adivinhava os menores pensamentos do amo, orgulhoso por servir a maior autoridade de Bissau. [...] Tinha apenas um desgosto: não sabia ler, se bem que vagamente conhecesse os caracteres árabes. Porém, as garatujas que enchiam os papéis timbrados do Govêrno não as compreendia, a-pesar-dos esforços que fizera adquirindo muito em segredo uma cartilha maternal por onde começara a aprender (DUARTE, 1934, p. 11-12). 126 Boletim da Agência Geral das Colónias, nº 7, jan. 1926, p. 9, (apud POLLACK, 1995, p. 756), de onde coligi as informações a respeito. 127 Fausto Duarte escreveu vários romances tendo como cenário a Guiné, onde viveu muitos anos como funcionário da administração colonial. É considerado o mais importante representante da literatura de temática guineense. Sobre o assunto, cf. entre outros ROSA (1993, p. 162-165); AMADO (1990); GOMES; CAVACAS (1997 a, b). 119 Sobre os Balanta que, segundo sua descrição, eram sempre alegres e sorridentes, Fausto Duarte ressaltou “a expressão das suas feições incorrectas, onde a fiada regular dos dentes brancos punha uma nota de satisfação inconsciente, dir-se-ia insensível ao calor que os causticava” (ib., p. 3). Em relação aos Nalu, descreveu um “rito fúnebre – cerimônia singular duma tribu bárbara”, “impressionante”, com “um bailado macabro, sobrevivência dum culto pagão”, com “mulheres dançando freneticamente ao som dos tambores”, “bailado sinistro de mulheres habitando um continente povoado de tradições quasi inverossímeis!”, cena que fez os dois Fula, Malam e seu pai, concluirem que “os nalus eram ainda selvagens” (ib., p. 153-154). Sobre as mulheres das diferentes etnias, as descrições são sempre rápidas e estereotipadas. As mulheres mandjacas, por exemplo, “provocantes nos seus trajos bizarros, que ocultavam a cabeça encarapinhada com lenços de seda multicores. Tinham atitudes duvidosas. Olhavam os homens meneando expressivamente o corpo ondulante. Eram as horizontais de Bissau” que vendiam aos “brancos por bom preço as hipotéticas primícias duma requintada sensualidade” (ib., p. 165). Edward Said afirma não acreditar que os escritores fossem “mecanicamente determinados pela ideologia, pela classe ou pela história econômica, mas [...] profundamente ligados à história de suas sociedades, moldando e moldados por essa história e suas experiências sociais em diferentes graus” (SAID, 1999, p. 23). Considero essa reflexão sumamente importante para nortear a leitura desses romances produzidos sob o “olhar etnográfico” de seus autores. O discurso colonial128, do qual a literatura colonial é um dos porta-vozes, como aparato do poder, afirma Homi Bhabha, procura legitimação para suas “estratégias pela produção de conhecimentos tanto do colonizador quanto do colonizado que se apresentam como estereotipados mas antiteticamente avaliados” (BHABHA, 1992, p. 184), como é possível constatar nos exemplos acima apresentados. O estereótipo é um modo de representação incompleto e fetichista em meio ao próprio campo da identificação: circula dentro do discurso colonial como uma forma limitada da alteridade, como uma forma fixa da diferença (ib.,p. 196). Tem-se, de um lado, os auto-louvores, as afirmações de responsabilidade, um claro triunfalismo; e do outro lado da polarização, o primitivismo, a força bruta, a animalidade, o servilismo, a inferiorização a todo custo. Fausto Duarte expressa a opinião corrente entre seus iguais: “Uma coisa porém era certa: com a presença dos brancos tinha melhorado a vida dos indígenas no seu aspecto social” 128 “O termo ‘discurso’ refere-se a uma série de afirmações, em qualquer domínio, que fornece uma linguagem para se poder falar sobre um assunto e uma forma de produzir um tipo particular de conhecimento. O termo refere-se tanto à produção de conhecimento através da linguagem e da representação, quanto ao modo como o conhecimento é institucionalizado, modelando práticas sociais e pondo novas práticas em funcionamento”, assim se expressou Stuart Hall e é como tal que estou empregando o termo durante este trabalho. Cf. HALL (disponível em: http://www.educacaoonline.pro.br/art_a_centralidade_da_cultura.asp.). http://www.educacaoonline.pro.br/art_a_centralidade_da_cultura.asp.). 120 (DUARTE, 1945, p. 51). Os autores dessa assim chamada literatura colonial são quase sempre funcionários da administração portuguesa, ou militares ou missionários, todos marcados logicamente pela convicção da missão civilizatória do branco, como é possível verificar em muitas passagens do romance O negro sem alma, de Fausto Duarte, por exemplo, quando o narrador onisciente faz conhecer os pensamentos de Henrique, o chefe do posto, o “bom tubabo129, a quem todos os negros estimavam” (DUARTE, 1935, p. 176): A África era ainda um mundo a explorar, dizia Henrique para consigo. A-pesar-de tudo, quantas proezas, quantos esforços dos portugueses de antanho, atestavam tôdas essas clareiras, todos êsses pontos ignorados do mato, onde agora viviam numa perene tranqüilidade indígenas pacíficos voltados à gleba depois de inutilizadas as armas. Henrique sentia-se estimulado por um íntimo orgulho ao vê-los resignados, saüdando os europeus respeitosamente porque ainda se encontravam bem impressas nas suas almas rudes e nos modos servis, a energia e a coragem dos brancos, agora senhores do mato (ib., p. 176-177)130. Num outro livro do mesmo autor, A revolta (1945), sucedem-se os exemplos dessa imagem que se procura sempre de novo transmitir: a do chefe branco justo e magnânimo, superiormente dedicado a estabelecer a paz entre os indígenas que barbaramente guerreavam entre si: Ele bem sabia qual a extensão que poderia adquirir a revolta do ambicioso fula, as suas conseqüências entre a população vencida quer dum ou doutro lado, sujeita à crueldade do vencedor, aos rancores entre famílias desejosas de um sucesso dêsse gênero para se desagravarem. Culturas queimadas, aldeias arrazadas, raptos de mulheres à mão armada e sangue de inocentes marcariam a passagem dos rebeldes ou o triunfo dos adversários. [...] Antes de ser empossado no cargo de comandante do Posto Militar de Geba, de quando em vez era declarado pelo Govêrno o estado de guerra nas regiões vizinhas, suspensas as garantias e proibido o comércio, por meio de bando. Tudo isso acabara com a sua presença. Os anos da dura escola que é o mato de África, a reflexão e o conhecimento directo dos costumes indígenas tinham-lhe dado a necessária experiência para agir com eqüidade, obrando com firmeza e prudência (DUARTE, 1945, p. 83-84). A obra de Fernanda de Castro (1900-1994) também conheceu grande repercussão. A estória infanto-juvenil Mariazinha em África, publicada pela primeira vez em 1925, teve mais de uma dezena de edições, apresentando alterações segundo a direção dos ventos políticos da “metrópole”. O longo poema África raiz (1966), tantas vezes citado e integrando manuais didáticos até mesmo na Guiné-Bissau, é um protótipo do eurocentrismo131, camuflado em arroubos maternalistas/paternalistas. A imagem da África é sempre acompanhada de epítetos 129 O termo tubabo refere-se ao branco de modo geral. É um termo da língua mandiga e significa o europeu (SCANTAMBURLO, 2002, p. 622). 130 A fixação obsessiva dos portugueses nas lembranças de façanhas marítimas e da colonização, forjando uma imagem irreal de si mesmos, foi comentada por Eduardo LOURENÇO em O labirinto da saudade (1999) de maneira bastante crítica e aberta, chamando de ficção uma tal idéia de grandeza. 131 Fernanda de Castro, portuguesa, viveu muitos anos na Guiné. Escreveu romances, sobretudo para a juventude, além de poesia. Cf. também ROSA (1993, p. 158-162) e AMADO, 1990. 121 negativos, fazendo sobressair o fascínio pela alteridade, ao mesmo tempo temida e atraente: África no teu corpo rugem feras, uivam fomes e medos ancestrais, na tua pele há dardos e punhais. [...] E a gente, a gente negra? [...] a gente é como nós, mais próxima, talvez, dos bichos e de Deus. De Deus pela inocência, pela alma, dos bichos pela carne, liberta do pecado da ideia do pecado. [...] Sua lei é o instinto, a força bruta. Alma não tem (CASTRO, ib., p. 9-14). Não me posso furtar a um paralelo com a literatura brasileira, lembrando o grande poeta afro-brasileiro João da Cruz e Sousa, unanimemente consagrado como o maior representante do simbolismo brasileiro132. Seu texto em prosa Emparedado, conservado inédito mesmo depois de sua morte, ocorrida em 1898, só foi divulgado com a publicação de suas obras completas (1961). Nesse texto, Cruz e Sousa refere-se à África acumulando todos os estereótipos negativos correntes no seu tempo (e não só): África, [...] tórrida e bárbara, devorada insaciavelmente pelo deserto, tumultuando de matas bravias, arrastada sangrando no lodo das civilizações despóticas [...]. A África laocoôntica, alma de trevas e de chamas [...]. Longínqua região desolada, criação dolorosa e sanguinolenta de Satãs rebelados [...], grotesca e triste, África, gigantescamente medonha, absurdamente ululante, pesadelo de sombras (SOUSA, 1961, p. 663). Longe de abraçar tal perspectiva, o poeta afro-brasileiro esmera-se, com essas metáforas violentas e depreciativas, em mostrar os preconceitos que o etnocentrismo europeu continuava a divulgar e a fortalecer, pondo a descoberto com isso o “emparedamento” a que estão condenados os descendentes dessa África “medonha” e por Deus castigada, esquecida e desprezada. Mesmo sem a exuberância hiperbólica do simbolista santa-catarinense, é fato que a presença colonial na África e no “Novo Mundo”, com a imposição de seus próprios valores taxados como superiores, contribuiu, de modo negativo e decisivo, para um latente e autocorrosivo complexo de inferioridade, empurrando os colonizados ao mimetismo e ao esvaziamento de seus bens culturais. Até hoje, o sentimento de desqualificação, de inoperança, de falta de confiança em si mesmo e nos seus conterrâneos, efeitos maléficos do colonialismo, não foram ainda completamente suplantados. 132 João da Cruz e Sousa (1861-1898) deixou entre outras obras Missal, poemas em prosa (1893), Broquéis, poesias (1884), Evocações, poemas em prosa (1898), publicação póstuma, onde se encontra Emparedado (p. 646-664, da edição da Obra completa, ed. Aguilar, 1961). 122 4.2 A máquina de fazer o outro133 O discurso colonial tende a “construir” o colonizado, munindo-o de artefatos negativos baseados em preconceitos raciais que têm como finalidade justificar a conquista e a ocupação e estabelecer sistemas administrativos e culturais em seu próprio benefício (BHABHA, 1992, p. 184). Foi o contexto da expansão imperialista e do colonialismo, com sua intrincada rede de interesses, que incitou os invasores europeus a identificarem os africanos (e os habitantes das Américas igualmente) como adversários que precisam ser subjugados e a englobá-los “nessa apelação unificadora e redutora” (GRUZINSKI, apud ABDALA JR., 2003). Para submeter o colonizado foi necessário quebrar-lhe a vontade, “coisificá-lo”, surrupiar-lhe a língua, ascrenças, as tradições, engabelá-lo com mistificações e roubar-lhe a capacidade de escolha própria. Desprestigiar, desconsiderar a cultura autóctone em detrimento da cultura imposta, embriagando o colonizado com o elixir da civilização, foi uma estratégia recorrente e eficiente. Na literatura guineense, muitos textos aludem ao fascínio que a “civilização” despertava nos africanos do meio rural, mas também na capital, provocando admiração e cobiça pelos bens de consumo inimagináveis para aquelas sociedades. Ndani, a protagonista do romance A última tragédia, de Abdulai SILA (1995)134, enumera algumas das comodidades trazidas pelo colonizador, expressando sua satisfação por ter acesso aos benefícios da moderna sociedade “dos brancos”. Referindo-se ao djambakus135 de sua aldeia que tinha vaticinado que ela não poderia nunca ser feliz, Ndani aponta algumas das diferenças entre a vida da tabanca que ele levava e a sua vida na cidade: Ele devia ver o que é dormir numa cama de molas e comparar a diferença com um colchão de palha com troncos no meio; ele devia saber o que é dormir num quarto sem mosquitos a chatear e com ventoinha a soprar fresco toda a noite e comparar isso com o martírio de dormir com galinha e cachorro ao lado e dabi no colchão; ele devia experimentar para depois explicar às mulheres dele a diferença entre sentar-se de manhã a uma mesa e tomar calmamente o mata-bicho e o acordar com o segundo galo e começar a pilar arroz, ainda por cima com filho às costas; ele devia ver como é que com 133 Expressão cunhada por Michael HARDT em L’hybridité de l’Empire, 1995/2003. Cf. bibliografia final. 134 Abdulai Sila destaca-se na literatura nacional como o pioneiro do romance guineense. Inaugurou suas atividades de prosador com Eterna paixão (1994), a que se seguiram A última tragédia (1995) e Mistida (1997), todos publicados pela Ku Si Mon Editora, a primeira editora privada do país e da qual ele é um dos três proprietários. Nasceu em Catió, em 1º de abril de 1958, é engenheiro eletrotécnico, tendo feito sua formação em Dresden, na Alemanha (1979-1985). Em Bissau, foi um dos que constituíram o pequeno núcleo de intelectuais fundadores do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, o INEP. É também co-fundador de um centro de computação (SITEC, 1987), o primeiro do país, e da empresa EGUITEL, desempenhando um papel pioneiro na telecomunicação do país e contribuindo com cursos de computação para a formação técnica da juventude guineense. Sila continua fazendo cursos de especialização nessa área em diversos centros nos Estados Unidos. No capítulo 7 vou tratar com mais pormenores dos três romances de Abdulai Sila. Agradeço ao autor as explicações e esclarecimentos que muito me ajudaram na leitura de sua obra. 135 Indivíduo das comunidades animistas com o dom de prever o futuro e fazer vaticínios, dominando fórmulas encantatórias. É o curandeiro ou a curandeira, ou adivinho, vidente com capacidades paranormais, o xamã de certas etnias. 123 um simples truque de torcer uma torneira, só com dois dedos, sem o menor esforço, se podia obter a quantidade de água que se quisesse e comparar depois esse esforço com a canseira das mulheres da tabanca de caminhar distâncias enormes com pote ou balde grande na cabeça; ele devia ver a quantidade de carne que o cão daquela casa comia todos os dias e comparar com a comida que os meninos tinham na tabanca [...]; ele devia ver tudo o que o homem branco tem e ver se encontrava uma forma de convencer o Yran a ajudar a encontrar coisas parecidas para o homem preto, em vez de estar só a anunciar desgraças e tragédias (SILA, 1995, p. 30)136. O “Professor”, protagonista do mesmo romance, educado pelos padres, foi o primeiro fruto da missão evangelizadora dos colonizadores, assumindo ele próprio o elã missionário que lhe foi inculcado (“ele respeitava a tradição, pelo menos enquanto não entrava em contradição com as suas convicções religiosas”; ib., p. 88), evoluindo depois para uma independência de pensamento e de ação, ousadia que lhe custou o degredo e a morte. Aqui, o autor apresenta, num primeiro momento, a figura do africano que se acultura e incorpora os valores do colonizador, transformando-se num “bom cristão” e conseqüentemente, abandonando suas próprias tradições. Mas que se distancia da postura de benevolente protecionismo própria do agente civilizador. A população estranhou que ele não ficasse amigo do Chefe, isto é, o administrador do posto, já que eram “duas pessoas com escola”, portanto, “com pensamento parecido” (ib., p. 85). O Professor deveria ter interesse nessa amizade, para poder “mostrar aos outros que ele não era um indígena, mas sim um assimilado e talvez até um civilizado” (ib.). Agente propagador dos novos tempos, caracterizado pelo autor como um homem digno e altivo, o Professor, em contacto com o povo da aldeia, bem depressa ultrapassou a estreiteza do pensamento discriminatório dos missionários, reconhecendo os valores tradicionais. Seu ideal como mestre não era transmitir aos alunos a cultura do branco, mas sobretudo instrumentá-los para enfrentar as mudanças da modernização que não podiam ser mais evitadas. O administrador não está muito em evidência na trama narrativa, mas seu vulto, como o prolongamento da mão autoritária da metrópole, lança sombras e ameaças. O outro lado da medalha é o régulo, o grande régulo de Quinhamel137, exemplo da resistência dos Pepel – e não só – contra o jugo colonial opressor: Se um dia os brancos forem embora, não devia mais haver nem polícia, nem cipaio, nem nada parecido. [...] O branco não vai nunca? Aí é que está o problema do preto, não quer pensar como é que o branco veio, por isso não sabe que um dia tem que ir. [...] O branco veio, tem que ir um dia. Ainda há-de aparecer um preto com coragem para pensar nisso (ib., p. 81-82). 136 Alguns enunciados talvez não sejam muito conhecidos: dabi significa percevejo; mata-bicho é a primeira refeição do dia, nosso café da manhã; tabanca é a aldeia; Yran (escreve-se geralmente iran ou irã) é o espírito ou a divindade protetora. Para maiores esclarecimentos sobre os irans, cf. o capítulo 2.6. 137 Pequena localidade a oeste de Bissau. 124 Abdulai Sila traça o perfil do africano mentalmente emancipado, seguro de si, que recusa a coisificação. Consciente de sua responsabilidade como chefe da comunidade nativa, dirige com sabedoria sua gente e reconhece que muitos males provocados pelo colonizador poderiam ser minimizados se o povo tomasse consciência da própria força e capacidade: No fundo, este é que era o problema do preto: tem medo de fazer mal ao branco, enquanto que o branco faz mal ao preto todos os dias que o sol nasce [...]. O branco está a dominar o preto é só porque não há ninguém a pensar. Ninguém diz isto está bom, aquilo está mal e depois procura pensar porquê. Tudo o que o branco faz é porque está bom. O branco é que estava a pensar no lugar do preto. Mas branco é homem como qualquer outro homem! (ib., p. 64). Com uma visão ampla e independente, o régulo de Quinhamel respeita por um lado as tradições, consultando o djambakus e cumprindo as cerimônias rituais, mas implementa novidades, não receando assumir outras posturas que não as ditadas pelos “usos e costumes”. Uma de suas transgressões foi nomear conselheiros para o ajudarem nas decisões importantes para a comunidade. Apesar de analfabeto, utiliza-se da palavra escrita para fixar para as gerações vindouras seus pensamentos e princípios. É através do testamento do Régulo, ditado ao jovem Professor, que Abdulai Sila faz transparecer sua mensagem política. As idéias do Régulo Bsum Nanki, bastante contundentes, são expostas de forma pitoresca e testemunham, na sua aparente simplicidade, independência e orgulho, auto-confiança e destemor: Duas cabeças valem mais que uma cabeça só. [...] apesar disso ser uma coisa evidente, muitas pessoas se esquecem. Então vivemsem saber [...] que têm que a usar. [...] Um régulo tem que ter conselheiro [...]. Quando uma pessoa manda numa terra tem que ter bons conselheiros, não precisa de ter polícias. Uma pessoa não pode mandar na base da força, força da polícia ou da tropa. [...] Porque quem toma um couro à força, ou pensa que pode ficar com ele à força, sempre perde o couro à força138 (ib., p. 92-95). O régulo é a antítese da imagem do colonizado dependente e incapaz, contrariando o discurso colonial que asfixia o africano dentro dos limites rígidos do estereótipo, reflexo da arrogância do dominador que tantas vezes promoveu o silenciamento das culturas nativas pelas mais diversas estratégias. A sua anulação leva à desorientação, à internalização do sentimento de inferioridade e a uma assimilação acrítica e passiva do modelo imposto, ocorrendo uma “epidermização”, para usar uma expressão de Frantz FANON (1952, p. 10). O olhar eurocentrado sempre prevaleceu, num juízo de valores dicotomizado, em pares hierárquicos onde o conhecido, o familiar, o “mesmo” era privilegiado em detrimento da cultura local, qualificada pela ótica do negativo, da barbárie, da carência e da falta, como ficou patente nas passagens dos romances de Fausto Duarte, acima referidos. 138 O termo crioulo couro significa uma boa posição ou cargo. 125 Nos meios urbanos, onde o contacto entre brancos e negros era constante, os segundos quase que sem exceção no papel subalterno e dependentes dos primeiros, a única via possível para alcançar um mínimo de ascensão social e de respeitabilidade era a via da assimilação, e eram muitos os que ansiavam pelo carimbo de “aculturado” (em oposição ao “indígena”), pelo frágil prestígio de ser, pelo menos “um bocadinho português”, como uma estória bem humorada de Carlos Lopes tão bem ilustra. Sociólogo e economista do desenvolvimento, Carlos Lopes139 é autor de muitas obras e ensaios sobre temas sociológicos, históricos e políticos, sendo também um ficcionista de grande talento; escreve crônicas e pequenos estórias que por muito tempo eram publicadas regularmente no jornal português Público. Alguns desses escritos estão reunidos no livro Corte geral (1997), onde o escritor retém, com fina ironia, saborosos traços da vida cotidiana guineense, tanto da capital como do interior, tanto episódios passados na época colonial da sua infância como no momento presente. Em “O sipaio Mendes”, Carlos Lopes reporta-se aos tempos da ocupação portuguesa e ridiculariza gostosamente essa inconsciente ou ingênua imitação colonial de que fala BHABHA (1998, p. 131). O sipaio Mendes140 viu sua autoridade de capitão do mato ameaçada durante um pequeno incidente com o motorista de um caminhão-cisterna que parou indevidamente na rua em frente da praça do mercado, enlameando a rua e sujando os passantes. Diante da pergunta “Você não sabe que não pode parar?”, o motorista, indignado, mostrou ao representante da lei que não aceitava a arrogância por parte de um outro africano, não lhe reconhecendo a autoridade –“pensar que és português, ou quê?” (LOPES, 1997, p. 16) – verbalizando o que muitos tinham vontade de lançar-lhe ao rosto mas não se atreviam. A estória se desenrola em muitas peripécias até que, dando-se novamente a ocasião dos dois se confrontarem, o motorista dessa vez seguiu seu caminho, sem parar, isto é, sem desobedecer, não ousando provocar novamente o sipaio, o qual concluiu muito satisfeito: “Afinal, sempre sou um bocadinho português!” (ib., p. 19). Para o bom funcionamento do aparato colonial, era necessária a constituição de uma mínima camada que fizesse a ponte entre os dois mundos. A cooptação das elites 139 Carlos Lopes nasceu em Canchungo em 1960. Doutorou-se em Estudos Africanos pela Universidade de Paris I e tem ainda graus acadêmicos em Sociologia, História e Planificação Estratégica. Aos 24 anos foi o primeiro diretor do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP) e um dos seus fundadores. Exerceu atividades acadêmicas em várias universidades, como em Zurique, Uppsala, México, Coimbra. Publicou uma vintena de livros e dezenas de artigos no âmbito das ciências políticas e sociais (cf. bibliografia final). Desde 1988 integra o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD/UNDP), tendo ali ingressado como economista do desenvolvimento. Ocupou muitos postos de direção, entre eles o de Residente e Coordenador das Nações Unidas em Harare (Zimbábue). De 2003 a 2005 foi o Representante Residente e Coordenador das Nações Unidas no Brasil. Deixou o Brasil para exercer o cargo de diretor político da Secretaria Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque. Apesar de ter escrito sempre crônicas em vários periódicos, sobretudo no Público, de Lisboa, apenas em 1997 reuniu-as em parte no livro Corte Geral. 140 Às vezes escreve-se cipaio; é o policial africano a serviço da administração colonial. 126 tradicionais141 na administração colonial é vista como maneira de domesticar o instinto ambicioso dos nativos (BHABHA, 1992, p. 185). A formação de uma elite autóctone, muitas vezes mestiça, acenava com a “integração”, o que para os colonizados significava uma completa assimilação dos valores brancos, ocidentais, uma identificação com o invasor. Amílcar Cabral, o grande mentor intelectual, político e estratégico das lutas de libertação da antiga Guiné e do Cabo Verde, em uma das suas falas aos revolucionários142, assim se expressou, resumindo a situação desses assimilados que não queriam trocar as vantagens que tinham pelas incertezas das lutas libertárias: Entre os grupos a que podemos chamar pequeno-burgueses, gente com uma vida certa, seja descendentes de guineenses ou de cabo-verdianos, aparecem sempre três grupos de pessoas. Um grupo pequenino, mas forte, que é a favor dos colonialistas, que nem mesmo querem ouvir falar disso, da luta contra os tugas. Daquelas pessoas que foram a minha casa em Pessubé, como gente grande, bem empregada, comendo bem, bebendo bem, que vai a férias, etc., sentaram-se e disseram: “Bom, queremos conversar contigo. Tu, filho do fulano de tal, nós conhecemos-te bem, estás-te a meter em problemas, estás a estragar a tua carreira de engenheiro, nós queremos aconselhar-te, porque nós não temos nada que fazer contra os tugas, nós todos somos portugueses”. Para esses não há remédio (CABRAL, A.)143. A escola era um dos meios mais eficazes para uma certa ascenção social. Somente aquele que era alfabetizado e comprovava possuir costumes “civilizados” tinha a prerrogativa de adquirir o status de aculturado144. Carlos Lopes, numa de suas estórias, escrita na primeira pessoa, faz a voz narradora relembrar os tempos da infância, quando os filhos dos “assimilados” freqüentavam a melhor escola de Bissau: Na Escola Primária Dr. Oliveira Salazar só andavam filhos de gente fina de Bissau. [...] De manhãzinha, mal se chegava, fazia-se uma formatura e cantava-se o hino da Mocidade Portuguesa. [...] Havia um dia na semana em que tínhamos de ir para a formatura com a nossa farda da Mocidade. [...] A compra do fardamento era um acto muito importante. [...] O “S” de Salazar [...] ornava a fivela. O “S” do cinto e o emblema das quinas na camisola é que davam pinta àquilo tudo. [...] Só falávamos em “kriol” no recreio das dez e meia. Os da metrópole faziam queixinhas de nós falarmos 141 O conceito de elite contém a idéia de concentração do poder nas mãos de um grupo de pessoas que formam uma oligarquia que toma a si uma série de tarefas decisivas, sendo constituída pelos indivíduos que ocupam a mais elevada posição na escala social (cf. CARDOSO, 2001, p. 232). Esse autor guineense tem trabalhado sobre as elites e sua inserção na política da Guiné-Bissau, com vários ensaios sobre o assunto. Cf. bibliografia final. 142 Para uma biografia (entre muitas) de Amílcar Cabral, cf. CHABAL, 1983; sobre seu assassinato, ainda envolto em mistério, cf. CASTANHEDA, 1995; sobre sua (pequena)obra poética, cf. entre outros, artigo de CHABAL, 1985; ou AUGEL, 1998a (p. 139-145). 143 Cf. CABRAL, A. “Unidade e luta”. Esse discurso está disponível, como as demais citações deste subcapítulo, no site sobre a Guiné Bissau, mantido por Fernando Casimiro (Didinho): http://didinho.no.sapo.pt, e que visitei pela última vez em julho de 2005. A fonte parece ser os arquivos da Fundação Mário Soares em Lisboa e os da Fundação Amílcar Cabral, na cidade de Praia, Cabo Verde. 144 Mais uma vez cito de Amílcar Cabral um breve texto sobre o assunto: “Na Guiné, 99% da população não podia ir à escola. A escola era só para os assimilados, ou filhos dos assimilados, vocês conhecem a história toda, não vou contá-la outra vez. Mas é uma desgraça que o tuga causou na nossa terra, não deixar os nossos filhos avançarem, aprender, entender a realidade da nossa vida, da nossa terra, da nossa sociedade, entender a realidade da África, do mundo de hoje. Isso é um obstáculo grande, uma dificuldade enorme para o desenvolvimento da nossa luta” (CABRAL, A.; disponível no mesmo site acima indicado). http://didinho.no.sapo.pt, 127 “kriol” nos recreios. Era proibidíssimo falar “kriol” e isso só aumentava o interesse em fazê-lo. Quem não arrisca não petisca. E daí que o “kriol” passasse a ser linha de demarcação (LOPES, ib., p. 21-22). No mesmo teor, uma outra estória lembra o reduzido número de africanos que tinha o privilégio de participar da restrita e seleta elite local: Terminei a comunhão solene em tempo recorde, quem sabe se com uma ajudinha do padre Cruz, e também fui escolhido para entrar numa peça de Gil Vicente antes de completar dez anos. Até o governador da província foi assistir a essa efeméride, se calhar a primeira que proeminentemente exibia um mulato no papel de nobre da corte (ib., p. 35-36). Ainda Carlos Lopes, no seu conto “Fazi sapo”, traça a figura do jovem filho de um rico comerciante local que “nunca duvidou que chegaria onde chegou porque era filho de quem era” (LOPES, ib., p. 147). A descrição do jovem calha muito bem como exemplo do que acabamos de comentar: Tinha um bom carro, que comprara há pouco tempo, um BMW último grito, que não aguentaria muito nas ruas de Bissau cheias de buracos, mas isso nem entrava em linha de conta. [...] Vestia roupas da moda, sapatos de Lisboa, e até tinha introduzido um accessório, raro: uns suspensórios que não serviam para agarrar as calças, já que tinha engordado um pouco, mas eram óptimos para dar estilo (ib.). Como no tempo do colonialismo, o comportamento eurocentrado, que sempre prevaleceu, foi sendo assumido pelos nativos, acriticamente, num juízo de valores em dicotomias hierárquicas, numa tentativa infrutífera de igualar-se ao usurpador. Trago mais um exemplo tirado de uma fala de Amílcar Cabral, onde ele procura fazer uma categorização, de forma bastante didática e simples, pois estava falando sobretudo para iletrados, dos diversos tipos de guineenses que aderiam aos independentistas: Uma grande maioria de pequeno-burgueses [...] está indecisa [...]. Quem mais sofre com os tugas são essa gente da cidade, todos os dias os tugas estão em cima deles, a aborrecê-los. [...] É gente que sofre directamente com o colonialismo todos os dias, enquanto, por exemplo, o homem que vive no mato, lá no fundo do Oio, ou no Foreá, por vezes morre sem ter visto um branco. Enquanto que quem vive na cidade vê brancos todos os dias. Continuando, esse é um grupo de gente, grande grupo de pequeno-burgueses que têm o seu vencimento no fim do mês, e que o seu desejo de facto é que os tugas se vão embora, mas têm medo. [...] Perdemos a nossa geleira, o nosso dinheiro no fim do mês, o nosso rádio, o nosso sonho de ir a Portugal passar as férias. [...] E os nossos trabalhadores assalariados? [...] É que quando um homem que trabalha como pedreiro ganha dez, e um branco ganha 80$00, senão 800$00, ele sente uma exploração grande pela sua condição de vida. [...] Muitos rapazes que não têm emprego certo, sabendo ler e escrever, trabalhando um bocado ou outro, vivem muitas vezes à custa do tio que está na cidade, [...] tinham um contacto permanente com o colonialismo: jogadores de bola, um tanto entusiasmados com o tuga, mas sentiam também um bocado. [...] Essa gente veio para a luta muito rapidamente. E desempenharam um papel importante nesta luta, porque, por um lado, são da cidade e por outro lado estão muito ligados ao mato. [...] Gente que aprendeu na cidade como é bom ter coisas boas, mas que por causa da humilhação que sofre, sente que o tuga está a mais. E o Partido ajudou-os a aumentar a sua consciência disso (CABRAL, A.)145. 145 Citado de um discurso de Cabral, ”Unidade e luta”, disponível no site acima referido. 128 4.3 Os espaços do pós-colonial Frantz Fanon discorre longamente, no capítulo sobre a violência, em seu livro Les damnés de la terre (1961), sobre as complexas implicações da descolonização. Sem transição, “tudo passa a ser diferente, tem lugar uma substituição radical, completa, absoluta”, podendo-se considerar que uma tabula rasa define o início da descolonização (FANON, ib., p. 29). A necessidade dessa mudança existia, em estado latente, impetuoso e impulsionador, na consciência e na vida dos homens e das mulheres colonizados (ib.). Não se trata de um passe de mágica, é um processo que parte da “desordem absoluta” depois da última “confrontação entre duas forças congenitamente antagônicas” (ib., p. 30). Na Guiné-Bissau, não se pode, entretanto, falar de tabula rasa. A substituição não foi absoluta, faltaram sobretudo quadros qualificados para ocuparem os postos de direção, em todos os setores, e isso provocou, de fato, um grande transtorno. Mas as estruturas da governança continuaram em parte as mesmas. A ausência de pessoas qualificadas foi, e ainda é, um dos grandes problemas do país. Fosse pela precariedade de meios, fosse pela inércia, ou ainda por um certo comodismo que é também sinônimo de uma postura pouco politizada, até bem pouco tempo as estampilhas para os documentos oficiais ainda eram as da época colonial. Pouco mais de trinta anos não se mostraram ainda suficientes para que, depois da descolonização, o país enfrentasse os tempos pós-coloniais de forma realmente soberana e independente. No campo da literatura, o discurso pós-colonial tem muitas faces, refletidas na tensão entre representações das culturas nativas e suas sobrevivências e representações da cultura imposta pelo dominador e que hoje em dia, antropofagicamente, faz parte integrante da guineidade146. O vasto debate sobre o pós-colonialismo tem provocado muitas vezes confusão e misturas. Devido às múltiplas perspectivas segundo as quais se enfoca o pós-colonial ou a pós- colonialidade, tornam-se necessárias uma análise e uma rearticulação do termo, muitas vezes utilizado indiscriminadamente tanto para designar uma fase (ou uma situação) sócio-histórica ligada à expansão colonial e à descolonização, quanto para referir-se a práticas teóricas e acadêmicas nada uniformes. SCHULZE-ENGLER (2003, p. 181 e ss.), anglista e africanista alemão, com obras publicadas na perspectiva comparatística, sobretudo sobre o pós-colonial e a modernidade não européia, arrola, para fins de simplificação, mas também para uma maior clareza quanto à conceituação, cinco diferentes concepções (ou variantes, como ele chama) do conceito “pós- 146 A generalização é sempre perigosa. Mas, mesmo se em muitas áreas isoladas do mundo rural a ocidentalização não se mostra tão presente (ou quase nada), seus reflexos se fazem sentir. “A fronteira entre o urbano e o rural, num país como o meu, é sentida dentro das pessoas: não há ninguém completamente urbano ou completamente rural”, disse Mia Couto numa entrevista (CHAVES, 1998). Na Guiné-Bissau, creio, é semelhante. 129 colonial”. Para ele, o “pós-colonial” pode ser tratado como uma teoria (variante 1), como uma denominação geográfica(variante 2), como um termo político (variante 3), como uma nova disciplina científica (variante 4) e, finalmente, como um termo pragmático, um simples adjetivo (variante 5). Explicitando melhor, o termo “pós-colonial” se refere, como teoria, na primeira variante, a uma direção teórica específica que se caracteriza, sobretudo, por tratar de diferentes conceitos teóricos pós-modernos e pós-estruturalistas para literaturas, culturas e sociedades nas regiões que foram colonizadas – mas também para as culturas das “diásporas” ou culturas de migrantes nos antigos centros coloniais. O adjetivo “pós-colonial” aparece, normalmente, em combinação com enunciados como “teoria pós-colonial” e tem suas bases nas obras de três grandes pensadores contemporâneos: Edward Said, Homi Bhabha e Gayatri Spivak. Aqui, é essa variante que interessa à nossa perspectiva, mais estreitamente ligada à teoria literária, tal como é apresentada na obra pioneira The Empire Writes Back, publicada em 1989, de Bill Ashcroft, Gareth Griffiths e Helen Tiffin. “Pós-colonial” marca, com isso, uma direção teórica específica que encontrou grande aceitação justamente na teoria e crítica literárias e nas ciências da cultura, estando no mesmo nível de categorias como teoria ou crítica literária marxista ou feminista ou ainda pós- estruturalista. Enquanto na primeira variante o termo é definido na sua essência teórica, a segunda variante tem a ver banalmente com o aspecto espacial, isto é, com certas regiões geográficas. O termo aparece, por exemplo, em combinações como “literatura pós-colonial”, “sociedades pós- coloniais”, “culturas pós-coloniais”, e mesmo “mundo pós-colonial”, referente aos países saídos da situação colonial. Nesses contextos, “pós-colonial” se refere ao “mundo real” e não a certas direções teóricas e com esse significado substitui categorias como “Commonwealth” ou “Terceiro Mundo”. Apesar de os termos pós-colonial (1) e (2) não serem de forma alguma associáveis, ou seja, como categorias não se pode estabelecer uma correspondência entre uma e outra, no uso comum elas são vulgarmente confundidas entre si. Uma terceira variante tem a ver com um determinado comportamento político e ideológico. “Pós-colonial”, nesse sentido, é aplicado para marcar um largo espectro de correntes anticoloniais, nacionalistas, anti-imperialistas e anti-capitalistas que estão em maior ou menor escala ligadas à idéia básica de “libertação do Terceiro Mundo”. Como os protagonistas de diferentes movimentos políticos e sociais nos países da África, Ásia e América Latina, afirma Schulze-Engler, não se tenham mostrado até agora inclinados a se definirem a si mesmos como “pós-coloniais”, o termo (na acepção 3) continua sendo um constructo acadêmico, também mesmo quando, ocasionalmente, se tenta definir o “pós-colonial” como uma forma de ativismo político. 130 Continuando a classificação de Schulze-Engler, a variante número 4 refere-se a uma nova disciplina científica e é usada, por exemplo, na designação “postcolonial studies”, “estudos pós- colonais”. “Pós-colonial” designa, assim, uma área acadêmica de estudos interdisciplinares cujo núcleo se situa nos estudos de teoria literária e da ciência das culturas e que se ocupam tanto com as sociedades e as culturas das regiões geopolíticas e dos países ex-colônias – no sentido da variante 2 – como com as incontáveis teorias pós-coloniais no sentido da variante 1. Como essa nova disciplina ainda se está estruturando, uma grande parte dos estudos de temas “pós- coloniais”, tanto na pesquisa como no ensino, está ancorada em disciplinas já consagradas e reconhecidas. Nos últimos anos, diz o autor, cursos de “postcolonial studies” se vêm estabelecendo em diversas universidades européias e americanas (e, acrescento eu, também brasileiras e latino-americanas). A última variante (5), sempre seguindo a classificação de Schulze-Engler, é compreendida como o termo tem sido vulgarmente utilizado na linguagem cotidiana comum, um adjetivo com um sentido meramente pragmático, empregado quando se trata dos assim chamados países, literaturas e culturas “pós-coloniais”, ou quando há referência a alguma teoria pós- colonial. Fala-se tanto de escritores ou críticos que são originários de países “pós-coloniais” ou que estão de algum modo a eles relacionados, como de perspectivas políticas mais ou menos radicais relativas ao “Terceiro Mundo”. As literaturas chamadas de “pós-coloniais” são, em geral, caracterizadas pela sua relação ambígua com a literatura do país europeu colonizador, oscilando entre o mimetismo e o repúdio. Assim terá de fato acontecido nos primeiros tempos pós-independência. A literatura não escapou do amplo espectro de questionamentos e ajustes de contas com a antiga metrópole. Entre, de um lado, a rejeição e a negação e, do outro, a continuidade das relações historicamente constituídas, uma necessária catarse se realizou (e se vem realizando) em quase todos os países que se encontram a escanteio do centro hegemônico na era da globalização. A descolonização é sempre um longo processo e não apenas um ato político e pontual. Não é possível, simplificadamente, e muito menos generalizadamente, falar-se de “pós- colonização”, sem situar espácio-temporalmente essas referências. A catarse acontece, está acontecendo, mas também os países africanos se estão confrontando com novas formas de dependência e de influências. Os analistas não africanos nem sempre estão atentos à complexidade de atitudes, momentos, transformações, regressões, reações que envolvem a descolonização, tendo herdado um par de antolhos conceituais (a expressão é de APPIAH, 1997, p. 22), fruto do etnocentrismo. E muitos autores, sobretudo africanos, ocupam-se em rever o olhar eurocentrado, etnográfico, sobre a África, tendo em vista o que vem acontecendo, no plano político e sócio-econômico, desde bem antes da virada do milênio, na maior parte dos países 131 daquele continente. Niyi Osundare, autor nigeriano, poeta e crítico literário, resume assim suas críticas: The tag “postcolonial” is more useful for those who invented it than for those who are supposed to wear it, its passive signifies [...] a project which sounds “post-colonialist” in intent may turn out to be “neo-colonialist”, even “re-colonialist” in practice147. SCHULZE-ENGLER (2003, p. 188), na mesma linha, escudado inclusive em outros analistas, mostra que as literaturas africanas contemporâneas têm hoje outras preocupações e outras motivações que não a de se confrontarem com as ex-metrópoles, não lhes interessando mais tanto uma acareação com a história colonial européia. Insistir na mesma tecla seria bagatelizar outras formas de exploração política, continua o autor, como a má governação, a corrupção ou ainda os genocídios, ou a violência do Estado em relação aos ‘inimigos internos’. Tudo isso tem hoje em dia uma grande importância para os africanos posicionados criticamente, constituindo um tema recorrente em escritores de todo o continente. Esses aspectos têm sido teoricamente também discutidos por muitos cientistas sociais africanos e não só. Quanto à Guiné-Bissau, veremos nos próximos capítulos deste trabalho exemplos da nova literatura que se está fazendo desde a segunda metade dos anos noventa e que segue essa postura de autocrítica. Nessas obras, o foco de interesse se desloca justamente para uma nova reterritorialização desconstrutiva do status quo e se empenha em ultrapassar ou contestar o discurso hegemônico vigente, ensaiando uma nova narração da nação. No artigo “La razón postcolonial. Herencias coloniales y teorías postcoloniales”, Walter Mignolo também problematiza os muitos usos do termo “pós-colonial”, lembrando ser “uma expressão ambígua, algumas vezes perigosa, outras vezes confusa, e geralmente limitada e empregada de forma inconsciente (MIGNOLO, 1996, p. 8). Ressaltando que existe umadiferença entre, por um lado, as situações pós-coloniais e, do outro, os discursos e as teorias pós- coloniais (ib., p. 13), defende a posição de que deva ser “a razão pós-colonial entendida como um grupo diverso de práticas teóricas que se manifestam na raiz das heranças coloniais, na interseção da história moderna européia com as histórias contramodernas coloniais” (ib., p. 9)148. 147 Apud SCHULZE-ENGLER, 2003, p. 188, nota 5. “O rótulo ‘pós-colonial’ serve mais para os que a inventaram do que a aqueles aos quais ela é atribuída. [...] um propósito que soa ‘pós-colonialista’ na intenção pode acabar tornando-se neo-colonialista e na prática até ‘re-colonialista’”. A tradução é minha. 148 O mesmo autor chama a atenção também para a necessidade de não se perder de vista a existência de três planos de raciocínio e análise: o primeiro abarcaria as situações e condições pós-coloniais (que apresentam muitas diferenças entre elas); o segundo plano seria constituído pelos discursos (políticos, históricos, literários, jurídicos) e finalmente o terceiro pelas teorias pós-coloniais – que seriam teorizações eruditas conectadas aos estudos acadêmicos, por sua vez submetidos a regras institucionais e disciplinárias. Trata-se, segundo Mignolo, como já vimos em exercício de raciocínio semelhante em Schulze-Engler, de marcos conceituais bem distintos, se bem que imbricados. Considerando ainda ser menos a condição histórica pós-colonial o que lhe interessa, mas sim os loci de enunciação do pós-colonial, o autor americano externa a opinião de que “a teorização pós-colonial luta por um deslocamento do locus de enunciação do Primeiro para o Terceiro Mundo” (ib., p. 16) e ressalta que “se pode conjecturar que uma característica substancial do pós-colonial constitua na emergência de loci de enunciação de ações sociais que surgem dos países do Terceiro Mundo, e que invertem a imagem contrária produzida e sustentada por uma longa tradição a partir da herança colonial (ib., p. 17). 132 Considero importante destacar o aspecto, assinalado por Mignolo, de que os discursos e teorias pós-coloniais começaram a desafiar a construção hegemônica da modernidade conectada com a expansão européia, idéia que foi bastante poderosa para perdurar por quase quinhentos anos. O primeiro mundo foi sempre visto como o locus de enunciação que, em nome do racionalismo, da ciência e da filosofia, afirmou seu próprio privilégio intelectual (e não só), em detrimento de outras formas de pensamento. Os discursos e teorias pós-modernas estariam construindo uma razão pós-colonial como um locus de enunciação diferencial (ib., p. 19), priorizando, ou pelo menos dando relevo, aos substratos subalternos (SPIVAK), marginais, até então desprezados ou silenciados. Na perspectiva do meu presente estudo, interessa-me a teoria crítica pós-colonial (Postcolonial Critique) por estar estreitamente imbricada com o campo dos Estudos Culturais, desenvolvidos, como já me referi, primeiramente por acadêmicos ingleses e americanos, ocupando ali um lugar central. O deslocamento da perspectiva da análise constitui o pano de fundo do desenvolvimento dos estudos pós-coloniais, passando para um segundo plano a análise de processos e das relações sociais de produção, priorizando uma abordagem discursiva, política e cultural na qual a literatura e a análise de texto passam a ser elementos de suma relevância. A reflexão sobre as conexões entre o saber e o poder adquire maior peso do que o estudo das condições materiais da existência social dos indivíduos e seus condicionamentos econômicos. Como Gayatri Spivak formulou: “no contexto pós-colonial global atual, nosso modelo deve ser o de uma crítica da cultura política, do culturalismo político, cujo veículo é a escritura de histórias legíveis, seja do discurso dominante, seja das histórias alternativas” (SPIVAK, 1994, p. 189). A exposição de diferentes aspectos da problemática pós-colonial pareceu-me importante para me situar tanto criticamente como receptora da literatura africana, ou melhor, guineense, quanto para orientar minha interpretação, sem perder de vista minha proposta teórica do estudo da nação a partir do discurso literário e que passarei a desenvolver nos capítulos seguintes. Considero que todas essas questões estão intimamente interligadas e a própria idéia de nação, fruto da modernidade ocidental, vem sendo desconstruída, rearticulada, reorganizada, recriada justamente a partir da implosão da descolonização, da queda dos impérios ultramarinos, com o surgimento dos Estados soberanos africanos que lutam pela integração nacional. Manuel Castells defende um posicionamento bastante diverso, taxando como eurocêntrica a idéia de que as nações se moldam à imagem e semelhança do modelo europeu surgido desde a Revolução Francesa. Critica, igualmente, considerando como uma atitude de excessivo desconstrutivismo, reduzir-se a simples produto ideológico ou mesmo artificial o sentimento ligado à nacionalidade (CASTELLS, 2002, p. 45-46). Das idéias de Castells voltarei a tratar no capítulo 7. Passarei agora a abordar um aspecto que tem ocupado muito tanto teóricos 133 e ensaistas como vem refletindo também nas obras literárias, que é a questão das modernas formas de interação e de recuperação de influências por parte dos países centrais face aos países satélites. 4.4 O neocolonialismo e a “lógica imperial”149 Quem primeiro cunhou a expressão “neocolonialismo” foi Kwame Nkrumah (1909-1972), o primeiro presidente de Gana, depois da independência (1957). Ele mesmo membro da elite burguesa, defendeu a opinião que a soberania nacional dos países africanos, adquirida com a independência, não passava de fato de uma formalidade e que na verdade não tinha havido grandes modificações no relacionamento assimétrico entre os poderes coloniais e os povos colonizados, permanecendo uma relação de dependência e exploração, sendo assim o neocolonialismo a pior forma de imperialismo (NKRUMAH, 1965). Em plena época da expansão econômica da Europa e sobretudo dos Estados Unidos, na busca de novos mercados, na euforia capitalista de multiplicação de lucros e de poder, desenvolveu-se a idéia da necessidade de modernização, constatando-se a dificuldade de países saídos da colonização de se pautarem pelos princípios tais como eram demarcados pelo Ocidente, segundo os quais o desenvolvimento é linearmente definido por parâmetros do crescimento econômico. Foi quando surgiu o binarismo reducionista que dividia os países entre o “primeiro” e o “terceiro” mundo. Os países do “primeiro mundo” etiquetavam o atraso do “terceiro mundo” pelo atraso econômico devido à não industrialização, sendo necessária uma modernização fomentada a partir de fora, com uma “ajuda ao desenvolvimento”, palavra de ordem que permitiu justamente um novo surto de camuflada colonização. Sendo assim, os países descolonizados não tiveram outra saída do que fazerem parte desse sistema, naturalmente como subalternos, continuando vítimas da exploração e da dependência. Como disse G. Spivak, “o neocolonialismo é uma repetição deslocada de muitas das velhas linhas traçadas pelo colonialismo” (SPIVAK, 1994, p. 192). O conceito de neocolonialismo está estreitamente ligado à teoria da dependência, enfoque de grande relevância a partir da década de sessenta, com base em estudos sobretudo latino- americanos. Os estudiosos da teoria da dependência consideravam que as razões do atraso dos nossos países, latino-americanos e africanos, estavam nas estruturas da economia mundial e eram devidas à perpetuação da subordinação e suas conseqüências que bloqueavam a auto- iniciativa e as tentativas de produção econômica autônoma dos assim chamados países 149 Conceito cunhado por Michael HARDT, 1995. Cf. nota 124. 134 subdesenvolvidos. O subdesenvolvimento estaria estreitamente conectado com a expansão capitalista dos países industriais, sendoque o desenvolvimento e o subdesenvolvimento não seriam senão dois aspectos diferentes do mesmo processo global150. Edward Said comenta que, apesar de emancipadas, as nações descolonizadas continuam, sob muitos aspectos, “tão dominadas e tão dependentes quanto o eram na época em que viviam governadas diretamente pelas potências européias. [...] E assim, no final do século XX, o ciclo imperial do século passado parece se repetir em alguns aspectos” (SAID, 1999, p. 51). O neocolonialismo não tem a ver tanto com instrumentos formais de controle, tais como a implementação de estruturas administrativas, o estacionamento de forças militares nem tampouco com a incorporação ou submissão das populações nativas ao controle de um governo metropolitano, de um poder exógeno. Refere-se, muito mais, a uma forma indireta de domínio através de uma dependência cultural e sobretudo econômica. O neocolonialismo reflete um tipo de controle mais sutil das antigas colônias, processado pela continuada cooptação das elites nativas e do poder hegemônico local, cúmplices das potências neocoloniais em detrimento dos interesses do povo. É mantida a dependência, tanto no que se relaciona com o trabalho como no plano do subconsciente, das populações exploradas, submetidas a uma sujeição psicológica e mental que as leva a querer satisfazer suas necessidades tanto culturais quanto materiais a partir dos bens e valores etiquetados como imprescindíveis por parte desse mundo primeiro e perfeito. A dependência não constitui apenas um fenômeno de ordem externa, pois se manifesta também através de muitos fatores interligados e infiltrados na estrutura interna de um país. A cooptação das elites periféricas, assumindo os padrões de consumo dos países centrais, principais usufruidoras dos benefícios dos avanços tecnológicos, distanciou cada vez mais a classe dirigente, concentrada na renda e no proveito próprio, do povo, herdeiro dos malefícios não ultrapassados da colonização, disfarçada sob a máscara neocolonial e neoliberal. A aceitação, e até o encorajamento, por parte das antigas metrópoles, da política levada a efeito por um sem número de ditadores e caudilhos africanos, asiáticos, latino-americanos têm sua justificativa ou explicação evidente, pois essa relação assimétrica e abstrusa tem trazido muitas vantagens para o “Centro”. Ao discurso imperialista nada importa, nem os abusos de autoridade, nem a brutalidade da repressão das revoltas populares, nem o fato de os direitos humanos ficarem submetidos aos interesses do mercado e da economia internacionais. 150 Levaria longe demais discorrer sobre esse assunto que apaixonou sociólogos latino-americanos e de outras regiões afetadas pelas conseqüências da expansão capitalista. Uma revisão das discussões da década de sessenta centradas no binômio centro-periferia, com um balanço dos caminhos da teoria da dependência, pode ser encontrada, por exemplo, em SANTOS, Theotônio dos. Evolução histórica do Brasil. Da Colônia à crise da “Nova República”. Petrópolis: Vozes, 1995. 135 Nas estórias de Carlos Lopes que aqui apresentei, no caso de “O sipaio Mendes”, por exemplo, tratava-se de um simples e ignorante policial; igualmente, em “Fazi sapo” (LOPES, 1997), a personagem principal era um jovem fanfarrão e irresponsável. Triste e inquietador quando, no mundo real, são membros da camada dirigente que dão altas demonstrações dessa assimilação ditada pelo oportunismo, resultando numa verdadeira colonização interna, a mais perigosa de todas elas151. Como já afirmara Frantz Fanon, “o opressor, pelo carácter global e terrível da sua autoridade, chega a impor ao autóctone novas maneiras de ver e, de uma forma singular, um juízo pejorativo acerca das suas formas originais de existir” (FANON, 1980, p. 42). Essa “imposição” é assimilada, deglutida, e a ideologia capitalista se inocula no pós-colonizado, condicionando seu comportamento e sua maneira de pensar. Tão criminosa mutilação foi uma forma da qual os poderes hegemônicos exógenos se serviram para reduzir ainda mais a autenticidade, o próprio” de cada cultura, de cada grupo étnico: despossuindo-os de seus próprios valores, de seus bens simbólicos, de seus hábitos característicos para, esvaziando-os, preenchê- los e satisfazê-los com os valores e produtos primeiro do mercado colonial, depois das transações do mundo industrial e moderno e desenvolvido (SEABROOK, 2001). Os movimentos de independência recuperaram, pelo menos em parte, as expressões culturais tradicionais, revalorizando-as e procurando devolver aos povos suas identidades. Se essas identidades culturais não foram totalmente extirpadas, elas foram grandemente reduzidas, postas em dúvida, enfraquecidas em suas raízes. Tem sido lento e cheio de percalços o processo de reinstauração das identidades fragmentadas, da auto-estima abalada e da luta contra a descrença nos próprios valores. No romance Kikia Matcho (1997)152, Filinto de Barros apresenta António Benaf, o sobrinho “doutor” que tinha estudado na Europa e, voltando para a terra natal, foi obrigado a reconhecer que seu título acadêmico não lhe trazia nenhuma vantagem. Depois de meses tentando a sorte, continuava desempregado e sem ver chegar a grande oportunidade de tornar-se rico e poderoso, fantasiosa ambição que o havia impelido a regressar. Obrigado a estar presente no enterro do tio, 151 A colonização interna ou autocolonização abrange um processo que acontece sobretudo dentro do sujeito quando ele assume cegamente os interesses (econômicos, políticos) de um poder de fora assim como sua forma de viver e de pensar (cf. p. ex. ALLERKAMP, 1991, p. 1). 152 Filinto de Barros nasceu a 28 de dezembro de 1942 em Bissau. Entrou para as fileiras do PAIGC em 1963, na Zona Zero, isto é, em Bissau. Durante as lutas de libertação, desenvolveu atividades em Bissau e em Lisboa, onde estudou engenharia e foi dirigente daquele partido na clandestinidade. Proclamada a independência, foi durante mais de uma década ativo participante dos destinos políticos do país: foi membro do Comité Organizador do Partido e do Comité do Sector Autónomo de Bissau; foi também Secretário Geral e Secretário de Estado da Presidência. Foi Embaixador da Guiné-Bissau em Portugal, Ministro de Informação e Cultura, Ministro dos Recursos Naturais e Indústria, Ministro da Justiça e Ministro das Finanças. Desde 1994, com as eleições multipartidárias e o início de uma nova era na história política do país, Filinto de Barros retirou-se da vida pública. Tem exercido em Bissau cargos de conselheiro técnico em entidades estrangeiras de cooperação. Autor de ensaios de ordem política e técnica, Filinto de Barros surpreendeu com a publicação do romance Kikia Matcho do qual tratarei alargadamente no capítulo 7. 136 enquanto muitos dos conhecidos apareciam apenas para dar as condolências e iam embora, Benaf tinha que permanecer toda a noite na vigília do velório, dever de família, tendo assim tempo para refletir sobre o mundo de contradições em que vivia metido: os anos de estudo na Europa haviam feito dele um materialista, “interessado nos sucessos pessoais” (ib., p. 21). Cínico e decidido a usar da bajulação e do oportunismo para conseguir um posto vantajoso, viveu na ilusão de que, sendo os diplomados ainda pouco numerosos no país, as oportunidades não lhe poderiam faltar. Mas estava amargando a decepção de não ter seus planos realizados: O lema é comer e deixar os outros comerem! [...] Desde que chegou das europas, que tem visto os adaptados a saírem-se muito bem, com boas casas, boas mulheres e segundo lhe disseram, com contas no estrangeiro. Era isso que ele pretendia e quanto antes melhor! (ib., p. 154). Benaf despreza as crenças e os rituais, se bem que não deixe de ser tomado pelo terror ante a ameaça clara da presença do kikia matcho, a coruja azíaga pousada em sua janela, e da cena de transe e incorporação a que assistiu,quando o defunto exigia, incorporado na pessoa da jovem Ofitchar, que fossem feitas cerimônias rituais para redimir os muitos pecados e erros cometidos durante as lutas libertárias, não só por ele, mas por tantos outros combatentes. A análise dos efeitos da colonização sobre o colonizado é atravessada por muitos conceitos como o do hibridismo cultural (Homi Bhabha), o da identidade rizomática das origens (Deleuze e Guattari), entre outras, das quais não cabe, no momento, tratar. Para o colonizado, o caminho para alcançar um equilíbrio passa por muitas curvas e desvios, tropeços e retrocessos até se chegar à nova personalidade do sujeito cultural africano, dialogando com seus dois “eu”, entre duas temporalidades: o presente africano-ocidental e um passado nativo que ainda se mantém vivo, apesar de todas as pressões (REIS, 1999, p. 33). Ambigüidades e incoerências fazem parte do processo, como Carlos Lopes ilustra em várias de suas estórias. Por exemplo, em “Indigenização”: O orador, conhecida figura pública, proprietário com o alvará de uma casa comercial, à qual juntou também, com pompa, a denominação de industrial, falava sem parar: é preciso mostrar ao Governo que não há progresso só porque se tem uma bandeira e os ministros são pretos. O verdadeiro poder é económico e esse obtém-se com a consolidação dos comerciantes da terra. [...] A economia continua nas mãos deles e nós ficamos a ver navios. [...] O orador era imparável na sua retórica, agora apelidada de novo nacionalismo africano, ou de luta pela independência económica. O interesse neste discurso é que ele é protagonizado por gente que só veste camisas de seda, passeia de Mercedes, tem os filhos a estudar nas melhores universidades ocidentais e vive em palácios decorados com gosto de novo-rico (LOPES, 1997, p. 51- 52). 137 Armando Gnisci, na sua obra Via della decolonizzazione europea (GNISCI, apud FONTES, 2003)153, argumentando que o “pós” não pode significar “após a colonização” como se essa já tivesse terminado, mostra-se particularmente empenhado em que a Europa se descolonize, abandone seu eurocentrismo e reconheça os crimes praticados. Para o comparatista italiano, como para tantos outros autores, o mundo atual está confrontado com uma contínua colonização, ampliada e agravada pela globalização neoliberal, controladora e determinante dos destinos individuais e das massas e do seu imaginário. Para avançar na via da descolonização um caminho seria através da literatura. Porque a literatura é um “diálogo com autores e com textos” – e esses textos são fontes de experiência e de mudanças, oferecendo oportunidade de formação, de educação. Para Gnisci, enfim, “la letteratura è produzione di realità” (ib.), constituindo a via de diálogo mais intenso entre as culturas, pois permite estabelecer uma poética e uma política de relações, a partir de uma determinada location, isto é, do lugar de onde se fala, de seu enunciado (ib.). Segundo o pensador ganês Kwame Anthony Appiah, o que ocorreu em grande parte da África foi devido ao fato de que o Estado que surge após a independência passou a apresentar os mesmos vícios e vivenciar as mesmas conjunturas do Estado colonial, em suma, perpetuando muitos aspectos carcomidos do sistema econômico colonial, além de serem escamoteadas ou ignoradas as diferenças étnicas, muitas vezes encobertas pelo discurso nacionalista no que diz respeito à junção dos povos no processo de independência. As conseqüências dessa perpetuação e a crença em uma igualdade étnica que de certa forma não existia (no caso da “Guiné” foi obra de anos de empenho e obstinação de Amílcar Cabral) foram claras: um Estado independente que nascia para gerar condições para o desenvolvimento e criação de infra-estrutura não poderia jamais apoiar-se nas bases de um Estado que visava de certo modo à manutenção da ordem hegemônica vigente. Aconteceu que os governantes pós-coloniais, afirma Appiah, assumindo as rédeas do poder resgatadas do domínio colonial, não souberam reconhecer os limites desse poder, “não repararam, no princípio, que elas não estavam ligadas a um bocal de freio” (APPIAH, 1997, p. 230). Anthony Appiah demonstra, em várias passagens de seu livro Na casa de meu pai, a inviabilidade da idéia européia de nação no contexto pós-colonial africano. A idéia de nação como resultado de um contrato social, como uma associação livre de cidadãos, para muitos autores uma criação do Iluminismo europeu, é inapropriada para o contexto africano, pois não se 153 Maria Aparecida Ribeiro Fontes agradece a Armando Gnisci por lhe ter cedido o manuscrito do livro mesmo antes da publicação, ocorrida somente em 2004. Como em geral nos artigos que cito a partir da rede eletrônica, não me é possível indicar as páginas consultadas. Gnisci já tinha desenvolvido reflexões semelhantes em outros trabalhos, como “A descolonização que não passa”, artigo que pode ser encontrado no site: http://www.unigranrio.com.br/letras/revista/textoarmando.html. http://www.unigranrio.com.br/letras/revista/textoarmando.html. 138 pode perder nunca de vista o fato dos Estados africanos terem surgido como conseqüência da política imperialista européia. A identidade cultural entre os grupos étnicos não foi levada em conta para a formação (arbitrária) das colônias, não tendo igualmente sido fundamental na manutenção dos novos países. Muito mais relevante foi o esforço para conseguir a unidade política dentro do espaço geográfico pré-traçado pela conjuntura imperial, apesar das heterogeneidades culturais. Aos novos países africanos, tal como se passou na América Latina, “tratava-se de vertebrar as nações que padeciam as indefinições próprias do império” (AINSA, 1986, p. 126). Como disse Eliana Reis, referindo-se às idéias de Anthony Appiah e de Wole Soyinka, não cabia estimular a criação de uma identidade nacional ou étnica dentro de ambientes caracterizados pela multiplicidade, postura “difícil ou mesmo imprudente”, haja visto o exacerbamento de emoções desencadeadas por rivalidades étnicas (dentro ou além fronteiras) que as políticas nacionalistas puseram e ainda põem em prática e que tantas e tão trágicas conseqüências têm trazido, acendendo rivalidades e etnocentrismos (REIS, 1999, p. 123-124). É justamente devido a certos excessos perpetrados em nome do bem comum nacional que Ernest Gellner chega mesmo a comparar o tribalismo com o nacionalismo que, por algum acaso, conseguiu, sob condições modernas, constituir-se como potência capaz de exercer o poder. Os movimentos nacionalistas inventam, diz Gellner, num processo de racionalização dos interesses de uma elite, idéias que a propaganda política usa para sensibilizar as massas, em nome de uma determinada identidade nacional a ser defendida ou a ser conquistada, mas, em caso de sucesso, é apenas uma minoria que tem acesso aos benefícios. Dentro da sua crítica veemente aos nacionalismos, aponta, já antes do advento das independências dos Estados africanos, para as conseqüências que de fato sempre se repetem: Em geral, tanto a intelligentsia quanto o proletariado são solicitados para um movimento nacional efetivo. Seus destinos divergem depois de conseguirem a independência nacional. Para os intelectuais, a independência significa uma vantagem imediata e enorme: empregos, e empregos muito bons… Para os do proletariado, por outro lado, a independência só pode, a curto prazo, trazer desilusões. As dificuldades não são eliminadas, elas provavelmente aumentam no afã de um desenvolvimento rápido e pelo fato que o governo nacional às vezes consegue ser mais duro do que um governo estrangeiro (GELLNER, 1964, p. 169; minha tradução). A concessão de vantagens políticas e econômicas às ex-colônias se torna para o “Centro” cada vez menos atraente, dada a mudança do foco de interesses e prioridades por parte dos países doadores e das organizações internacionais, privadas e públicas.
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