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Estudo Bíblico Gênero Apocalíptico Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof. Dr. Anderson Oliveira Lima Revisão Textual: Prof.ª Dr.ª Luciene Oliveira da Costa Granadeiro Gênero Apocalipse • Introdução; • Sobre o Gênero Apocalipse; • Características Gerais do Gênero. • Seguir estudando a apocalíptica de uma perspectiva histórica; • Entender o surgimento da apocalíptica a partir da herança cultural de outras nações; • Discutir questões de gênero estudando as características mais recorrentes nos livros comumente rotulados como apocalípticos. OBJETIVOS DE APRENDIZADO Gênero Apocalipse Orientações de estudo Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem aproveitado e haja maior aplicabilidade na sua formação acadêmica e atuação profissional, siga algumas recomendações básicas: Assim: Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e horário fixos como seu “momento do estudo”; Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo; No material de cada Unidade, há leituras indicadas e, entre elas, artigos científicos, livros, vídeos e sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você tam- bém encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados; Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discus- são, pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e de aprendizagem. Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Determine um horário fixo para estudar. Aproveite as indicações de Material Complementar. Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma Não se esqueça de se alimentar e de se manter hidratado. Aproveite as Conserve seu material e local de estudos sempre organizados. Procure manter contato com seus colegas e tutores para trocar ideias! Isso amplia a aprendizagem. Seja original! Nunca plagie trabalhos. UNIDADE Gênero Apocalipse Contexualização Depois de tudo o que foi estudado até aqui, você já deve ter notado que, enquanto estamos adquirindo conhecimentos para lidar com a literatura de gênero apocalíptico, estamos nos preparando para muito mais do que ler o Apocalipse de João. Uma das ênfases do nosso estudo tem sido a necessidade de ampliarmos nossos horizontes de pesquisa para, quando necessário, fazer contato com a literatura não canônica. Afinal, nossas Bíblias cristãs preservam apenas uma pequena amostra da produção comumente atribuída a esse gênero, cujo conhecimento dependeu muito da produção apócrifa. Teremos, mais adiante, a oportunidade de ler algumas passagens de um interessante livro apócrifo que muito acrescenta à nossa compreensão de certos textos bíblicos, e estamos certos de que essa experiência será compensadora. Também gostaríamos enfatizar que, além do Apocalipse de João, a Bíblia cristã preserva várias outras passagens, as quais, conforme evoluía o saber acadêmico em torno da temática apocalíptica, foram mais bem compreendidas. Veremos que o livro de Daniel, no Antigo Testamento, é um livro que hoje é considerado autenticamente apocalíptico, que várias porções dos evangelhos sofreram influência direta do estilo, da linguagem, da temática apocalíptica, e que até mesmo nas cartas paulinas a presença desse imaginário religioso foi determinante. Essas palavras de incentivo, que revelam mais sobre a ampla aplicação dos conhecimentos que aqui estamos a compartilhar, não devem, todavia, produzir pressa e ansiedade. Na verdade, nosso objetivo com essas linhas é incentivá-lo(a) ao estudo atento destas primeiras unidades que possuem um caráter introdutório. É absolutamente imprescindível que entendamos bem todos os elementos que caracterizam o gênero apocalíptico para que, num futuro muito próximo, nos aproximemos desses textos com propriedade, seguros de que estamos lidando com textos apocalípticos e que nossa compreensão dos mesmos tem sido aperfeiçoada pelo investimento feito através dos nossos estudos. Enfim, retomaremos a discussão sobre o gênero apocalíptico de onde paramos, e é importante compreender que o uso de tantas páginas de nosso material didático (duas unidades completas do curso) para esses temas gerais e introdutórios correspondem à importância que damos a esses primeiros conteúdos. Dito isso, desejamos a você boas horas de estudo, leitura e reflexão, e esperamos que a maneira pela qual o guiemos revele seus méritos ao final da jornada. 8 9 Introdução Esta segunda unidade da disciplina Estudos Bíblicos: Gênero Apocalíptico dá continuidade àquilo que vinha sendo exposto anteriormente. Ou seja, nosso assunto continua sendo o surgimento da apocalíptica judaica, suas razões, e principalmente as características que, reunidas, nos permitem identificar com facilidade quando estamos lidando com um texto que é considerado, pela comunidade acadêmica em geral, como texto apocalíptico. Recordemos, antes de seguir, que a apocalíptica descende diretamente da pro- fecia. Vimos que a profecia bíblica nasceu como uma nova manifestação cultural e religiosa que foi motivada por questões diversas de ordem política, histórica, social etc. A profecia judaica era uma espécie de direcionamento da voz dos antigos videntes para as questões sociais mais sensíveis da época, uma expressão da inconformidade do mundo em relação à teologia de antigos(as) videntes. A apocalíptica, descendendo dessa forma de expressão religiosa, não deixaria de ter seus pés no chão, embora a linguagem mitológica, simbólica e obscura levasse o leitor além. A literatura apoca- líptica renova a forma, mas sua mensagem continua contendo a revolta daqueles que supunham conhecer a vontade de Deus e sua inconformidade com os acontecimentos concretos, históricos. Um dos grandes desafios deixados para nós, leitores, é exata- mente encontrar o vínculo que prende a literatura apocalíptica à realidade, para que não subestimemos seu caráter crítico e prático desse apocalipsismo. Figura 1 – Hieronymus Bosch, St. John the Evangelist on Patmos (1504-1505) Fonte: Wikimedia Commons 9 UNIDADE Gênero Apocalipse Sobre o Gênero Apocalipse A Society of Biblical Literature – SBL (Sociedade de Literatura Bíblia) – publicou um periódico especializado nos estudos da literatura apocalíptica em 1979 (Semeia, número 14). Esse número ainda é considerado um marco na história dos estudos da apocalíptica e, em especial, nas questões de gênero dessa literatura. Os artigos podem ser lidos pelos que conhecem a língua inglesa e estão dispostos a pesquisar na internet, mas o organizador do número (John J. Collins) afirmou mais recentemente que as pesquisas então reunidas conduziram às seguintes conclusões: [...] define-se um apocalipse como “um gênero de literatura revelatória com estrutura narrativa, no qual a revelação a um receptor humano é mediada por um ser sobrenatural, desvendando uma realidade transcendente que tanto é temporal, na medida em que vislumbra salvação escatológica, quanto espacial, na medida em que envolve outro mundo, sobrenatural”. (COLLINS, 2010, p. 22) Partiremos dessa definição geral e procuraremos dar maior profundidade aos tópicos mais relevantes do parágrafo de Collins nos itens a seguir. Assim esperamos nos apropriar suficientemente das características gerais do gênero, as quais serão posteriormente aplicadas em nossas leituras e análises. Influências Estrangeiras na Apocalíptica Judaica As características da profecia pós-exílica partemda profecia tradicional (aquela do pré-exílio, do século VIII a.C.) e, pouco a pouco, caminham em direção à apocalíptica propriamente dita. Por isso não custa lembrar que, da perspectiva dos próprios autores bíblicos, estes que hoje chamamos de apocalípticos se intitulavam, simplesmente, profetas. A transição, obviamente não se deu de uma hora para outra, mas foi gradual e chegou ao auge no período que muitos chamam de interbíblico (tempo que se caracteriza por ter transcorrido entre a composição dos dois testamentos canônicos). Foi nesse tempo que foi escrito o mais apocalíptico de todos os livros do Antigo Testamento, o livro de Daniel, que terá seu espaço em nossas análises futuras. Que a matriz profética fornece o pano de fundo sobre o qual começa a ser desenvolvida a apocalíptica é inegável. Mas novidades tão grandes, que nos permi- tem diferenciar com tamanha segurança a profecia e a apocalíptica, não poderiam ter surgido espontaneamente por obra de um gênio individual. O contato prolon- gado e multiforme dos judeus com outras culturas é, para dizer isso em poucas palavras, o grande combustível que gerou o nascimento da apocalíptica. 10 11 Muitos estudiosos que dedicam suas carreiras à história dos judeus e à evolução de sua cultura falam que, a partir do 6º século a.C., o judaísmo sofreu mudanças pela infiltração do dualismo persa (que dizem ser uma herança do zoroastrismo) e dos símbolos advindos da mitologia desse povo. A influência persa, portanto, está impressa no apocalipsismo judaico, mas não completamente. Consideremos que as pesquisas também foram capazes de encontrar relações entre os textos apocalípticos e a mitologia de outros povos, pelo que há um vasto material de análise que levanta pequenas relações de intertextualidade entre os textos judaicos e materiais de origem babilônica ou extraídos da mitologia canaanita-ugarítica (COLLINS, 2010, pp. 52-61; SOARES, 2008, pp. 106-110). Ainda que não tenhamos a oportunidade de avaliar esse rico material estrangei- ro que supostamente ofereceu elementos para os judeus durante o desenvolvimento da apocalíptica, o que importa é que, de maneira notável, após o exílio babilônico, um horizonte celestial, transcendental, perfeito e imutável surge com mais força na imaginação religiosa dos judeus. Esse mundo celestial está em oposição ao cenário terreno que é frágil, transitório e que é por aquele determinado. A relação entre os dois mundos (o terreno e o celestial) é complexa, começa a envolver uma agenda escatológica em que um juiz de natureza divina julgará os atos humanos e, ao dar cabo de tudo o que é imperfeito para inaugurar uma espécie de nova criação, ani- quila mesmo todo o mundo empírico (COOK, 2009, pp. 322-324). Mas os textos apocalípticos propriamente ditos não surgiram antes que o antigo Mundo Mediterrâneo começasse a passar por um processo de helenização, isto é, um processo de sincretismo cultural pelo qual diversas culturas foram modificadas pelo contato com as tradições importadas durante a ampla dominação grega, a partir do século IV a.C. Como o território dos judeus também foi temporariamente dominado pelos gregos (através dos ptolomeus e selêucidas), o judaísmo não escapou ao influxo da língua e da cultura grega, especialmente entre os séculos III e II a.C. Isso ajuda a explicar, dentre outras coisas, porque o Novo Testamento foi completamente escrito em língua grega. Foi nesse período de helenização que se produziu a Septuaginta (LXX), uma tradução para o grego dos textos bíblicos que eram mais populares na época. A LXX foi produzida em Ale- xandria por volta do século III a.C. para atender aos interesses dos judeus viviam em comu- nidades urbanas e helenizadas. Produzida antes do estabelecimento dos cânones judaico e cristão, a LXX traz um maior número de livros que a Bíblia Hebraica e o Antigo Testamento e preserva uma matriz textual que difere daquela que conhecemos através do texto massoré- tico, cujos manuscritos datam dos séculos VI a X d.C. e são a base para a produção de nossas traduções. É importante saber que a Bíblia grega foi a versão lida e citada pelos autores do Novo Testamento e pelos cristãos até que, na Idade Média, sua popularidade foi finalmente superada pela Vulgata latina. Essa é uma das razões pelas quais as citações feitas nos evan- gelhos e por Paulo não costumam ser fiéis àquilo que lemos nos nossos Antigo Testamentos. Ex pl or 11 UNIDADE Gênero Apocalipse Características Gerais do Gênero Depois do exílio, imaginamos que, no pensamento popular, Deus parecia ter deixado de estar com Israel, no seu Templo, tendo preferido habitar num inatingível palácio celestial. O mundo passou a ser visto como um cenário mais perigoso, largamente visitado por seres invisíveis e malignos que eram dominados por Satan. Essa figura foi ganhando contornos mais definidos ao longo dos anos e se tornou, no período de produção apocalíptica, um opositor perigoso dos planos divinos. A presença de Satanás entre os homens confirma a ótica pessimista dos apocalípticos que sempre esperam por períodos de sofrimentos, provações, catástrofes etc. Todas as esperanças dos apocalipses, portanto, voltam-se para o futuro escatológico, para o que supostamente virá depois do fim (ou depois da morte) (VALDEZ, 2002, p. 58). Leiamos as palavras de Collins a respeito do mundo que é imaginado pelos apocalípticos: [...] existe um mundo oculto de anjos e demônios que é diretamente relevante para o destino humano; esse destino é determinado de maneira final por um julgamento escatológico definitivo. Em suma, a vida humana está limitada, no presente, pelo mundo sobrenatural de anjos e demônios, e no futuro, pela inevitabilidade do julgamento final. (COLLINS, 2010, p. 28) Paulo Nogueira, com suas próprias palavras, acrescenta a essa descrição o “pessimismo” apocalíptico: O mundo dos apocalípticos é um mundo ameaçador e perigoso, onde as artimanhas das forças demoníacas cercam as pessoas e a sociedade. Não há uma concepção de progresso, de desenvolvimento moral no tempo. Não faz sentido planejar, usar das boas estratégias da sabedoria tradicional. Há um pessimismo tal que não permite esperanças do jeito como as coisas caminham. É necessária uma ruptura e esta ruptura acontece no juízo. (NOGUEIRA, 2008, p. 20) Explicando o pensamento apocalíptico, Paulo Nogueira sabiamente o relaciona ao pensamento mítico, pois os apocalipses se constroem a partir de uma maneira de entender os tempos primordiais, tempos míticos, onde a criação de Deus foi comprometida pelo confronto entre as forças do bem e do mal. Todas as negatividades da existência são explicadas a partir dessa leitura mítica das origens e, se os desequilíbrios nasceram assim, não há nada que os homens possam fazer para mudar significativamente as estruturas do mundo e o estado caótico da natureza. Nesse caso, compreende-se a razão de os apocalipses serem pessimistas com relação ao presente e de falarem frequentemente do futuro, de um novo tempo mítico onde as forças celestiais acertarão as contas em um embate final que, depois de muitas consequências destrutivas, restabelecerá o equilíbrio antes planejado pelo criador (NOGUEIRA, 2008, p. 21). 12 13 Figura 2 – Pieter (the Elder) Bruegel, The Fall of the Rebel Angels, 1562 Fonte: Wikimedia Commons Revelações Mediadas Paulo Nogueira sugere que, embora o rótulo apocalipse seja demasiadamente amplo para que dê conta de textos tão numerosos e diversos, o que se espera é que leiamos esses textos que chamamos de apocalípticos como documentos de “revelação mediada” (NOGUEIRA, 2008, p. 14). Essa literatura costuma apresentar viagens celestiais que os visionários têm em momentos de êxtase; ou seja, o que narram são supostamente revelações recebidas involuntariamente, experiências que, quando os visionários tentam converter aos limites da linguagem humana, esbarram em dificuldades que os levam a apelar a uma misteriosa simbologia onde os protagonistassão animais de várias cabeças, dragões com muitos chifres, anjos de muitas asas etc. E essas revelações são chamadas de mediadas porque na narrativa da experiência visionária há sempre a presença de um mediador. Nessas narrativas, o personagem que narra a história, geralmente o próprio visionário, diz ter subido às regiões celestiais passando por diferentes níveis; mas essa viagem não é possível a homens comuns, pelo que tal privilégio só lhes é concedido porque sobem àqueles cenários transcendentes acompanhados de alguém que tem acesso a eles. Esse acompanhante, seja um homem já falecido (ou que foi arrebatado), um anjo ou outra entidade qualquer, ajuda o visionário humano quando as visões 13 UNIDADE Gênero Apocalipse tiram-lhe as forças, explica-lhe as coisas misteriosas que ele vê, guia-lhe pelo caminho correto, media sua experiência em vários aspectos. Nas palavras de Collins: “A presença de um anjo que interpreta a visão ou serve de guia na jornada sobrenatural é o elemento constante. Essa figura indica que a revelação não é inteligível sem auxílio sobrenatural” (COLLINS, 2010, p. 23). Visionários ou Escritores? Dado os avanços na própria arte da escrita no mundo antigo e considerando os contatos cada vez mais estreitos entre as lideranças religiosas judaicas e a tradição escritural, os apocalipses já nascem como textos. Isto é, eles surgem como docu- mentos escritos e não como memórias preservadas de discursos orais proferidos por visionários, como se deu com boa parte da tradição profética. Em resumo, os profetas tradicionais eram arautos, pregadores, oradores; apocalípticos, por sua vez, eram escritores. Um dado razoavelmente desconcertante relativo à apocalíptica é que, quase sempre, ela era escrita lançando mão da pseudonímia. Isto é, seguindo uma tra- dição bem conhecida na história da produção literária dos gregos (e também de outras culturas), os autores dos textos apocalípticos não costumavam revelar suas verdadeiras identidades nos livros que escreviam, mas empregavam personagens célebres da tradição judaica para protagonizar as viagens celestiais que relatavam (COLLINS, 2010, pp. 23, 69-70). Por conta disso, a maioria dos livros apocalípti- cos são conhecidos como apocalipses de Enoque, Abraão, Pedro, Moisés, Daniel etc., e é fácil notar que essas atribuições autorais são falsas, pois os livros apoca- lípticos datam de períodos muito posteriores à vida desses célebres personagens (NOGUEIRA, 2008, p. 15). Esse dado – a certeza de que os textos apocalípticos são prioritariamente pseudonímicos – também levanta dúvidas quanto à autoria do próprio Apocalipse de João. O texto, como sabemos, menciona o nome de seu autor, mas em nenhum momento o João que relata as experiências no livro se identifica como o apóstolo que seguiu Jesus e, mesmo que o fizesse, ainda haveria motivos para duvidar dessa informação por ser costume dos autores apocalípticos o emprego de identidades fictícias (NOGUEIRA, 2008, p. 15). Essa questão, todavia, poderá ser vista mais de perto no momento em que estudaremos o Apocalipse. Discute-se muito se há realmente um evento visionário por trás de obras como o Apoca- lipse de João, pois há inúmeras evidências de que este livro, uma obra literária planejada conscientemente pelo seu redator, não é o perfeito relato de uma viagem celestial. Todavia, negar qualquer evento extático por trás dos apocalípticos é negar-lhes todo caráter de reve- lação em que se inspiram. Ex pl or 14 15 Figura 3 – Ilustração de Wycliff e de Bíblia Fonte: Getty Images Revelação Progressiva e Visionários Abatidos Uma outra característica constante na apocalíptica é que os relatos místicos desses textos costumam apresentar revelações progressivas; a visita aos cenários celestiais se dá de forma gradual e o visionário visita planos cada vez mais elevados e secretos até atingir o ápice de sua experiência. O visionário visita vários estágios, vários templos, vários céus, abre vários selos, ouve o som de várias trombetas ou testemunha o derramar de muitas taças etc. (GUNNEWEG, 2005, p. 338). Essa progressividade, essa divisão da narrativa em estágios sucessivos é uma característica marcante que, ao que tudo indica, os judeus também aprenderam em contato com culturas estrangeiras (no caso, com a mitologia persa). No clássico Divina Comédia, o poeta italiano Dante Alighieri criou, na Idade Média (século XIV), uma viagem celestial em que ele mesmo visitou (acompanhado De Virgílio, o autor da Eneida) o inferno, o purgatório e o céu. O livro de Dante demonstra que poeta italiano com- preendeu várias das características da apocalíptica judaica e as empregou para compor seu próprio texto: ele entendeu que tal viagem devia ser mediada por alguém que tinha acesso aos céus, aplicou à sua poesia em tom apocalíptico, a estrutura progressiva, e não deixou de incluir muitas críticas à sociedade e religião de seu tempo. Ex pl or 15 UNIDADE Gênero Apocalipse Um detalhe curioso que pode ser colocado nesse item é que a apocalíptica costuma contrapor a magnitude da revelação à fraqueza do visionário. A sucessão de estágios a serem visitados amplia a tensão do enredo, cria a ansiedade que prepara o leitor para o momento em que o visionário alcançará o mais elevado céu, quiçá o trono do próprio Deus com toda a sua glória. Mas, quando esse visionário se depara com tais coisas grandiosas, seu corpo físico, humano, sofre, enfraquece, adoece. Vejamos alguns exemplos breves: Em Ezequiel 1.28-29, um daqueles textos proféticos que começam a nos preparar para as novidades da apocalíptica, o visionário descreve uma experi- ência mística, uma visão, e também fala sobre a fraqueza física decorrente dessa experiência. Depois, ele ouve alguém falando com ele, é auxiliado e recupera suas forças: [...] Essa era a aparência da semelhança da glória de Jeová. Quando a vi, caí com o rosto em terra e ouvi uma voz de quem falava. Essa voz disse-me: ‘Filho do homem, põe-te sobre os teus pés, e falarei contigo’. Falando-me ele, entrou em mim o Espírito, e pus-me sobre os meus pés [...] (Ez 1.28-29) Figura 4 Fonte: Wikimedia Commons Se você já leu o livro de Daniel, no Antigo Testamento, talvez se lembre do relato do visionário em Dn 8.26-27, no qual também ouvimos falar das consequências físicas de uma visão sobrenatural. E temos ainda o relato do visionário que narra o Apocalipse de João, que diz: Quando o vi, caí aos seus pés como morto; e ele pôs a sua destra sobre mim, dizendo: Não temas; eu sou o primeiro, e o último, e o que vivo; fui morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos e tenho as chaves da morte e do Hades. (Ap 1.17-18) 16 17 Nesses textos, os visionários perdem as forças por terem vislumbrado coisas demasiadamente grandes, coisas sagradas. Assim, podemos dizer que, em geral, na apocalíptica judaica, quem recebe grandes revelações sofre consequências na própria carne, como a fraqueza física ou a perda dos sentidos. Alguns desses visio- nários, após o retorno, podem exibir as sequelas de suas experiências fantásticas, marcas que são provas da veracidade das revelações que agora fazem. Figura 5 Fonte: jcchurches.org 17 UNIDADE Gênero Apocalipse Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Sites A Bíblia como Literatura Indicamos um site de um grupo de pesquisas da Universidade Presbiteriana Mackenzie que se dedica aos estudos da literatura bíblica de um ponto de vista literário. O conteúdo está crescendo e, certamente, o site logo reunirá um bom número de trabalhos de relevância para todos os estudiosos interessados na Bíblia no Brasil. https://bit.ly/2H2yZbX Leitura A Literatura Apocalíptica enquanto Género Literário (300 a.C. - 200 d.C.) Indicamos a leitura do artigo de Ana Valdez – A literatura apocalíptica enquanto género literário (300 a.C. - 200 d.C.) – como um primeiro conteúdo complementar ao estudo desta unidade. Ela trata de maneira introdutóriado gênero apocalíptico empregando classificações ligeiramente diferentes das nossas. Sua leitura proporcionará uma visão mais ampla da temática e mostrará que há diferentes ênfases nessa área dos estudos bíblicos. https://bit.ly/2LpSJuu A Literatura Apocalíptica: O Gênero como Expressão https://bit.ly/2J0OZxj A Bíblia como Literatura Mudando um pouco de assunto, indicamos a leitura de um texto de João Leonel sobre a leitura da Bíblia como literatura. O texto é breve e bem didático. Seu propósito, aqui, é deixar claro o tipo de abordagem que fazemos da literatura bíblica, um conhecimento que impedirá nossos leitores de se escandalizarem com nossa postura crítica que deixa a fé religiosa em segundo plano. https://bit.ly/2Pk2Jqq 18 19 Referências COLLINS, John. J. A Imaginação Apocalítica: Uma Introdução à Literatura Apocalíptica Judaica. São Paulo: Paulus, 2010. COOK, Stephen L. Hebrew Bible/Old Testament. In. Encyclopedia of the Bible and Its Reception 2. Berlin/New York: Walter de Gruyter, pp. 321-324, 2009. GUNNEWEG. A. H. J. Teologia Bíblica do Antigo Testamento: Uma História da Religião de Israel na Perspectiva Bíblico-teológica. São Paulo: Vida Nova, 2005. NOGUEIRA, P. O que é Apocalipse (Coleção primeiros passos, 333). São Paulo: Brasiliense, 2008. SOARES, Dionísio Oliveira. A literatura apocalíptica: o gênero como expressão. Horizonte, Belo Horizonte, v. 7, n. 13, pp. 99-113, 2008. VALDEZ, Ana. A literatura apocalíptica enquanto género literário (300 a.C. - 200 d. C.). Millenarium (Revista Portuguesa de Ciência das Religiões), Ano I, n. 1, pp. 55-66, 2002. 19
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