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Estudo Bíblico Gênero Apocalíptico Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof. Dr. Anderson Oliveira Lima Revisão Textual: Prof.ª Me. Sandra Regina Fonseca Moreira Literatura Apocalíptica: O Mito dos Vigilantes • Introdução; • O Mito dos Vigilantes; • As Mulheres e os Anjos; • Uma Origem para os Demônios; • Últimas Observações. • Aprender a aplicar os conhecimentos adquiridos nas análises de textos de gênero apocalíptico; • Conhecer o Mito dos Vigilantes e sua importância como literatura apócrifa que infl uen- ciou o pensamento bíblico; • Entender o conceito de “mito” aplicado ao texto e as implicações da narrativa ao imaginá- rio religioso posterior; • Atentar, de maneira panorâmica, para a infl uência do imaginário apocalíptico nos evan- gelhos canônicos. OBJETIVOS DE APRENDIZADO Literatura Apocalíptica: O Mito dos Vigilantes Orientações de estudo Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem aproveitado e haja maior aplicabilidade na sua formação acadêmica e atuação profissional, siga algumas recomendações básicas: Assim: Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e horário fixos como seu “momento do estudo”; Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo; No material de cada Unidade, há leituras indicadas e, entre elas, artigos científicos, livros, vídeos e sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você tam- bém encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados; Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discus- são, pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e de aprendizagem. Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Determine um horário fixo para estudar. Aproveite as indicações de Material Complementar. Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma Não se esqueça de se alimentar e de se manter hidratado. Aproveite as Conserve seu material e local de estudos sempre organizados. Procure manter contato com seus colegas e tutores para trocar ideias! Isso amplia a aprendizagem. Seja original! Nunca plagie trabalhos. UNIDADE Literatura Apocalíptica: O Mito dos Vigilantes Contextualização Já sabemos que o objetivo desta disciplina é estudar o gênero apocalíptico. Trata-se, portanto, uma disciplina dedicada aos estudos literários, uma matéria que tem o propósito de compartilhar conhecimentos específicos sobre os textos apoca- lípticos, tendo em vista, obviamente, a compreensão que terão os teólogos por nós formados, das porções apocalípticas de suas Bíblias. Era previsível que dedicaríamos boa parte de nossos estudos à análise dos ele- mentos que caracterizam o gênero apocalipse, mas, tendo passado rapidamente por essa parte de nossos estudos nas unidades anteriores, entendemos que o olhar dos leitores agora se volta para a aplicação do conhecimento adquirido à leitura do Apocalipse de João. Será que informações recebidas sobre o gênero apocalipse nos ajudarão a compreender aquela misteriosa literatura neotestamentária? Será que conhecer algumas das características gerais do gênero e entender razoavelmen- te as causas de suas origens bastam para superar o hermetismo daquele que é o mais velado dos livros bíblicos? Veremos. Por hora, seguiremos aperfeiçoando nossa compreensão sobre o gênero apo- calíptico através de alguns estudos mais analíticos. Isto é, a partir de agora, nos dedicaremos à leitura de passagens selecionadas de alguns livros que, segundo o consenso acadêmico, são textos apocalípticos. O procedimento metodológico é o da abordagem literária, tomando exemplos tanto dos livros bíblicos quanto de textos apócrifos sem fazer distinções religiosas, sem assumir juízos de valor pre- viamente estabelecidos. O que esperamos é que você, leitor, compreenda as limitações inerentes a este projeto e saiba, ao menos, o caminho que poderá seguir caso queira saber mais. Nestas páginas, não será possível abordar todos os textos, não teremos tempo para ler os livros completos, mas a escolha de fragmentos dispersos em diferentes livros servirá quantitativamente para exemplificar o conteúdo de nossa prévia exposição sobre as características gerais do gênero apocalipse, e supomos que você terminará o curso mais apto para a leitura e para a compreensão dos Apocalipses. Figura 1 – Fra Angelico, Last Judgment (1431) Fonte: Wikimedia Commons 8 9 Introdução Introduziremos esta unidade fazendo mais um resumo do conteúdo estudado anteriormente. Queremos fornecer um quadro geral das características distintivas do gênero apocalipse, um resumo que poderá ser usado para consultas, que servirá como instrumento didático e como auxílio às análises futuras. Pedimos que você comece lendo e estudando de maneira atenta os pontos abai- xo, dedicando maior atenção àqueles que porventura não foram perfeitamente assi- milados pela leitura das unidades anteriores. Procure observar, também, as palavras ou expressões destacadas em itálico, as quais poderão, em breve, servir como gatilhos para a sua memória: • Apocalipses são documentos de revelação mediadas; narram experiências sobrenaturais em que um visionário é guiado por um mediador à descoberta daquilo que se quer revelar. • O imaginário apocalíptico costuma revelar um mundo invisível e dualista, em que as forças do bem e do mal enfrentam-se. Esse embate é determinante para o destino da humanidade e, evoluindo, ocasiona sérias consequências para todo o universo. • Pessimistas com relação à realidade empírica, os apocalípticos esperam ca- tástrofes, anunciam guerras, mortes, abalos cósmicos, tempos de incompa- ráveis tribulações. • Esses tempos difíceis só terminam quando ocorre uma intervenção divina de- finitiva, o que se anuncia como um juízo escatológico. Por tudo isso, a es- perança dos apocalipses se transfere para o que há depois do fim do mundo, depois da destruição do mundo. • Enfim, o sonhado tempo de paz e felicidade esperada pelos apocalípticos se materializa na utopia de um novo mundo, novo paraíso, o qual deixa de ser, geralmente, terreno como no Gênesis. Apocalipses falam mesmo de nova criação, de um lugar de habitação eterna para os justos ressuscitados. • De maneira geral, nos apocalipses, as descobertas dos espaços transcendentes se dão de maneira gradual. Os viajantes conhecem aos poucos os níveis (cada vez mais elevados) dos ambientes celestes. • Os apocalipses são produções literárias, obras que já nascem em forma escrita, o que as diferencia da profecia tradicional que, como vimos, era em grande parte dependente da oralidade. • Os autores dos apocalipses frequentemente recorrem à pseudonímia, isto é, omitem sua identidade e escrevem em nome de personagens célebres. • Na maioria dos apocalipses, os visionários passam por experiências fantásticas que os afetam fisicamente. É comum que, após seu retorno, o visionário en- fraqueça, adoeça, ou até retorne de sua viagem celestial com alguma sequela. 9 UNIDADE Literatura Apocalíptica: O Mito dos Vigilantes Agora, teste seus conhecimentos. Repetiremos as palavras-chave que foram des- tacadas no resumo acima; leia-as e procure descrever, com suas palavras, o que é um apocalipse: • Revelação mediada; • Mundo invisível e dualista; • Pessimismo apocalíptico; • Juízo escatológico; • Nova criação; • Revelação gradual; • Produção escrita; • Pseudonímia; • Sequelas do visionário. Supomos que você estápronto(a) para seguir. Respire fundo e role o texto com entusiasmo, com boas expectativas, com curiosidade... Você vai conhecer, final- mente, o Mito dos Vigilantes. Figura 2 – Paraíso Fonte: Getty Images O Mito dos Vigilantes O Mito dos Vigilantes não é, necessariamente, um livro. Na verdade, ele é um livro que está contido noutro livro. Como ocorre em boa parte dos livros bíblicos, o Mito dos Vigilantes está contido nos primeiros capítulos de um livro que reúne conteúdos apocalípticos chamado 1Enoque. Como em muitos livros bíblicos, é pos- sível encontrar certas incoerências e incoesões na sequência narrativa de 1Enoque, resultados de um trabalho redacional que juntou diferentes tradições, diferentes camadas textuais num único livro. 10 11 O que importa na leitura de 1Enoque e, mais especificamente, no Mito dos Vigilantes, é que, além de ser um texto apocalíptico com excelente material para nossos estudos sobre o gênero apocalipse, ele foi muito popular e deixou marcas indeléveis no cristianismo dos primeiros séculos. Isto é, 1Enoque provavelmente foi lido pelos autores e leitores do Novo Testamento e os influenciou muito, direta ou indiretamente: O Mito dos Vigilantes, apesar de desconhecido do público acadêmico brasileiro em geral, constitui uma das narrativas fundantes do ocidente. Isso é dito sem nenhum exagero, uma vez que esta narrativa influencia muito a forma como o judaísmo e o cristianismo compreendem a origem do mal e do demoníaco no mundo, a fundação da cultura e o papel que nela tem os seres divinos e os humanos, especialmente representados pelas mulheres. (NOGUEIRA, 2006, p. 145-146) 1Enoque é, como você já deve ter notado, um texto que faz uso de pseudonímia. Em algum momento entre os séculos III e II a.C., alguém reuniu textos de caráter apocalíptico em torno da identidade fictícia de Enoque, um personagem que, como sabemos, foi tomado por Deus, segundo o narrador do Gênesis (NOGUEIRA, 2008, p. 23-24). Acredita-se que as seções mais antigas de 1Enoque tenham sido escritas antes da revolta macabeia, mas, a despeito das imprecisões relacionadas à datação dos escritos, uma afirmação mais segura é a de que nenhuma porção do livro seja anterior ao período helenístico (COLLINS, 2010, p. 76). Do ponto de vista narrativo, Enoque é um personagem de pequena importância para o enredo do Gênesis. O nome de Enoque aparece em apenas alguns versícu- los, mas a ideia a respeito de seu desaparecimento é tão misteriosa que, mesmo em meio a uma daquelas genealogias cansativas, chama a atenção e excita a imagina- ção dos leitores da Bíblia desde os primórdios. Gênesis 5.24, diz: “Enoque andou com Deus; e não apareceu mais, porque Deus o tomou”. Em poucas palavras, o narrador parece exaltar o comportamento de Enoque dizendo, de maneira metafó- rica, que ele “andou com Deus”, e explica seu sumiço de maneira radical: “Deus o tomou”. Esses foram os dois ingredientes poderosos que fizeram esse personagem secundário saltar das páginas para ganhar vida na imaginação dos leitores. Como os autores de apocalipses costumavam fazer uso da pseudonímia, é claro que se lembraram de Enoque; esse era o nome certo para encabeçar um livro de revelações sobre as coisas celestiais. Quem, melhor que Enoque, poderia voltar aos homens para descrever os cenários celestes? Por conta disso, no capítulo 12 de 1Enoque, lemos: Enoque havia desaparecido, e nenhum dos filhos dos homens sabia onde ele se encontrava, onde se ocultava e o que era feito dele. O que ocorrera é que ele havia estado junto dos Guardiões e transcorreu os seus dias na companhia dos Santos. 11 UNIDADE Literatura Apocalíptica: O Mito dos Vigilantes 1Enoque é, retomando, uma coletânea de textos apocalípticos, dentre os quais está o Mito dos Vigilantes. Em seu primeiro versículo, o narrador (Enoque) anuncia, em estilo bem apocalíptico, os motivos de sua obra: Os anjos proporcionaram-me a visão d’Ele, e deles é que eu aprendi tudo; por meio deles também me foi dado compreender as coisas que pude ver, mas não em relação à geração presente, mas sim em relação a uma geração futura. (1En 1.1) Aqui começa nossa aplicação dos elementos característicos do gênero apocalip- se na análise: Observe que 1Enoque pretende ser um texto de revelação; um anún- cio de um visionário, um testemunho das coisas que Enoque viu fora do mundo. Dentre as coisas que ele viu, está o próprio Deus (a visão d’Ele) e coisas que dizem respeito a uma geração futura. Note-se, também, que a revelação de Enoque foi mediada; ele fala da ajuda que recebeu dos anjos, os quais lhe proporcionaram a visão, o conteúdo e sua compreensão. Figura 3 Fonte: Getty Images As Mulheres e os Anjos A intertextualidade entre 1Enoque e o Gênesis, que já motivara a escolha de Enoque como personagem (autor-implícito), se intensifica a partir do capítulo 6, quando começamos, de fato, a leitura do Mito dos Vigilantes. O primeiro versículo diz o seguinte: Quando outrora aumentou o número dos filhos dos homens, nasceram- -lhes filhas bonitas e amoráveis. Os anjos, filhos do céu, ao verem-nas, desejaram-nas e disseram entre si: “Vamos tomar mulheres dentre as filhas dos homens e gerar filhos!”. (1En 6.1) 12 13 A narrativa afirma que os anjos desceram, escolheram mulheres, tomaram-nas e passaram a profanar-se com elas, gerando filhos. Como se não bastasse, o texto diz ainda que os anjos que desceram à terra “ensinavam-lhes [às mulheres] bruxarias, exorcismos e feitiços, e familiarizavam-nas com ervas e raízes” (1En 7.1): “conhe- cíeis um segredo que não convinha passar, e na vossa imprudência o transmitistes às mulheres. Através da revelação desse segredo, homens e mulheres praticam muitas desgraças sobre a terra” (1En 16.2). Note-se que, por se tratar de uma história que teria ocorrido no passado, nas origens, essa história assume a forma de um mito das origens que tenta explicar as razões dos bem conhecidos males do mundo. Já que estamos tratando de um texto apocalíptico que é comumente tratado como um mito, julgamos pertinente incluir aqui algumas linhas de Mircea Eliade, autor que tentou definir o mito com muitas palavras, das quais selecionamos as seguintes: [...] o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir [...] Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramá- ticas, irrupções do sagrado (ou do “sobrenatural”) no Mundo. É essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no que é hoje. (ELIADE, 2016, p. 11) Ex pl or Todas as formas de feitiçarias conhecidas e condenadas pela cultura dos anti- gos israelitas seriam, na ótica do narrador de 1Enoque, o resultado de uma relação pecaminosa. Eram saberes mágicos legítimos, mas próprios dos seres celestiais; saberes cujo domínio não deveria, sob hipótese alguma, ter chegado ao conheci- mento dos homens. Uma consequência negativa desse mito é que ele coloca as mu- lheres numa posição desconfortável: elas são retratadas como perigosas, sedutoras, mediadoras entre os homens e os anjos caídos, transmissoras das mais variadas e condenáveis formas de bruxaria. O Mito dos Vigilantes abre caminho para uma conhecida trajetória de preconceitos que faria do judeu-cristianismo um propagador de uma mentalidade misógina (TERRA, 2008). É bem provável, inclusive, que a influência do Mito dos Vigilantes seja a causa de um estra- nho versículo de 1Coríntios 11.10: “Por isso, deve a mulher ter sobre a cabeça uma autorida- de, por causa dos anjos”. Sobre esse tema, o da possível relação entre o imaginário religioso de Paulo e o Mito dos Vigiantes na construção dogmática de 1Coríntios 11.10, leia o artigo de Anderson Dias de Araújo (ARAÚJO, 2008). Ex pl or Além de os anjos terem descido à terra atraídos pela beleza feminina e de terem transmitido à espécie humanauma série de conhecimentos proibidos, as mulhe- res passaram a gerar os filhos desses anjos, seres híbridos que na narrativa são chamados de “gigantes”. Mas o mundo não estava preparado para sustentar essas 13 UNIDADE Literatura Apocalíptica: O Mito dos Vigilantes aberrações. Os gigantes, sempre famintos, esgotaram as provisões humanas; de- pois, começaram a comer todas as espécies de animais e a devorar os próprios homens. Noutro ponto da narrativa, lemos que os tais gigantes não eram apenas serem grandes e famintos, mas também maus: Os gigantes, porém, que foram gerados do espírito e da carne, serão chamados na terra de espíritos maus [...] Os espíritos dos gigantes são cheios de maldade, cometem atos de violência, destroem, agridem, bri- gam, promovem a devastação sobre a terra e instauram por toda parte a confusão. (1En 15.5-6) O que vemos é que a narrativa instaura um cenário caótico. Como mito, ela praticamente oferece uma versão alternativa ao mito bíblico que explica a queda no Gênesis, e nos coloca diante de outra história que pretende explicar a origem de to- dos os males. Mas, obviamente, é necessário ir adiante e descobrir como as coisas se resolveram, que atitudes foram tomadas para restaurar minimamente a ordem. Uma Origem para os Demônios Quando o enredo começa a fazer o caminho de volta em direção à ordem ini- cial, os anjos que haviam permanecido fiéis, testemunhando os acontecimentos e o desespero dos homens na terra, relataram a Deus os terríveis eventos perpetrados pelos anjos pecadores, dizendo: Eles procuraram as filhas dos homens sobre a terra, deitaram-se com elas e tornaram-se impuros; familiarizaram-nas com toda sorte de pecados. As mulheres pariram gigantes e, em consequência, toda a terra encheu- -se de sangue e de calamidades. (1En 9.5) Deus começa a atuar, primeiro, através de seus anjos. Ele manda Uriel avisar o filho de Lamech, com a finalidade de poupá-lo da aniquilação. Essa é a lacuna dei- xada para que o leitor encaixe, no meio do Mito dos Vigilantes, a lenda do dilúvio. Depois, Deus fala a Raphael e a Miguel, e ordena que prendam Azazel e Semjaza (líderes dos anjos pecadores) até o dia do grande juízo. E a Gabriel, Deus ordena que incite a guerra entre os gigantes para que eles se destruam mutuamente. O caráter apocalíptico do livro se mostra mais explicitamente quando lemos a partir do capítulo 12. Enoque assume a narração e passa a relatar suas expe- riências, suas visões, seu papel como mediador entre os seres caídos e os céus... Ele, tal qual um profeta, é enviado a anunciar o juízo divino sobre os guardiões (ou vigilantes) que haviam pecado (1En 12.2). Tomados de medo, os guardiões caídos pedem que o próprio Enoque interceda por eles. Escreveram um pedido de perdão para que Enoque lesse diante de Deus e intercedesse por eles. Enoque foi a um lugar especial e, de lá, leu a súplica dos guardiões em voz alta (para que Deus ouvisse); depois adormeceu e passou a ter visões, as quais relatou aos anjos caídos quando acordou (1En 13). Essas visões são narradas a partir do capítulo 14, uma seção em que os elementos típicos do gênero apocalipse saltam aos olhos. 14 15 Em sua visão, Enoque é tomado por fenômenos naturais (nuvens, névoa, vento, raios) que o conduzem ao céu. E ele passa a narrar sua visão: Eu entrei por ele, até defrontar-me com um muro, todo feito de cristal e circundado de línguas de fogo. Isso começou a inspirar-me grande medo. Todavia, eu entrei pelas línguas de fogo adentro e aproximei-me de uma grande casa, toda construída de cristal [...] E eu entrei naquela casa, que era quente como o fogo e fria como a neve; dentro dela não existia aco- modação alguma; fiquei prostrado de medo e tomado pelo tremor [...] Havia lá uma outra casa, maior ainda do que a primeira [...] Em todos os seus aspectos ela revelava brilho, fausto e grandeza, de tal sorte que eu não saberia como descrever-vos sua magnificência e tamanho [...] Olhei, e vi dentro dela um trono muito alto [...] A grande majestade assentava-se sobre ele; suas vestes eram mais brilhantes do que o sol e mais brancas do que a neve [...] Então o Senhor por sua própria boca dirigiu-se a mim e disse: “Aproxima-te, Enoque! Escuta a minha palavra!”. Então um dos Santos chegou até onde eu estava e despertou-me do meu torpor; fez-me levantar e conduziu-me até o vestíbulo; eu, porém, deixei pender minha cabeça. (1En 14.6-15) É possível dizer que temos o relato de uma viagem celestial involuntária, na qual um eleito faz uma jornada de revelação progressiva e parece ter seus sentidos altera- dos pela grandiosidade da experiência. Na visão, ele testemunha coisas que, depois de seu retorno, não é capaz de descrever em linguagem humana, pelo que apela às metáforas, aos símbolos, aos objetos e elementos que, em seu tempo, eram próprios dos círculos mais nobres. Em vários momentos, nos lembramos do modo de narrar do Apocalipse de João, nos sentimos familiarizados com as sentenças breves, com as expressões características dos visionários apocalípticos como “olhei, e vi...”, além de já esperarmos sua tentativa de criar para o leitor um cenário espetacular que em- prega a luz como símbolo de pureza, sinal da presença e da glória divinas. Figura 4 – Luca Giordano, The Fall of the Rebel Angels (1666) Fonte: www.wga.hu 15 UNIDADE Literatura Apocalíptica: O Mito dos Vigilantes Enoque foi conduzido aos céus (em sua visão) para ouvir de Deus que os anjos rebeldes não seriam atendidos em sua petição, não obteriam perdão. O Senhor manda-lhes um recado: “Sois vós que devíeis interceder pelos homens, nãos os homens por vós!” (1En 15.1). Segundo Deus, ao descerem para tomar mulheres dentre os humanos e gerar filhos com elas, “vos igualastes àqueles que são mortais e transitórios” (1En 15.3). O mais relevante desse pronunciamento divino é o que ele diz sobre o destino dos gigantes, filhos dos anjos rebeldes, e das mulheres humanas: A partir dos dias da matança, do extermínio e da morte dos gigantes, quando os espíritos abandonarem seu corpo carnal sem sofrerem julga- mento e condenação, eles continuarão a agir daquela maneira perversa, até o dia do grande Juízo Final [...] (1En 16.1) Os anjos caídos, causadores dos grandes males do mundo, seriam aprisionados até o dia do julgamento. Seus filhos, por outro lado, seriam mortos, mas seus espí- ritos seguiriam existindo e agindo maleficamente entre os homens. Assim, temos um nascimento mitológico para os demônios, seres malignos que, como sabemos, passaram a dominar o imaginário religioso dos judeus antigos, as páginas do Novo Testamento e também a história do cristianismo (TERRA, 2010, p. 45). Últimas Observações Um ponto a relembrar, antes de encerrarmos nossa rápida passagem pelo Mito dos Vigilantes, é que, diferente do que víamos nos textos proféticos, agora os ho- mens já não exercem um papel tão determinante no destino dos acontecimentos. O texto apocalíptico não se baseia em exortações, não se volta aos pedidos de ar- rependimento, não trata dos males como resultados dos erros humanos. Aqui, nos dias em que a profecia deu lugar à apocalíptica, o passado e o futuro dos homens parecem determinados por forças maiores, externas, por embates entre seres so- brenaturais. Isso é o que observa Paulo Nogueira a respeito do Mito dos Vigilantes: Os seres humanos são peças – na melhor das hipóteses, vítimas – no jogo dos seres angélicos. Aqui temos uma alteração fundamental em relação à profecia clássica. O papel dos seres humanos nas decisões é reduzido drasticamente, pois a presença dos interlocutores celestes lhes rouba im- portância. (NOGUEIRA, 2008, p. 28) A importância desse nosso contato com 1Enoque (dissemos desde o início) se deve à hipótese amplamente aceita de que este livro foi muito famoso nos séculos que antecederam a escrita do Novo Testamento, circulou por diversos grupos reli- giosos e influenciou a todos, fazendo com que muitos de seus elementos passassem a fazerparte da cultura judaica em geral. 16 17 É essencial, para nossos interesses, o fato de esse livro ter influenciado, direta ou indiretamente, grande parte do material que hoje compõe o Novo Testamento, den- tre eles, claro, o livro que chamamos de Apocalipse. Mas 1Enoque caiu em desuso nalgum momento e ficou esquecido, o que parece ter ocorrido depois que alguns grupos religiosos alcançaram certo poder institucional, definiram seus respectivos cânones, deixando de fora livros populares como 1Enoque e até reprimindo seu uso (NOGUEIRA, 2008, p. 23-24). 17 UNIDADE Literatura Apocalíptica: O Mito dos Vigilantes Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Livros Apócrifos e Pseudoepígrafos da Bíblia Apócrifos e Pseudoepígrafos da Bíblia, obra que foi organizada por Eduardo de Proença e que foi publicada pela Fonte Editorial em 2010. Os Anjos que Caíram do Céu: O livro de Enoque e o demoníaco no mundo judaico-cristão Os anjos que caíram do céu: o livro de Enoque e o demoníaco no mundo judaico- cristão (TERRA, 2014). Leitura A Literatura Apocalíptica e a Ideia de Ordem e de Fim José Augusto M. Ramos, A literatura apocalíptica e a ideia de ordem e de fim (RAMOS, 2002). Assim que possível, baixe o artigo e leia mais esse texto dissertativo sobre o gênero apocalíptico. https://bit.ly/2E1Zb4B Os Espíritos Imundos nos Sinóticos e o Mito dos Vigilantes Leitura de Os espíritos imundos nos sinóticos e o Mito dos Vigilantes (TERRA, 2010). https://bit.ly/2JromB0 18 19 Referências ARAÚJO. Anderson Dias de. Anjos vigilantes e mulheres desveladas: uma relação possível em 1 Coríntios 11,10? São Bernardo do Campo: Orácula, v. 4, n. 8, p. 142-181, 2008. COLLINS, John J. A imaginação apocalítica: uma introdução à literatura apocalíp- tica judaica. São Paulo: Paulus, 2010. ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 2016. NOGUEIRA, Paulo. O Mito dos Vigilantes: apocalípticos em crise com a cultura helenista. Religião e Cultura, v. 10, p. 145-155, 2006. ________. O que é apocalipse (Coleção primeiros passos, 333). São Paulo: Brasil- iense, 2008. PROENÇA, Eduardo (org.). Apócrifos e pseudo-epígrafos da Bíblia. São Paulo: Fonte Editorial, 2010. RAMOS, José Augusto M. A literatura apocalíptica e a ideia de início e de fim. Mil- lenarium (Revista Portuguesa de Ciência das Religiões), Ano I, n. 1, p. 43-53, 2002. TERRA, Kenner R. C. A construção da mulher perigosa...: A leitura do Mito dos Vigilantes nas tradições judaicas e cristãs. São Bernardo do Campo: Orácula, v. 4, n. 8, p. 182-200, 2008. ________. Os anjos que caíram do céu: o livro de Enoque e o demoníaco no mun- do judaico-cristão. São Paulo: Fonte Editorial, 2014. ________. Os espíritos imundos nos sinóticos e o Mito dos Vigilantes. São Bernardo do Campo: Orácula, v. 6, n. 11, p. 40-61, 2010. 19
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