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HORTA RAMOS Entre as veredas da Cultura e da Civilização
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ENTRE AS VEREDAS DA CULTURA E DA CIVILIZAÇÃO* José Luiz Borges Horta** e Marcelo Maciel Ramos*** “Quando o homem se põe a estudar a cultura, não faz senão estudar a si mesmo, na riqueza imprevisível de suas energias criadoras, como se o espírito se reencontrasse ou se reconhecesse espelhando-se nos feitos da História”. MIGUEL REALE, Filosofia do Direito, p. 221. SUMÁRIO 1. Direito, Cultura e Civilizações: um desafio à jusfilosofia do séc. XXI. 2. Dimensões etimológicas de Cultura. 3. Dimensões conceptuais de Cultura. 4. Dimensões etimológicas de Civilização. 5. Cultura ou Civilização? 6. Uma breve conclusão. 7. Referências Bibliográficas. 1. DIREITO, CULTURA E CIVILIZAÇÕES: UM DESAFIO À JUSFILOSOFIA DO SÉC. XXI O Direito é tradicionalmente concebido como um fenômeno ocidental, legatário da concepção romana de Urbi et Orbi. Assim, em sede de Direito Comparado1, confere-se grande importância ao Direito Europeu, Continental (sistema romano-germânico, ou romanístico, consagrado nos povos ibéricos, latinos e na Alemanha, bem como em suas colônias) ou Insular (decorrente da tradição da Common Law inglesa, hoje presente na Commonwealth extremo-ocidental). O século XXI oferece um rico panorama de culturas em ebulição, muitas vezes pela via de conflitos civilizacionais. SAMUEL HUNTINGTON, pensador norte-americano, é o grande responsável pela proposição de um enfoque civilizacional2 para a compreensão da contemporaneidade. * O presente artigo compõe-se de reflexões desenvolvidas junto à linha de pesquisa em Direito, Razão e História, do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais; parte dele integrou a dissertação de mestrado RAMOS, Marcelo Maciel. Ética Grega e Cristianismo na Cultura Jurídica do Ocidente. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2007 (Dissertação, Mestrado em Filosofia do Direito). Sua redação — para a qual colaboraram os jovens pesquisadores DANIEL CABALEIRO SALDANHA, da Universidade Federal de Minas Gerais, e MARCELO CAETANO, da Universidade de São Paulo — insere-se no projeto Direito, Cultura e Civilizações, integrante do Programa de Auxílio à Pesquisa dos Recém-Doutores da Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais.. ** Doutor em Filosofia do Direito pela UFMG. Professor de Filosofia do Estado e de História do Direito na Faculdade de Direito da UFMG. *** Mestre em Filosofia do Direito pela UFMG. Doutorando em Direito na UFMG, com bolsa da Fundação CAPES. 1 Veja-se o clássico DAVID, René. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. Trad. Hermínio A. Carvalho. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 1-14. 2 HUNTINGTON, Samuel P. O Choque de Civilizações; e a recomposição da ordem mundial. Trad. M. H. C. Côrtes. São Paulo: Objetiva, 1997. Entende HUNTINGTON que o ideal ocidental de civilização universal3 não se sustenta ante um mundo fracionado em ao menos sete grandes civilizações4 que, em regra, “vêem como ocidental o que o Ocidente vê como universal”5. Assim, seria delirante a perspectiva de uma juridicidade universal, como supõem ou fazem supor os estudos tradicionais de Direito Comparado. É imprescindível, num mundo marcado de incertezas, a atenção ao outro, ao diferente, e a compreensão de suas sutilezas culturais. O mundo oriental merece atenção à sua riqueza6, marcada pela rica cultura confucionista chinesa, a tradição hindu7, as perspectivas do mundo eslavo- ortodoxo, do Islã8, e o mesmo vale para a África negra, ainda cindida por clãs e tribos. Mesmo na Europa, as fraturas civilizacionais fazem-se sentir claramente, na permanente e milenar tensão entre romanos ocidentais e orientais, hoje católicos ocidentais-romanos e orientais-ortodoxos, e mesmo na persistente questão islâmica9. Poucos autores, em Direito, têm atentado para a juridicidade oriental: GILISSEN talvez seja a mais significativa exceção, consagrando em sua Introdução Histórica ao Direito duas dezenas (!) de páginas aos grandes sistemas jurídicos tradicionais não europeus10. Há inequívoca demanda, no Ocidente e especialmente no Brasil, por fontes de referência acerca dos marcos jurídicos e legais de parceiros internacionais potencialmente importantes como China, Índia e Rússia11. Por outro lado, a África e os países lusófonos permanecem sequiosos da intervenção brasileira em questões de re- institucionalização político-jurídica, para as quais recomenda-se uma especial atenção às realidades culturais extra-ocidentais. A compreensão e a percepção dos universos culturais de povos afins pode ser estratégica para garantia da consistência teórica de nossa participação político-econômica na ordem mundial, 3 HUNTINGTON, O Choque de Civilizações, cit., p. 78. 4 HUNTINGTON entende coexistirem as seguintes civilizações: sínica (chinesa, ou confuciana), japonesa, hindu, islâmica, ortodoxa (eslavo-ortodoxa), ocidental, latino-americana e possivelmente africana; v. HUNTINGTON, O Choque de Civilizações, cit., p. 50-4. HUNTINGTON, inserido nos marcos norte-americanos, não percebe a profunda distinção entre a cultura européia continental e a anglo-saxã (de resto, claríssima em termos de Direito Comparado); já ALEXANDRE DEL VALLE, geoestrategista sediado em França, identifica profundas diferenças entre o que chama de três grandes componentes da civilização européia (América, Europa ocidental e Europa eslavo-ortodoxa); v. DEL VALLE, Alexandre. Guerras contra a Europa. Trad. José Augusto Carvalho. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2003, p. 19 et circa. 5 HUNTINGTON, O Choque de Civilizações, cit., p. 78. 6 E.g., trabalhada em HENRIQUES, Antônio. Iniciação ao Orientalismo. Rio de Janeiro: Nova Era, 2000. 7 ZIMMER, Heinrich. Filosofias da Índia. Trad. Nilton Almeida Silva e Cláudia Giovani Bozza. 2.ed. São Paulo: Palas Athena, 2003. 8 ATTIE FILHO, Miguel. Falsafa; a filosofia entre os árabes, uma herança esquecida. São Paulo: Palas Athena, 2002. 9 A Europa pauta-se, hoje, como uma civilização em grave crise cultural, como detalha LAQUEUR, Walter. Os últimos dias da Europa; epitáfio para um velho continente. Trad. André Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Odisséia Editorial, 2007. 10 GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. Trad. A. M. Hespanha e L. M. Macaísta Malheiros. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 101-26. 11 Brasil, Rússia, Índia e China compõe o chamado BRIC’s, bloco econômico para o qual imagina-se que penderá o pêndulo da economia, em algumas décadas.. bem como, para fins da integração ibero-latino-americana, a investigação de nossos marcos históricos é imprescindível. Para tanto, de início, é preciso indagar do conceito de cultura e do conceito de civilização. 2. DIMENSÕES ETIMOLÓGICAS DE CULTURA O termo cultura deriva das expressões latinas cultura agri e cultura animi12, que significavam, respectivamente, o processo de cultivo da natureza e o do espírito. Ambos os sentidos ainda estão presentes no uso contemporâneo da palavra; da primeira expressão originou-se o termo agricultura, que se refere à preparação coordenada de lavouras para a produção de alimentos e de matérias primas para o homem — daí falarmos em cultura de arroz, de milho, de pérolas etc. Da segunda expressão resultou a noção de cultura, no sentido de educar o espírito, de instruir-se, acepção que está ainda hoje amplamente difundida no uso comum (ou vulgar) da palavra. Modernamente, o vocábulo latino cultura passou a ser empregado pelos alemães, sob a forma de Kultur ou Cultur, como termo técnico para se referir não mais ao processo de cultivo do espírito13, mas aos costumes e hábitos de determinados grupos humanos. KROEBER e KLUCKHOHN, em obra primorosa14, recolhem uma infinidade de definições para o termo cultura, a fim de resgatar as variações históricas do seu uso, e atestam que foi dos trabalhos dos