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1 Universidade Estadual do Ceará / Faculdade de Veterinária Bioquímica Veterinária II Prof. Dr. Genário Sobreira Santiago Diabetes Mellitus em Pequenos Animais 1. INTRODUÇÃO O diabetes mellitus é um distúrbio complexo que resulta da incapacidade das ilhotas de Langerhans secretar insulina e/ou da ação de insulina deficiente nos tecidos. Esta é uma endocrinopatia comum em cães e gatos e pode ser fatal se for incorretamente diagnosticada ou inadequadamente tratada. O diabetes é uma doença que vem sendo amplamente estudada ao longo da história da medicina, já tendo sido registrada nos mais longínquos anos (quadro 1). A insulina é produzida nas células 𝛽 das ilhotas de Langerhans do pâncreas e é armazenada em vesículas do aparelho de Golgi em uma forma inativa (pró-insulina). Nessas células existem receptores celulares que detectam níveis de glicose plasmática após uma alimentação rica em carboidratos. A insulina é ativada e liberada na corrente sanguínea. A captação de glicose pela célula se dá pelo encaixe da insulina com um receptor específico existente na membrana celular. Este complexo sofre endocitose, permitindo a entrada de glicose, eletrólitos e água para a célula. A glicose é então metabolizada (através da glicólise e do ciclo do ácido cítrico). A insulina sofre degradação pelas enzimas intracelulares e o receptor é regenerado, reiniciando-se o processo. Quanto mais o complexo insulina/receptor é endocitado, mais glicose entra na célula, até que o plasma fique hipoglicêmicos. Essa hipoglicemia, entretanto não é imediata, pois a regeneração do receptor é limitante da entrada de glicose na célula, 2 de forma a possibilitar somente a entrada da glicose necessária, evitando, assim, o excesso de glicose intracelular. Como resultado dessas reações, ocorre a queda gradual da glicemia (hipoglicemia) que estimula as células 𝛼-pancreáticas a liberar glucagon, hormônio que possui ação antagônica a insulina. Quadro 1. Histórico do estudo do diabetes mellitus Gregos O nome diabetes foi dado pelos gregos e significa “passar através de um sifão” em referência ao sintoma de poliúria. Areteo Descreveu a doença acreditando que o problema radicava nos rins Chineses Chamaram a doença de “doença da sede” Indianos Chamaram a doença de “doença do mel” Charaka & Susruta (Índia) Descreveram aspectos da doença como seu caráter hereditário e sua relação com a obesidade Cullen (1774) Propôs o nome diabetes mellitus, para diferenciá-la de diabetes insípida, originada da deficiência de vasopressina (ADH). Cawley (1788) Foi o primeiro a sugerir a relação do pâncreas com o diabetes Chevreul (1815) Identificou a glicose como sendo o açúcar da urina Ambrosiani (1836) Descobriu que a glicose sanguínea estava elevada nos pacientes diabéticos Trommer (1841) e Fehling (1848) Desenvolveram métodos rápidos de análise de glicose no sangue Peters (1851) Encontrou acetona na urina de diabéticos Pavy (1862) Estabeleceu a relação entre hiperglicemia e glicosúria Stadelhman (1883) Identificou a presença do ácido beta-hidroxibutírico no sangue de diabéticos Naunyn A partir dos dados de Stadelhman estabeleceu uma explicação para o quadro de acidose encontrado no diabetes Paul Langerhans (1905) Estudante de medicina em Berlim, descobriu as ilhotas de Langerhans Macleod & Banting (1923) Foram agraciados com o Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina, com trabalhos relacionados a descoberta da insulina Frederick Sanger (1958) Determinou a estrutura primária da insulina Os hormônios pancreáticos, insulina e glucagon, possuem ação regulatória sobre a glicemia, não sendo os únicos envolvidos no metabolismo dos carboidratos. Os hormônios sexuais, adrenalina, os glicocorticoides e os hormônios tireoidianos também têm influência sobre a glicemia. A grande maioria das células do organismo é dependente da insulina para captar glicose (quadro 2). Com exceção de células que são permeáveis à glicose, independente da insulina, como as do cérebro, do cristalino, da retina, dos nervos, da mucosa intestinal, do rim, dos eritrócitos, dos vasos sanguíneos, e das ilhotas pancreáticas, os demais tecidos, em particular o músculo esquelético, o músculo liso, o músculo cardíaco e o tecido adiposo são dependentes de insulina para permear a 3 glicose da corrente sanguínea. As células hepáticas não dependem da insulina para permear a glicose, mas esse hormônio está diretamente relacionado com elas porque estimula a atividade da glicoquinase hepática, uma isoenzima da hexoquinase no fígado, justamente a de 𝑘𝑚 baixo. A deficiência na produção ou ausência total de insulina ou dos receptores caracterizam uma das doenças metabólicas de grande importância na prática clínica veterinária. Quadro 2. Principais transportadores de glicose Transportador Tecido Dependência da insulina GLUT- 1 Eritrócito Não GLUT- 2 Hepatócitos, células β do pâncreas, mucosa intestinal e rim. Não GLUT- 3 Cérebro Não GLUT- 4 Músculo esquelético, músculo cardíaco e tecido adiposo Sim Fonte: SILVA (2005) 2. CLASSIFICAÇÃO Sob o nome diabetes mellitus são agrupadas uma série de transtornos metabólicos caracterizados por hiperglicemia e glicosúria. Tem sido observada em quase todos os animais de laboratório, bem como em cavalos, vacas, ovelhas e porcos, mas a incidência é maior em cães e gatos. É estimada uma prevalência de 1 caso em cada 60 cães e cada 300 gatos. A prevalência nesses animais vem crescendo ano a ano, principalmente nos gatos, provavelmente em consequência dos sistemas de alimentação, que utilizam carboidratos em animais carnívoros, desafiando o pâncreas a produzir mais insulina. São conhecidos pelo menos dois tipos de diabetes mellitus em cães e gatos, diferenciados pelo tipo de resposta à insulina diante de uma administração de glicose: 2.1. Diabetes mellitus insulino-dependente (DMID): Equivale à diabetes mellitus tipo I ou juvenil dos humanos. Neste tipo de diabetes se observa baixos níveis de insulina sanguínea (entre 0-36 pmol/L), com falta de resposta de 4 insulina a administração de glicose. Em animais, esta parece a forma mais comum, observada em cães velhos, maiores de 7 anos, sendo as fêmeas obesas as mais suscetíveis (aproximadamente o dobro de casos) para apresentar o problema. Todos os cães são suscetíveis ao diabetes, mas é normalmente observado em cães de meia idade ou mais velhos. Uma incidência maior é observada em cadelas inteiras. Por outro lado há diferenças na predisposição entre raças (quadro 3). Quadro 3. Raças que parecem ter maior risco de desenvolver diabetes mellitus Keeshond Poodles Samoyedo Dachshund Malamute do Alasca Schnauzer Miniatura Chow Chow Beagles Dobermann Pinscher Puli Old English Sheepdog Golden Retriever Pinscher Miniatura Springer Spaniel Inglês Rhodesian Ridgeback Schipperke Spitz Finlandês West Higland White Terrier Caim Terrier Fonte: MSD – Animal Health (2016) Nos gatos, é mais comum em machos velhos (> 9anos) e castrados. A perda de função das células 𝛽-pancreáticas é irreversível, e os animais com DMID necessitam de terapia insulínica para sobreviver. Praticamente todos os cães e a maioria dos gatos estão nesse estágio de diabetes no momento do diagnóstico. 2.2. Diabetes mellitus não insulino-dependente (DMNID): Equivale à diabetes mellitus tipo II ou adulta em humanos, em que são observados níveis de insulina normais (36-143 pmol/L), ou até acima do normal, porém sem resposta de insulina à administração de glicose. Em torno de 30% dos casos de diabetes 5 mellitus felina corresponde a esta forma. Os animais com DMNID podem ser tratados com dietas hipoglicêmicas orais ou drogas hipoglicemiantes orais que estimulam as células 𝛽-pancreáticas. Entretanto, esses animais devem ser mantidos sob observação, pois é provável que aDMNID (deficiência relativa de insulina) preceda a DMID (deficiência absoluta de insulina). 3. FATORES PREDISPONENTES DO DIABETES MELLITUS A etiologia do diabetes mellitus pode dividida em causas que levam a falha na produção de insulina – primárias; falha no transporte de insulina ou resistência tecidual à insulina – secundárias. Cães e gatos apresentam diferenças na incidência das diferentes causas de diabetes mellitus. No gato, as causas mais frequentes são a amiloidose e a obesidade, e no caso dos cães, a etiologia genética é encontrada na maioria dos casos (quadro 4). O diabetes tem causas multifatoriais. Nos animais, existem alguns fatores predisponentes para a apresentação de diabetes, entre os quais se contam os seguintes: (a) Hiperadrenocorticismo (aumento na produção de glicocorticoides), que estimula a gliconeogênese, provocando hipoglicemia crônica e esgotamento das células 𝛽- pancreáticas. (b) Altos níveis de insulinase, enzima que diminui a meia-vida da insulina, forçando as células 𝛽-pancreáticas a produzirem mais insulina, com perigo de esgotamento. (c) Como sequela de febre aftosa (o vírus danifica as células 𝛽-pancreáticas) (d) Pancreatite crônica (no cão principalmente) (e) Hiperprodução de glucagon que provoca hiperglicemia crônica (f) Hiperprodução de GH. Com resultado similar ao anterior (g) Obesidade (causa resistência à insulina) 6 (h) Estresse (i) Formação de amiloidose em gatos: agregação do polipeptídeo amilina (que se sintetiza junto com a insulina) nas ilhotas pancreáticas. (j) Doenças que causam resistência a insulina (falha da insulina em atuar nos seus órgão-alvo), tais como hipertireoidismo, hiperadrenocorticismo e acromegalia. Quadro 4. Etiologia comparativo diabetes mellitus entre cães e gatos CÃES GATOS Genética Amiloidose Insulinite imuno-mediada Obesidade Pancreatite Infecção Obesidade Doença concomitante Infecção Drogas Doença concomitante Pancreatite Drogas Genética Amiloidose Insulinite imuno-mediada Fonte: PELEGRINI et al. (2009) Em alguns casos, a diabete pode ser de origem autoimune, como no diabetes espontânea em vacas e humanos. Nesses casos, é observada uma infiltração linfocitária do pâncreas, quadro típico da resposta autoimune. Em humanos, o diabetes mellitus parece ter componente hereditário, o que não têm sido confirmado em animais. Entretanto, algumas raças de cães (quadro 3) têm mais predisposição a sofrer o transtorno (Samoyedo, Lhasa Apso, Poodle, Schnauzer Miniatura, Pinscher) do que outras raças ( Pastor Alemão, Pastor Inglês, Pastor Australiano, Pastor Collie, Golden Retriever, Cocker Spaniel, Labrador, Rottweiler). 7 4. IMPLICAÇÕES METABÓLICAS DO DIABETES MELLITUS Os principais efeitos metabólicos que acontecem no diabetes podem ser resumidos nos seguintes pontos: (a) Diminuição / inibição do ingresso e da utilização de glicose pelos tecidos periféricos, resultando em hiperglicemia (b) Aumento da degradação de proteínas musculares e de lipídeos no tecido adiposo, com consequente aumento da concentração sanguínea de aminoácidos e ácidos graxos livres (c) Incremento na síntese hepática de uréia, em decorrência do aumento do metabolismo dos aminoácidos (d) Aumento da gliconeogênese, pelo aumento da atividade das enzimas piruvato carboxilase, PEP carboxiquinase e glicose-6-fosfatase, aumentando ainda mais o teor de glicose do sangue (e) Inibição da lipogênese (f) Aumento da produção de acetil-CoA com o consequente aumento na produção e na concentração sanguínea de corpos cetônicos e de colesterol (h) Cetoacidose A falta absoluta ou relativa de insulina no diabetes mellitus é a causa primária da hiperglicemia, devido ao bloqueio da entrada e da utilização e da utilização de glicose nas células dependentes de insulina para o transporte de glicose. No caso da DMID (figura 1 A), a diminuição na utilização de glicose por parte das células provoca aumento no catabolismo dos lipídeos de reserva como fonte de energia, sendo observada uma hiperlipidemia. Além disso, ocorre aumento da glicogenólise e da gliconeogênese, o que exacerba a hiperglicemia. 8 A degradação de triacilgliceróis aumenta progressivamente à medida que a insulina se torna mais deficiente, devido ao aumento da atividade da lipase hormônio sensível. A elevada liberação de ácidos graxos, como consequência da lipólise, e sua posterior 𝛽-oxidação, leva ao aumento de acetil-CoA, aumento este agravado por dois fatores: Figura 1. Efeitos metabólicos no diabetes mellitus. Em A, são mostrados os efeitos do diabetes mellitus tipo I. Em B, efeitos do diabetes mellitus tipo II. Setas contínuas representam as rotas ou fluxos metabólicos, e as tracejadas indicam bloqueio das mesmas. 9 (a) Ação inibitória dos ácidos graxos sobre a citrato sintetase, primeira enzima do ciclo de Krebs, a qual é fundamental para a completa oxidação do acetil-CoA. (b) Pouca disponibilidade de oxaloacetato, o qual é proveniente da glicose Assim, o acetil-CoA deve seguir outras rotas metabólicas, quais sejam, síntese de colesterol e / ou de corpos cetônicos. O acúmulo de acetil-CoA provoca um aumento na formação de corpos cetônicos (cetose). Os corpos cetônicos (acetoacetato, 𝛽-hidroxibutirato e acetona) se acumulam no sangue, provocando uma acidose do tipo metabólica. Estes corpos cetônicos, especialmente o acetoacetato e a acetona, são excretados pela urina e pelos pulmões, conferindo um odor característico à urina e ao hálito do animal diabético, uma vez que a acetona é volátil na temperatura corporal. A exagerada mobilização de gordura periférica (triacilgliceróis), com liberação de ácidos graxos em circulação, provoca o acúmulo de gorduras no fígado, produzindo hepatomegalia e lesão hepática (lipidose), principalmente em gatos. A hiperlipidemia provocada pelo aumento dos triacilgliceróis é exacerbada pelo seu impedimento de entrar na célula adiposa. Uma vez que os ácidos graxos não são precursores diretos para a gliconeogênese, são utilizadas as proteínas de reserva (músculo) como precursores para esta rota. Assim, simultaneamente com o aumento do catabolismo de gorduras, ocorre aumento do catabolismo proteico. Como consequência, ocorre perda de peso e aumento de uréia no sangue e na urina. A concentração relativamente elevada de glucagon, cortisol e GH no diabetes mellitus contribui para o aumento do catabolismo protéico e da gliconeogênese. No caso da DMNID (figura 1B), o conjunto de efeitos metabólicos é menos dramático. Em comum com a DMID, ocorre uma hiperglicemia, porém sem a concomitante cetose e uremia. Isso ocorre porque a relação insulina / glucagon não está tão diminuída, não havendo, portanto, o acentuado estímulo à lipólise visto na DMID. Também não há catabolismo protéico para gliconeogênese. A hiperlipidemia 10 associada à DMNID é basicamente decorrente do aumento de triacilgliceróis, sem aumento de ácidos graxos livres. Em casos crônicos de diabetes mellitus canina é frequente observar a formação de cataratas, devido ao acúmulo de sorbitol e frutose no cristalino, à alta concentração de glicose intracelular e um suprimento adequado de NADPH que fazem com a aldose redutase, encontrada no cristalino e na retina, reduza a glicose até sorbitol. O sorbitol e a frutose (agentes hidrofílicos) acumulados nessas células promovem fortes eventos osmóticos e subsequentes edema celular, pela retenção de água, com ruptura das fibras do cristalino. O processo é irreversível e não ocorre em gatos, possivelmente por diferenças no metabolismo da glicose no cristalino. Outro efeito causado pelo diabetes mellitus compromete o processo de cicatrização. A hiperglicemia aumenta o gradiente de concentração necessário para desviar a glicose do plasma aos tecidos lesados e frequentementemal vascularizados. As células na lesão podem metabolizar a glicose em lactato por glicólise anaeróbica, rota que fornece energia aos tecidos com suprimento baixo de oxigênio. A falta de glicose no tecido promove grandes perdas de proteína tecidual, catabolizada para fornecer precursores gliconeogênicos, inibindo a cicatrização. 5. SINTOMATOLOGIA DO DIABETES MELLITUS O animal diabético apresenta uma média de idade de 7-9 anos no momento do diagnóstico. Em geral, há histórico de polidipsia, poliúria, polifagia e perda de peso. Clinicamente, se observa enfraquecimento, hiperglicemia, glicosúria e, em casos avançados, cetonemia e cetonúria, com hálito cetônico. Os gatos apresentam postura plantígrada (apoiam as patas traseiras no jarrete) e outros sinais neurológicos, como debilidade do trem posterior, ataxia e dificuldade para pular ou interagir com seu dono. 11 No diabetes, a glicemia está elevada acima do seu valor normal, e quando é atingido o limiar renal (em cães 180 mg/dL) a glicose passa a ser detectável na urina (glicosúria). Quando isso ocorre, os túbulos renais não são capazes de reabsorver completamente a quantidade de glicose filtrada no néfron. É comum no diabetes não tratada, observar-se níveis séricos de glicose da ordem de 300-400 mg/dL, tendo sido relatados casos de até 1.250 mg/dL, em cães. A perda de glicose na urina exerce uma ação osmótica, retendo água nos túbulos renais e causando poliúria e desidratação, com consequente polidipsia. Os níveis de triacilgliceróis, colesterol, ácidos graxos e lipoproteínas tornam-se muito elevados, podendo o colesterol chegar a 700 mg/dL. A hiperlipidemia no diabetes é causada pela mobilização e degradação de triacilgliceróis e pela diminuição da lipólise dos quilomícrons e lipoproteínas (VLDL), esta última secundária a uma deficiência da enzima lipoproteína lipase. No diabetes mellitus cetoacidótica, ocorre um acúmulo de corpos cetônicos em decorrência da alta lipomobilização, o que também pode ser causa de aumento de enzimas hepáticas (ALT, FA, GGT) pela deposição de gordura no fígado. Os corpos cetônicos induzem cetoacidose e perda de ácidos na urina, provocando perda simultânea de 𝑁𝑎+ e 𝐾+, uma vez que os ácidos são eliminados como sais. A acidose, a desidratação grave e a perda de eletrólitos são os responsáveis pelo coma e morte no diabetes não tratada. A acidose causada pelos corpos cetônicos é exacerbada pela drástica redução do ânion bicarbonato (𝐻𝐶𝑂3 −) dificultando o processo compensatório. Por outro lado, a utilização dos corpos cetônicos pelos tecidos periféricos está diminuída, aumentando ainda mais seus teores no sangue (quadro 5). Com a acidose, aumenta a concentração do próton 𝐻+, o qual, em excesso, entra nas células, deslocando o 𝐾+ intracelular para o meio extracelular. Associada à saída de 𝐾+ há uma entrada de 𝑁𝑎+ nas células. Com o aumento da desidratação e da acidose, a concentração plasmática de 𝐾+ pode ficar bastante aumentada (hipercalemia), apesar de haver um déficit global de potássio. Contudo, quando uma terapia de fluidos é aplicada nessa situação, deve ser levado em consideração que o 12 𝐾+ extracelular em excesso pode retornar ao interior das células, provocando uma hipocalemia. Portanto, a terapia deve incluir 𝐾+, muito embora o quadro mostre uma hipercalemia. Quadro 5. Valores de referência do perfil bioquímico de cães e gatos sadios CANINOS FELINOS Glicose (mg/dL) 65-118 73-134 Colesterol (mg/dL) 135-270 95-130 Proteína Total (g/L) 54-71 54-78 Albumina (g/L) 26-33 21-33 Globulinas (g/L) 27-44 26-51 Relação A/G 0,5-1,3 0,45-1,2 Uréia (mg/dL) 21-60 20-30 Bilirubina (mg/dL) 0,1-0,5 0,1-0,5 Creatina (mg/dL) 0,5-1,5 0,8-1,8 FA (U/L) 20-156 25-93 ALT (U/L) 21-102 6-83 CK (U/L) <125 − Cálcio (mg/dL) 9-12 6,2-10,2 Fósforo (mg/dL) 2,6-6,2 4,5-8,1 Magnésio (mg/dL) 1,8-2,4 1,8-2,6 Cobre (mmol/L) 15,7-31,5 − Ferro (mmol/L) 5,4-32,2 12,2-38,5 Potássio (mmol/L) 4,4-5,3 4,0-4,5 Sódio (mmol/L) 141-152 147-156 Hemoglobina (g/L) 12-18 − Hematócrito (%) 37-55 − FA-Fosfatase Alcalina; ALT- Alanina Transaminase; CK- Creatina quinase Fonte: KANEKO et al. (1997); GONZALEZ et al. (2001) 13 Na urinálise, a presença de glicosúria é sinal indicativo da existência de diabetes. Em algumas ocasiões pode ser encontrada glicosúria aproximadamente 1 hora depois das refeições, quando são muito ricas em glicídeos. Em cães diabéticos é rara a complicação renal crônica que se observa em humanos. A presença de corpos cetônicos na urina (cetonúria) só é observada no diabetes avançada e no jejum prolongado. No diabetes leve ou inicial, a cetonúria não é frequente. O pH da urina não é útil para detectar casos de acidose, pois ele varia somente em casos extremos. Apesar da poliúria, a densidade urinária pode estar acima de 1.025 (pela presença de glicose) e pode haver proteinúria e bacteriúria, pela predisposição a complicações infecciosas. O quadro 6 mostra as principais complicações do diabetes mellitus e sua sintomatologia. Quadro 6. Complicações do diabetes mellitus e sua sintomatologia COMPLICAÇÃO MANIFESTAÇÃO CLÍNICA Cetoacidose Vômito, depressão, colapso, taquipnéia, Catarata Cegueira Retinopatia Lesões oftálmicas Neuropatia Fraqueza Pancreatite Vômito, dor abdominal Insuficiência pancreática exócrina Diarreia, perda de peso Lipidose hepática Hepatomegalia Glomerulonefropatia Insuficiência renal oligúrica Infecções bacterianas urinárias Cistite. Pielonefrite Infecções bacterianas respiratórias Pneumonia (tosse, dispneia e febre) Infecções bacterianas cutâneas Piodermite Fonte: GONZÁLES & SILVA (2006) 6. DIAGNÓSTICO DO DIABETES MELLITUS 14 No diagnóstico do diabetes mellitus devem estar presentes os sinais típicos (poliúria, polidipsia, polifagia e perda de peso), além de hiperglicemia persistente e glicosúria. Para confirmar a hipoglicemia persistente, convém dosar a frutosamina ou a hemoglobina glicada, proteínas glicosiladas no sangue, que fornecem informação da glicemia nas últimas 3 a 6 semanas, respectivamente. 6.1. Teste de tolerância a glicose Quando glicose é administrada oralmente a um animal normal, seus níveis sanguíneos sofrem alterações ao longo do tempo de forma trifásica (figura 2), assim: (a) Fase I, na qual a taxa de absorção intestinal de glicose é maior do que a taxa de remoção da glicose sanguínea pelas células dos diferentes tecidos. Consequentemente, os níveis séricos de glicose se elevam, atingindo um pico 30 a 60 minutos após a administração. Nesta fase, a hiperglicemia, assim como o estímulo de hormônios gastrintestinais (gastrina, secretina, colecistoquinina) e do glucagon, provoca a liberação de insulina. (b) Fase II, na qual os níveis séricos de glicose começam a cair, como consequência do aumento da insulina. Nesta fase, a taxa de remoção de glicose do sangue é maior do que a taxa de entrada. (c) Fase III, na qual os níveis séricos de glicose continuam caindo, até uma condição de hipoglicemia temporária para depois voltar a seus valores originais (quadro 5). Em geral, quanto maior a hiperglicemia da fase I, maior a hipoglicemia observada na fase III. A análise dos níveis glicêmicos, após a administração oral ou intravenosa de glicose, constitui a fundamentação da prova de tolerância à glicose. Em casos de hiperglicemia leve, a utilização da prova de tolerância à glicose é fundamental no estabelecimento do diagnóstico. A tolerância normal implica que o aumento dos níveis séricos de glicose é pouco elevado, e o retorno aos níveis normais 15 ocorre em cerca de duas horas. Tolerância diminuída ou intolerância, como ocorre no diabetes, é evidenciada pela elevação excessiva de glicose sérica, com retorno retardado aos níveis normais. No teste oral para caninos e felinos, é utilizada glicose, naquantidade de 4g/kg de peso do animal, misturada com carne. Uma primeira amostra de sangue é retirada antes da administração de glicose. Uma segunda amostra é retirada 2 horas após. Para maior exatidão, podem ser tomadas 3 amostras pós-prandiais, com intervalos de 1 hora. No animal normal, o valor máximo de glicose (140 mg/dL) é observado em 30 a 60 minutos após administração de glicose, retornando aos valores normais em 2 ou 3 horas. Valores de glicemia persistentemente altos após 2 horas da administração de glicose podem ser indicativos de diabetes. Na DMNID, também há intolerância à glicose, embora apresentando valores normais ou elevados de insulina. Isto significa que o hormônio está inativo devido a alguns fatores, tais como (a) deficiência ou bloqueio dos receptores de insulina; (b) redução na atividade da insulina, devido a causas não estabelecidas; ou (c) alterações estruturais da molécula de insulina. 7. TRATAMENTO DO DIABETES MELLITUS 7.1. Tipos de Insulina Figura 2. Curva de tolerância à glicose. Variações da glicemia após administração oral de glicose (tempo 0). A linha tracejada corresponde ao nível normal de glicemia 16 A insulina é classificada pelo início, duração e potência após a administração subcutânea. Quanto mais curta a ação, mais potente a insulina é considerada. O quadro 7 apresenta as preparações de insulina comumente usadas para o tratamento de diabetes mellitus em cães e gatos. A insulina regular age rapidamente, porém tem curta duração e é comumente utilizada no tratamento emergencial da cetoacidose diabética. É a única forma que pode ser administrada IV, IM ou SC. NPH e Lente são formulações de ação intermediária. NPH é a insulina recombinante humana e Lente é uma insulina suína purificada. São as insulinas de eleição para o tratamento inicial de cães com diabetes mellitus. Insulinas ultralentas são formulações de longa duração. A insulina glargina é uma insulina de ação lenta análoga, na qual a sequência de aminoácidos foi alterada, tornando a insulina glargina mais solúvel em pH ligeiramente ácido. A glargina é completamente solúvel em pH 4,0 mas forma microprecipitados no tecido subcutâneo quando é injetada e exposta ao pH fisiológico de 7,4. Isto permite sua libertação lenta, que pode durar até 24 horas em seres humanos, com mínimos picos de ação. A insulina glargina é a escolha inicial para o tratamento do gato diabético. Quadro 7. Preparações de insulina usadas em cães e gatos Tipo de insulina (Via) Duração da ação Início Tempo de efeito máximo (h) Duração do efeito (h) Indicação Regular (IV, IM, SC) Rápida 10-30 min 1-5 4-10 Cetoacidose diabética 1NPH (SC) Intermediária 0,5-2 h 2-10 4-18 Cão Lente (SC) Intermediária 0,5-2 h 2-10 6-20 Cão 2PZI (SC) Lenta 1-4 h 3-12 6-24 Cão/gato Glargina (SC) Lenta Gato 1Neutral Protamine Hagedorn; 2Protamine Zinc Insulin Fonte: GONZÁLES & SILVA (2006); MEYRER (2014) 17 7.2. Técnica de aplicação da insulina Os proprietários devem ser instruídos para o manejo correto da insulina, incluindo a técnica de administração, local de injeção, além do manuseio e armazenamento da insulina. A técnica de aplicação adequada deve ser revista com o cliente e praticada na presença do veterinário, com solução fisiológica. Uma causa comum de complicação no controle diabético decorre da inadequada manipulação da insulina pelo proprietário. A forma de armazenamento da insulina também deve ser considerada. Erros comuns incluem a agitação excessiva do recipiente, insulina superaquecida ou pré-congelada e insulina fora da data de validade. 7.3. Hipoglicemiantes orais Fármacos hipoglicemiantes orais, como as sulfoniluréias (glipizida, gliburida), podem ser utilizados em gatos, mas são apenas ocasionalmente efetivas. As sulfoniluréias estimulam a secreção de insulina pelas células β-pancreáticas. É necessário que exista alguma capacidade secretora de insulina pancreática para que estas drogas sejam eficazes. 7.4. Problemas simultâneos Doenças simultâneas e fármacos antagonistas à insulina podem interferir na resposta tecidual à insulina, resultando em resistência à insulina e no controle inadequado do diabetes. A identificação e o tratamento de problemas concomitantes são de suma importância para o sucesso do manejo do animal diabético. O quadro 8 relaciona causas de resistência insulínica em cães e gatos. 8. MONITORAMENTO DO CONTROLE DIABÉTICO As ferramentas mais importantes para monitorar o paciente diabético veterinário incluem: os sinais clínicos, os níveis séricos de glicose ou curvas glicêmicas 18 seriadas, os níveis de frutosamina sérica, as concentrações de hemoglobina glicosilada e a glicosúria quantitativa. 8.1. Sinais clínicos e exame físico Os parâmetros iniciais mais importantes a se considerar para alcançar o controle glicêmico são a opinião subjetiva do proprietário sobre a magnitude dos sinais clínicos e do estado geral do animal, as alterações do exame físico e a estabilidade do peso corporal. O controle inadequado da glicemia deve ser suspeitado, considerando- se a necessidade de testes diagnósticos adicionais, se o cliente relatar sinais clínicos sugestivos de hiper ou hipoglicemia e o exame físico indicar problemas consistentes com o inadequado controle glicêmico. Uma boa comunicação com o proprietário é essencial, especialmente durante os primeiros meses de tratamento. Os proprietários podem medir o consumo de água em casa e manter um registro da ingestão diária. A diminuição no consumo de água é muito utilizada em pacientes diabéticos felinos para documentar a resposta à administração de insulina. Os donos de cães devem ser encorajados a realizar caminhadas com coleira, para que possam estimar melhor a micção. Proprietários de gatos devem estar atentos aos sinais de neuropatia, tais como a presença de urina/fezes fora da caixa de areia (gatos podem ter dificuldade de entrar em caixas profundas), relutância em pular sobre as coisas, detritos nos jarretes, indicando uma postura plantígrada. Os donos de cães devem estar cientes de que as cataratas podem ser evitadas através de um bom controle glicêmico. 8.2. Frutosamina Frutosaminas são glicoproteínas resultantes de uma ligação irreversível, não enzimática e independente de insulina entre a glicose e as proteínas plasmáticas. A concentração da frutosamina sérica não é alterada por mudanças agudas na concentração de glicose sanguínea, mas pode sofrer interferência da hipoalbuminemia, hiperlipidemia ou hipertireoidismo. 19 Quadro 8. Causas reconhecidas de resistência insulínica em cães e gatos diabéticos Resistência Insulínica Grave Resistência Insulínica Discreta Hiperadrenocorticismo Obesidade Acromegalia (gato) Infecções Excesso de progesterona (diestro em cadelas) Pancreatite crônica Fármacos diabetogêncios (glicocorticoides, progestinas) Inflamação crônica Doença de cavidade oral Insuficiência Renal Insuficiência hepática Insuficiência cardíaca Hipotireoidismo Hipertireoidismo Insuficiência pancreática exócrina Hiperlipidemia Neoplasia Glucagonoma Feocromocitoma Fonte: MEYRER (2014) O tempo médio de vida das proteínas séricas em humanos e cães é de aproximadamente uma a duas semanas. A vida útil das proteínas em gatos é desconhecida, mas foi estimada próximo aos valores humanos e caninos. Assim, a frutosamina permite avaliar o controle glicêmico durante um período prévio de duas a três semanas. Embora intervalos de referência possam variar entre os laboratórios, concentrações de frutosamina sérica abaixo de 400 µmol/L, geralmente representam um bom controle glicêmico, enquanto que concentrações acima de 550 µmol/L sugerem um controle glicêmico insuficiente. 20 8.3. Hemoglobina glicosilada A hemoglobina glicosilada (GHb) é o produto deuma ligação irreversível, não enzimática, independente de insulina entre a glicose e a hemoglobina. A glicosilação é diretamente afetada pela concentração de glicose e a disponibilidade de eritrócitos. A avaliação da concentração de hemoglobina glicosilada em cães e gatos fornece informações relevantes sobre o controle glicêmico nas últimas seis semanas. No entanto, este exame não mostra vantagem aparente sobre a mensuração da frutosamina sérica. 8.4. Glicose urinária A avaliação da urina é um método adicional para monitoração do controle glicêmico. A glicose estará presente na urina se a concentração sanguínea for superior ao limiar renal (12 a 14 mmol/L), o que não é raro, durante alguns períodos do dia, em animais diabéticos. A mensuração da glicose urinária, no entanto, não deve ser utilizada isoladamente para ajustar a dose de insulina. Os proprietários de cães podem segurar uma tira reagente de glicose no fluxo urinário, enquanto o cão urina. Para gatos, partículas indicadoras podem ser adicionadas na caixa sanitária e verificadas num período de doze horas para uma alteração na cor. Esses produtos são particularmente úteis para a detecção do início da remissão do diabetes mellitus, sendo que a glicemia deve ser aferida caso se identifique períodos prolongados sem glicosúria. Os proprietários podem adquirir tiras reagentes que identificam, além da glicosúria, também cetonúria. Não é raro pacientes diabéticos recém-diagnosticados apresentarem cetonúria leve, porém isso não deve ser um achado persistente. Cetonúria em um paciente tratado sugere deficiência de insulina ou resistência e deve levar a uma investigação mais aprofundada. 8.5. Determinação única da glicose sanguínea A mensuração única da glicemia fornece pouca informação sobre o controle glicêmico de um animal. As concentrações de glicose sérica podem variar ao longo do 21 dia, especialmente em pacientes felinos, em momentos de estresse. A mensuração única da glicemia é auxiliar somente se for identificada hipoglicemia. A documentação da hipoglicemia sustenta a hipótese de excessiva dose de insulina e a necessidade de se diminuir a dose, especialmente se o controle glicêmico for insatisfatório. 8.6. Curva glicêmica seriada Curvas glicêmicas seriadas são importantes para determinar o comprometimento do proprietário, adequação da dose de insulina, resistência insulínica, duração do efeito da insulina, horário de aplicação e proficiência do proprietário na aplicação da insulina. Estas curvas podem fornecer informações sobre a farmacologia da insulina em particular num determinado animal. Também é uma boa ferramenta para o ajuste fino das doses de insulina em cães diabéticos. Curvas glicêmicas seriadas não são recomendadas para o acompanhamento rotineiro de gatos diabéticos, devido a propensão destes a desenvolver hiperglicemia induzida pelo estresse. A curva glicêmica tradicional requer a coleta de amostras sanguíneas a cada duas horas para a mensuração da glicemia, iniciando preferencialmente antes da administração de insulina. Para insulinas de ação intermediária, uma curva de doze horas é suficiente para avaliação. Para insulinas de longa ação, uma curva de vinte e quatro horas é indicada. Os pacientes devem ser alimentados com sua dieta padrão, no horário habitual, durante o processo. Uma curva glicêmica ideal (Figura 3) aparecerá como uma curva em sino invertido com o nadir (ponto mais baixo) ocorrendo no meio do caminho entre as injeções de insulina. O valor máximo na concentração de glicose sanguínea ocorre no momento de cada aplicação da insulina, porém isso não ocorre sempre. Se o nadir da glicose for maior que 150 mg/dL, a dose de insulina deve ser aumentada, e se o nadir for inferior a 80 mg/dL, a dose da insulina deve ser diminuída. Para a maioria dos cães diabéticos bem controlados, a concentração inicial da glicose sanguínea próxima ao 22 horário de administração da insulina é inferior a 300 mg/dL e o nadir da glicemia ocorre de oito a dez horas após a administração de insulina. No passado, os pacientes permaneciam internados para a realização da curva glicêmica, uma vez que a punção venosa era necessária para a coleta das amostras. Curvas realizadas na clínica veterinária têm algumas limitações, incluindo anorexia ou hiporexia devido à ansiedade, suspensão da rotina normal de exercícios, além do efeito do estresse nos valores da glicemia em felinos. No entanto, os glicosímetros portáteis recentes exigem amostras de sangue muito menores e, dessa forma, os proprietários são capazes de coletar o volume adequado de um capilar sanguíneo, usando uma lanceta ou uma agulha de pequeno calibre. Isso tem incentivado a mensuração da glicemia no ambiente doméstico e muitos veterinários já educam seus clientes sobre isso no momento do diagnóstico. A maioria dos proprietários rapidamente tornar-se confortável com a coleta de amostras, bem como a maioria dos animais tolera o processo com pouco ou nenhum desconforto. Vários sítios podem ser utilizados para a coleta, incluindo as bordas de Figura 3. Curva glicêmica ideal para uma insulina de ação intermediária 23 orelha (cães e gatos), coxins (cães e gatos), calos do cotovelo (cães) e lábio externo (cães). Locais de amostragem ideal podem variar de paciente para paciente e, muitas vezes, é útil identificar uma boa localização antes de demonstrar a técnica para o proprietário. Além disso, recursos on-line, como vídeos podem ser usados para incentivar a confiança do proprietário. A seleção de um glicosímetro apropriado é importante, pois os dispositivos projetados para humanos são variavelmente discrepantes quando utilizados em caninos e felinos. Unidades portáteis usam métodos eletroquímicos ou fotométricos para determinar a concentração total de glicose sanguínea, ou seja, a glicose no interior dos eritrócitos mais a glicose dissolvida no plasma. A concentração de glicose é então extrapolada a partir deste número e exibida pela máquina. Eritrócitos humanos contêm uma grande quantidade de glicose, correspondendo a mais de 40% do total medido. No entanto, os eritrócitos de caninos e felinos contêm consideravelmente menos glicose e, portanto, contribuem muito menos para a quantidade total medida. Assim, glicosímetros projetados para uso em seres humanos tendem a subestimar os valores de glicemia em cães e gatos. 8.7. Efeito Somogyi O efeito Somogyi resulta de uma resposta fisiológica normal a uma dosagem excessiva de insulina. Quando a concentração de glicose sanguínea diminui para valores inferiores a 65 mg/dL ou quando a concentração da glicose sanguínea cai rapidamente, independentemente do nadir, ocorre uma estimulação direta da glicogenólise hepática induzida pela hipoglicemia e pela secreção de hormônios diabetogênicos, mais notavelmente adrenalina e glucagon, aumentando a concentração plasmática de glicose, minimizando os sinais de hipoglicemia e causando hiperglicemia evidente nas próximas doze horas pelos mecanismos de contrarregulação da glicose. A figura 4 é indicativa de resposta Somogyi, consequência de uma elevada dose de insulina. 24 A secreção de hormônios diabetogênicos durante o efeito Somogyi pode induzir resistência a insulina, a qual pode durar de 24 a 72 horas após o episódio hiperglicêmico. Se a curva glicêmica sanguínea seriada for obtida no dia da contrarregulação da glicose, a hipoglicemia será identificada e o diagnóstico será estabelecido. Porém, se a curva glicêmica sanguínea seriada for obtida em um dia em que a resistência à insulina estiver predominando, a hipoglicemia não será identificada e a dose de insulina pode ser incorretamente aumentada em resposta aos altos valores da concentração sanguínea da glicose. 8.8. Sistema de monitoramento contínuode glicose (CGMS) Sistemas de monitoramento contínuo de glicose (CGMS) ainda são pouco utilizados em medicina veterinária. Isso é devido, em parte, pelo alto custo, uma vez que a maioria das clínicas veterinárias trata um pequeno número de pacientes diabéticos, não justificando o investimento no dispositivo. O sistema requer a implantação subcutânea de um sensor de glicose de platina, utilizando um dispositivo de mola, que pode ser deixado no local durante 72 horas. O Figura 4. Efeito Somogyi evidenciando um baixo nadir e uma hiperglicemia de rebote 25 CGMS não elimina completamente a necessidade da coleta de sangue, já que pelo menos uma amostra deve ser coletada, para mensuração da glicemia, em cada período de 12 horas a fim de calibrar o aparelho e verificar se o sensor continua ativo. Concentrações de glicose do fluído intersticial são aferidas a cada dez segundos pelo sensor e um valor médio é registrado a cada cinco minutos. O sensor fica conectado a um monitor do tamanho de um Pager, que pode ser anexado ao paciente ou mantido em estreita proximidade (1-2 metros). A principal vantagem do CGMS é que uma grande quantidade de dados pode ser coletada e analisada sem a necessidade de repetidas coletas de sangue 9. LEITURA COMPLEMENTAR: “Dieta e exercício” Ajustes na dieta são frequentemente necessários no tratamento do diabetes mellitus. Em muitos casos, estas mudanças podem ser difíceis para os proprietários. Animais que estavam habituados a receber alimento à vontade devem se adaptar a um regime de alimentação duas vezes ao dia. Os proprietários devem entender que a manutenção da dieta e do horário de alimentação são essenciais para se alcançar o controle glicêmico. O objetivo da dieta é reduzir a obesidade e melhorar o controle glicêmico, evitando flutuações nos níveis de glicose. No cão, isto é mais bem atingido através de uma dieta com elevado teor de fibra e baixo teor de gordura. Dietas terapêuticas recomendadas para gatos possuem alto conteúdo proteico e baixa concentração de carboidratos. Preocupações dietéticas relativas a doenças concomitantes (por exemplo, insuficiência renal crônica, litíase urinária, pancreatite), também devem ser consideradas, e muitas vezes tem prioridade sobre uma dieta específica “diabética”. O exercício contribui para a perda de peso, diminuindo a resistência à insulina induzida pela obesidade. Além disso, a prática de exercícios tem como efeito direto baixar a concentração de glicose sanguínea por aumentar a mobilização de insulina de seu local de injeção, presumivelmente pelo aumento do fluxo sanguíneo e linfático para os músculos em exercício e por estimular o transporte de glicose para as células musculares. 26 Exercícios esporádicos e extenuantes por outro lado, devem ser evitados, pois podem levar à hipoglicemia. Estimular os gatos a se exercitar pode ser complicado. A ração pode ser escondida na casa para estimular o gato a "caçar" ou podem ser utilizadas bolas alimentadoras, de modo que o gato tenha que se exercitar para obter a sua refeição. Em casas com vários gatos o fator exercício não é considerado um problema, uma vez que a atividade lúdica de dois ou mais gatos, normalmente proporciona exercício suficiente. (MEYRER, 2014) 10. BIBLIOGRAFIA BENNETT, N. Monitoring techniques for diabetes mellitus in the dog and the cat. 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