Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
7X.Dr-t~ 75oAl-f..I"c.;" t I.c:CJA- O.5Irf.JA- 2o/f)') (M~ J. 1;0 Itt A / (..I ~ Ie ",,-0-& 1"'-u~ ( IPl T< "';/''' iLd... .t a..J':>. E.dv.( M.. I lao r I a.-: t:Lb0 R da..aU-oS Au 10 /l. {C Oul <..-. !1a/Z{ ¥lj cL : (s ed.."..cP-i». ( COLONIALISTAS Thomas Bonnici o DISCURSO E 0 PODER: FOUCAULT E SAID A teoria e a crftio p6s-colonialistas, constituindo uma nova estetica peb qual os textos sao interpretados "po liticam ente", baseiam-sc l1a fntima rela~ao entre 0 discurso e 0 poder. Antes, portanto, de analisar 0 P6s-colonialismo em todos os seus aspectos, necessar io se faz indagar sobre uma faceta do pensamento pos-estruturalista referente a equa~ao dis curso e poder. As for~as pollticas e economicas, 0 controle ideologico e social subjazem ao di sc urso e ao texto, E evidente que 0 pocler, com todas as suas consequencias. e exerciclo para que surta 0 maximo efeito possive!. Gera~6es de europeus se convenciam de sua superioridade cultural e intelectual diante da "nudez" dos amerfndios ; gera~6es de homens, praticamente de qualquer origem, tomavam como fato indiscutfvel a infe rioridade das mulheres, Nesses casos, estabeleceu-se uma rela~ao de poder entre 0 "s uj e ito" e 0 "objeto", a qual nao reflete a verdade. Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) proclama qu e os indivfduos primeiro dec idem o que desejam e depois encaixam os fatos em seus objetivos. Consequentemente, 0 homem encontra nas coisas somente 0 que e le mesmo colocoll nelas. Para Nietzsche, todo conhecimento expressa "0 desejo do poder". Como a verclade e 0 conhecimento objeti\'o nao existem, esses dois fatores sao apropriados por s istemas de poder para camuflar sell desejo de poder. Os individuos adotam certo tipo de filo so fia ou teoria cientffica quando esta de acordo com a "verdade" proposta pelas autoridades intelectuais ou pollticas contemporaneas , pela elite ou pelos ideologos. A teoria do discurso de Michel Foucault (1926-1984) une 0 ceticismo referente ao discurso e a abordagem historica da interpre ta~ao. Reconhece que 0 di sc urso, escrito ou oral, jamais poderia estar livre das amarras do pe rfodo historico em que foi produzido. Ou seja, 0 discurso esta inerente a todas as praticas e in s titui~6es culturais e necessita da agencia dos indivfduos para poder se r efetivo. Scmelhantemcnte a teoria de Lacan, 8. subjetivid8.dc e construfd8. 8.tfrlves do di sc urso: 0 indivfduo se identifica com OLl reage contra varias posi~6e s d e sujeito oferecidas por llma variedade de discursos num dado momento. Os ihdivfduos que pensam OLl falam fora dos http:subjetivid8.dc ·· . ... .. BONNICI .. " p",mwo, do di<c""o domin'mc <'0 definido< como lo"eo< ou ,·,du,ido< '0 cmudecim,n!o.1 . Em A hisloria da IOll{{fra (1961), Vigiar C plillir (1975), A hist(Jria da scxlIalid,lde (1976) , Foucault examina os campos discursivos mutantes em que esses problemas se descnvolvem em etapas especfficas da hist6ria e chega a conciusao de que os indivfduqs nao pensam nem falam sem obedecer aos arquivos de regras e restric;;6es socia is , especialmente ao sisrema educacional, 0 qual define 0 que e racional e academico. Essas regras, cOlltrolando a cscrita e 0 pensamento, formam 0 arqllivo ou 0 inconscicllie posilivo da cultura. As regras estruturais que informam os varios campos de conhecimento VaG alem da conscicncia individual. Nao conhecemos 0 arquivo da epoca em que vivemos, porque e sinonimo do inconsciente a partir do qual falamos. Compreendemos 0 arquivo de outra epoca, porque somos absolutam e nte diferentes e distanciados dela. Por exemplo. percebemos as varias correspondencias que formam 0 discurso do pcrfodo medieval; os escrirores da Idade Media percebiam os eventos contemporaneos e pensavam atraves dessascorrespondencias e, portanto, nao podiam vc-Ias como n6s as vemos atualmente. FOllcault tenta descobrir as regras do discurso de llln perfodo espccffico e rebciona-Ias a analise do conhecimento e do poder. 0 discurso e historizado e a hisr6ria contextualizada. Ele considera a hist6ria em termos de lima luta sincronica do poder. Para ele 0 poder nao e nece ssaria mente algo repressivo, mas lima forc;;a produtiva que une as diferentes forc;;as da sociedade. Nenhum acontecimento nasce de uma causa lJJ1ica , mas e 0 produto de lima vasta rede de significantes e de poder. Ademais, a hist6ria e a hist6ria das idcias sao intimamente . ligadas a leitllra e a produ\,ao de textos litedrios. Esses rextos , pOI' sua WZ, sao a expressao de praticas discursivas determinadas hist6rica e material mente. Esses discursos sao produzidos dentro de urn contexte de luta pelo poder. Dc fato, na politica, nas artes c na ciclIcia 0 poder se constr6i atrave s do discurso e, portanto , a pretensao de que haja objeri\'idade nos discllrsos e falsa, havendo, entao, apenas discursos mais podcrosos e menos poderosos. A lItilizaC;;ao da geografia e da cicncia ilustrara esse POlltO . Quando se analisam os l1lapas dos cartografos medievais e renascentistas, pcrcebe-se que eics, com seus contornos, detalhes e nomes, tornaram-se lima tecnologia do imperio, lima interface graltca indispensavel nao apenas para navegar mas especialmente para gerenciar 0 mundo. 0 conhecimellto e 0 saber dao direito as terras prometidas supostamente de "nillguem", a divisao do l11undo, ao herofsl11o dos exploradores, a diversidade cultural, a alteridade, ao racismo. A partir da Nall/rali.\' Hisloria (77 d.C.), de PUnio, e passando pelo Liber ChronicarUlI1 (1493), de Hartmann Schedel, e pelo SyslclI1a Nail/rae (1758) , de Linnaeus, ate as obras de certos cientistas do seculo XIX, cspecialmente A. de Gobineau, em A desigllaldade das Yafas humanas (1855), as discussoes diretas OU indiretas sobre 0 racisll10 pareciam sempre tender a comprovar a superioridade das rac;;as europeias e colocar na alteridade 0 resto do mundo . A apropria<;;ao das ciencias seguiu 0 mesmo padrao do colonizador, definido como a "inciina<;;ao a dividir, subdividir e redi vidir 0 seu tema sem' nunca mudar de opiniao sobre 0 Oriente como algo que e sempre 0 mesmo objeto, imutavel, uniforme e radicalmente peculiar" (SAID, 1990, p. 107).0 legado do imptrialisl110 foi construir as estruturas cientfficas. sobre crenc;;as existentes e herdadas, com a iinalidadc de indicar e consolidar os supostos donos do mundo. Para Foucault, 0 saber e 0 produto de urn discurso especffico que 0 formulou, sem nenhuma validade fora disso. As "verdades" das ciencias derivam do discurso ou da linguagem. 0 saber nao eo efeito do acesso das ciencias para 0 mundo real ou para a realidade autentica, mas das regras de seu proprio discurso. Segue-se que 0 saber das ciencias humanas econstrufdo porque as pessoas foram persuadidas a aceita-lo como tal. E saber porque 0 discurso e tao poderoso que nos fn acreditar que seja saber. 0 saber, portanto, e produzido pelo poder. Para Foucault, a questao da veracidade ou falsidade de um discurso nao e importante, ja que a "verdade" e produzida pelo poder. Concentra-se, portanto, naformafao disClirsiva, ou seja, nas regras pelas quais 0 discurso e coerente ou nos princfpios subjacentes ao discurso. Esses discursos dernminam 0 nosso modo de falar e pensar sobre, por exemplo, a sexualidade ou a sanidade mental, e nos persuade para 258 - TEO R I A LITERA RIA · . --' -~ TEO R 'A E C R i ,>, C i\ P 6 s - CO L 0 N , ., L , S T ,\ S o autopoliciamento e a supervisao dos outros. Funcionando independentemente das inten ~6es especificas individuais (Foucault n ao es ta falando sobre 0 abuso do poder por individuos ou por governos que manipulam se us suditos e os m al1tem sob seu controle), os di sc ursos se perpetuam pelos usu ar ios qu e reproduzem se u poder. Na concep~ao de Foucault , 0 di sc llrso e internalizado por n6s, organizando 0 nosso ponto de vista do mundo e colocando-nos como um elo (inconsciente) na cadeia do poder. Foucault, portantQ, coloca a linguagem no centro do podersocial e das praticas sociais. E nesse ponto que se encontra 0 papel social da linguagem e da literatura como poder hegemonico. Todo 0 discmso de Os I/lsradas, qu e iriOllenciou inteiras gera~6es lu sas, come~ando pela sua imita~ao da Encida, ate as proezas heroicas dos portuglleses nos pontos embrionarios da Africa e da Asia, constroi a base de sua id eo logia da superioridade do europeu, qu e, por mandato divino, sllbmete os outros povos asua lei "s uperior". Semelhante influencia exerce u 0 discurso das pe~as teatrais d e Shakespeare, que outremiza e hierarquiza os pm'os lilllitrofes (os irlandeses), os de so rdeiros (homens e I1lLilhe res das tavern as) e os habitante s das longinquas colonias (Cajiba). Esse fator sera visto melhor no contexto do pos colonialismo. Embora 0 disc urso scja reple to de poder, nao e imune aos desafios Oll as mlldan~as inte rna s: e 0 lugar de confliro e lura, encarregado de criar e suprimir a resis te ncia. Para Foucault, 0 di scurso refor~a 0 pod er e, ao mes mo tempo, 0 su bverte. Ao ser exposto, 0 di sc urso torn a-se fragil e fica mais propenso a ser contrariado. Seguindo os para metros de FOl1cault c Gramsci, Edward Said (193 5-2003), em Oriclilalisl/lO, publicado em 1978, de rnonstra como a teoria da desconstrl1~ao poder" dcsafiar a preten sao de objeti\'idade no contexto da hi stori a cultural. Desconstruindo a natllrc za do poder colonial, Sa id (1978) aprofu nda a critica pos-colon ial ista que se desenvolveu d man te os til ti m os qua ren ta anos. Ele d esco ns troi a imagem que 0 mundo ocidental tem do Oriente , ima ge l11 ess a que foi construida por lJistoriadores, escritores, poctas e estudiosos durante varios sec ulos . Utilizando "nao so os trahalhos erudiros mas tamhem as obras literar ias , as passagens politicas, os textos jornalisticos. livros de viagcns, es tudos reli g iosos e filolo gicos" (SAID, 1990, p. 34), Said mostra a constru~ao do Oriente atraves de romances. d esc ri~6es e informa~6es sobre a historia e a cliitura oriel1tais. Essas fOl'll1a s de escrita ocidcntal cOl1stroem llill discurso fOuClliltiano , ou seja , lim s istema de afirl11a~6e s e press upostos que constitllem um suposto sa ber e pelos quai s se constroi 0 "conh ec im en to" sobre 0 Oriente. Evidentemente, tai s cli sc ursos, aparentel11ente dedicados exclusival11ente ao sa ber, estabelecem verdadeira s rel a~6es de poder. Para Said (1990), as representa~6es do Oriente (ou Orientalismo) feita s pelo Ocidente levam consciente e dete rmini sticamente asubordina~ao . Percebe-se, d e fato, um di sc urso etnocentrico repress ivo qu e legitima 0 controle europeu sobre 0 Orie nte atraves do estabelecimento de um (omlmlo negati\·o. A esperteza, 0 ocio, a i rracionalidade , a rudeza , a sensual idade , a crueIdade, entre ou tros, formam esse (oll slmIO, ern oposi~ao a outro (OII.(lmlo, positivo e supe rior (racional, dernocratico, progress ivo . civilizado etc.) , defendido e difundido pe la cuitllra ociclental. Encontra-se n esse ponto a hcgelllo llia do di scurso ocidental. Segundo Gramsci (1998) , a hegemonia e a domin a~ao consentida, ou seja, 0 metodo pelo qual os dominadores con seg uem oprimir os subalternos 'I'.. atraves d a ap rova~ao dparente de ssas rne smas classes sociais, especialmente peIa cultura. 0 Orientalisrno, portanto, legitirnou 0 imperialismo e 0 exp;msionisrno para os proprios europells e convencell os "nativos" sobre 0 universa li smo (d mai s adiantada civiliza~ao do planetd e a europeia) dd civiliza~ao europeia. A teo ria d e Sa id (1990) e de outros te6ricos pos-co lon ialistas, q uase s i m u Itaneamen te adotada pelos adeptos de estudos afro-americanos e por feministas, stlbverte os pressupostos de tlma objeti\'idade esptlria que sustenta 0 Ocidente, a unicidade de sua cultura e de se u ponto de vista. T II( " " ~\ B O N.-"':IC I / LG c l :\ O~ A ;-"; :\ Z O LI N (OIlGAN I ZAD O RES ) - 259 N N I C I - Etnografia A pratica etnografica tOrna-se uma descri <;50 preco nce itual da cultura de uma ra<;J a pa rtir de pressupostos hegemonicos dos conqui stado res. Outro o sujeito hege m onico europe u . Hegemonia Alem de significar 0 do minio de um estado sobre outro, hege m onia e 0 pode r da classe dominante pa ra conve ncer as outras classes de que os interesses del a (da cl asse do minante) sao interesses comuns; conscquentemente, s~o ace itos por tOdas as Ollt raS classes. ouJro o suj eitO marginalizado pela hegemo nia euro peia; uma pessoa de ra<;a o u etnia di ferente, ou seja , n50-branca e nao-euro pei a. Etnicidade Distinta da ide ntidade racial, a etnicidade da pessoa inclui se us aspectos culturais, como J religiao , tradi <;6es de vestimenta e de comida , WeltanschauulIg etc. Discurso o rexto transform ado pe lo contexto o u interpreta<;ao; ponamo, altamente carrcgado peb ideologia domil13 n te, que exclui e degrada qualq ue r o utro discurso . Nativo Frequenrem ente, e um term o degrad ante para significa r a pessoa primitiva, educada, des prov ida de literarura o u cultura . paga. nao- Imperio A pra tica europeu. polftica e ideol6gica de uma na<;ao hegemonica para o u tre m i za r 0 na o- Panatico Eum si stema de supe n:i sao, consequcncia do poder sobre 0 sujeito o utrel11i zado, 0 qu;d e amea<;ado po r todo tipo de reprova<;ao moral e cultural c de exclusao . Quadro 1. Poder e controle . HISTORlA DO POS-COLONIAUSMO Iniciou-se 0 seculo XX com um rr is te panorama composto (1) por dezenas de povos c ll a ~6es s u bmetidosao colonial ismo eu ropeu, (2) po r milh6es de negros, descendentes de escravos, espccia Imente nos Esrados Unid os e na Africa do Sui, di sc riminados em seus direitos fundamentais, (3) pcla metade feminina da popula~ao mundial vivendo num contexte patriarcal, (4) pe lo poder politico c economico nas maos da ra~a branca, crista e ri ca em paises industrializados. Apesa r dessa imagem sombria, um dos fatores m ais caracreristicos do seculo XX foi a nitida consciencia da subjetiv idade pol iti co-cultural' e da res istencia de povos e nac;;6es contra qualquer tentativa para m anter a obj e tifica~ao ou iniciar uma nova modalidade de dependencia. 0 Renasc imento do Harlem (movimento cultural e literario entre escritores e arti stas norte-americanos, espec ialmente na cidade de Nova Io rque, cuj a finalidade foi rea l ~ar 0 interesse na cult~ra africana ao redor do m undo) nos Estados Unidos nas dccadas de 1920 c 1930 mostra a recusa em deixa r a cultura eurocentrica, crista e branca continuar definindo a ol//ro em geral e a populaC;;ao afro-americana em particul ar (APPWI; GATES, 1997). Identica atitude estava por tras do movimento N egritl/de na decada de 1930 em varios paises afri can os. Essa tendencia para a autodeterminac;;ao dos povos em todos os aspectos teve um recrudescimento, apos a Segunda Guerra Mundial, especial mente nos movimentos pel os Direitos Civis nos Estados U nidos e na lura contra o colonialismo britanico, frances, ponugues, alemao, belga em todos os contin entes. N esses caSOS a autodetermina~ao politica e a autodefini C;;ao cultural andavam juntas. Na pratica , 0 Renascimento do Harl em e N egritude sao definidos como um mom enta cultural, literario e polftico d e tal envergadura que 0 teorico m artiniql1iano-arge lino Frantz Fanon confe re grande poder de luta po lirica as culturas e literaturas nacionais . 260 - TE O R I A LIT E R A RIA · -.-_.-.~ T EO R I A E C R i ·r I C A I' 6 s - CO L 0 N I t\ LIS T A S Descoloniza<;ao I ( 1776-1825) Movirnentos (1920-1939) Illdcpendcncia no Common\,·ea lth brit5nico ( 1930-19-12) Desco l oniza<;~o II ( 1945-1949) MovilncIltos prc independcncia (dCcada de 1930) Desco lo ni za<;ao III (1955 -1 975) Estados Unidos; America Centra l; America do Sui. RenascimclllO do Harlem, Estados Unidos; Ncgrirllde, lIa Africa. Canad:\; Australia . India ; Pa'luistao; Indonesia; Oriente Medio. Negritllde, lI a Africa; gucrril has. Africa do Nom; Africa equatorial e subcq uato rial; i1has do Caribc e col6n ias do slldeste asiatico c Ocea ni;\. Quadro 2. Mapa da descoloniza<,;ao entre 1776-1 975. Historicamente 0 movimento pr6 -independencia, especialm e nte das Americas britanica, portuguesa e espanhola, respectivamente no ultimo quartel d o sec ulo XVIII e no primeiro quartel do sec llio XIX, favorece u ce rta autonomia as culturas nao-europeias (mas nao-ind igenas) , com o consequente nascimento de uma literatura nac io nal (JOZEF, 1982). N os sec ulos XVIII e XIX, abundam no Brasil escritores e esc ritoras que desenvolviam seu trabalho com larga incorpora<,;ao de temas brasileiros, seguilldo padroes estCt iros europe/H. Foram 0 Moderni smo brasileiro, contudo, iniciado na cl ecada de 1920, e s ll as subco rrentes que ap resentaram propostas de uma arte cssencialmente brasileira. Em geral , todavia, fortes la<,;os ainda ama rravam as literatllras americanas aos modelos ellropeus. Praticamente ate meados do seculo XX, no co ntexto dos paises novos fabricados pelo colonialismo, nao existia llma lite ratura nacional na Africa e na Asia , e a literatura prodll zi da nesses contine ntes seguia padroes eurod~ntrjcos, ja qu e foi esc rita por viajantes, missionari os , mulheres de aclministradores coloniais e sol dados intimamente ligados a metr6pole colonizadora. Hariss imos foram os casos em que surgiram prodll<,;oes literari as diferentes clas da metr6polc. Por olltro lado, nao havia cl1lbasamento te6rico para detcctar a resistencia na lit eratura de entao. Tampou co eram clese n\'olv idas form as cl e leitura e escrita que pudessem "respo nde r" a co lo niza <,;ao ellrope ia arrai gacla nos para.metros do essenc ialisl11o, de supe ri o riclade cultural e de degradaC;ao da cultllra dos 01111'0.1. o pcriodoa p6s a Segunda G uerra Mundial viu 0 surgimento da te rceira onda de indcpcndencia politica cspecialm e nte nas na\ocs Clr iben has , africanas e as iaticas e, ao mesmo tempo. de llma lite ratllra escrita pe los nativos, nao sem problematiza<,;ao, nas lingu as dos ex-colonizadorcs. Os romances The Pallll-Wille Drinkard (1952), de Amos Tutuola , e Things Fall Apart (1958) , de C hinue Achebe, ambos nigerian os, fo ram tal vez as primeiras expressoes literarias alllmlicall/CIIIC lIalillas oriundas d a Africa e escritas em ingl es . Nasce entao uma lite ratura original e m inglcs a partirdas ex col6nias britanicas, a qual nao poderia se r chamada simples mcntc "literatura inglesa". Criticos d a metr6pole inglesa logo desenvolveram a id e ia de Commofllveallh Litera ture (literatura da comUll idade das cx-col6nias britanicas). Evidentemente, pode-se ver qu e a ideia de lima COlllll1oll l/lcalth Lileralure seguia os antigos pad roes m e tr6pole-coI 6 nia, com a Inglaterra posicionando-se no centro e as novas nac;oes independen tes colocadas na m argem. Na decada de 1970, os esc ritores caribenhos, africanos e asiaticos rej e itaram qllalquer conota<;ao do CO/IIlf/OI1 wealth, dcvido a continua<;ao do eurocentrismo peb critica britanica e a reeusa dos escrito res nativos em admitir a superioridade da civiliza<;ao britanica e europe ia . A expressao Commonwea lth Literature foi abandonada e surgiu a ide ia de chamar Literatllrasem ingles aexpressao literaria em lingua in g1esa oriunda das ex-col6nias britanicas. Esse fe n6meno nao ficou restrito aliteratura em lingu a inglesa, mas a todas as literaturas nasc idas nas ex-coI6nias. Em seu importante livro, Dathorne (1976) intitula os capitulos "Teatro africano em frances e em ingles", "Literatura africana em portugues". Nestas ultimas tres decadas surgiu 0 problema de como ler as obras de escritores que, es crevendo nas Hnguas europeias, sao etnicamente nao-euro peus. Hi atualmente escritores africa nos escrevend o em frances, ingles e portugues; autores caribenhos escrevendo em espanhol, ingles, frances ou ho landes; escritores indianos, paquistaneses e egipcios desenvolvendo uma TH OMA S BONNICI / LUCIA O SANA ZO ll N (ORG ANIZA DORES) - 261 II II i I - (Er»o N N I C I "'-'( I literatura em ingles. Ejll sto ler essas obcls, profundamente in se ridas numa cultura nao-ocidental, atraves de parametros estrllturalistas, pos-estruturalistas, materialistas culturais. ou seja, atraves de lima abordagem ocidentaP Qual e 0 statlls dessas literaturas produ zi das nas ex-colonias? Se a rela<:;ao entre a metropole e a colonia' sempre foi ten sa, nao deveria essa lirera tura, escrita a partir da invasao colonial ate 0 presente, mostrar as tensocs inerentes aos cnconrros coloniais? Se a literatura da metropole foi usada para enfatizar a superioridade europeia atraves da degrada<:;ao ou an iquilamento da cultura nao-europeia, qual e 0 papel dessas lite raturas pos-coloniais? COLONIALISMO o termo colonialismo caracteriza 0 modo pec uliar como aconteceu a explora<:;ao cultural durante os ultimos 500 anos causada peb expansao ellropeia. Distinguem-se 0 imperialisll10 mediterraneo da Antiguidad e e 0 colonialismo pos-Renascimento. No mundo antigo, as grandes civiliza<:;oes mediterraneas orgulhavam-se em possuir colonias e insistiam na hegemonia da merropole sobre a periferia, a qual era considerada barbara , inculta e inferior. Said (1995, p. 40) define esse imperillm como "a pratica, a teoria e as atitudes de um centro metropolitano dominante governando um territorio di stante", como aconteceu a partir de 336 a.C., quando 0 imperio de Alexandre da Macedonia levou a civiliza<:;ao helenica para fora do Mediterraneo e polarizoll as ideias e as energias europeias para 0 Oriente, ou quando 0 imperio romano, apos 264 a.c., conquistou as ilhas mediterran eas, a Espanha, 0 norte da Africa, 0 Oriente Medio, 0 Egiro, a Galia, a Alemanha e a Inglaterra. Por outro lado, 0 mesmo autor afirma que 0 coloniali smo praticado apos 0 Renascimento "e a implanta<;ao de colonias em territorio distante" como consequencia do capiralismo incipiente, com a finalidade de explora<:;ao material para 0 cnriquecimento da mctropolc. A expansao colonial europeia nos seculos 'Arv e XVI coincidiu, ponanro, COIll 0 inicio de um sistema capitalista moderno de trocas economicas. As colonias foram imediaranlelHc percebidas como fonte de materias-primas que sllstentariam por 111 II ito tempo 0 poder central da merropole . Limitando nos ao Brasil, pode-se constatar que, a partir da Carta de Pero Vaz de Caminha are a publica<:;ao, em 1711, de Oilillra e 0pl/lencia do Brasil, de Andre Joao Antonil, inumeros sao os rextos inf'ormativos sobre os recursos economicos das colonias e as praticas de explora<:;ao do territorio colonial. Adel1lais, 0 sistema pan6plico pelo qual se supervisionava 0 espa<;o colonial era 0 metodo de viajanres c exploradores europeus dos seculos XIX e XX representando 0 conhecimento e 0 poder. Entre 0 colonizador e 0 colonizado estabeleceu-se um sistema de diferen<:;a hierarquica £:,dada ajamais admitir lim equillbrio no relacionamento econ6mico, social e cultural. Mais grave tornou-se a situa<;ao de povos colonizados que eram racialmente diferen tes (os "hotentotes" na costa africana) ou que formavam uma rninoria (os aborfgenes da Australia). Entre o colonizador e 0 colonizado havia 0 fator ras:a, que construfa um relacionamento illjusto e desigua!. Os te rmos ras:a, m(islIIo e precollceito /'a(ial sao oriundos da posi<:;ao hegemonica cmopeia. Esse topico transformou-se numa justificativa para introduzir 0 regime escravocrata a partir de m eados do seculo XVI, quando se formou a ideia de um mundo colonial habitado por genre "naturalmente" inferior, programada pela natureza para trabalhar bra<:;almente e servir ao homem europeu branco. Do ponto de vista dos gregos e dos romanos, os barbaroi apenas nao falavam a lingua "clllta" e situavam-se fora da historia e da civiliza<:;ao. Aos olhos dos europeus colonizadores, 0 estado naturalmente inferior dos colonizados era umfato indiscutfve l, "provado" no seculo XIX pelas teorias da evolu<:;ao e da sobrevivencia do mais forte na doutrina darwinista. Se frequentemente 0 colollizaclo aceitava a ideologia e os valores do colonizador c transformava-se emfantoche (lIIimic lIlan nos romances de VS. Naipaul), em outras ocasioes mostrava sua resistencia e subversao atraves da mfmica e dapar6dia. 262 - TEO R I A L ITERARIA - · t~ . --~~~y TEOR1A E CRiT1CA rOS-COLON1AL1STAS Segundo Ashcroft el al. (1991), podemos sistematizar as col6nias em (1) col6nias de povoadores, (2) col6nias de sociedades invadidas e (3) col6nias de sociedades duplamente invadidas. Nas col6nias de colonizadores (America espanhola, Brasil, Estados Unidos da America, Canada, Australia, Nova Zelandia), a terra foiocupada por colonos europeus que conquist;lr;lm, m;ltaram ou deslocaram as populac;6es indfgenas. Um;l modalidade de civilizac;ao europeia foi transplant;lda no vnio construfdo e os descendentes de europeus, mesmo ;lp6s a independenci;l polltica, mantiver;lm 0 idiom;l nao-indigena. Os colonos inquestionavelmente consider;lv;lm que 0 idioma europeu era ;lpropriado para expressar a complexa realid;lde do lug;lr ocupado, margin;lliz;lndo as linguas indigenas. Nas col6nias de sociedades invadidas (India e Africa com suas civiliz;lc;6es em varios estagios de desenvolvimento), as popula<:;6es foram colonizadas em SU;l terra. Os escritores n;ltivos, portanto, ja possuiam ideologi;ls, organizac;oes societarias e formas politicas, embora estas fossem marginalizadas pelos colonizadores. Raramente 0 idioma europeu substituiu 0 idioma do nativo; no m;lis, ofereceu Ihes um;l oportunidade para eomuniear-se com outr;ls soeiedades, elevar seu l1ivel cultural e manter as ligac;6es com a metr6pole. Em todos os casos, 0 idioma europeu sempre causou e ;lind;l C;lusa cert;l ambiguidade, espeeialmente na literatura nativa. As eol6nias das soeiedades duplamente invadidas referem-se ao esp;lC;o ocupado pel;lS soeied;ldes primordiais dos indigenas d;lS ilhas do C;lribe, as quais foram completamente exterminadas nos primeiros cern anos do descobrimento. A populac;ao atu;ll das indias Ocident;lis \'eio d;l Africa, Indi;l , Oriente Medio e d;l Europ::t, e e 0 resultado do desloc::tmento, do exilio 011 da escr;lvidao Entre todas as sociedades colonizadas, t;llvez a sociedade caribenha sej;l ;l que mais sofreu os efeitos devastadotes do proeesso eoloniz;ldor, onde 0 idioma e a eultura dominantes foram impostos e as eulturas de povos tao diversos, aniquilrldas. COLONlAS DE POVOADORES COLONlAS DE SOCIEDADES I NVAD IDAS COLONlAS DE SOCIEDADES DUPLAMENTE COLONIZADAS Americas espanhola c portuguesa, Estados Unidos da America, Canada, Australia, Nova Zcl;1ndia. india c Africa As illm do Caribc: 0 gcnocidio praticado contra os indigenas efctivou 0 dcslocamcllto de popula~6cs da Africa, india, Asia, Oriente Medio e da Europa para a rCgiao. Linglias nativas quasc extintas, prevalcccndo as Iinglias ellropcias. Linguas nativas intcnsamentc; lingua apropriada. praticadas europeia Linguas originais suprimidas totalmente, prevalecendo as linguas europeias. QU;ldro 3. Tipos de col6nias, vicissitude das I inguas nati\'as e lingu;ls dominantes. A colonizaC;30 e 0 discurso colonialista eram tambem impregn;ldos pelo patriarealismo e pela exclusivid;lde sexista. 0 termo homem e seus derivados inclufam 0 homem e a mulher; 0 mesmo privilegio nao era dado ao termo mulher. A ideologia subj;lcente consistia, portanto, n;l junc;ao das noc;6es metr6pole e patriarc;llismo que estav;lm empenhad;ls em impor a eivilizac;ao europeia ao res to do mundo. A ac;ao "civilizadora" levada ao interior pelo eolonizador britanieo, a partir de 1750, na Africa, India e no sudeste asiatico, era tao bern preparada que eseondia a violencia e a degradac;ao as quais foram submetidos os nativos. Dois seeulos antes, a mesma justificativa de Colombo para faze los "cristianos" e de Caminha para "salvar esta gente" foi utilizada por portugueses e espanh6is para il camuflar a utilizac;ao de mao-de-obra indfgena em suas col6nias amerieanas, A tarefa civilizadora e a tutelagem paternal aSSlImidas pelas nac;oes europeias nada mais foram que urn pretexto pelo qual THOMAS BONNICI / L0cl.' OSAN,' ZOllN (ORGANIZADORES) - 263 i -~;. . ~o N N I C I intensificavam a rapinagem e a luta para a aquisi<;ao de materias-primas para suprir as na<;6es em) processo de industrializa<;ao crescente. o estigma da inferioridade cultural e do racismo impregnou tambem os colonos brancos, que, aos olhos dos agentes governamentais e da metr6pole, ficaram degenerados pelo hibridismo. Em Wide Sargasso Sea (1966), de Jean Rhys, foram ;,tribuldas aprotagonista Antoinette Cosway acusa<;6es de incesto, loucura, adulterio e ninfom;,ni;" porque ela era 0 result;,do cia mesti<;agem de descendentes britanicos com negros c;,ribenhos. No romance 0 wrtifo (1890), Jeronimo, 0 portugues exemplar, mergulha na mass;, humam da f;'\'e!;, e degrada-se di;,nte dos encantos do ambiente, cia mllsica tropical e, de modo especial, da sensualid;,de de Rita Baiana. A metr6pole, portanto, enfatizava 0 fato de que esses colonos degenerados, prescindindo da heran<;a cultural de seus antepassados europeus, desenvolveram as caracrerfsticas dos nativos (pregui<;a, dan<;a) ou generalizaram aspectos de sua tipicidade nacional (;, bebedeira dos irlandeses). Todos esses aspectos criaram urn sistema mundial no qual certas culturas e sociedades eram consideradas essencialmente inferiores. Nos seculos XVI e XVII, os colonizadores espanh6is, portugueses e holandeses, e, mais tarde, nos seculos XVIII, XIX e XX, a Inglaterra e ;, Fran<;a, puseram em pratica 0 conceito polarizador "n6s - eles" ou Ollira - olliro. Para garantir a coesao do Outro diante das vicissitudes do mundo modemo, 0 colonizado foi incentivado a receber e compartilhar as benesses da civiliza<;ao. Para 0 colonizado, esse futuro promissor foi sempre preterido . OUTRO (0 COLONIZADOR) Outro (0 COLONlZADO) 1. 0 centro imperial (a) constr6i 0 sistema pelo qual 0 sujeito colonizado forma a sua identidade como ciependente ou outro; (b) torna-se a unica estrutura pela qual 0 sujeito colonizado compreende 0 mundo. 2. Representa 0 Outro Simb6lico e a Lei-do-Pai (conforme a terminologia de Lacan). 1. 0 outro e formado por discursos de (a) primitivisl1lo; (b) canibalisl1lo; (c) separac;ao binaria entre 0 colollizador e 0 colonizado; (d) afirmac;ao da supremacia da cultura, ideologia e visao do mundo do colonizador. 2. o sujeito colonizado e "filho" do imperio e 0 sujeito degradado do discurso imperial. Quadro 4.0 Outro e 0 outro no sistema colonial. o colonialismo, fortanto, gira em torno de urn pressuposto no qual 0 poderoso centro cria a sua periferia. Embora 0 binomio centro/margem seja uma no<;ao binaria, ela define 0 que ocorreu na representa<;ao dos indivfduos durante 0 periodo colonial. 0 mundo foi dividido em duas partes, hierarquicamente constitufdas, e 0 centro se consolida\'a apenas atraves da existencia do outro colonizado. Segue-se que 0 centro, a civiliza<;ao, a ciencia, 0 progresso existiam porque havia todo urn discurso sobre a colonia, a selvageria, a ignorancia, 0 atraso cultural. Constituindo se 0 centro e relegando tudo 0 que havia fora dela como peri feria da cultura e da civiliza<;ao, a Europa sentia-se na incumbencia (missao) de colocar, sob diversos pretextos, essa margem em seu ambito. Enquanto DomJoao III escreve em 1548 que 0 principal objetivo de "povoar as ditas terras do Brasil foi para que a gente delas se convertesse anossa fe cat6Iica", em 18970 secretario das colonias ingles Joseph Chamberlain considerava as col6nias britanicas como estados nao desenvolvidos que jamais poderiam se desenvolver sem a assistencia imperial e que nao havia outra solu<;ao para garantir emprego pleno aos ingleses sem a cria<;ao de novos mercados (LANE, 1978). 264- TEO R ) A LITERARIA .-~ -~~.~ TE O R I .~ E C R ! T [ CAP 6 s - COLON I A li S T ., S SUJEITO E OBJETO · t A opressao, 0 silencio e a repressao das sociedades p6s-coloniais decorrem de uma ideologia de sujeito e de objeto mantida pelos colonizadores. Nas sociedades p6s-coloniais, 0 sujeito e 0 objeto pertencem a uma hierarquia em que 0 oprimido e fI.xado pela superioridadc moral do dominador. o colonizador, seja espanhol, portugues, ingles, se ill1poe como poderoso, civilizado, cuI to, forte, versado na ciencia e na literatura. Por outro lado, 0 colonizado e descrito constantemente como sem roupa, sem religiao, sem lar, scm tecnologia, ou seja, em nfvel bestial. Ea dialetica do sujeito (agente) e do objeto (0 outro, subalterno). A lingua cortada do personagem Friday no romance Foe (1986), de J. M. Coetzee, e 0 simbolo do colonizado mudo por ara voluntlrio do colonizador. A ausencia de relatos de indios ou de escravos brasileiros e de mulheres escritoras em todo 0 periodo colonial e pre republicano e emblematico. A autoetnografIa nao existe por for<;a da hierarquia imposta. Pode-se usar 0 termo subalterno para descrever 0 colonizado-objeto. 0 sllbaltefllo, termo em prestado da obra Note sulla storia italiana (1935), de Antonio Gramsci (1891-1937), refere-se a pessoas na sociedade que sao 0 objeto da hegemonia das classes dominantes. As classes subalternas podem ser compostas por colonizados, trabalhadores rurais, operarios e outros grupos aos quais 0 acesso ao poder e vedado. Os estudos coloniais interessam-se pel a hist6ria de grupos subalternos, necessariamente fragmentaria, ja que sempre esta submetida a hegemonia da c1asse dominante, sujeito da hist6ria oficial. 0 colonizado quase nao possuia meios para se apresentar e tampouco tinha acesso acultura e a organiza<;ao social. No Brasil existe apenas a etnografIa de indios do seculo XVI, cscrita e manipulada . por grupos europeus. Praticamente 0 mesmo pode ser afIrmado dos escravos negros trazidos ao Brasil e de seus descendentes brasileiros, das mulheres, dos agricultores sem terra, dos operarios urbanos exclufdos. Foi 0 colonizador europeu que lan<;ou 0 espa<;o colonial e 0 nativo avista do mundo num processo que Spivak (1987) chama de wor/ding. Wor/ding e a maneira pela qual a colonia come<;ou a existir como parte do mundo eurocentrico. A grande quantidade de (extos, incluindo mapas, pinturas, frontispfcios de livros, sobre 0 Brasil nos seculos XVI e XVII e publicados na Europa, formou, no imaginario europeu, urn conjunto de conceitos sobre a America portuguesa. Ea inscri<;ao do discurso imperial sobre 0 espa<;o colonizado. 0 metodo mais 6bvio consiste no preenchimento do mapa brasileiro com nomes de acidentes geograficos, 0 que signifIca conhecer e controlar. 0 segundo tipo de wor/ding e o "passeio" do europeu pelo pals colonizado. Ha muitas gravuras e desenhos mostrando 0 soldado ingles caminhando por territ6rio indiano ou africano. Nesse caso 0 sujeito colonial esta mostrando ao nativo quem realmente manda naquele espa<;o. Em sua Carta, 0 escrivao Caminha descreve os "passeios" dos portugueses pelas praias baianas, impondo na mente dos indigenas a supremacia do branco colonizador. A terce ira modalidade refere-se a degrada<;ao sistematica do nativo. Por que na cartografia brasileira e nas primeiras paginas dos livros impressos nos primeiros do is seculos de coloniza<;ao encontram-se constantemente cenas de antropofagia? Por que a nudez, 0 atefsmo, a pregui<;a, a selvageria, a sensualidade e a ignorancia sao t6picos constantes na descri<;ao do negro, .! quer no Brasil, quer na Africa do SuI? A imagem do nativo/escravo em tais condi<;6es foi 0 gatilho II psicol6gico para a rapinagem da colonia em todos os sentidos. Os crfticos tentam expor os processos que transform am 0 colonizado numa pes so a muda e as estrategias dele para sair dessa posi<;ao. Spivak (1995, p. 28) discursa sobre a mudez do sujeito colonial e da mulher subalterna: "0 sujeito subalterno nao tem nenhum espa<;o a partir do qual ele possa falar". Bhabha (1998) afirma queo subalterno pode falar e a voz do nativo pode ser recuperada atraves da par6dia, da mlmica e da cortesia ardilosa, que amea<;am a autoridade colonial. Fanon (1990) e Ngugi 'i (1986) admitem que 0 colonizado pode ser reescrito na hist6ria, embora esse tipo de descoloniza<;ao I sempre seja urn fenomeno violento. 0 colonizado fala quando se transforma num ser politicamente consciente que enfrenta 0 opressor. Embora escritos por europeus, muitos relatos de viagens e romances pre- e p6s-independencia revelam inconscientemente a voz e os atos dos oprimidos. Materializa-se, portanto, 0 processo de agencia, ou seja, a capacidade de alguem executar uma a<;ao livre THOMAS Bo,",",c' / LUCIA OSANA ZOllN (ORGANIZADORES) - 265 - - - - -- ~o N N I C I j e independentemente, vencendo as impedimentos processados na constru«ao de sua idelltidade. Note se que em 0 Uragulli, cuja finalid;tde foi a exalta«ao do marques de Pombal, destacam-se as vozes dos indios. Esse fato mostra a supera«ao de estado de objetos e as revela como agentes. Nos estudos p6s coloniais, a agencia e urn elemento fundamental , porque revela a alltonomia do sujeito em revidar e contrapor-se ao poder colonial. Nesse contexto, e importante a teoria da subjetividade construida pela ideologia (segundo Althusser), pela linguagem (segundo Lacan) e pelo discurso (segundo Foucault), ja que qualqu~r ato do sujeito e conseql1encia desses tres fatores. A questao envolve a constitui<;ao da identidade na divisao Outro-outro imposta pelo colonialismo (TODOROV, 1991) . 1. . SlIuallerno: literalmente significando "sujeito de categoria inferior", 0 termo foi criado por Gramsci ; trata-se de gualgue r sujeito sob a hegemonia das classes dominames. 2. Em termos pos-co]oniais, as esluda.< slIuallernos se referem aanalise da subordina~ao na sociedade devido ac1asse, casta, ldade, genero, profissao, religiao e outros. 3. o fator mais constante nos estudos subalternos sao os metodos de resis/ellcia adotados contra 0 colonizador ou a elite dominadora. 4. Pode 0 subaltemo falor' e a pergllnta mais imporr;\Jlte. 5. Em sociedadcs pos-coloniais, a mlllher e dllplamellte sllbalterna: cIa e 0 objeto da historiografia colonialista e da constru~ao do genero. 6. o diswrso pas-colollia! e a apropria(clO da lill.li"agc lIl pelo subaltcrno constituem mctodos p~r~ que a voz lTlargill~lizada possa ser ouvida. Quadro 5. 0 subaltcrno e sua voz. COLONIALISMO E FEMINISMO Ha estreita rela«ao entre as estudos p6s-coloniais e a feminismo. Em pnmelro lugar, ha uma analogia entre patriarcalismo/ feminismo e metr6pole!colonia au colonizador/colonizado. "Urna mulher da colonia e uma metafora da mulher como colonia" (DU PLESSIS, 1985, p. 46). Em segundo lugar, se a homem foi colonizado, a mulher, nas sociedades p6s-coloniais, foi duplamellte colonizada .. Os romances de Jean Rhys, Doris Lessing, Toni Morrison e Margaret Atwood testemunham essa dialetica. Na hist6ria do Brasil, a mulher sempre foi relegada ao servi«o do homem, ao silencio, adupla escravidao, aprostitui«ao au a objeto sexual. Na literatura, muitos sao as romances que representam, atraves de Sl1as personageris femininas, essa sitlla«ao. Diversos romances de Jorge Amado, par exemplo, retratam essa subjuga«ao da mulher. o objetivo dos discursos p6s-coloniais e do feminismo, nesse sentido, e a integra«ao da mulher marginalizada a sociedade. De modo semelhante ao que acontecell nas ref1exoes do discurso p6s-colonial, no primeiro periodo do discurso feminista, a preocllpa«ao consistia na sllbstitui«ao das estruturas de domina«ao. Essa posi«ao simplista evoluiu para urn questionamellto sobre as formas literarias e 0 desmascaramento dos fundamentos masculinos do dnone. Nesses debates, o feminismo trouxe aluz muitas questoes que 0 p6s-colonialismo havia deixado obscuras, e vice versa. De fato, 0 p6s-colonialismoajudoll 0 feminismo a precaver-se de pressupostos ocidentais do discurso feminista. 266 - TEO RIA LITERARIA - - -_..-~ TEO R I A E C R i TIC .\ P 6 s - COL 0 N I A LI S T A S 1. A Illulher edllp/Oillellie r%llizada pcb sociedade indfgena e pelo poder colonial. 2. frequ entementc as questoes deg<'IIt"(,· sao minilllizadas ou releg~das a segundo plano na analise pos-colonial. 3. A o!Jjelij/rQ(;iio da lilli/her torna-se a Il1c[,ifora da degrada<;ao das sociedades sob 0 coloniali smo. 4. A voz da Ir/u/her na fic<; ;io e 110 dest' I\ \'olvimcnto do canone literario rompe os pressupostos ma sculinos 5. Ques toes de idell/idade, colltro/e, po,h (agi!uria) e de all/oria tornalll-se as mais relevante s. 6. Consolida-se 0 estilo litcrario carac[aizado pela diferC/l(a, dil/widade e illlprevisi!Ji/idade. 7. Ha necess idade de constaflle lligil<ill(jll contra as manobras do Outro (a sociedadc branca Oll homens negros). Quadro 6. 0 feminismo em sociedades p6s-coloniais. Petersen (1995) observa qut' em muitos parses do Tercejro Mundo ha 0 dilema sobre 0 que e necessario empreender primeiro: a igualdade feminina ou a luta contra 0 imperialismo presente na cultura ocidental. Em Thillg' Fall.-lparl, 0 personagem Okonkwo e castigado nao pOI-que bateu em sua esposa, mas por haver batido Il eb numa semana considerada sagrada. Petersen (1995, p. 254) resolve a qllestao com lima cita<,;ao de Ngugi: "Nenhllma liberta<,;ao cultural sem a liberta<,;ao feminina". A escritora nigeriana Buchi Emechcta insiste sobre a "autentica perspectiva feminista, a focaliza<,;ao na explora<,;30 da mlllher e a luta dela pela liberta<,;ao" (BENSON; CONOLLY, 1994) . Efetivamente, a dllpla coloniza<,;30 causou a objerifica<';3o da mulher pela problematica da classe e da ra<,;a, da repcti<,;ao de contos de fada europeus e da legisla<,;ao falocentrica apoiada por potencias ocidentais. Entre outras, a mais e£leaz estrategia de descoloniv<,;30 feminim concentra-se no uso da linguagem e da experimenta<,;50 linguistica. Muiro esclarccedor 0 romancc A repllvliw dos sonhos (1984), de Ntlida pirlOn, no gual se dcscrc\'e c st' dnali sa 0 processo de cresccnte consciemiza<,;ao politica de Eulalia, Esperan<,;a c Brcta em tres perfodos politicos distintos do seculo XX o QUE E A L1TERATURA POS-COLONIAL Diante dos princfpios acima. podemos de£lnir a literatura p6s-colonial como toda a literatura, inserida no contexto de cllltura. "a fetada pelo processo imperial, desde 0 primeiro momenta da coloniza<,;ao europeia ate 0 preseme" (ASHCROFT et a/., 1991, p. 2). A critica p6s-colonial, po tanto , abrange a cultllra e a literatura, ocupando-se de perscruta-Ias durante e ap6s a domina<,;30 imperial europeia, de modo a desnlldar seus efeitos sobre as Iiteraturas contempodlneas. De fato, todas as literaturas oriundas das ex-col6nias ellropeias, sejam elas portllguesas, espanholas, inglcsas ou francesa s, (1) surgiram daexperiencia da coloniza<,;30 e (2) reivindicar;l1TI-sc pe rante a tensao com 0 poder colonial e diante das diferen<,;as com os pressupostos do centro imperial. E":periencia da coloniza<;ao TCllsao com 0 poder colonial literatura pos-colonial Difercn<;as com os pressupostos Imperial d o centro Quadro 7. A forma<,;ao da literatura p6s-colonial. - ~o N N I C I I A emergencia e 0 desenvolvimento de literaturas p6s-coloniais dependem de dois fatores importantes: (1) a progressao gradual da conscientiza\ao nacionaI e (2) a convic\ao de serem diferentes da literatura do centro imperial. Na primeira expressao "Iiteraria" brasileira, nem a conscientiza\ao nacional nem a diferencia\ao tem ressonancia. De fato, ela envolve textos literarios que foram produzidos por representantes do poder colonizador (viajantes, administradores, soldados e esposas de administradores coloniais) . Tais textos e reportagens, com detalhes sobre costumes, fauna, flora e lingua, privilegiam 0 centro em detrimento da peri feria, porque visam exclusivamente ao lucro que a metr6pole tera com a invasao e a manuten\ao da colonia. As descri\6es de Fernao Cardim, em Do clima e terra do Bmsil (edi\ao inglesa de 1625), Jean de Ury, em Viagem a term do Brasil (1578), e Gabriel Soares de Sousa, em Tratado desaitil)o do Brasil (1587), com sua pretensao de objetividade sobre frutas tropicais, esmeraldas, rios e outros temas, como tambem a atomiza\ao dos objetos descritos pelos pintores e botanicos hoJandeses, como Albert Eckhout, Wilkm Piso, Johann Nieuhoff e Georg Marcgraf, escondem 0 disCllrso imperial. A segunda etapa envolve tel\1:osliterarios escritos sob supervisao imperial por nativos que receberam sua educa\ao na metr6pole e que se sentiam gratiflcados em poder escrever na lingua do europeu (nessa epoca nao havia nenhuma consciencia de cia ser tambcm do colonizador). A c1asse alta da India, os missionarios africanos e, as vezes, prisioneiros degredados na Australia sentiam-se privilegiados em pertencer a classe dominante, ou em ser por ela protegidos, e prod uziram volumes de poem as e romances. A Prosopopeia (1601), de Bento Teixeira, e 0 Uragllai (1769), de BasIlio da Gama, sao exemplos ci;\ssicos desse fenameno na iiterJttlrJ brasii<:>ira. Embora muitos dos temas (0 fato de que supostamente a cultura do colonizado era mais antiga do que a europeia, a brutalidade do sistema colonial, a riqueza de sellS costllmes, leis, cantos e proverbios) abordados por esses autorcs estivessem carregados de SUb\TrSaO, sem dllvida os autores nao podialll ou nao queriam perceber essa potencialidade. Alem disso, a mantlten\ao da ordel11 e as restri\oes impostas pela potencia imperial nao permitial1l nenhllma Illanifcsta\ao que pudcssc mostrar algo difcrentc dos cri tcrios cananicos Oll pol iticos. A terceira etapa ell\'olve lima gal1la de tcxtos, a partir de certo grau de difcrcllcia\ao, ate lima total rllptura co 111 os padrocs da metr6pole. Evidcntcmentc, cssas literatllras depcndial11 do C<lncelal11ento do poder restritivo, Oll seja, come\aram a ser escritas ou umas dccadas antes Oll a partir da independcl1cia politica. A oscila\ao de "brasilidade" nas obras de Basilio da Gama, Santa Rita Durao, Clalldio Manoel da Costa, dos poctas romanticos e deJose de Alencar emuito Illtida: a bajllla\ao ao colonizador, 0 cstilo literario portugucs. 0 afastal11ento da ret6rica camoniana, tcmas brasilclros. fabrica\ao da mitologia brasileira. Pela conscientiza\ao p6s-republicana, com Machado de Assis e com 0 Modernismo, ocorre a guinada completa do estranhamento e afastamel1to da literatura brasileira dos parametros metropolitanos, sejam esses portugueses ou franceses. De\·ido a manuten\ao da centraliza\ao britanica, acredita-se que a literatura em ingles oriunda das ex-colonias britanicas tenha ido mais longe em sua enfase na linguagem, na par6dia e na satira. Em Things Fall Apart (1958), Cilillua Achebe ridiculariza o administrador colonial que deseja escrever 11111 livro sobre os costumes primitivos dos selvagens do alto rio Niger, quando 0 autor ja havia e:ll.'}Josto a complexidade de costumes, religiao, hierarquia, legisla\ao e proverbios da tribo dos Igbos na regiao chamada Umuofia. 1. textos literarios prodllzidos por representantes do poder colonial (viajantes. administradores. esposas dos colonizadores, religiosos). 2. textos Iiterarios produzidos por nativos, mas sob supervisao colonial (religiosos nativos. c1asse intelectual educada na metr6pole. protegidos dos colonizadores). 3. textos literarios escritos por nativos a partir de certo grau de diferencia~ao dos pad roes da metr6pole, ate sua rllptura total. Ql1adro 8. Os tres momentos da Iiteratura p6s-colonial. 268 - TEO R I A L1TERARIA - ' .-·-~~TEORrA E cRiTr C A !' 6S -COLONrALrST AS QUESTIONANDO 0 CANONE LITERARIO. Quais sao os doeumentos historieos ou Iiterarios nos quais a voz do slivallemo e transmitida? Como o eolonizado se desereveu durante seeulos de submissao? Como 0 europeu viu a prescn<;;a do olltrol No canone literario 0 colonizado eneontrou sua voz ou csta fieou relegada aauseneia Ninguem pode negar' que atualmente ha uma verdadeira extensao do canone literario,ja que te,,1:os de mulheres, indigcnas, escravos e membros de OlltroS grupos historicamente marginalizados come<;;aram a cmcrgir. Houvc tempo em que 0 dnone literario estava feehado: sornente um conjunto de textos, consagrados como esteticamente excelenres, era escolhido pelo grupo social e politicamente dominante, e considerado digno de ser lido, com a consequente exclusao de outros toctos que nao eoadunavam com 0 ponto de vista do grupo hegemonico. Um maior ntimero de textos estao sendo e studados como rcpresenta<;;oes da experiencia e da CLlltura da mais variada gama de grupos de pe ssoas. Houve comprometimento nos padroes literarios? Os textos formadores do dnone foram escolhidos rela sua exeelencia literaria ou pela represemarividade cultural? E legitimo insistir sobre uma representa<;;ao politicamente correta para cada minoria, em detrimento da utiliza<;;ao de eriterios literarios? Discutem-se muiro , atualmente 0 canone litera rio e sua forma<;;ao. Enquanto Harold Bloom, em 0 (finone o(idel/tal (1995), insiste sobre a autonomia do esteeico e deplora qualquer ideologia na crltiea literaria , os adeptos do Pos-modernismo (multicllltllralismo, feminismo, Novo Historicisl11o, afrocentri smo) dilatam a abrangencia do can one. Nao faltam crlticos, como Perrone-Moises em Altas Literatllm.' (1998). que tomam posi<;;:io intermediaria. S;r,be-se, contudo, que a formac;:ao do canone literario deu-se porque certas obras literarias em determinados periodos historicos culruavam interesses e propositos eultllrais particulares, como se fossem 0 lmico padrao de investiga<;;ao literaria. E extremamenre interessante saber como certos textos foram selecionados por intcresses, tornando se , portal1to, dignos de serem estudados. E interessante investigar como as ideias de excelencia literaria pe rmearam as escolas do ensino fundamental, os exames vestibulares, 0 currlculo dos cursos de Letras nas universidades. Os romances de Jose de Alencar (1829-1877) , 0 principal escritor da fic<;;ao romal1tica brasileira e expoente maximo do Indianismo, foram apropriados 110 canone literario brasileiro porCJue nos pcriodos pos-independencia e pos-republica necessitava-se de alguem que mostrasse orgulho, amor, defesa da patria, e criasse arquctipos de uma terra edcnica e da unifica<;;ao nacional. Na Inglatcrra, as obras de Alfred Tennyson (1809-1892) naturalmente entraram no canone literario por causa d e seu enaltecimento do imperialismo britanico, da coragem de sells soldados e dos arquetipos criados no conjul1to de poemas sobre os fundamcl1tos miticos do povo ingles. POl' outro lado, numa sociedade patriarcal e machista, os textos e as biografias das escritoras brasileiras do seculo XIX e do inicio do seculo XX foram quase todos suprimidos. Suas obras foram literalmente relegadas ao esquecimento. Somente nestas ldtimas decadas a academia brasileira (especialmente nas universidades federais do Rio Grande do Norte, de Minas Gerais e de Santa Catarina) resgatou a historia e as obras de autoras brasileiras. 0 mesmo aconteceu no bojo da sociedade branca e europeia dos Estados Unidos. Entraram no canone literario estadunidense os textos dos ex-escravos Frederick Douglass (1817-1895) e Harriet Ann Jacobs (1813-1897) apenas nos llitimos vinte e cinco anos do seculo XX, de\'ido a interesses de diferentes experieneias culturais e de formas literarias. A RELEITURA A releill/m e LIma estrategia para ler textos literarios ou nao-literarios e, dessa maneira, garimpar suas implica<;;6es imperialistas e trazer atona 0 processo colonial. A releitura do texto fn emergir as n uan<;;as colonia is que ele mesmo eseonde. Quando se Ie urn romance da literatura brasileira do seculo XIX, pol' exemplo, nada se depara, aprimeira vista, sobre os contrapontos da riqueza pessoal dos personagens, da suntllosidade de sells solares e de sua vida folgada. A reinterpreta<;;ao Oll a leilum contrapontual TH OMA> B ON Nier / L UC IA O S.\ N A ZOLIN ( O RG A N IZAl> O RES) - 269 - ! :00 N N I C r revel a que a origem dessa riqueza esta enraizada na escravidao de indios e negros, no comer-cio da carne h umana, na invasao e viola<;ao de terras alheias, nos castigos horrendos, na man u ten<;ao do estado racista. Fundamentando-se nao na Intima rcla<;ao entre literatma metropolitana (portuguesa) e colonial (brasileira), mas na realidade social e cultural, a releitura e uma volta "ao arquivo cultural [que e lido] de forma nao unlvoca, mas em contraponto, com a consciencia simultanea da historia metropolitana que esta sendo narrada e daquelas outras historias contra (e junto com) as quais atua 0 disCllfSO dominante" (SAID, 1995, p. 87). . A reinterpreta<;ao e, portanto, LIma maneira de reler os te>..1:OS oriundos das culturas da metropole e da colonia para focalizar os efeitos incisivos da coloniza<;ao sobre a produ<;ao literaria, relatos etnicos, registros historicos, discursos cientificos e anais dos administradores coloniais. A releitura e a desconstru<;ao das obras dos colonizadores, de nativos a servi<;o dos colonizadores e de escritores nacionais. Demonstra como 0 texto e contradit6rio em seus pressupostos de ra<;a, civil iza<;ao,justi<;a, religiao. Poe em evidencia a ideologia do colonizador e 0 processo da coloniza<;ao. A desconstl"ll<;ao empreendida pelo romance Thillgs F(/II Ap(//1 revel a que 0 colonizador que insiste na selvageria das tribos da Nigeria e um mentiroso, porque o romance de Achebe esta cheio de epis6dios de literatura oral (orafllra, proverbios), de leis para dirimir questoes litigiosas, de praticas religiosas, de convivencia social harmoniosa. A reinterpreta<;ao tlZ parte da inevitavel tendencia do academico que trabalha com 0 pos colonialismo para subverter 0 texto metropolitano. As estrategias subversivas revelam (1) a forma da domina<;ao e (2) a resposta criativa a esse fato. Isso acontece quando (1) se denuncia 0 titulo de "centro" que as literaturas europeias deram a si mesmas, e (2) se questiona 0 ponto de vista europeu que "natural e constantemente" polariza 0 centro e a periferia. E importante desaflar este ultimo item, ou seja, frisar que nao e legitimo ordenar a realidade dessa maneira. Ate meados da decada de 1960, Prospero, 0 duqlle e mago, emA fell/pesfaae (1611), de Shakespeare, era analisado como um homem maltratado pelo proprio irmao. Prospero c descrito como um pai bondoso, um orientador de sua f1lha Miranda e de seu futuro genro Ferdinand, urn homem que castiga apenas quando a necessidade mge, um cavalheiro que sabe perdoar os inimigos e esquecer 0 mal que the f1zeram. Uma leitma pos-colonial. no entanto, come<;a a desenvolver-se a respeito desse personagem. Prospero revelou-se 0 Llsurpador que se apoderou da ilha pertencente a Caliba; 0 senhor que escravizou 0 nativo ap6s seduzi-Io; 0 controlador cia ITlcmoria de Ariel, CaJiba e Miranda para satisfazer sua ambi<;ao; 0 despot a que mantem 0 dOll1lnio sobre a sexualidade de sua f1lha Miranda e de seu futuro genro Ferdinand; 0 personagem que sai da cena triunfante e ill1une a Clualquer ato de insubordina<;ao. Essa releitura revela as implica<;oes do encontro entre colonizador e colonizado, as estrategias de domina<;ao do primeiro, a marginaliza<;ao e a objetiflca<;ao do nativo, a resistencia do escravizado pela utiliza<;ao da lingua do colonizador e pelo revide flsico. Revela tambelll a incipiente historia da coloniza<;ao britanica e suas estrategias de polariza<;ao que serao desenvolvidas na terrlvel historia do imperio ingles entre os secul(Js XVIII e XX. A pe<;a Nafesfa ae Sao LOllrw{o (1587), deJose de Anchieta (1534-1597), parece revelar simples mente um drama singelo e primario com que 0 missionario podia facilitar a prega<;ao da doutrina crista. U ma Ieitura pos-colonialtraz a tona a demoniza<;ao e a zoomorforiza<;ao dos indios, as quais revelam 0 maniqueJsmo (Oll binarismo) de Anchieta, a objetiflca<;ao dos nativos, 0 vilipendio de Slla Cllitma, a superioridade cia civiliza<;ao europeia (e da religiao crista). 0 texto dra matico expoe as claras a ideologia colonial. Normalmente a leitura de 0 AfC/le/l (1888), de Raul Pompeia, mostra a historia do internato como reflexo da sociedade no terceiro quartel do seculo XIX, ou seja, a historia da elite brasileira, "enrig uecida pela setentrional borracha Oll pcla charqueada do suI", no contexto de falencia e da decadencia do regime monarquico de base escravista. U rna rdeitura poderia revelar 0 sistema educacional europeu como centr::dizador e esmagador da personalidade; a resistencia de uma sociedade oprimida que anseia por uma independencia verdadeira, em todos os sentidos; a elite traidora da nacionalidade e do povo; a incapacidade de distanciar-se do conte>..1:O de dependencia completo; 0 surgimento de sujeitos/agentes que constroem dos escombros a autonomia da na<;ao. 270 - TEO R I A LITERARIA -. -~TEORIA E.CRiTICA P6S- C OlONIAlISTAS I. Passar de uma atitude que define a literatura como enaltecedora e transcendence para uma visao de literatura inserida no contexlO hist6rico e no espac;o geopolftico. 2. Perceber como as obras de cenos autores aprofundaram 0 imperialismo, 0 colonialisl11o e 0 patriarcalismo, especial mente quando supoem que os leitores sejam do sexo masculino e brancos . .'I. Classificar 0 autor segundo 0 esquema representando os tres momentos da literalllra p6s-colonial. 4. Detectar na ficc;ao a ambiguidade ameac;adora do nativo e da mulher diante da ideologia dominante da conquista. S. Descobrir 0 silencio absoluto, escondendo 0 sistema escravagista, aobjetificac;ao da mulher e 0 avi Itamento de nativos, elllbora mascarados atras de manifesta<;oes de riquezas e de patriarcalislllo. 6. [nvestig-dr 0 aprisionamento do espac;o colon ial e p6s-colonial pelo texto europeu ou pela teoria literaria oriundos das metr6poles renascentistas ou rnodernas. Quadro 9. Estrategias para analisar uma obra do ponto de vista p6s-colonial. A REESCRITA A reescrita e um fenomeno liter:hio, muito utilizado em lingua inglesa (porem nao exclusivo desta), que consiste em selecionar um texto canonico da metr6pole e, atraves de recursos da par6dia, produzir uma nova obra escrita do ponto de vista da ex-colonia. A reescrita faz parte do contradisrurso, original mente usado por Terdiman (1985) para demonstrar os metodos empregados pelo discurso da peri feria contra 0 discurso dominante do centro imperial. A sele<;:ao gira em torno de certos textos particularmente preeminentes e simb6licos que 0 discurso dominante irradiava para impor sua ideologia. A reescrita rem por finalidade a quebra da oculta<;:ao da hegemonia canonica e 0 questionamento dos varios temas, enfoques, pontos de vista da obra literaria em questao, os quais refor<;:avam a mentalidade colonial. Logicamente, a reescrita desemboca na subversao dos textos canonicos e na reinscri<;:ao dentro do processo subversivo. Varios autores latino-americanos reescreveram A tempestade. Alem das obras de George Lamming e Aime Cesaire, basta mencionar A tempestade, de Augusto Boal, Utopia selvagem, de Darcy Ribeiro, a pe<;:a Caliball (1997), de Marcos Azevedo, e A-tor-men-ta-do Calibanus (2001), de Guilherme Duraes. 0 romance Wide Sargasso Sea (1966), da caribenha Jean Rhys (1890-1979), e uma reescrita deJane Eyre (1847), de Charlotte Bronte (1816-1855); Robinson Crusoe (1719), de Daniel Defoe (1660-1731), foi reescrito em Foe (1986), do sul-africanoj.M. Coetzee (nascido em 1940). A subversao do canone literario atraves da reescrita nao consiste em apenas substituir um texto canonico por outro modemo. De fato, 0 canone em si contem algo extremamente complexo, porque envolve pressupostos individuais e comunitlrios sobre a literatura, estilo, generos literarios e outros. Esses fatores estao embutidos nas estruturas institucionais e formam as grades escolares, a publica<;:ao de textos escolares, exames para vestibulares, hierarquiza<;:ao em men<;:ao e em cita<;:6es pela academia. A finalidade da reescrita e (1) a substitui<;:ao de textos, (2) a conscientiza<;:ao das institui<;:6es academicas, (3) a relistagem da hierarquia dos textos e (4) a reconstru<;:ao dos textos canonicos atraves de leiruras altemativas. Robinsoll Crusoe, uma narrativa "autodiegetica", nao menciona sequer uma vez 0 sexo feminino, mas mostra a grande previdencia e trabalho meticuloso do homem em varias situa<;:6es limites. 0 romance reescrito Foe tem a personagem Susan Barton (inexistente no romance canonico) como narradora; ela da sua versao das aventuras do Robinson Crus~ (sic) na ilha desabitada. Na segunda e terceira parte do romance, Susan luta para que 0 escritor Defoe nao se aproprie da versao feminina da narrativa e, mais uma vez, anule a voz feminina recuperada. No romance p6s-colonial Friday, ao contrario do caribenho salvo por Crusoe, nao e 0 indfgena ingenuo que aceita sem nenhuma problematiza<;:ao a THOMAS BONNICI I LUCIA OSANA ZOLIN (ORGANIZADORES) - 271 ...- ' -. ~o N N I C I . . I versao rebgiosa, comportamental e lmguistica do europeu. 0 negro e mudo Fnday, agora reescrito, recusa a recupera~ao de sua hist6ria pelo homem branco e tenta articular dlversos modos de e:-.-pressao para "escrever" a hist6ria do negro pelo negro. Em 0 corafao das trevas (1902), de Joseph Conrad, os africanos sao descritos sob 0 POnto de vista colonialista, como "um rodopiar de bra~os negros, um bater infinito de palmas das maos , de pisar adoidado de pes, 0 balan<;ar de corpos, de rolar de olhos, sob a enlanguescencia de folhagem cansada e im6vel". Escrevendo Things Fall Apart (1958), Achebe reinstala a rica cultura africana, rejeita os estere6tipos criados pelos colonizadores, confirma a complexidade e a ambivalencia da cultura africana, constr6i uma profunda e criativa etnografia e, acima de tudo, apropria-se da forma do romance (a ferramenta dominante da representa~ao imperial britanica) . A DESCOLONIZA<;:AO o deslocamento do dnone literario, a releitura e a reescrita fazem parte de um programa geral de descoloniza~ao. A descolonizafao e 0 processo de desmascaramento e demoli<;ao do poder colonial em todos os seus aspectos. Enganam-se aqueles que pensam que a declara~ao de independencia politica produz, por si, a descololliza{ao da mente e que as literaturas nacionais e 0 ensino da ciencia, da hist6ria e da geografia ficam livres de inscri<;6es e de residuos coloniais. Ao contra rio do que muita gente pensa, a descoloniza<;ao e um processo complexo e continuo e nao ocorre automaticamente ap6s a independencia politica. Ap6s a independencia politica das col6nias, ha resqufcios poderosos, sempre latentes, das for~as culturais e institucionais que sustentavam 0 poder colonial. Como em geral os defensores e proclamadores da independencia sentem-se herdeiros dos modelos polfticos europeus e relutam em rejeitar a cultura importada, nao podem escapar de uma profunda cumplicidade com os poderes coloniais dos quais queriam se libertar. Em muitos casos, portanto, a liberta<;ao pura e simples dos liames coloniais (modelos econ6mico, polftico e cultural) nao ocorre. Historicamente, isso aconteceu mais nas colol1ias de' pt.woadores do que nas colonia.' de sociedades invadidas. Embora nestas ultimas a descoloniza~ao fosse mais radical e abrangente, profundos resfduos ainda existem. l. Contesta~ao das interpreta~6es eurocentricas. 1. Reescritllra autorreflexiva da hist6ria da colonia na qual se percebe que a realidade do passado tern influenciado 0 presente. 2_ Desafio a centralidad e, auniversaliza<;ao e as for<;as hegemonicas. 2. A marginalidade ou excentricidade (ra<;a, genero, normalidade psicol6gica, exciusao, distancia social, hibridismo wltural) e uma fonte de energia criar,,-a.3. Instala~ao do contradiscurso peJa transgressao e dissolu<;iio das fonnas liter:irias europcias ou suas fronteiras. 3. A ironia e a par6dia trabalham com os discursos e-xisrentes C, ao mesmo tempo, os contestam_ Quadro 10. Os princfpios da descoloniza~ao. A estrategia do poder colonial e deixar uma elite nativa que perpetua sua ideologia e seus paradigmas. Operando atraves do antigo conceito de compmdor, 0 neocoioniaiismo torna-se manifesta<;ao das opera<;6es da globaliza~ao do capitalismo ocidental e a estrategia para 0 controle global. Pode-se dizer que agloualizafao da economia mundial baseia-se (1) no fato de que as mudan<;as no controle econ6mico e culrural nao 272 - TEO RIA L1TERAR1A . --- -.cOTEORIA E CRiTICA rOS-COL ONIALISTAS ocorreram e (2) na convic~ao de que a forma~ao da elite comprometida com as na~6es hegemonicas era premeditada e realizara-se atraves de discrimina~6es, lutas classistas e praticas educacionais. Ademais, 0 eurocentrismo continuou influenciando a mentalidade das na~6es politicamente independentes com sellS modelos culturais, especialmente pelo binarismo (Iiteratura e oratura; linguas ellropeias e Ifnguas indigenas; inscri~6es culturais europeias e cultura popular etc.). 1. Apropria~ao da lingua colonial pelo escritor oriundo da ex-colonia. "0 escritor (africano1deve ser eapn de moldar a lIngua do colonizador para que possa transmitir a sua e>-'Pe riencia especffica" (ACHEBE, 1975). 2. Recusa de adotar a lingua do colonizador. "Qual e a diferen~a entre um politico que afirma gue a Africa nao se desenvolv·e sem 0 imperialismo e 0 escritor que afirma que a Africa necessita das linguas europeias?" (NGUGr, 1986). 3. Recupera~ao e reconstru~ao da cultura pre colonial. Spivak (1995) e Bhabha (1984) argumentam sobre a impossibilidade dessa recupera~ao devido a processos de miscigena~ao cultural durante 0 periodo colonial. 4. Aceita~ao pelo escritor de uma identidade transnacional e, ao mesmo tempo, 0 aprofundamento da critica diante da cultura conremporanea influenciada peb globaliza~ao e pelo neocolonialismo. "0 imperio retruca ao centro" (Salman Rushdie). 5. Os dirigentes intelectuais, especialmente os escritores, devem reconstruir radicalmente a sociedade sobre os alicerces da tradi~ao do povo e seus valores. Conclusao de Fanon (1990) a partir de seu estudo sobre os efeitos da domina~ao colon ia l sobre os colonizados e da analise marxista do controle social e econom ico. 6. A descoloniza<;ao e urn processo complexo e continuo; nao e algo au tom at ico a partir da independencia politica. Conclusao de B. Ashcroft, G. Griffiths e H. Tiffin (1991) ern seus estudos sobre as soe iedades p6s-independencia . 7. Vigilancia contra forrnas contemporaneas de coloniza~ao (neocolonialismo, globaJizaylo, neoliberalismo). ''A descoloniz.1~ao freguentemente significa a des ocidentaliza~ao cmpreendida pdo homem branco" (Trinh Minh-ha) . Qlladro 11. Opini6es sobre metodos de descoloniza~ao. A tarefa descolonizadora e extremamente ardua, como se ve na Africa e na India . 0 caso das ex colonias de colonizadores, como a Australia e 0 Canada, e outro grande problema . Embora nesses palses a independencia nos moldes europells fosse concedida ha tempo, suas popula~6es, de maioria branca, sofrem de uma profl1nda submissao cultural, sen tem-se impotentes diante das propostas de desmantelar os elementos coloniais embutidos em suas institui~6es e culturas, e tem dificuldades em cortar 0 Iiame mae-filha incrustado em sua identidade. Ate certo ponto, as asser~6es acima aplicam se ao Brasil tambem, embora seja ele urn pafs mesti~o , com predominancia da classe branca ou "embranquecida", 0 qual ainda possui fortes resqufcios culturais europel1s. Apesar da grande influencia e abrangencia da globaliza~ao, destacam-se para fms de descoloniza~ao da mente (1) 0 fomento das linguas nativas, (2) a relativiza~ao das Ifngllas europeias, (3) a democratiza~ao da cultura, (4) a recllpera~ao cultural e literaria. No caso da literatura, parece que a tarefa dos escritores oriundos das sociedades p6s-coloniais consiste em teorizar extensivamente a problematica do poder e do estado p6s-independencia. A Iiteratura descolonizada passa a se r polifOnica em 111gar de monocentrica, hfbrida no lugar de pura, carnavalesca em lugar de persuasiva. Caracteriza-se pela narrativa fragmentaria, TII OMAS B ONN lel / LUCIA O SANA ZOLIN (ORGANI"DORES) - 273 ~o N N I C I ! pelos incidentes duplicantes, pelos comentanos metaficcionais, pela cronologia interrompida, pelos generos mistos. Alem disso, existe urn problema que poderia ser chamado "existencial". Urn dos escritores pos-coloniais, 0 sul-africano J. M . Coetzee, de ascendencia europeia, sente-se receoso em representar flccionalmente os excluidos dos imperios capitalistas, como os negros e os escravos. 0 ex-colonizado e o neocolonizado tern olltras e diferentes formas para desenvolver a sua sllbjetividade e a representa<;ao literaria de sua identidade. No romance Foe, a europeia Susan Barton tenta em VaG escrever a historia do negro Friday, cuja lingua foi cortada. Alem disso, inutilmente incentiva-o a escrever, relembrar ou expressar-se por gestos para con tar a sua historia. Os metodos europeus nao funcionam e 0 proprio Friday deve recuperar a "voz" no processo de subjetifica<;ao. A tarefa de Friday, portanto, e a metonimia da fun<;ao lited.ria do escritor nativo que busca a propria subjetividade e a do povo. Fanon escreve: o escritor da colonia deve usar ° pass ado para abrir espa~o ao futuro , como urn convite a a~ao e como a base para a esperan<;a. [ ... J A responsabilidadr da pessoa culta nao (; apenas uma responsabilidade dian te da cultura nacional, mas uma rrsponsabilidade global referente atotalidade da na<;ao, cuja cultura representa apenas urn asprc to da na<;ao (FANON, 1990, p. 187). A conscientiza<;ao e postura p6s-colonial que a academia assume sao a base da descoloniza<;ao da mente. Em primeiro lugar, a academia brasileira nao pode apropriar-se da teoria p6s-colonial sem questionamentos. A no<;ao do sujeito descentralizado nao poderia ser mais uma estrategia do colonialismo ocidental? 0 estudo do pos-colonialismo nao poderia ser a analise de um pequeno grupo ocidentalizado de escritores e pensadores que comercializa os produtos culturais do capitalismo mundial para os intelectuais da periferia? Nao e possivel que a intima liga~ao entre pos-modernismo e pos-colonialismo, este considerado 0 filho do primeiro, aconte<;a nao por novas perspectivas sobre a cultura ou de uma reviravolta do poder, mas apenas um pretexto, ou seja, por causa da visibilidade crescente de intelectuais dos paises emergentes como inovadores? Essa problematiza<;ao nao invalida a atitude e 0 esfor<;o do academico brasileiro, profissional de Letras, em sell comprometimento para descobrir como os povos estao fixados em estruturas opressivas e para descorrinar a subjetifica<;ao de tais individuos (neo)colonizados. 0 seu esfor<;o para a flexibilidade da teoria existente e 0 surgimento de outras teorias autoctones sao de grande valia para reinterpretar todos os to,:1:0S pre- e pos independencia politica oriundos da inscri<;ao colonial (BONNICI, 2000). Tendo como principio que descolonizar nao e simplesmente livrar-se das amarras do poder imperial, mas procurar tambem alternativas nao repressivas ao discurso imperialista, a descoloniza<;ao da literatura e da critica literaria darao um novo e mais aprofllndado entendimento ao academico. E ana logo ao sentimento do escravo afro-americano Frederick Douglass (181 7-1895), q llando descobri u o segredo da escrita. "Houve uma nova e especial revela<;ao, explicando coisas ate entao obscuras e misteriosas, contra as quais 0 meu entendimento juveniJ tentava vislumbrar, mas lutava em vao. [ ... ] Foi uma grande vitoria, estimada por mim sobremaneira . A partir daquele momento, entendi 0 caminho da escravidao para aliberdade" (DOUGLASS, 1988, p. 78). ALEM DO P6S-COLONIALISMO Se 0 termo 'p6s-colonialismo' e a teo ria "p6s-colonial" referem-se ao impacto cultural entre os europcus e os outros, recem descobertos e inventados, desde os primeiros contatos ate a conremporaneidade, ha uma estreita liga~ao entre os eventos contemporaneos envolvendo os povos do Sui e aqueles relacionados ao projeto colonial europeu de outrora. Novas formas de capitalismo, veiculadas por uma mais vigorosa e sofisticada globaJiza~ao, geraram outras questoes Ot! revelaram aspectos rna is profundos da historia dos ultimos quinhentos anos. No inicio do seculo 21, a literatura e assaz sensfvel para representar, a set! modo peculiar, as repercussoes do racismo, diaspora, 274 - TEO RIA LITERARIA ----~~~~--------------------- . - .,...t~---~ TEO R ! A E C R· iT! C A P6~-COLON IALI ST:\S multiculturalismo e outros t6picos que revelam a condi~ao human a e sua luta para encontrar se ntido de sua existencia. Portanto, a teo ria p6s-colonial vai alem de uma mera releitura para a recupera\ao hist6rico-litera.ria retirada de textos canonicos ou nao; tampouco e um relato de culpabilidades, aCl1sa\oes e lamurias sobre 0 sofrimento havido e sobre a perda cultural irreparavel. Por onde se olha, no Ocidente ou !las sociedades do Tcrceiro Mundo, parece que 0 sc r etico nao pode ser separado do urn ciclo aprofundado de criatividadc atraves do qual poderernos visualiza r uma ruptura da violencia absoluta. Esta ruptura exige que aceitemos os contextos do advcrsario nos quais as cuituras iutam el1lre si e que adoternos es trategias de camuflagem e de mascaras como arcabou~os flexlveis dcntro do misterio de traJl sforrna~ao genllina (HARRIS, 1985, p. 128). Consoante os se us conceitos de hibridismo e olhar enviesado, Harris mostra que estes conceitos sao desafios eticos-politicos que a literatura propoe para 0 debate e a interven\ao. "RA<;:A" E RACISMO Durante mais de 450 anos ser europeu signiflcava ser um homem (mascu lino) branco e participe de uma sociedade que dominava 0 planeta. A hegemonia branca em toda a extensao dos imperios europeus se deve a pressupostos que atualmente nao sao apenas debatidos, mas recha\ados por rnoes hist6ricas, ideol6gicas e biol6gicas. }-Iistoricamente pode prova r que a constitui\Jo etnica dos paises e uropeus e tao mista quanto a de gualquer Olitra comunidade heterogenea. Portanto, a suposta cultura homogenea e a pse udopureza racial sao apenas um construto (HALL, 2003). Todavia, foram exatamente es tes fatores, especialll1ente 0 conceito de ra<;a sllperio r, gue se tornaram necessarios para fundamentar ideologicame nte os impcrios ellropeus e, des[a maneira, impor seus valores e outremizar os diferen tes povos nao-brancos que integrari am, como subalternos, no projeto capitalista enge ndrado pdo binarismo metr6polc-colonia. A revela\ao da existencia de certa convi\·cncia racial na Europa desde 0 seculo XVI, c mais tarde, a introdu\Jo dos conceitos de multiculturalismo e de diversidadc cultural (BHABHA, 1994) ap6s a II Guerra Mundial e durante 0 periodo de descoloniza<;ao, solaparam o conceito de identidade nacional , seus ideais e seu lugar no mundo. Embora 0 terIno "ra\a" possa se r apenas uma palavra de usos variegados, a carga de preconce ito a ela ine rente e tao forte que muitos guestionam a com'en iencia em usa-Ia. Na acep\ao fenotipi ca, "ra \a"( ra\a negra; ra\a amarela) e um conjunto de tra\os ftsicos que permitem a identifica\Jo de individuos como pertencentes a lll11 determ inado grupo. N a acep\ao geogrdfica, "ra \a" denota a ancestralidade geografica, dando origem a termos como "ra<;a africana" ou "ra\ct europeia". No se ntido biol6gico 0 termo "ra\a" e sinonimo a subespecie, ou seja, denota uma pop·!la\Jo geneticamente diferente . Todos os antrop610gos afirmam que nao ha atualmente ra\as humanas, mas uma {ll1ica ra\a humam. H omo sapiells emergiu da Africa oriental cerca de 150.000 anos atras: deL'>:o ll 0 continente aproximadamente h;\ 60.000 anos e aventurou-se subsequentelll en te para 0 resto do planeta. As dife ren\as en tre "ra\as" somente poderiam ter ocorrido ap6s sua safda do continente africano. Portanto, as caracteristicas "raciais" (piglllenta\ao da pele , cor e te\.l:ura de cabelo, forma de nari z e espessura de I;\bios) sao controlados por lim nL'Ilnero pequeno de genes diferentes e permitem uma sele\ao rapida impactadas pOI' press6es ambientais. Nada tem a ver com inteligencia, habilidades e talento. A trajet6 ri a imperialista, baseada num conceito espurio da filosofia e da ciencia, a partir do seculo XVII, infestou 0 termo e produziu 0 racismo atual. As "ra\as" nao-europeias foram estigmatizadas como em varios estagios de civiliza\ao para que pudessem servir aos elllpreend imentos das metr6poles. A partir do Ilumini smo, a razao e a civiliza\ao tornaram-se sinonimos a "ra\a branca" e ao norte da Europa, enquanto 0 primitivisl110 e a selvageria foram alocados as "ra \<1s nao-brancas", geograficam ente postas fora da Europa (MALIK, 2008). - N N I C I . SEMANTICA DO TERMO "RA<;:N (PENA, 2008) Sentido fenotfpico caracterizac;:ao ffsica (textura de cabelo; cor da pele) Sentido geografico ancestralidade geografica (rac;:a oriental; rac;:a maori) Sentido biologico populac;:ao geneticamen te difcrenciada ou subespecie (Homo sapiens; Homo neanderthalensis) . Quadro 12. Semantica do termo "ra~a" Diante de urn racismo construido em favor do imperialismo europeu (e estadunidense) e diante do estabelecimento de conai~ao de pessoas com "desvantagem racializada", surgiu uma literatura negra onde se representa a condi~ao racial nao apenas do afro-descendente maS de todos os exclufdos. Concomitante as experiencias da literatura negra estadunidense eda literatura caribenha, uma das modalidades mais significativas da resistencia contra os para.metrOS e as estrategias coloniais e neocoloniais ellropeias eo surgimento da pr6pria literatura p6s-colonial, iniciada por Tutuola, Achebe e Ngugi. 0 surgimento de uma literatura negra britanica e urn fato pr6prio e inegavel, oriundo a partir dos anos 1960. Em contraste a literatura afro-americana estadunidense, define-se a literatura negra britanica como urn conjunto de obras literarias escritas por "negros" (nascidos ou emigrantes no Reino Unido) caracterizado pela repres enta~ao do multiculturalismo, das dificuldades de convivencia etnica, da diversidade cultural, dos problemas de abertura e tolerancia, e de entraves a urn desenvolvimento aa d[fferallre. A heterogeneidade desses autores (africanos, sul-asiaticos, caribenhos, ilheus da Oceania, primeiras na~oes australianas, maori neozelandeses) e dos generos literarios empreendidos talvez ofusque apenas as diferentes variedades da Ifngua inglesa utilizadas, produtos das intercomunica~oes entre as comunidades Iinguisticas diferentes na Inglaterra e naS ex-co16nias. 0 que real mente pode ser chamada de "literatura negra britanica" registra a zona de contato entre 0 p6s-colonialismo e as cuituras britanicas no Reino Unido, produzindo um entremeio no centro literario britanico. Refuta se, portanto, a no~ao excludente de que somente autores brancos podem contribuir legitimamente a constru~ao continua da literatura britanica, salientando 0 fato que 0 texto literario negro britanico e, a partir de meaaos do seculo XX, 0 lows apropriado para a recupera~ao da voz do ex-colonizado, 0 banimento do racismo e a negocia~ao na diversidade cultural (GUPTARA, 1986; STEIN, 2004). Embora a popula~ao brasiJeira atingisse urn nivel e1evado de mistura genica e a grande maioria dos brasileiros tenha algum grau de ancestralidade africana, somcnte recentemente estudos sociol6gicos e antropol6gicos mais profundos, como Dois Atlfilltiros, de Sergio Costa; COllreitos de literatllra e cultura, organizado por Euridice Figueiredo; UlI1a his/oria de branqueamCll/o 011 0 negro em qLles/ao, de A. Hofbauer; Razao, 'cor', e desejo, de Laura MOlltinho,
Compartilhar