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PROGRAMA DE EDUCAÇÃO PERMANENTE EM SAÚDE DA FAMÍLIA UNIDADE 1 Introdução às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) Controle das doenças crônicas não transmissíveis na Atenção Primária à Saúde Leonardo Aarestrup de Aquino e Sousa Frederico Fernando Esteche 2 Controle das Doenças Crônicas Não Transmissíveis na Atenção Primária à Saúde Introdução às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) Introdução às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) O objetivo desta unidade é avaliar a epidemiologia, o impacto da multimorbidade em condi- ções crônicas não transmissíveis e avaliar a construção das redes de atenção à saúde. 3 Controle das Doenças Crônicas Não Transmissíveis na Atenção Primária à Saúde Introdução às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) Aula 1: Transição epidemiológica, impacto das DCNT e organização das redes de atenção à saúde Você já ouviu falar da transição epidemiológica? Vamos ver o que isso significa? Nas últimas décadas, as doenças e os agravos não transmissíveis passaram a ocupar pro- gressivamente posição de maior destaque nas estatísticas de morbimortalidade. As doenças crônicas compõem o conjunto de condições relacionadas a múltiplas causas, caracterizadas por início gradual, de prognóstico usualmente incerto, com longa ou indefinida duração. A transição epidemiológica tem impactado a área de saúde pública no Brasil e demandado o desenvolvimento de estratégias para o controle das condições crônicas. As transformações sociais e econômicas ocorridas no Brasil e no mundo durante o século XX e na década passada provocaram mudanças importantes no perfil de ocorrência das doenças em nossas populações. Até a primeira metade do século 20, as doenças infecciosas transmissíveis eram as mais frequentes causas de mortes no Brasil e no mundo. A partir dos anos 1960, as doenças e os agravos não transmissíveis passaram a ocupar progressivamen- te posição de maior destaque nas estatísticas. Essas mudanças ao longo do tempo estão registradas na Figura 1 a seguir. Figura 1 - Transição epidemiológica. Fonte: Adaptado de CGIAE/DASIS/SVS, 2009. 4 Controle das Doenças Crônicas Não Transmissíveis na Atenção Primária à Saúde Introdução às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) Entre os fatores que contribuíram para essa transição epide- miológica estão: Processo de transição demográfica • queda nas taxas de fecundidade e natalidade • aumento na expectativa de vida • progressivo aumento na proporção de idoso Transição nutricional • diminuição expressiva dos índices de desnutrição • maior acesso a alimentos em geral, incluindo os processados • mecanização da produção e aumento da produção de alimentos • globalização de hábitos alimentares pouco saudáveis • aumento do número de pessoas com excesso de peso (sobre- peso e obesidade) Crescimento da renda, industrialização, desenvolvimento econômico e social • expansão do saneamento básico • resolução dos principais problemas infecciosos de saúde pública • melhor acesso aos sistemas de saúde Hábitos de vida relacionados à urbanização • consumo de cigarros • uso de drogas ilícitas • consumo nocivo de bebidas alcoólicas • sedentarismo Esses fatores favoreceram o aumento da incidência de Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) – doenças cardiovasculares, câncer, diabetes, doenças respiratórias. Dados do Ministério da Saúde (BRASIL, 2011) apontam que 52,6% dos homens e 44,7% das mulheres com mais de 18 anos estão acima do peso ideal. A Organização Mundial da Saú- de (WHO, 2003) estima que o excesso de peso é responsável por 58% da carga de doença relativa ao diabetes tipo II, 39% da doença hipertensiva, 21% do infarto do miocárdio, 12% 5 Controle das Doenças Crônicas Não Transmissíveis na Atenção Primária à Saúde Introdução às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) do câncer de cólon e reto e 8% do câncer de mama e responde diretamente por parcela sig- nificativa do custo do sistema de saúde nos países. Diabetes mellitus (DM) e hipertensão arterial sistêmica (HAS) atingem, respectivamente, 6,3% e 23,3% dos adultos brasileiros (BRASIL, 2011). No Brasil, essas doenças representam a primei- ra causa de mortalidade e de hospitalizações, sendo apontadas como responsáveis por mais da metade dos diagnósticos primários em pessoas com insuficiência renal crônica submetidas à diálise no Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro (OPAS, 2010). Veja a Figura 2 a seguir. Figura 2 - Mortalidade no Brasil em 2009. Fonte: Adaptado de Brasil (2013a, p. 6). Além da mortalidade, as doenças crônicas apresentam forte carga de complicações rela- cionadas. Elas são responsáveis por grande número de internações e perda significativa da qualidade de vida, que se aprofunda à medida que a doença se agrava. Na animação a seguir, vemos um pouco da conversa entre dona Ednelza e sua filha, a ACS Joana, sobre as comorbidades e seu tratamento. Animação 1 A ACS Luana deu dicas valiosas que podemos passar para os nossos usuários da APS que possuem várias comorbidades e medicações! 6 Controle das Doenças Crônicas Não Transmissíveis na Atenção Primária à Saúde Introdução às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) Os determinantes sociais impactam fortemente na prevalência das doenças crônicas. Desi- gualdades sociais, diferenças no acesso aos bens e aos serviços, baixa escolaridade e desi- gualdades no acesso à informação determinam, de modo geral, maior prevalência das doen- ças crônicas e dos agravos decorrentes da evolução dessas doenças (SCHMIDT et al., 2011). É enorme o impacto econômico que as doenças crônicas têm para o país. Este está principal- mente relacionado não só com os gastos por meio do SUS, mas também com as despesas geradas em função do absenteísmo, das aposentadorias e da morte da população economi- camente ativa. Segundo estimativas, em 2025, o Brasil terá mais de 30 milhões de indivíduos com 60 anos ou mais, e a maioria deles, cerca de 85%, apresentará pelo menos uma doença (IBGE, 2010). Entre essas doenças, as cardiovasculares constituem a grande maioria delas, sendo a hiper- tensão arterial sistêmica (HAS) a mais prevalente, aumentando progressivamente com a ida- de (PASSOS; ASSIS; BARRETO, 2006). A HAS apresenta-se como um dos problemas de saúde de maior prevalência na atualidade e, em especial, nos mais idosos (ZAITUNE et al., 2006). Ações de enfrentamento das Doenças Crônicas Não Transmissíveis O Brasil elaborou, em 2011, o Plano de Ações Estratégicas para o Enfrentamento das Doen- ças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT), que tem como objetivo promover o desenvolvi- mento e a implementação de políticas públicas efetivas, integradas, sustentáveis e baseadas em evidências para a prevenção, o controle e o cuidado das DCNT e seus fatores de risco. Nesse sentido, o Ministério da Saúde propôs, em 2012, a construção da Rede de Atenção às Pessoas com Doenças Crônicas, com o objetivo de dar diretrizes e de alinhavar ações e ser- viços já existentes no cotidiano das equipes de saúde e das gestões para melhorar o cuidado às pessoas com doenças crônicas. Um documento guia para a formulação de políticas federais relacionadas ao cuidado das pessoas com doenças crônicas foi lançado em 2012, podendo ser acessado no site do Ministério da Saúde: <http://dab.saude.gov.br/portal- dab/biblioteca.php?conteudo=publicacoes/documento_doencas_cronicas>. http://dab.saude.gov.br/portaldab/biblioteca.php?conteudo=publicacoes/documento_doencas_cronicas http://dab.saude.gov.br/portaldab/biblioteca.php?conteudo=publicacoes/documento_doencas_cronicas 7 Controle das Doenças Crônicas Não Transmissíveis na Atenção Primária à Saúde Introdução às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) Princípios e diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde das Pessoas com Doenças Crônicas 1. Propiciar o acesso e o acolhimento aos usuários com doenças crônicas em todos os pontos de atenção. 2. Humanização da atenção, buscando-se a efetivação de um modelocentrado no usuário e baseado nas suas necessidades de saúde. 3. Respeito às diversidades étnico-raciais, culturais, sociais e religiosas e hábitos e cultura locais. 4. Garantia de implantação de um modelo de atenção centrado no usuário e realizado por equipes multiprofissionais. 5. Articulação entre os diversos serviços e ações de saúde, constituindo redes de saúde com integração e conectividade entre os diferentes pontos de atenção. 6. Atuação territorial, com definição e organização da rede nas regiões de saúde, a partir das necessidades de saúde das respectivas populações, seus riscos e suas vulnerabilidades específicas. 7. Monitoramento e avaliação da qualidade dos serviços por meio de indicadores de estrutura, processo e desempenho que investiguem a efetividade e a resolutividade da atenção. 8. Articulação interfederativa entre os diversos gestores, desen- volvendo atuação solidária, responsável e compartilhada. 9. Participação e controle social dos usuários sobre os serviços. 10. Autonomia dos usuários, com constituição de estratégias de apoio ao autocuidado. 11. Equidade, a partir do reconhecimento dos determinantes sociais da Saúde. 12. Regulação articulada entre todos os componentes da rede com garantia da equidade e integralidade do cuidado. 13. Formação profissional e educação permanente, por meio de atividades que visem à aquisição de conhecimentos, habili- dades e atitudes dos profissionais de Saúde para qualificação do cuidado, de acordo com as diretrizes da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde. (BRASIL, 2014, p. 24) 8 Controle das Doenças Crônicas Não Transmissíveis na Atenção Primária à Saúde Introdução às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) Por que organizar a atenção às doenças crônicas em rede e linhas de cuidado prioritárias? A organização da atenção e da gestão do SUS ainda hoje se caracteriza por intensa fragmen- tação de serviços, de programas, de ações e de práticas clínicas, existindo incoerência entre a oferta de serviços e as necessidades de atenção. O modelo de atenção não tem acompanhado a mudança no perfil epidemiológico da população e mostra-se inadequado para enfrentar os desafios postos por essa situação de saúde. Essa atenção integral só é possível se o cuidado for organizado em rede. Cada serviço deve ser repensado como um compo- nente fundamental da integralidade do cuidado, como uma estação no circuito que cada indivíduo percorre para obter a integralidade de que necessita. A formação de redes integradas e regionalizadas de atenção à saúde tem se mostrado como for- ma de organização de sistemas de saúde eficaz para responder a alguns desses desafios estrutu- rais e epidemiológicos, trazendo melhores resultados para os indicadores de saúde (OPAS, 2018). As redes de atenção à saúde (RAS) constituem-se em arranjos organizativos formados por ações e serviços de saúde, com diferentes configurações tecnológicas e missões assisten- ciais, articulados de forma complementar e com base territorial. Elas têm diversos atributos, entre os quais destaca-se a atenção básica estruturada como primeiro ponto de atenção e principal porta de entrada do sistema, constituída de equipe multidisciplinar que cobre toda a população, integrando, coordenando o cuidado e atendendo às suas necessidades de saúde (OPAS, 2018). O cuidado de usuários com doenças crônicas deve se dar de forma integral 9 Controle das Doenças Crônicas Não Transmissíveis na Atenção Primária à Saúde Introdução às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) A organização da Rede de Atenção às Pessoas com Doenças Crônicas tem por objetivos gerais (OPAS, 2018): 1. Fomentar a mudança do modelo de atenção à saúde, forta- lecendo o cuidado às pessoas com doenças crônicas. 2. Garantir o cuidado integral às pessoas com doenças crônicas. 3. Impactar positivamente nos indicadores relacionados às doenças crônicas. 4. Contribuir para a promoção da saúde da população e prevenir o desenvolvimento das doenças crônicas e suas complicações. A organização da Rede de Atenção às Pessoas com Doenças Crônicas é estruturada a partir de alguns componentes que são essenciais para promover a atenção integral a essas pesso- as, como vemos no box a seguir. Componentes da Rede de Atenção à Saúde (RAS) das Pessoas com Doenças Crônicas 1. Serviços de Atenção Primária à Saúde (APS): centro de comunicação da rede, tendo um papel-chave na estruturação desta, como ordena- dora da rede e coordenadora do cuidado, além de realizar o cuidado integral e contínuo da população que está sob sua responsabilidade e de ser a porta de entrada prioritária para a organização do cuidado. 2. Serviços de Atenção Secundária (Especializada): conjunto dos diver- sos pontos de atenção com diferentes densidades tecnológicas, que incluem ações e serviços de urgência, ambulatoriais, especializados e hospitalares, sendo apoio e complemento aos serviços da APS. a) Ambulatórios especializados: conjunto de serviços e ações eletivas de média e de alta complexidade. b) Hospitalar: ponto de atenção estratégico voltado para as internações eletivas e/ou de urgência de usuários agudos ou crônicos agudizados. c) Serviços de Urgência e Emergência: conjunto de serviços e ações voltadas aos usuários que necessitam de cuidados imediatos nos diferentes pontos de atenção, inclusive de acolhimento aos usuários que tratam as condições crônicas como se fossem agudas. 3. Sistemas de apoio: são constituídos pelos sistemas de apoio diag- nóstico e terapêutico (patologia clínica, imagens, entre outros) e pela assistência farmacêutica. 10 Controle das Doenças Crônicas Não Transmissíveis na Atenção Primária à Saúde Introdução às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) Agora que entendemos um pouco sobre os aspectos epidemiológicos relacionados às DCNT, vamos ver na próxima aula os desafios do manejo dessas condições, rever a organização e continuidade do cuidado e as medidas específicas para melhorar o cuidado das DCNT. Vamos continuar aprendendo? 4. Sistemas logísticos: são soluções em Saúde, em geral relaciona- das às tecnologias de informação. Integram esse componente: os sistemas de identificação e de acompanhamento dos usuários; o registro eletrônico em Saúde; os sistemas de transportes sanitários; e os sistemas de informação em Saúde. 5. Regulação: compreende-se a regulação como componente de gestão para qualificar a demanda e a assistência prestada, otimizar a organização da oferta, promover a equidade no acesso às ações e aos serviços de Saúde e auxiliar no monitoramento e na avaliação dos pactos intergestores. Visa garantir o acesso às ações e aos serviços de maior densidade tecnológica. 6. Governança: é entendida como a capacidade de intervenção que envolve diferentes atores, mecanismos e procedimentos para a gestão regional compartilhada da referida rede. Constituem esse componente as Comissões Intergestores. (BRASIL, 2014, p. 24/25) 11 Controle das Doenças Crônicas Não Transmissíveis na Atenção Primária à Saúde Introdução às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) Aula 2: Medidas de enfrentamento das Doenças Crônicas Não Transmissíveis A fragmentação do sistema de saúde é ainda um grande desafio a ser superado. A mudança no paradigma do sistema de saúde por meio da construção de redes de atenção à saúde vem ao encontro desse desafio. Nesse sentido, fortalecer vínculos entre a população e os pontos de atenção é fundamental para a atenção à saúde integral da pessoa com doença crônica. Assim, a vigilância epidemiológica das DCNT e dos seus fatores de risco é de funda- mental importância para a implementação de políticas públicas voltadas para sua preven- ção, seu controle e para a promoção geral da saúde. Cuidado integrado A aplicação de uma abordagem de Modelo de Cuidado Crônico (MCC) ao tratamento das pessoas com DCNT pode melhorar os desfechos, como número de idas ao pronto-socorro, hospitalizações e duração da hospitalização (ADAMS,2007). O MCC propõe um modelo para atenção às condições crônicas que foi implantado, com diversas adaptações, em uma série de países. Ele tem como princípios: • organização da atenção à saúde; • recursos da comunidade; • autocuidado apoiado; • desenho da linha de cuidado; • suporte às decisões clínicas; • sistema de informações clínicas. Os principais elementos desse modelo incluem: • acesso avançado a profissionais da saúde bem informados; • orientação de autotratamento e apoio, incluindo planos de ação individualizados; • terapia baseada em diretriz; • um sistema de registro clínico. 12 Controle das Doenças Crônicas Não Transmissíveis na Atenção Primária à Saúde Introdução às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) A partir desse modelo, das experiências internacionais e dos modelos de determinação social da saúde e de pirâmide de riscos, foi proposto o Modelo de Atenção às Condições Crônicas (MACC) (MENDES, 2011). Esse modelo estrutura-se pela estratificação de cinco níveis de inter- venções de saúde sobre seus determinantes e suas populações, também define ações e prá- ticas da equipe de saúde mais adequadas a cada grupo-estrato, conforme Figura 3 a seguir. Figura 3 - Modelo de atenção às condições crônicas. Fonte: Adaptado de Mendes (2011). No nível 1 do MACC, opera-se com a população total de uma rede de atenção à saúde com foco nos determinantes sociais intermediários, ou seja, os macrodeterminantes: condições de vida e de trabalho, o acesso aos serviços essenciais e as redes sociais e comunitárias. Nesse nível se propõem as intervenções de promoção da Saúde para a população total, rea- lizadas por meio de ações intersetoriais. No nível 2 do MACC, opera-se com subpopulações estratificadas por fatores de risco, com foco nos determinantes proximais ligados aos comportamentos e aos estilos de vida, por meio de intervenções de prevenção de doenças, voltadas para indivíduos e subpopulações. A prevenção dá-se com a modificação de fatores de risco comportamentais, tais como a ali- mentação inadequada, o sedentarismo, o tabagismo, o excesso de peso e o uso excessivo de álcool. Nesse sentido, podemos citar os programas “Saúde na Escola” e “Academia da Saúde” como iniciativas do Ministério da Saúde para incentivar ações concretas nos deter- minantes sociais da saúde e na prevenção de doenças crônicas. A partir do nível 3 do MACC, trabalha-se com subpopulações que já apresentam doença crônica estabelecida. Nele, as condições crônicas são de baixo ou médio risco ou a subpo- 13 Controle das Doenças Crônicas Não Transmissíveis na Atenção Primária à Saúde Introdução às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) pulação apresenta fatores de risco biopsicológicos. Nesse nível, a atenção à saúde é forte- mente ancorada em ações de autocuidado apoiado, mas existe também a atenção clínica ao indivíduo realizada, de maneira geral, pela atenção básica. No nível 4, opera-se com subpopulações com condição crônica de alto ou muito alto risco. Nesse nível, além do autocuidado apoiado, observa-se a necessidade mais significativa de cuidados profissionais, incluindo o especializado. No nível 5, opera-se com subpopulações que apresentam condição de saúde muito comple- xa e que chegam a consumir a maior parte dos recursos globais de um sistema de atenção à saúde. Nesse nível, as intervenções podem ser realizadas pela tecnologia da gestão de caso e, em geral, exigem planos de cuidado mais singulares. Atenção Primária à Saúde: ordenadora da rede e coordenadora do cuidado Na estrutura da Rede de Atenção às Pessoas com Doenças Crônicas, a Atenção Primária à Saúde (APS) tem caráter estratégico por ser a porta de entrada preferencial do paciente no sistema, o ponto de atenção com maior capilaridade e potencial para identificar as necessi- dades de saúde da população e realizar a estratificação de riscos que subsidiará a organiza- ção do cuidado em toda a rede. A APS é responsável também por realizar ações de promo- ção e de proteção da saúde, prevenção de agravos, diagnóstico, tratamento, reabilitação, redução de danos e manutenção da saúde para a maior parte da população. O cuidado integral à saúde que impacta na situação de saúde, na auto- nomia das pessoas e nos determinantes e condicionantes de saúde das coletividades passa por um papel central da APS, de modo articulado com os demais pontos de atenção da rede. Dessa forma, para que a APS desempenhe efetivamente seu papel de ordenadora da rede e coordena- dora do cuidado, é fundamental garantir sua expansão e qualificação em todo o território nacional. Nesse sentido, a Estratégia Saúde da Família é a principal estratégia de organização e expansão da APS. Para ter sucesso, a APS precisa de profissionais qualificados para atender, de maneira integral, aos principais problemas de saúde daquela população. Isso exige processos de educação permanente voltados para a realidade de trabalho daqueles profissionais. 14 Controle das Doenças Crônicas Não Transmissíveis na Atenção Primária à Saúde Introdução às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) Para que a APS seja realmente resolutiva, em especial no cuidado às pessoas com doenças crô- nicas, é fundamental que a RAS disponha de fortes sistemas de apoio diagnóstico e terapêutico. Os sistemas de teleconsultoria e telessaúde são instrumentos importantes para a qualificação da atenção e podem ser também incorporados como elementos para regulação na RAS. Por sua vez, os sistemas de informação, como o uso do prontuário eletrônico, fornecem sub- sídios precisos para a estratificação de risco da população, planejamento e acompanhamen- to do cuidado na RAS. Eles também favorecem a comunicação entre a APS e os diferentes pontos de atenção. A garantia da assistência farmacêutica para atenção às doenças crônicas é fundamental. Contudo é preciso garantir também outras ofertas terapêuticas na RAS, como as práticas integrativas e complementares (homeopatia, acupuntura, entre outras) e as práticas corpo- rais (programa Academia da Saúde). Os sistemas de prontuário eletrônico com interface entre a APS e os demais pontos da RAS permitem a identificação de subpopulações de maior risco, bem como a elaboração dos planos de cuidado. Isso proporciona uma atenção mais adequada e impede a duplicidade desnecessária de exames e condutas. É fundamental qualificar e dimensionar adequadamente os serviços existentes, além de estruturar novos serviços em locais de vazio assistencial, de acordo com a demanda identi- ficada pela APS nas regiões de saúde. Devem ser pensados parâmetros mínimos e máximos para cobertura populacional de um serviço de atenção especializada, levando-se em conta a densidade populacional, as necessidades de saúde e o provimento de profissionais, entre outros aspectos. Atenção ambulatorial especializada e atenção hospitalar O bom funcionamento das RAS depende primordialmente da existência de um trabalho com- partilhado entre os profissionais da atenção básica e os especialistas focais. O papel dos pontos de atenção ambulatorial especializada e atenção hospitalar no cuidado às pessoas com doenças crônicas deve ser complementar e integrado à APS, sem atuação fragmentada e isolada. É necessário que a oferta de serviços especializados seja planejada a partir do ordenamento da RAS pela APS. No caso da relação entre os profissionais da atenção básica e os especialistas focais, é fundamental que o cuidado seja coordenado pelos profissionais da Atenção Primária. 15 Controle das Doenças Crônicas Não Transmissíveis na Atenção Primária à Saúde Introdução às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) A seguir, conheça as formas de relação possíveis entre a APS e a atenção especializada. Formas de relação possíveis entre a APS e a atenção secundária 1º – Referência e contrarreferência 2º – Relação de visitas periódicas de especialistas a generalistas 3º – Relação mediada por gestor de caso 4º – Coordenação do cuidado (MENDES, 2012).A coordenação do cuidado é definida como a organização deliberada do cuidado entre dois ou mais participantes envolvidos na atenção às pessoas para facilitar a prestação de servi- ços de saúde eficientes, efetivos e de qualidade. Nesse processo, é essencial estabelecer e negociar responsabilidades e garantir a comunicação e a transferência segura do cuidado. A partir da estratificação de risco da população adscrita pela APS, devem ser construídos regu- lações que empoderem as Equipes de Saúde da Família na coordenação do cuidado dos usuá- rios com doenças crônicas. É também necessário reorganizar os processos de trabalho nesses serviços, de modo a propiciar um cuidado integral por meio de equipes multiprofissionais. O matriciamento é fundamental na estruturação do processo de trabalho dessas equipes. Os pontos de atenção hospitalar, junto às Unidades de Pronto Atendimento (UPA) e ao Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), farão a interlocução entre a Rede de Atenção às Pessoas com Doenças Crônicas e a Rede de Atenção às Urgências e Emergências. Essa interface é fundamental no intuito de promover a assistência integral aos casos de agu- dização das doenças crônicas, isto é, tratá-las como doenças agudas. Atenção centrada na pessoa e na família A atenção colaborativa e centrada na pessoa e na família, em substituição à atenção prescriti- va e centrada na doença, transforma a relação entre os usuários e os profissionais de saúde. 16 Controle das Doenças Crônicas Não Transmissíveis na Atenção Primária à Saúde Introdução às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) Tudo o que não se quer com as redes de atenção e com a implantação das linhas de cuidado é reduzir os sujeitos às suas doenças. A atenção centrada na pessoa e na família baseia-se em: dignidade e respeito; comparti- lhamento de informações completas entre os envolvidos (usuário, família e profissionais); participação e colaboração de todos nas decisões; implementação e monitoramento sobre a atenção à saúde prestada. A incorporação desse conceito possibilita aliança terapêutica entre os profissionais de saúde, a família e o usuário, com relação de respeito, confiança e empatia, com evidência de maior adesão ao tratamento e melhores resultados. Atenção multiprofissional A atenção para as pessoas com doenças crônicas envolve, necessariamente, a atenção mul- tiprofissional. Nesse âmbito, o trabalho se torna efetivo na articulação de profissionais de distintos núcleos, com seus saberes e práticas específicos, no campo único de atuação para construção de estratégias conjuntas de intervenção. Projeto Terapêutico Singular – PTS O Projeto Terapêutico Singular (PTS) é uma ferramenta para qualificar o atendimento à pessoa com doença crônica, favorecendo a discussão de um sujeito singular em situação de maior vulnerabilidade e complexidade (OLIVEIRA, 2008). Objetiva a realização de uma revisão do diagnóstico, uma nova avaliação de riscos e uma redefinição das linhas de inter- venção terapêutica, redistribuindo tarefas e encargos dos vários profissionais envolvidos no cuidado e das pessoas com doenças crônicas. Como o PTS pode ser desenvolvido em diferentes pontos de atenção, é fundamental que as equipes dos diversos serviços compar- tilhem as informações e os planos estabelecidos. Regulação da Rede de Atenção A regulação da Rede de Atenção às Pessoas com Doenças Crônicas envolve, necessariamente, a capacidade da APS de ordenar os demais níveis da rede. O diálogo entre os serviços de atenção especializada e as equipes deve ser garantido e facilitado, com destaque para o matriciamento. Os fluxos e as condições para encaminhamentos devem ser definidos nos limites da cons- trução das linhas de cuidado. Mesmo enquanto persistir o acompanhamento na atenção 17 Controle das Doenças Crônicas Não Transmissíveis na Atenção Primária à Saúde Introdução às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) especializada, a APS deve continuar informada sobre a situação de saúde do usuário, bem como acompanhar o desenvolvimento do plano de cuidado. Os critérios para a alta devem ser pactuados, assim como as condições para o seguimento desse usuário na APS. Apoio matricial O apoio matricial deve ser parte fundamental do processo de trabalho das equipes de aten- ção especializada. A discussão dos casos clínicos, presencial ou a distância por meio do Telessaúde Brasil Redes, bem como momentos periódicos para abordagens temáticas, aten- dimento conjunto, entre outros, deve ser garantida dentro da agenda desses profissionais. Acompanhamento não presencial As interações entre as equipes de saúde e os usuários podem se tornar mais produtivas com um equilíbrio entre atendimentos profissionais presenciais e não presenciais por meio de telefone ou meios eletrônicos. A abordagem do usuário após a alta hospitalar ou algum evento sentinela pode trazer infor- mações acerca da qualidade do serviço realizado. Além disso, pode ser abordado o segui- mento desse paciente pós-alta, avaliando o acesso a consultas, exames, medicações, entre outras ações, assim como a continuidade do cuidado. Atendimento coletivo Além dos atendimentos profissionais individuais, os atendimentos em grupo devem fazer parte da atenção à saúde. Os grupos são um dispositivo potente de educação em Saúde, trocas entre os usuários e destes com a equipe de saúde. Os grupos podem ser organizados de diversas formas, de acordo com as necessidades da população, respeitando as técnicas para o seu manejo e a sua organização. As dimensões a serem abordadas devem ser adequadas ao objetivo proposto e ao perfil dos usuários. A organização dos grupos possibilita integração e discussões, favorecendo a criação de redes de cuidado para além do grupo. Isso gera sujeitos ativos e espaço onde as pessoas podem superar suas dificuldades e obter maior autonomia, bem como estreitar a relação entre a equipe multiprofissional e o usuário, fortalecendo a aliança terapêutica (ALMEIDA; SOARES, 2010). Autocuidado Nas doenças crônicas, o sucesso do tratamento depende fortemente da participação e do envolvimento do usuário enquanto sujeito ativo de seu tratamento. Uma atitude de auto- cuidado que leve a estilos e práticas de vida mais saudáveis, assim como a adesão ao trata- mento, não depende apenas de uma prescrição profissional, mas de uma conscientização 18 Controle das Doenças Crônicas Não Transmissíveis na Atenção Primária à Saúde Introdução às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) do usuário sobre sua condição de saúde. Para aplicação da estratégia do autocuidado, é importante: • treinar os profissionais de saúde; • usar instrumentos de autocuidado baseados em boas evidências clínicas; • utilizar estratégias grupais; • procurar apoio por meio de ações educacionais, informações e meios físicos; • buscar recursos da comunidade. O autocuidado apoiado significa uma colaboração estreita entre a equipe de saúde e os usuários, os quais trabalham em conjunto para definir o problema, estabelecer as metas, monitorá-las, instituir os planos de cuidado e resolver os problemas que apareçam ao longo do processo de manejo. O apoio da família, dos amigos, das organizações comunitárias e da equipe multiprofissional de saúde é essencial para que o autocuidado se dê com efetividade. Linhas de cuidado As linhas de cuidado expressam os fluxos assistenciais que devem ser garantidos ao usuá- rio, no sentido de atender às suas necessidades de saúde. As linhas definem as ações e os serviços que devem ser desenvolvidos nos diferentes pontos de atenção de uma rede (nível primário, secundário e terciário) e nos sistemas de apoio, bem como utilizam a estratificação para definir ações em cada estrato de risco. Considerando que os serviços de saúde devem estar organizados regionalmente, é essen- cial que as regiões de saúde estabeleçam as suas linhas de cuidado e as suas diretrizes clíni- cas próprias. Estas servem para qualificar a atenção nos diversos pontos narede e enquanto referência para o processo de regulação. Educação permanente e capacitação profissional A gestão deve desenvolver diretrizes, metodologias e instrumentos de apoio às equipes de Saúde e realizar esforços para que se organize a Rede de Atenção às Pessoas com Doenças Crônicas. A educação permanente deve ser entendida como uma das estratégias educacionais que valorizam o trabalhador, seu conhecimento prévio e sua experiência profissional. O pro- cesso educacional eficaz é essencial para a implantação das diretrizes clínicas, pois apenas tê-las publicadas não é suficiente para a boa gestão da clínica. 19 Controle das Doenças Crônicas Não Transmissíveis na Atenção Primária à Saúde Introdução às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) Aula 3: Lidando com múltiplas doenças crônicas Esta aula irá discutir os desafios específicos do manejo de pessoas com múltiplas comorbi- dades e apresentar estratégias para tornar o atendimento mais eficaz para esses pacientes. A presença de múltiplas doenças crônicas (multimorbidade) é uma situação comum e aumenta consideravelmente a complexidade do manejo das doenças nos pacientes. Em países desenvolvidos, cerca de um em cada quatro adultos tem pelo menos duas condições crônicas (BARNETT et al., 2012), e mais da metade dos idosos tem três ou mais condições crônicas (GUIDING..., 2012). Como as taxas de mortalidade estão diminuindo, as pessoas estão vivendo mais tempo com deficiências e comorbidades múltiplas, trazendo implicações importantes para as necessi- dades de cuidados de saúde. Definição – A multimorbidade refere-se à ocorrência concomitante de duas ou mais condi- ções médicas ou psiquiátricas, as quais podem ou não interagir diretamente entre si, com efeitos adversos sobre o estado de saúde, a função e a qualidade de vida. Deve-se, no entan- to, reconhecer a heterogeneidade da população de indivíduos com duas ou mais condições crônicas. Uma pessoa com hipertensão arterial e hipotireoidismo, por exemplo, geralmente não tem a mesma complexidade de necessidades em saúde de alguém que tenha insufici- ência cardíaca e demência. 20 Controle das Doenças Crônicas Não Transmissíveis na Atenção Primária à Saúde Introdução às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) • A multimorbidade, definida como a presença de duas ou mais doenças crônicas, associa-se à diminuição da qualidade de vida, ao declínio funcional do indivíduo e a um aumento da utilização dos serviços de saúde, acarretando vários desafios no manejo dessas pessoas pelos profissionais de saúde. • A prevalência da multimorbidade aumenta substancial- mente com a idade e é mais prevalente em áreas socialmente desfavorecidas. • As patologias mais frequentemente associadas em pessoas com múltiplas doenças crônicas são a osteoartrose, hiperten- são arterial, diabetes mellitus, obesidade, doenças cardíacas, doenças respiratórias e transtornos do humor. • Os principais obstáculos na gestão da multimorbidade rela- cionam-se com a desorganização e a fragmentação dos cuida- dos, a limitação das evidências científicas, a inadequação dos protocolos (que são direcionados para doenças individuais), as dificuldades na implementação dos cuidados centrados na pessoa e as barreiras no processo de tomada de decisões conjuntas entre o profissional e o paciente. Epidemiologia – Embora as estimativas exatas de prevalência dependam do tipo e do núme- ro de condições consideradas na definição de multimorbidade, estima-se que um em cada quatro americanos tem pelo menos duas doenças crônicas (FORTIN et al., 2005). 21 Controle das Doenças Crônicas Não Transmissíveis na Atenção Primária à Saúde Introdução às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) Como a prevalência de muitas doenças aumenta com a idade, a multimorbidade é cada vez mais comum ao longo da vida, afetando cerca de 15,0% dos americanos entre 20 a 44 anos de idade, 35,3% entre 65 e 79 anos e 70,2% com 80 anos ou mais (CHRONIC..., 2004). Devido ao envelhecimento da população e aos avanços na saúde que têm permitido às pes- soas viver por mais tempo com doenças incuráveis, o número e a proporção de pacientes com múltiplas doenças crônicas estão crescendo. Além da idade, o nível socioeconômico baixo também está associado à maior prevalência de multimorbidade (BARNETT et al., 2012). Como certas condições clínicas aumentam o risco de desenvolver complicações, as pessoas com multimorbidade estão susceptíveis a acumular diagnósticos e a experimentar uma escalada na complexidade clínica de seu estado de saúde. Impacto – A multimorbidade está associada à alta utilização dos serviços de saúde e ao aumento dos custos com cuidados médicos, especialmente quando acompanhada de limi- tações funcionais. Indivíduos com múltiplas condições crônicas estão em risco elevado de desfechos adversos significativos de saúde, incluindo: • morte; • diminuição da qualidade de vida; • complicações no tratamento; • internações hospitalares evitáveis; • limitação funcional e deficiências; • fragilização/dependência de terceiros; • internação em instituições de longa permanência para idosos (asilos). Desafios nos cuidados do paciente – A abordagem tradicional centrada na doença pode tornar o cuidado fragmentado e mal coordenado, além de produzir planos de tratamento ineficazes ou até mesmo prejudiciais para esses pacientes com múltiplas condições crônicas. Temos evidências limitadas sobre o cuidado desses pacientes. Em uma revisão sistemática envolvendo médicos da Atenção Primária em sete países diferentes, os problemas específi- cos identificados no manejo de pacientes com multimorbidade foram: • fragmentação dos cuidados de saúde; • protocolos inadequados; • ausência de boas evidências; 22 Controle das Doenças Crônicas Não Transmissíveis na Atenção Primária à Saúde Introdução às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) • dificuldades em promover um cuidado centrado na pessoa (principalmente dificuldades em incorporar processo de tomada conjunta de decisões devido a conflitos entre as priori- dades do médico e do paciente) (SINNOTT et al., 2013). Inadequação dos protocolos – A maioria das diretrizes clínicas é desenvolvida com a inten- ção de abordar o diagnóstico ou o manejo de uma única entidade clínica. Há desafios e danos potenciais causados pela adesão rígida aos protocolos de prática clínica em pacientes com multimorbidade, com recomendações por vezes contraditórias em cada condição. A maioria dos protocolos visa à abordagem de condições isoladas, mas os pacientes com multimorbidade são complexos e heterogê- neos. Embora a aplicabilidade da maioria das diretrizes de prática clínica aos pacientes com multimorbidade seja limitada, há quem reconheça a necessidade de adaptar as recomendações usuais para esse grupo de pacientes com maior complexidade. Exemplo prático: a Associação Americana de Geriatria (AGS) e a Associação Americana de Diabetes (ADA) recomendam metas mais tolerantes para o controle glicêmico e pressão arterial para idosos diabéticos com fragilidade ou com limitação da expectativa de vida (INZUCCHI et al., 2015). Conflito entre as demandas e mudança de prioridades Demandas conflitantes entre si são comuns na atenção a pessoas com múltiplas condições crônicas. Muitas vezes a resolução de um problema pode agravar outro subjacente. As tentativas bem-intencionadas dos profissionais de saúde em tratar agressivamente todas as condições clínicas em tempo integral, sem atenção suficiente para a pessoa como um todo e para suas prioridades, podem resultar em propostas de tratamento inalcançáveis e irreais para a pessoa. Nesse sentido, os profissionais de saúde devem ser realistas, equili- brando as múltiplas queixas e demandas às necessidades que eles percebem como prioritá- rias, mas sempre com estratégias de tratamento consistentes com as preferências e neces- sidades do paciente. Como exemplo, as interações de um tratamento com uma ou mais condições mórbidasdo paciente (interações droga-doença) ou com medicações (interações medicamentosas) resul- tam em mais danos do que benefícios. Além disso, as intervenções podem competir umas com as outras e levar à necessidade de avaliar riscos e benefícios na tomada de decisões, em que o equilíbrio entre objetivos desejáveis e incompatíveis tem que ser alcançado. 23 Controle das Doenças Crônicas Não Transmissíveis na Atenção Primária à Saúde Introdução às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) Para maximizar a qualidade de vida, a pessoa com multimorbidade deve atingir um equilí- brio diário entre o cuidado dos seus problemas de saúde (controlando os sintomas e redu- zindo a extensão das complicações) e ao mesmo tempo evitar que sua vida seja ditada pelo tratamento de suas doenças crônicas. Polifarmácia – Segundo um relatório de 2010 do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC), 37% dos idosos americanos usam cinco ou mais tipos diferentes de medica- mentos (HOU; ABUDAYYEH; SHAIB, 2011). A presença de múltiplas condições crônicas e con- sultas médicas frequentes aumentam o risco de exposição a medicamentos potencialmente inapropriados. Mesmo que cada medicação tenha sido prescrita com uma indicação adequa- da, a polifarmácia está associada com aumento do risco de efeitos adversos, interações medi- camentosas e aumento do custo do tratamento (HAJJAR; CAFIERO; HANLON, 2007). Para minimizar a possibilidade de prescrição inapropriada em pacientes com multimorbidade, recomendam-se as seguintes estratégias gerais: • iniciar com doses baixas qualquer medicação e titule devagar as mudan- ças de dose; • sempre questionar: “Esse problema pode ser resolvido com medidas não farmacológicas?”. • adequar a dose e a posologia do esquema terapêutico (menos horários de tomada da medicação e uso da menor dose eficaz) para diminuir a complexidade e a chance de erro na administração dos medicamentos. • consolidar os tratamentos, quando possível. 24 Controle das Doenças Crônicas Não Transmissíveis na Atenção Primária à Saúde Introdução às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) Exemplo prático da nossa situação problema: consolidando os tratamentos Dona Ednelza é uma paciente hipertensa, diabética e com insuficiência cardíaca; faz uso de enalapril, um inibidor da enzima conversora da angiotensina [IECA] para ao mesmo tempo diminuir os níveis pressó- ricos, promover proteção renal e impedir o remodelamento cardíaco. Segundo Azevedo et al. (2015, p. 1): A remodelação cardíaca é definida como um conjunto de mudanças moleculares, celulares e intersticiais cardíacas, que se manifestam clinicamente por alterações no tama- nho, massa, geometria e função do coração, em resposta à determinada agressão. Com isso Dona Ednelza diminui a quantidade de medicamentos em uso, o risco de efeitos adversos e de interações medicamentosas. Limitação das evidências – Um grande desafio na prestação de cuidados adequados aos pacientes com multimorbidade complexa é a sub-representação dessas populações nas pesquisas clínicas. As comorbidades tipicamente são um fator de exclusão durante o recrutamento de pacientes em estudos que abordam uma dada condição clínica (HARDY; ALLORE; STUDENSKI, 2009). Como resultado, a base de evidências para orientar a tomada de decisão nesses pacientes é incompleta. Na ausência de dados confiáveis, os profissionais sentem-se inseguros em avaliar a tolerância ou o efeito do tratamento de uma determinada doença na presença de condições coexistentes. A American Geriatrics Society (AGS) (GUIDING..., 2012) identifica cinco princípios norteado- res para o manejo da multimorbilidade: • Investigar e incorporar as preferências do paciente no processo de tomada de decisões. • Reconhecer as limitações da base de evidências científicas na aplicação dos conhecimentos às pessoas com multimorbidade. • Levar em conta os riscos, os custos, os benefícios e o prognóstico (expectativa de vida, fun- cionalidade, qualidade de vida). • Considerar a viabilidade dos tratamentos propostos. 25 Controle das Doenças Crônicas Não Transmissíveis na Atenção Primária à Saúde Introdução às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) • Promover a escolha de tratamentos que otimizem benefícios, minimizem os danos e melhorem a qualidade de vida. Diretrizes para o manejo da multimorbidade também foram desenvolvidas pelo Instituto Nacional de Excelência em Saúde e Cuidados (NICE) no Reino Unido (ARMER et al., 2016). As orientações recomendam: • Adaptar a atenção para atingir as metas e prioridades individuais levantadas em conjunto pela pessoa e pelo profissional de saúde. • Abordar separadamente os pacientes que se beneficiariam de abordagem específica para a multimorbidade. • Estabelecer o que é importante para o paciente. • Identificar o impacto da doença e do tratamento na qualidade de vida. • Rever medicações: avaliar a suspensão de tratamentos que não sejam essenciais, conside- rar abordagens não farmacológicas. • Desenvolver um plano de tratamento individualizado. Descobrir prioridades e objetivos do paciente – O que deve nortear a qualidade da aten- ção à saúde é a prestação, no atual sistema de saúde, de cuidados viáveis coordenados, seguros e relacionados às preferências dos pacientes, levando-se em conta a experiência da pessoa com a doença. Para otimizar o cuidado individual do paciente, o profissional deve compreender os objetivos, as crenças e as preferências do paciente. O diálogo deve incluir discussão sobre as preferências de fim de vida, bem como a tomada conjunta de decisões médi- cas sobre início e interrupção de medicamentos, internações hospitalares e procedimentos, entre outros. É importante lembrar que pacientes com multimorbidade fre- quentemente têm deficiências auditivas, visuais ou cognitivas, que podem restringir a comunicação ou sua capacidade de processar informações. Podem ser necessárias medidas espe- ciais para superar as barreiras associadas a essas deficiências. 26 Controle das Doenças Crônicas Não Transmissíveis na Atenção Primária à Saúde Introdução às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) Princípios de Ariadne Os “princípios de Ariadne” foram sugeridos como forma de descrever os principais funda- mentos da abordagem da multimorbidade em consultas na Atenção Primária (MUCH et al., 2014). Esses princípios envolvem a avaliação da interação entre as condições e os tratamen- tos e a priorização dos problemas de saúde, levando em conta as preferências da pessoa. A definição conjunta (pelo profissional e pelo paciente) de metas realistas de tratamento é fundamental nesse processo. O manejo individualizado busca as melhores opções disponí- veis de assistência (por exemplo, diagnóstico e tratamento) para alcançar as metas. A obtenção dos objetivos é verificada de acordo com as reavaliações nas consultas subse- quentes. O surgimento de novas condições mórbidas ou a alteração de algum problema já existente, como um agravamento de doença, pode disparar o reinício do ciclo. Observe a Figura 4 a seguir. Figura 4 - Princípios de Ariadne. Fonte: Adaptado de Muth et al. (2014). 27 Controle das Doenças Crônicas Não Transmissíveis na Atenção Primária à Saúde Introdução às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) Essa priorização é um processo de atribuição de prioridades a problemas ou tarefas, mas não significa necessariamente uma atenuação do tratamento. Por exemplo, uma avaliação completa dos problemas apresentados pode identificar tratamentos não otimizados ou a necessidade de intensificação. O levantamento das preferências e expectativas do paciente pode mostrar o grau de aceitação ou de incômodo do paciente com o tratamento. Coordenação do cuidado – Um componente essencial da atenção de alta qualidade para pacientes com multimorbidade é a coordenação de cuidados, geralmente feita no âmbito da Atenção Primária à Saúde. Pacientes com múltiplas condições crônicas vão a várias consultas, às vezes com váriospro- fissionais de diferentes especialidades e em setores de saúde diferentes (incluindo centros de saúde, ambulatórios de especialidade, enfermarias de hospital, prontos-socorros e cen- tros de reabilitação). Recomendações inconsistentes ou cuidados sobrepostos de vários profissionais diferentes podem resultar em confusão do paciente, custo elevado e trata- mento desnecessário. A transição do cuidado é sempre um momento de risco elevado de erros médicos, particu- larmente em pacientes complexos com múltiplas condições crônicas. Para decisões médicas particularmente complexas, a comunicação direta entre profissionais, pacientes e cuidado- res é muitas vezes o melhor meio de preencher as lacunas de conhecimento ou de chegar a um consenso. Prontuários eletrônicos são úteis na coordenação de cuidados porque facilitam o acesso e o compartilhamento de informações entre os vários profissionais. Além disso, o valor dos cuidadores informais e não remunerados (família e amigos) é cada vez mais reconhecido, particularmente no atendimento de pacientes com multimorbidade. Cuidadores não pro- fissionais influenciam a aderência e a tomada de decisão, complementam o autocuidado e, frequentemente, acompanham pacientes nas consultas (WOLFF; ROTER, 2008). Menos pode ser mais – Toda intervenção tem potencial de dano. Os riscos são ampliados em pacientes com multimorbidade. Assim, cada decisão de tratamento deve ser cuidadosamente considerada, com base nas prefe- rências do paciente e na avaliação da relação entre potenciais benefícios versus riscos possíveis. 28 Controle das Doenças Crônicas Não Transmissíveis na Atenção Primária à Saúde Introdução às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) Identificar e abordar problemas que afetam várias condi- ções ao mesmo tempo Uma maneira eficiente de obter melhores resultados para pacientes com multimorbidade é identificar problemas gerais que afetam o bem-estar e a qualidade de vida de um paciente. Exemplos incluem: • nutrição; • atividade física/exercício; • funcionalidade/independência; • distúrbios do sono; • saúde mental; • segurança ambiental e adequação do suporte ao nível atual de cuidado; • estresse do cuidador. As evidências disponíveis sugerem que os desfechos de saúde podem ser melhorados quando as intervenções visam fatores de riscos gerais, como depressão ou dificuldades funcionais específicas (por exemplo, problemas de audição), que interferem globalmente no autocuidado. O tratamento deve ser sempre individualizado.
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