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GLORIA MARIA WIDMER O TÍTULO DE PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE E SEUS EFEITOS SOBRE O TURISMO EM FERNANDO DE NORONHA Tese de Doutorado apresentada no Curso de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação, na área de Relações Públicas, Propaganda e Turismo da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. Mário Jorge Pires, como requisito parcial à obtenção do título de Doutora. São Paulo 2007 O TÍTULO DE PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE E SEUS EFEITOS SOBRE O TURISMO EM FERNANDO DE NORONHA GLORIA MARIA WIDMER Banca Examinadora: ___________________________________________________________________ 1º Membro Titular (Presidente) ___________________________________________________________________ 2º Membro Titular ___________________________________________________________________ 3º Membro Titular __________________________________________________________________ 4º Membro Titular ___________________________________________________________________ 5º Membro Titular São Paulo 2007 II A Ivany e Reynaldo (in memorian), meus pais, amigos e exemplos. III “Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos e não simplesmente como é ou pode ser; que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver".Amyr Klink “Caminante, no hay camino. Se hace camino al andar" Antonio Machado IV AGRADECIMENTOS Aos professores desta Casa, por todos os ensinamentos proporcionados. Aos funcionários do CRP e da Seção de Pós-Graduação, em especial Rosa, Elaine, Kátia e Rosely, pelo auxílio em todas as questões administrativas. À amiga Ana Júlia de Souza Melo, pelo constante incentivo à elaboração deste trabalho, bem como pelo auxílio na sistematização de dados. Às amigas Heloísa Maria Rodrigues de Souza, Raquel da Silva Pereira, Agda Pena, Mônica Klein, Márcia Mabel de Souza Melo e Marli de Souza Melo e Paula de Godoy, por todo o apoio e torcida. Às amigas Aline e Kety Marinho, pelo auxílio na aplicação dos questionários. Às amigas Margareth dos Santos e Niuza Barone Peres, pelo auxílio na elaboração dos resumos. Aos meus alunos, do passado e do presente, pela troca de experiências propiciadas. A Louise Marie e Schwartz (in memorian), Gaspar, Melanie, Maggie e Yasmim por todo o afeto e pela companhia durante as madrugadas de trabalho. V AGRADECIMENTOS ESPECIAIS Ao Prof. Dr. Mário Jorge Pires, orientador, amigo e exemplo, por toda a dedicação, compreensão, confiança e, principalmente, por incentivar-me nos caminhos do conhecimento. Aos meus pais, Reynaldo (in memorian) e Ivany, por toda uma vida de amor, dedicação, orientação e incentivo e, principalmente, pelo orgulho que sinto em tê-los como pais. VI RESUMO O presente trabalho trata das relações existentes entre a Convenção do Patrimônio Mundial e o Turismo, a partir da seguinte questão: que efeitos o título de Patrimônio da Humanidade pode gerar sobre o Turismo de determinada localidade? Frente a este questionamento e com base nos métodos e técnicas pertinentes à pesquisa descritiva, tais como pesquisa bibliográfica e documental, pesquisa de campo e aplicação de questionários, o trabalho busca resgatar os caminhos que levaram à construção da noção de Patrimônio da Humanidade, para depois analisar o documento que a consolidou, a Convenção do Patrimônio Mundial, elaborada pela UNESCO em 1972, notadamente no que se refere aos requisitos necessários para a inscrição de um bem natural ou cultural na Lista do Patrimônio Mundial e a conseqüente concessão a este bem do título de Patrimônio da Humanidade. Identificando os bens naturais e culturais como pontos comuns de interesse entre a Convenção e o Turismo, o trabalho levanta os sítios titulados no Brasil, bem como os motivos de sua titulação, para depois concentrar atenção sobre os bens componentes do Patrimônio Natural Mundial, em especial o Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha, utilizado como campo de estudo para conhecer os efeitos que o título de Patrimônio da Humanidade pode gerar sobre o Turismo, notadamente no que se refere à atratividade e à visitação. Palavras-chave: Turismo, Patrimônio da Humanidade, Convenção do Patrimônio Mundial, efeitos, atratividade, visitação. VII ABSTRACT The present work deals about the existent relations between the word Heritage Convention and Tourism, from the following question: What kind of effects the title “World Heritage” can get across in a specific place. Facing this question and based in properly methods and techniques to the described research, as well as bibliography and documental research and questionnaire application. The work intends to recuperate the ways that led to the construction of the notion of World Heritage, and then, later analyze the document which consolidated it. The world Heritage Convention, elaborated by Unesco in 1972, specifically about the necessary items to the enrollment as cultural or Values Common Well listed in the World Heritage. Though the identification the natural and cultural well as well as the common interesting points between the Convention and Tourism, the work arises the described places in Brazil and the reason for these titles and later focuses attention about the components of the world Natural Heritage, specially Marine Resort Fernando de Noronha, used as a study field so know the effects that the title “World Heritage” can influence over Tourism specifically about visitors tour and main attractions. Key Words: Tourism – World Heritage – Effects – Attraction – Visiting – World Heritage Convention. VIII RESUMEN El presente trabajo trata de las relaciones existentes entre la Convención del Patrimonio Mundial y el Turismo, a partir de la siguiente cuestión: ¿qué efectos el título de Patrimonio de la Humanidad puede generar sobre el Turismo de determinada localidad? Frente a este cuestionamiento y basados en los métodos y técnicas pertinentes a la investigación descriptiva, como por ejemplo la investigación bibliográfica y documental, investigación en campo y aplicación de cuestionarios, el trabajo busca rescatar los caminos que llevaron a la construcción de la noción de Patrimonio de la Humanidad, para a continuación analizar el documento que la consolidó, la Convención del Patrimonio Mundial, elaborada por UNESCO en 1972, notadamente en lo que se refiere a los requisitos necesarios para la inscripción de un bien natural o cultural en el Listado del Patrimonio Mundial y la consecuente concesión a este bien del título de Patrimonio de la Humanidad. Identificando los bienes naturales y culturales como puntos comunes de interés entre al Convención y el Turismo, el trabajo levanta los sitios titulados en Brasil, así como los motivos de su titulación, para enseguida concentrar la atención sobre los bienes componentes del Patrimonio Natural Mundial, sobre todo el Parque Nacional Marino de Fernando de Noronha, utilizado como campo de estudio para conocer los efectos que el títulode Patrimonio de la Humanidad puede generar respecto al Turismo, notadamente en lo que concierne a la atractividad y a la visitación. Palabras clave: Turismo, Patrimonio de la Humanidad, Convención del Patrimonio Mundial, efectos, atractividad, visitación. IX SUMÁRIO Agradecimentos V Agradecimentos Especiais VI Resumo VII Abstract VIII Resumen IX Introdução 01 1. A Construção da Noção de Patrimônio da Humanidade 10 1.1. As Contribuições do Mundo Antigo 10 1.2. A Noção de Patrimônio no Direito Romano 22 1.3. A Re-significação do Patrimônio na Revolução Francesa 29 1.4. As Contribuições do Direito Internacional 33 2. A Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural e seus Reflexos Turismo 45 2.1. Estrutura, Conteúdo e Funcionamento da Convenção 45 2.1.1. Delimitação dos Patrimônios Naturais e Culturais Abrangidos pela Convenção 46 2.1.2. Organizações Internacionais Relacionadas à Convenção 51 2.1.3. Formas de Proteção Nacional e Internacional 56 2.2. Critérios para a Inscrição de um Sítio na Lista do Patrimônio Mundial 64 2.3. A Convenção do Patrimônio Mundial e o Turismo 68 2.4. A Convenção e a Titulação no Mundo 75 X 3. O Brasil e a Convenção do Patrimônio Mundial 80 3.1. As formas de Proteção no Brasil 80 3.2. O Patrimônio Cultural da Humanidade no Brasil 86 3.3. O Patrimônio Natural da Humanidade no Brasil 98 3.4. A Caracterização do Potencial Turístico do Patrimônio da Humanidade Brasil com Base nos Critérios Responsáveis por sua Inscrição 105 4. As Relações entre o Título de Patrimônio da Humanidade e o Turismo em Fernando de Noronha 110 4.1. A Escolha por Fernando de Noronha 110 4.2. Caracterização Geral do Ambiente de Pesquisa 115 4.3. Titulação e Atratividade 120 4.4. Titulação e Visitação Turística 125 Considerações Finais 140 Bibliografia 145 Anexos 156 XI LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Jardins Suspensos da Babilônia 13 Figura 2 – Pirâmides de Gizé 14 Figura 3 – Estátua de Zeus 17 Figura 4 – Colosso de Rodes 18 Figura 5 – Templo de Artemisa em Éfeso 19 Figura 6 – Farol de Alexandria 20 Figura 7 - Mausoléu de Halicarnasso 20 Figura 8 – Acrópole de Atenas 47 Figura 9 - Cidade Santa de Jerusalém 47 Figura 10 – Machu Picchu 48 Figura 11 – Galápagos – formações rochosas 50 Figura 12 – Grande Barreira de Corais 51 Figura 13 – Parque Nacional de Yellowstone 51 Figura 14 – Vista de Ouro Preto e Serra do Espinhaço 87 Figura 15 – Visão da Virgem de Porciúncula, do Mestre Ataíde, no teto da igrejade São Francisco de Assis 87 Figura 16 – Centro Histórico de Olinda 88 Figura 17 – Igreja Nª Sª da Graça 88 Figura 18 – Ruínas das Missões Jesuíticas 90 Figura 19 – Ruínas 90 Figura 20 – Igreja de São Francisco 91 Figura 21 – Centro Histórico de Salvador 91 Figura 22 – Santuário visto desde o passo da última ceia 91 Figura 23 – Apóstolos em pedra sabão – Aleijadinho 91 Figura 24- Plano Piloto 92 Figura 25 – Mapa de Brasília – Plano Piloto 92 Figura 26 – Pinturas rupestres 94 XII Figura 27 – Pedra furada 94 Figura 28 – Fachadas com azulejos 95 Figura 29 – Centro Histórico de São Luis 95 Figura 30 – Antigo Arruamento 96 Figura 31 – Construções do século XVIII 96 Figura 32 – Centro Histórico de Goiás 97 Figura 33 – Chafariz da cidade 97 Figura 34 – Parque Nacional do Iguaçu 98 Figura 35 – Cataratas do Iguaçu 98 Figura 36 – Parque Nacional Pau-Brasil 99 Figura 37 – Estação Ecológica Vera Cruz 99 Figura 38 – Serra de Guaraqueçaba 100 Figura 39 – Canal entre a ilha de Sirigui e continente 100 Figura 40 – Parque Nacional do Jaú 102 Figura 41 – Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá 102 Figura 42 – Ilhas de Anavilhanas 102 Figura 43 - Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amaná 102 Figura 44 – Serra do Amolar – Pantanal 103 Figura 45 – Parque Nacional do Pantanal 103 Figura 46 – Chapada dos Veadeiros 104 Figura 47 – Vale da Lua – Parque Nacional das Emas 104 Figura 48 – Praias do Meio, da Conceição e Morro do Pico 105 Figura 49 – Mergulho no PARNAMAR – FN 105 Figura 50 – Praia do Bodró 116 Figura 51 – Baía dos Porcos e Morro Dois Irmãos 116 Figura 52 – Corais e Peixes de Fernando de Noronha 122 Figura 53 – Tartaruga Verde 122 Figura 54 – Vista Aérea de Fernando de Noronha 123 XIII TABELAS Tabela 1 – Principais países detentores de bens inscritos na lista do Patrimônio Mundial 76 Tabela 2 – Critérios Utilizados para a Inscrição dos Sítios Culturais Brasileiros 106 Tabela 3 - Critérios Utilizados para a Inscrição dos Sítios Naturais Brasileiros 107 Tabela 4 – Motivos da Escolha por Fernando de Noronha 132 GRÁFICOS Gráfico 1 – Conhecimento do fato de Fernando de Noronha ser Patrimônio da Humanidade 127 Gráfico 2 – Fonte de informação sobre o título 129 Gráfico 3 – Motivos da escolha por Fernando de Noronha 131 Gráfico 4 – Idade dos turistas que se motivaram pelo título 136 Gráfico 5 – Origem dos que se Motivaram pelo Título 137 Gráfico 6 – Grau de escolaridade dos que se motivaram pelo título 138 Gráfico 7 – Renda dos que se motivaram pelo título 139 Anexos Anexo 1 - Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural Anexo 2 – Países e Respectivos Bens Inscritos na Lista do Patrimônio Mundial Anexo 3 – Questionário XIV 1 INTRODUÇÃO Os estudos que levaram à titulação de Mestrado permitiram observar e analisar o grande conjunto de relações e interdependências entre o Turismo e o Direito, enquanto áreas do conhecimento humano. Dentre as principais correlações, pôde-se observar que tanto o Turismo como o Direito apresentam o ser humano como sujeito de estudo e, como objeto, as relações com o ambiente em que este ser se encontra (Widmer, 2002). Especificamente quanto ao Turismo, caracteriza-se estas relações ambientais como as que ocorrem em um momento de viagem, de deslocamento para espaços alheios ao cotidiano, até o retorno ao local de origem, como verificado na literatura desenvolvida por autores como Ruschmann (2002), Swarbrooke (2000), Beni (2002), entre outros. Já para o Direito, caracteriza-se as relações ambientais como as ações praticadas pelo homem no ambiente social, passíveis da aplicação de normas para a organização da vida em sociedade, conforme Machado (2006), Dias (1999), Milaré (2005), entre outros. Ao longo do desenvolvimento da dissertação, entretanto, verificou-se que o Direito pode contribuir profundamente com o desenvolvimento da atividade turística, não apenas por meio de seus mecanismos reparadores da ordem social, de caráter punitivo, a exemplo das penalidades em caso de descumprimento de determinada norma, mas principalmente sob um enfoque voltado para a prevenção, através do qual o Direito pode funcionar como importanteinstrumento de planejamento para a atividade turística e de proteção para atrativos e espaços dos quais o Turismo se utiliza. 2 De acordo com esta vertente, pode-se lembrar de normas municipais, estaduais e federais brasileiras relacionadas a assuntos como o uso e a ocupação dos solos, proteção e educação ambiental, incentivos fiscais, entre outras regras que têm servido como aliadas para o planejamento da atividade turística nos espaços do território brasileiro. Realidade não apenas no Brasil, o uso de normas como instrumentos que auxiliam no planejamento e desenvolvimento do Turismo transcende fronteiras e une países com objetivos comuns, a exemplo dos países-membros da Organização Mundial do Turismo – OMT. Entretanto, em um mundo cada vez mais globalizado e interdependente, também é possível observar normas internacionais que podem interferir no desenvolvimento do Turismo, por mais que tenham sido criadas para fins diversos aos de regulamentação da atividade turística, ou por organismos internacionais que não apresentem relação direta com a atividade. Neste contexto, pode-se mencionar as normas internacionais relacionadas à proteção dos bens da natureza e da cultura que se configuram como de interesse de toda a humanidade, a exemplo da Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, instituída pela UNESCO em 1972. Responsável até o momento pela inscrição de 830 sítios mundiais na Lista do Patrimônio da Humanidade, dos quais 17 são brasileiros, a norma tem como objetivo tentar proteger da destruição bens naturais e culturais que apresentem valor excepcional para a comunidade mundial. Apesar deste objetivo, que em um primeiro momento revela ligações pouco diretas com o Turismo, a aplicação desta norma tem sugerido indícios de interferência na atividade turística das localidades que inscreve como Patrimônio da Humanidade. 3 Pesquisas realizadas durante o Programa de Doutorado revelaram que a literatura brasileira apresenta escassez de obras referentes ao entendimento das relações existentes entre Turismo e bens brasileiros considerados Patrimônio da Humanidade, apesar da significativa concentração de sítios do Patrimônio Mundial distribuídos pelo território brasileiro. Grande parte das obras identificadas oferece conhecimentos que se relacionam principalmente com a descrição das características naturais ou culturais dos sítios brasileiros inscritos como Patrimônio da Humanidade, a exemplo de Tirapeli (2001), ou dos dossiês elaborados pelo governo brasileiro para possibilitar os pedidos de inscrição dos bens nacionais na Lista do Patrimônio Mundial. Além destes, a maioria dos poucos textos elaborados sobre o assunto por acadêmicos da área do Turismo insistem em considerar as relações principalmente sob a ótica dos impactos causados pelo Turismo sobre estes sítios, analisando a atividade como responsável por quase todas as mazelas verificadas nos processos, por vezes até naturais, de deterioração destes bens. Frente à situação apresentada, cabe ressaltar que a bibliografia encontrada deixou muitas dúvidas sem respostas... Se o Turismo é reconhecido na atualidade como uma das atividades que pode auxiliar na educação ambiental, situação prevista inclusive em textos legais, como a Lei Federal nº 9795/99, que estabelece a Política Nacional de Educação Ambiental, como pode, nestes casos, ser considerado e analisado predominantemente como um dos principais vilões da história? Se o Turismo realmente traz tantos males aos bens considerados Patrimônio da Humanidade, por que continua a ser permitido nestes ambientes? Teria realmente o Turismo como sina destruir, invariavelmente, os atrativos naturais e culturais que possibilitam sua existência? E a relação inversa? Não é considerada? Os bens constantes como pertencentes à Lista do Patrimônio Mundial poderiam prescindir da 4 atividade turística como mecanismo de conhecimento e divulgação? A situação destes sítios como Patrimônio da Humanidade pode interferir na forma como se desenvolve o Turismo nestes ambientes? Acredita-se, enfim, que as relações entre Turismo e Patrimônio da Humanidade não devem ser entendidas como vias de mão única, mas sim como um conjunto de relações bilaterais, afinal não só o Turismo interfere nestes sítios, mas também estes sítios, com base na qualidade das características naturais e culturais que possuem, nas necessidades de proteção que apresentam, bem como pelo título que ostentam, também devem produzir efeitos sobre a atividade turística realizada em seus territórios específicos. Frente às observações e questões preliminarmente apresentadas, optou-se por limitar o campo da problemática à questão de saber se o título de Patrimônio da Humanidade interfere na atividade turística realizada em sítios brasileiros titulados como bens do Patrimônio Mundial, partindo-se do seguinte problema de pesquisa: Que efeitos o título de Patrimônio da Humanidade gera sobre o Turismo de determinada localidade brasileira componente da Lista do Patrimônio Mundial? Como possíveis respostas a esta pergunta, levantou-se as seguintes hipóteses para o desenvolvimento da pesquisa: a) O título de Patrimônio da Humanidade contribui para estabelecer mecanismos de proteção tão severos que limitam ou até mesmo inviabilizam a atividade turística na localidade titulada, minimizando as oportunidades de contato da humanidade com o seu próprio patrimônio. 5 b) A concessão do título de Patrimônio da Humanidade funciona como mecanismo que agrega valor à atratividade turística dos espaços titulados e, conseqüentemente, influencia aspectos pertinentes à visitação turística. c) O título de Patrimônio da Humanidade se converte em elemento de tamanha importância que se torna o principal motivo de visitação turística a determinado sítio brasileiro inscrito na Lista do Patrimônio Mundial. Para observação e análise dos variados aspectos que se referem à questão e hipóteses levantadas, bem como para a eficiência da pesquisa, verificou-se a necessidade de proceder a certa delimitação do campo do estudo, posto que as pesquisas preliminares orientadas para o inventário dos sítios brasileiros acabaram por demonstrar a heterogeneidade existente entre eles, no que se refere a suas configurações e delimitações espaciais. Sob este enfoque, observou-se que os sítios brasileiros se apresentam como conjuntos arquitetônicos e urbanísticos de cidades inteiras, a exemplo do caso de Ouro Preto; na forma de centros históricos de cidades, como nos casos de Salvador e Olinda; como monumentos isolados, a exemplo das ruínas jesuítico-guaranis, em São Miguel das Missões, Rio Grande do Sul; como ambientes estabelecidos nos limites de uma determinada Unidade de Conservação da Natureza, a exemplo do Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí; como um conjunto de Unidades de Conservação da Natureza, nos moldes do Complexo de Conservação da Amazônia Central, entre outras formas. Com base nas necessidades de delimitação e uniformidade espacial observadas quanto ao campo de aplicação do estudo, optou-se por prosseguir o trabalho considerando-se apenas o Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha. 6 Quanto à escolha por um Parque Nacional, cabe ressaltar que, em conjunto, constituem os elementos numericamente mais representativos dentre os bens que compõem os sítios do Patrimônio da Humanidade no Brasil. Quanto à escolha por Fernando de Noronha, cabe considerar que constitui um dos ambientes mais isolados dentre os Parques Nacionais titulados, visto configurar-se como um arquipélago a 360 quilômetros do continente, fato que certamente contribui para diminuir interferências de outros elementos na pesquisa. Assim, definido o problema da pesquisa, estabelecidas ashipóteses e ambientado o estudo, explicita-se o objetivo geral deste trabalho, que é conhecer os efeitos gerados pelo título de Patrimônio da Humanidade sobre o Turismo em Fernando de Noronha. Como objetivos específicos, enumera-se: Identificar as origens da expressão “Patrimônio da Humanidade”; Conhecer os procedimentos e critérios responsáveis pela transformação de um bem em Patrimônio da Humanidade; Identificar as possíveis relações entre a Convenção do Patrimônio Mundial e o Turismo; Identificar os critérios responsáveis pela titulação dos sítios brasileiros, em especial pela titulação das Ilhas Atlânticas Brasileiras, sítio mundial ao qual pertence Fernando de Noronha; Conhecer as relações entre titulação e Turismo em Fernando de Noronha. Justifica-se a pesquisa quanto a sua relevância como forma de concretizar estudo que auxilie no conhecimento das relações entre Turismo e Patrimônio da Humanidade no Brasil, no que se refere à compreensão dos efeitos do título de Patrimônio da Humanidade sobre Turismo de determinada localidade 7 inscrita, vertente da relação que tem se demonstrado negligenciada, frente a estudos e discussões centradas na análise dos impactos provocados pelo Turismo sobre estas localidades. As considerações anteriores também servem para justificar a pesquisa quanto a sua originalidade, visto que se desconhece estudo que houvesse, anteriormente, tratado da verificação e análise destas relações no âmbito de bens naturais mundiais localizados no Brasil, a exemplo do Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha. Em termos pessoais, justifica-se a pesquisa como forma de possibilitar a continuidade dos estudos desenvolvidos durante a realização da dissertação de Mestrado, no que se refere à identificação de relações e possíveis contribuições do Direito para com o Turismo. Quanto aos procedimentos metodológicos utilizados, cabe ressaltar que o estudo das relações existentes entre Patrimônio da Humanidade e Turismo apresenta maior afinidade com a pesquisa descritiva. Sob este enfoque, é importante considerar que se entende por pesquisa descritiva aquela que se caracteriza por observar, registrar e analisar fatos ou fenômenos, procurando descobrir sua natureza, características, relação e conexão com outros. Tal pesquisa, aplicada principalmente nas ciências humanas e sociais, visa ainda conhecer situações relacionadas a aspectos do comportamento humano, tanto do indivíduo considerado isoladamente, como de grupos e comunidades mais complexas. (Cervo et al, 2007). Assim, passando-se à descrição dos procedimentos metodológicos necessários à realização da pesquisa, foi desenvolvido primeiramente trabalho de levantamento bibliográfico e documental, com a finalidade de intensificar 8 conhecimentos sobre a noção de Patrimônio da Humanidade e sua construção ao longo do tempo. O material levantado levou ao contato com aspectos pertencentes aos campos das ciências da História e do Direito, permitindo aprofundamento da pesquisa em questões relacionadas a práticas de identificação e listagem de bens relevantes como representações do gênio humano, já entre os povos antigos, como também a apreensão do conceito e da classificação jurídica de patrimônio em suas origens, no Direito Romano, bem como nos dias atuais do mundo globalizado, sob a égide do Direito Internacional. Os resultados destes procedimentos contribuíram para a realização do primeiro capítulo deste trabalho. Posteriormente, concentrou-se esforços na análise dos principais documentos legais, de caráter internacional, vigentes e relacionados ao tema Patrimônio da Humanidade, dispensando-se especial atenção ao documento intitulado “Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural”, de 1972, do qual derivam as orientações gerais para a produção do elenco dos sítios que figuram como principais representantes do patrimônio cultural e natural do planeta. Com a finalidade de obter amplo e profundo conhecimento sobre a estrutura e funcionamento da referida Convenção, decidiu-se pela análise detalhada de seu conteúdo, apoiada pela bibliografia referente ao tema, de caráter primordialmente jurídico. Os resultados destes procedimentos possibilitaram o entendimento dos princípios que norteiam a Convenção, o conhecimento dos mecanismos de que se utiliza para sua eficácia, em especial os organismos internacionais responsáveis pelo estabelecimento dos procedimentos e critérios, bem como pela avaliação dos pedidos de inscrição de sítios na Lista do Patrimônio Mundial, além das interfaces que apresenta com o Turismo, conforme se observa no segundo capítulo desta pesquisa. No terceiro capítulo, com fundamento na consulta à bibliografia identificada e nas informações prestadas por órgãos públicos, como o Instituto do 9 Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), além dos escritórios da UNESCO em Brasília e São Paulo, foi possível apresentar o rol dos 17 sítios brasileiros inscritos na Lista do Patrimônio Mundial, caracterizando as particularidades que os levaram à inscrição e elencando, caso a caso, os critérios sob os quais encontram-se inscritos. Ainda neste capítulo, procedeu-se à tabulação dos critérios responsáveis pela inscrição dos sítios brasileiros e, com base na literatura turística, buscou-se verificar, de modo teórico, a influência destes critérios na caracterização do potencial turístico do Patrimônio da Humanidade no Brasil. O quarto capítulo desenvolveu-se a partir da orientação da pesquisa exclusivamente a Fernando de Noronha, buscando-se explicitar aspectos relacionados a sua atratividade e visitação turística. Para a consecução desta fase, realizou-se o levantamento das informações junto a órgãos públicos como o IBAMA e a Administração do Distrito Estadual de Fernando de Noronha, além de pesquisa bibliográfica e documental, pesquisa de campo e aplicação de questionários. Os dados obtidos por intermédio destes procedimentos possibilitaram analisar os efeitos do título de Patrimônio da Humanidade sobre a visitação turística em Fernando de Noronha, bem como a realização do último capítulo deste trabalho. 10 CAPÍTULO 1 A CONSTRUÇÃO DA NOÇÃO DE PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE 1.1. AS CONTRIBUIÇÕES DO MUNDO ANTIGO Conhecer os caminhos que levaram à construção da noção de “Patrimônio da Humanidade” constitui tarefa que remete a diferentes períodos históricos, demandando investigações sobre as relações entre homens e bens materiais em épocas bastante longínquas. Embora sabido que a relação entre homens e coisas é tão antiga quanto a própria história do ser humano sobre a Terra, remontando a períodos pré-históricos, pode-se iniciar a investigação sobre a construção da noção de “Patrimônio da Humanidade” por volta do século III a. C., durante um período histórico em que “os feitos da humanidade começaram a ter mais importância que os mistérios sagrados de estrelas cadentes e grãos germinando, do levantar-se do sol e da lua” (Romer & Romer, 1997, p. 53), ou seja, um período que se caracterizou, ainda segundo Romer & Romer (1997), por demonstrar a preocupação do ser humano em afastar o sentido de maravilhamento do âmbito dos Deuses e trazê-lo para o âmbito das realizações humanas. Em meio a essa perspectiva antropocentrista de mundo, estimulada principalmente a partir das conquistas empreendidas por Alexandre Magno1 no século anterior, encontra-se o engenheiro e escritor grego Filo de Bizâncio, considerado responsável pela autoria, no ano de 225 a. C., de manuscrito intitulado 1 Rei macedônio, também conhecido como Alexandre, o Grande. Governou de 336 a 323 a.C. e foiresponsável pela conquista de territórios como os da Grécia, Egito, Pérsia e Índia, consolidando um dos maiores impérios da Antigüidade, conhecido como Império Alexandrino. (Fernández et al, 2001). 11 “De septem orbis miraculis”, conhecido nos dias atuais sob o título de “As sete maravilhas do mundo”. Fruto de um trabalho que “provavelmente levou em consideração informações colhidas de textos de autores clássicos, como Heródoto2, relatos orais de viajantes, pinturas e até mesmo imagens cunhadas em moedas” (Silva, 2005, p. 1), o manuscrito de Filo teve como objetivos relacionar e descrever aquilo que seu autor considerou como o conjunto das principais obras construídas pelo ser humano até então: as Pirâmides de Gizé, os Jardins Suspensos da Babilônia, a Estátua de Zeus em Olímpia, o Templo de Artemisa em Éfeso, o Farol de Alexandria, o Colosso de Rodes e o Mausoléu de Halicarnasso. Apesar de erguidas em distintos lugares e épocas e de possuírem características funcionais tão diversificadas, como efetivamente são as de templos, túmulos, esculturas, faróis e jardins, as Sete Maravilhas3 selecionadas por Filo apresentam, em comum, o fato de serem, todas, obras de arte, arquitetura, ou de engenharia extraordinárias, de proporções gigantescas, fascinantes por seu esplendor, riqueza de detalhes e, principalmente, por demonstrarem a beleza e genialidade que podem ser produzidas pelas mãos do homem. Transcendendo a postura meramente narrativa verificada em abordagens de outros autores da Antigüidade4 sobre o tema, o texto de Filo ganha importância como fonte de pesquisa exatamente por expor e exaltar a genialidade 2 Historiador grego que viveu aproximadamente entre 484 e 425 a.C., considerado por muitos, a exemplo do senador e orador romano Cícero (106 - 43 a. C.), como “O Pai da História” (Silva, 2005).. 3 A expressão “Sete Maravilhas” será utilizada ao longo deste trabalho como forma de referência ao conjunto das obras elencadas por Filo: as Pirâmides de Gizé, os Jardins Suspensos da Babilônia, a Estátua de Zeus em Olímpia, o Templo de Artemisa em Éfeso, o Farol de Alexandria, o Colosso de Rodes e o Mausoléu de Halicarnasso. 4 Dentre estes outros autores, pode-se citar o geógrafo e viajante grego Pausânias, além do escritor grego Antípatro de Sidon. O primeiro foi responsável pela autoria, por volta de 170 a. C., de obra em 10 volumes intitulada “Periegesis hellados”, conhecida em português como “Descrição da Grécia”e considerada, segundo Romer & Romer (1997) uma espécie de antecessora dos guias turísticos da atualidade. Quanto a Antípatro de Sidon, foi autor do manuscrito intitulado “Ta hepta thaemata”, ou, em português, “As sete coisas dignas de serem contempladas”, por volta de 140 a. C. (Silva, 2005). Embora ambos também tratem das maravilhas elencadas por Filo, a análise de trechos de seus textos identificou conteúdos estritamente narrativos e impessoais no que se refere às características das Sete Maravilhas. 12 humana responsável pela criação dessas sete obras. Sob este enfoque, apresenta importantes subsídios para o entendimento das afirmações de Morel (1999), sobre já haver, naquela época, consciência da existência de algo tão relevante e próprio do intelecto humano nas Sete Maravilhas, que as distinguiam como elementos representativos da obra da humanidade como um todo. Evidentemente, a observação de indícios desta consciência no texto de Filo não significa dizer que o manuscrito apresente qualquer referência às Sete Maravilhas sob a denominação de “patrimônio”, quer público, quer particular, quer nacional, tampouco da humanidade, até porque tais nomenclaturas só se firmaram em épocas posteriores, como se verificará adiante. Tal realidade, entretanto, não diminui a importância da obra de Filo no que se refere às investigações para identificação dos caminhos que levaram à construção da noção de “Patrimônio da Humanidade”, à luz da vertente apresentada por Morel. Cabe ressaltar, assim, que a motivação para a análise do manuscrito de Filo não reside na nomenclatura utilizada, mas sim na identificação de um exemplo bastante antigo de percepção sobre a existência de um conjunto de elementos capazes de representar o intelecto e o gênio criativo da humanidade, congregando-os sob um mesmo signo. Nesse sentido, Filo inicia seu manuscrito descrevendo os Jardins Suspensos da Babilônia (Fig. 1): “Os chamados Jardins Suspensos, com suas plantas, crescem no ar. Troncos individuais de palmeiras estão na posição devida e o espaço que separa uma da outra é muito estreito. Sobre essas toras foi despejada terra a uma boa profundidade. No topo crescem árvores de grandes folhas e árvores de jardim e há flores variadas de todos os tipos (...). Aquedutos levam a água corrente: de um lado a corrente segue um amplo curso descendente, de outro a água sobe, sob pressão, numa hélice, irrigando todo o jardim. É por esse motivo que a grama está sempre verde e as folhas das árvores crescem permanentemente (...).” (Filo, apud Romer & Romer, 1997, p. 242). 13 Figura 1: Jardins Suspensos da Babilônia Aquarela de Charles Sheldon Fonte: http://maravilhas7.tripod.com Apesar de não haver, até a atualidade, vestígios materiais de tais jardins, acredita-se que eles tenham sido construídos por volta do século VI a. C., caracterizando-se como “uma das poucas obras na história que não foi concebida para louvar poderosos do céu e da terra, mas sim como um presente de amor do rei Nabucodonosor II para sua rainha, Amytis, nascida e criada entre as montanhas do Irã e constantemente entristecida diante da paisagem babilônica, às margens do Rio Eufrates, plana e despida de vegetação”(Oliveira, 2001, p. 272). Sendo ou não construídos como prova de amor de um rei a sua esposa, diversos autores, a exemplo dos próprios Romer & Romer (1997), Oliveira (2001) e Silva (2005) tentaram expor detalhes dos jardins babilônicos por meio de compilações de textos antigos que especificam tipos de árvores, sistemas de plantio, além de elementos referentes à estrutura e funcionamento dos sistemas de irrigação utilizados. A despeito destes detalhamentos, socorreram-se também de Filo como fonte que melhor sintetiza a essência dos Jardins Suspensos, sob uma ótica que ultrapassa os limites da descrição para entendê-los e apresentá-los como resultados 14 da realização humana: “(...) A obra-prima é luxuriante, majestosa e viola as leis da natureza ao suspender o trabalho do cultivo acima da cabeça dos espectadores”. (Filo, apud Romer & Romer, 1997, p. 243). Seqüencialmente aos Jardins Suspensos da Babilônia, o manuscrito apresenta as Pirâmides de Gizé (Fig. 2): “A mente tem dificuldade de apreender as dimensões das pedras e a todos aturde a força imensa exigida para soerguer tamanho peso de material (...). Tem 150 metros de altura e a distância em volta da base é de 1097 metros. Toda a refinada obra está soldada de forma tão inconsútil que parece feita de uma única rocha contínua. No topo, ao olhar para baixo, mal se consegue vislumbrar o chão (...).” (Filo, apud Romer & Romer, 1997, p. 243). Figura 2: Pirâmides de Gizé Fonte: http://maravilhas7.tripod.com Coincidentemente, as Pirâmides de Gizé são as obras mais antigas dentre as Sete Maravilhas e as únicas a subsistirem até a atualidade. Tais circunstâncias certamente contribuíram para a existência de um conjunto mais amplo e profundo de informações a seu respeito. Situadas na região desértica do Planalto de Gizé, próxima à atual cidade do Cairo, no Egito, sabe-se que foram construídas há 15 cerca de 4500 anos para abrigar os túmulos dos faraós Miquerinos, Quéops e Quéfren e demandaram, todas, o trabalho de centenas de milhares de pessoas durante cerca de 20anos cada para serem erguidas. (Oliveira, 2001). De acordo com Silva (2005), tais obras só eram possíveis, pois os construtores de pirâmides empregavam rotineiramente milhares de pessoas e as uniam em uma única empreitada, como uma única força de trabalho. Assim, ainda que utilizando métodos simples de construção, “controlavam uma organização de estupenda complexidade e eficiência, que mantinha as pedras gigantescas em movimento rampa acima, rumo aos planaltos do deserto e ao topo das pirâmides, dia após dia, semana após semana, ano após ano” (Romer & Romer, 1997, p. 183). Cabe considerar que esta dinâmica construtiva apresenta o ser humano como detentor, já em épocas distantes, de um potencial organizacional excepcional, porém provavelmente inconcebível para profissionais da atualidade, para os quais as preocupações modernas relacionadas a elementos como a economia de tempo, dinheiro e demais recursos devem transformar as pirâmides, sob esta ótica, na corporificação do reverso absoluto da condição humana moderna. Ainda que paire este pensamento na atualidade, estudos arqueológicos desenvolvidos principalmente a partir do século XIX apresentam as pirâmides não só como as primeiras e maiores edificações de pedra construídas sobre a Terra, mas também como as construções de pedra mais precisas já feitas no planeta: “essas pirâmides estão dispostas em exata consonância com os quatro pontos cardeais, com discrepâncias que não ultrapassam uma fração de um grau. Seus cantos formam ângulos retos quase perfeitos, o cumprimento de seus quatro lados é praticamente idêntico e o desnível em relação ao solo não vai além de alguns centímetros,(...) mostrando a determinação de seus 16 construtores em manter o curso escolhido sem um mínimo de desvio” (Romer & Romer, 1997, p. 184-85). Mais de dois mil anos antes, entretanto, Filo já enxergava a importância das pirâmides como feito humano: “Ao nosso espanto soma-se o prazer, a nossa admiração une-se o respeito e ao luxo da obra, seu esplendor. Pois que é por meio de feitos assim que os homens sobem até os deuses, ou que os deuses descem até os homens”. (Filo, apud Romer & Romer, 1997, p. 243). Quanto ao Zeus de Olímpia (Fig. 3), era uma das maiores esculturas para ambiente fechado do mundo antigo, construída pelo escultor grego Fídias, em Olímpia, sul da Grécia, ao longo de cerca de 10 anos, para adornar o templo de mesmo nome. Conhecida também como o Zeus de Fídias, a escultura foi concluída por volta de 435 a. C. e representava o deus grego Zeus sentado em seu trono. Media cerca de 12 metros de altura e foi construída em madeira, inteiramente revestida de materiais preciosos: as partes visíveis do corpo em marfim, o manto e as demais vestimentas em ouro, os olhos e demais detalhes em pedras preciosas. Durou cerca de oitocentos anos até que, já sob domínio do Império Romano, no século IV, foi ordenada a retirada de todo o ouro dos templos pagãos por Constantino, primeiro imperador cristão. Reduzida a uma estátua de madeira e marfim, foi comprada no século seguinte por um antiquário5, levada a Constantinopla e destruída por um incêndio que assolou a cidade no ano de 475 d. C.. (Oliveira, 2001). 5 Cabe ressaltar que no século V o termo “antiquário” tinha significado diferente do que o comumente utilizado nos dias atuais. Assim, o termo não deve ser confundido com a denominação contemporânea utilizada para nomear comerciantes de antiguidades. Tratava-se, à época, de pessoas que mantinham “coleções de gabinete que poderiam misturar curiosidades, peças artísticas e preciosas ao lado de objetos grotescos, dependendo o gosto ou a qualidade exclusivamente do seu possuidor” (Camargo, 2005, p. 23). 17 Figura 3: Estátua de Zeus Aquarela de Charles Sheldon Fonte: http://maravilhas7.tripod.com Ao se referir ao Zeus de Olímpia, Filo não só exalta mais uma vez a produção humana, na figura de Fídias, como também deixa explícita a idéia, existente à época, de inexaurabilidade dos recursos naturais e de sua função como meros instrumentos para as realizações humanas: “(...) A natureza produziu os elefantes e a África tem abundância de manadas, só para que Fídias pudesse talhar as presas dos animais selvagens e com as mãos trabalhar a matéria, dando-lhe a forma que pretendia”. E continua em sua exaltação: “(...) se apenas nos maravilhamos com as outras seis maravilhas, diante desta ajoelhamo-nos, reverentes, porque a habilidade de execução é tão incrível quanto é sagrada a imagem de Zeus” (Filo, apud Romer & Romer, 1997, p. 243). Na mesma linha de pensamento, Filo também se maravilha, não apenas com a obra, mas principalmente com o talento humano responsável pela criação do Colosso de Rodes (Fig. 4): “(...) Talvez Zeus tenha sido pródigo ao distribuir riquezas aos rodenses para que pudessem gastá-la em honra de Hélio, construindo a estátua do deus. O artista (...) produziu uma obra surpreendente na ousadia, pois que colocou no mundo um segundo Hélio, diante do primeiro (...)” (Filo, apud Romer & Romer, 1997, p. 244). 18 Figura 4: Colosso de Rodes Aquarela: Martin Heemskerck Fonte: www.misteriosantigos.com De acordo com Oliveira (2001), a estátua foi erguida ao longo de cerca de doze anos, como ato de agradecimento dos habitantes da Ilha de Rodes ao deus Hélio, por tê-los poupado de um ataque por parte do rei sírio Demetrius Poliocretes, em 304 a. C. Estima-se que tivesse cerca de 35 metros de altura e ficasse na entrada do porto da ilha, sobre uma base de mármore, acima da qual uma estrutura de ferro dava sustentação à cobertura, feita em bronze e inteiramente polida, para maior efeito luminoso. Destruída por um terremoto por volta de 220 a. C., suas ruínas atraíram visitantes por vários séculos, até que, em 654 d. C., um comerciante judeu da Síria comprou o bronze dos árabes que haviam se instalado na ilha e depois da chegada da carga ao continente, necessitou, para a continuidade de seu transporte, de cerca de 900 camelos, tamanha era a quantidade do metal (Oliveira, 2001). 19 Quanto ao Templo de Artemisa em Éfeso (Fig. 5), atual território da Turquia, acredita-se ter sido construído por volta de 550 a. C., incendiado em 356 a. C. e posteriormente reconstruído, adquirindo proporções maiores que o primeiro. Erguido em homenagem à deusa grega da lua e dos animais selvagens, tinha cerca de 130 metros de cumprimento e era sustentado por 127 colunas de mármore, todas com 18 metros de altura e 2 metros de diâmetro, decoradas com cenas mitológicas. (Silva, 2005). Destruído novamente em 263 d. C. pelos godos, povo originário do norte da Europa, teve suas fundações descobertas por arqueólogos, em 1869 (Oliveira, 2001). Atualmente, alguns de seus objetos, retirados de escavações arqueológicas, encontram-se expostos no Museu Britânico, em Londres. Figura 5: Templo de Artemisa em Éfeso Aquarela de Harold Oakley Fonte: www.jesuswalk.com Filo o retrata como “um exemplo da imortalidade posto na terra” pelas mãos do homem, elemento que também usa para descrever outras maravilhas, como as Pirâmides e o Zeus de Fídias, fazendo crer a quem lê seu manuscrito que julgava que tais obras durariam para sempre. Por fim, ainda na mesma vertente de raciocínio que usou para descrever o Colosso de Rodes, exalta mais a capacidade humana utilizada para a construção do Templo de Artemisa, do que a própria obra em si: “(...) O resultado é que o trabalho supera em ousadia a empreitada e, igualmente, a habilidade supera a obra” (Filo, apud Romer & Romer, 1997, p. 245). 20 Assim como a maioria das Sete Maravilhas listadas por Filo, o restante de seu manuscrito também foi destruído com o tempo,não sendo possível, portanto, verificar suas descrições sobre o Farol de Alexandria e o Mausoléu de Halicarnasso (Figs. 6 e 7). Figura 6: Farol de Alexandria Figura 7: Mausoléu de Halicarnasso Aquarela de Haroldo Oakley Aquarela de A. J. Stevenson Fonte: http://maravilhas7.tripod.com Fonte: http://maravilhas7.tripod.com Mesmo sem as descrições de Filo, é corrente entre os autores pesquisados que, dentre as Sete Maravilhas, o Farol era o de maior utilidade prática para a humanidade. Construído pelo sucessor de Alexandre Magno, Ptolomeu II, no ano de 280 a. C., o Farol situava-se na Ilha de Faros6, uma das ilhas do porto de Alexandria, no Egito e consistia em uma estrutura de cerca de 135 metros de altura recoberta de mármore, sobre uma base de pedra. Praticamente se transformou em uma cidade sobre o mar, habitada pelos trabalhadores que o mantinham aceso e pelos soldados que o protegiam. Estudos arqueológicos demonstram que os suprimentos de água e comida chegavam por uma passarela que unia a ilha ao continente e que o subsolo da construção abrigava uma espécie de estrebaria, onde ficavam os animais responsáveis pelo transporte das enormes quantidades de madeira necessárias para 6 De acordo com Romer & Romer (1997), a Ilha de Faros inspirou o nome da construção que abrigou. Posteriormente, a nomenclatura “farol” foi utilizada para denominar todas as construções torriformes que tivessem como objetivo orientar navegadores por meio de sinais luminosos. 21 alimentar as chamas do Farol. Depois de mais de 1500 anos de vida útil e de incomensuráveis quantidades de madeira queimadas em suas chamas, o Farol foi destruído por um terremoto, em 1302. Quanto ao Mausoléu7, foi construído por ordem de Mausolo, governante de Halicarnasso, região que atualmente corresponde à cidade de Bodrum, na costa sudoeste da Turquia. A obra tinha como objetivo servir de túmulo para o corpo de Mausolo, que morreu pouco antes de vê-la terminada, em 353 a. C.. Concluída a mando de sua esposa, Artemísia, a construção possuía cerca de 45 metros de altura e apresentava, em seu topo, a escultura de uma carruagem puxada por quatro cavalos e dirigida por Mausolo (Oliveira, 2001). O Mausoléu perdurou até o século XVI, quando foi demolido, após um ataque dos Hospitalários, uma ordem de cavaleiros que lutou durante as Cruzadas da Idade Média. Remanescentes da construção, encontrados a partir de escavações arqueológicas realizadas desde o século XIX, estão atualmente expostos no Museu Britânico, em Londres e na própria cidade de Bodrum, na Turquia. Frente aos levantamentos e observações realizadas, pode-se considerar procedentes as afirmações de Morel, posto que a história jacente antes de Cristo já apresenta evidências de ações voltadas à identificação e descrição de obras como elementos representativos da genialidade humana. Tais ações, exemplificadas por intermédio de elementos como o manuscrito de Filo, também indicam origens bastante antigas para práticas tão costumeiras nos dias atuais, como os procedimentos de listagem de coisas relevantes, excepcionais, ou únicas realizadas pelo ser humano e sua reunião sob uma mesma terminologia: antigamente, a das Sete Maravilhas; atualmente as de patrimônio cultural de um município, estado, país, ou, ainda, patrimônio cultural da humanidade. 7 O nome “Mausoléu” foi dado à construção em homenagem ao governante que a ordenou e serve, até a atualidade, para designar túmulos grandes e suntuosos (Oliveira, 2001). 22 Como contribuições adicionais, Filo também permite a percepção de que não havia, naquela época, qualquer preocupação com a conservação8 dos recursos naturais, quer sob a forma de elementos que merecessem atenção por si próprios, quer sob a forma de instrumentos para que o intelecto e o gênio criativo humano atingissem seus fins de criação de obras monumentais e magníficas. Aliás, cabe mencionar que apesar do manuscrito expor uma realidade voltada apenas para a exaltação de manifestações do gênero humano, ou seja, de criações artificiais, também não parecia haver preocupação com a conservação das obras descritas em seu texto. Em outros termos, Filo e seu manuscrito deixam expressa a crença de que tanto as grandes obras criadas pelo ser humano, como os recursos naturais necessários a sua consecução eram eternos... crença, inclusive, que perdurou por mais tempo do que quase todas as Sete Maravilhas. 1.2. A NOÇÃO DE PATRIMÔNIO NO DIREITO ROMANO Na continuidade das buscas pela construção da noção de Patrimônio da Humanidade, observou-se importantes contribuições de ordem conceitual e classificatória, oferecidas por documentos de caráter jurídico criados no Império Romano, cerca de sete séculos depois de Filo. O Império Romano, dentre vários feitos, também ficou conhecido pela produção de um conjunto de normas jurídicas tão gigantesco, quanto substancioso e eficaz, de modo a servir até a atualidade como elemento de orientação para a 8 Para fins deste trabalho, adotar-se-á os termos “conservação” e “preservação” com base nas correntes americanas descritas por Pereira (2002), segundo as quais entende-se a conservação como forma de exploração de recursos com critérios, de modo a evitar seu esgotamento (corrente conservacionista) e a preservação como forma que não admite a exploração de recursos, de modo a ficarem intocados (corrente preservacionista). 23 elaboração de normas em sistemas jurídicos de diversos países ocidentais, a exemplo da Alemanha, Itália, França, Espanha, Portugal e Brasil9. Dentre as normas desse conjunto, destaca-se o “Corpus Juris Civilis”, uma das obras capitais da história do Direito, elaborado a mando do Imperador Justiniano, a partir da compilação e sistematização, num só corpo, dos principais textos de lei das épocas anteriores e de sua própria época e posto em vigor em todo o império sob seu domínio no ano de 534 d. C.. (Cretella Júnior, 2003a). Constituído de cinco partes (Código Antigo10, Digesto11, Institutas12, Código Novo13 e Novelas14), o “Corpus Juris Civilis” apresenta em sua parte denominada Institutas uma das primeiras sistematizações acerca do que era ou não considerado patrimônio, ou “patrimonium”, conforme denominação utilizada na época. Para melhor compreensão da classificação patrimonial oferecida pelas Institutas, cabe esclarecer que os romanos da época de Justiniano entendiam o vocábulo “patrimonium” como o conjunto de coisas que compunham a propriedade de uma pessoa e eram passíveis de representação por uma soma de dinheiro, ou seja, tinham valor econômico. Também deviam, por conseqüência, ser comerciáveis, ou 9 No Brasil, continua sendo a principal base do Direito Privado, tendo subsidiado inclusive a configuração e conteúdo do novo Código Civil Brasileiro, vigente desde janeiro de 2003. 10 O Código Antigo, também chamado de Codex Vetus, teve como objetivo reunir as constituições imperiais vigentes na época em que foi escrito. 11 O Digesto, também conhecido como Pandectas, consiste em uma compilação dos escritos e pareceres dos jurisconsultos romanos, ou seja, os juristas daquela época. 12 As Institutas, ou Institutiones, eram consideradas pelos romanos seu manual de Direito Privado, que é o ramo do Direito responsável por ordenar as relações das pessoas entre si em uma esfera particular (a exemplo da adoção e do casamento), bem como as relações entre as pessoas e seusbens particulares (como no caso do patrimônio). 13 O Código Novo consiste na atualização do Código Antigo, através da inserção das novas determinações legais surgidas naquele período. 14 As Novelas são um conjunto de novas constituições imperiais decretadas por Justiniano em seus últimos anos como imperador. Foram divulgadas bem depois das demais partes, por volta de 560 d.C. . 24 seja, passíveis de figuração em relações de compra e venda (Justinianus, 2001). Sob esta perspectiva, coisas de ordem sentimental não se caracterizariam como patrimônio, ou em função de não possuírem valor econômico, ou porque, mesmo tendo um valor quantificável, seriam mantidas por seus proprietários fora do comércio, ou seja, fora da possibilidade de figurar em relações de compra e venda. Também se deve ressaltar que a noção de “coisa” era bastante abrangente naquela época, assim como ainda é na atualidade. Para os romanos, “coisa”, designada então pelo vocábulo “res”, era, de modo genérico, tudo aquilo que contribuísse para a satisfação das necessidades humanas, no âmbito das inter-relações sociais. Especificamente em relação ao “patrimonium”, o termo “res” era entendido como o elemento ou conjunto de elementos de ordem material, ou seja, palpáveis, existentes de forma concreta, que contribuíssem para tais satisfações e, nesta acepção, também era considerado equivalente à expressão latina “bona”, ou, em português, “bens”. (Cretella Júnior, 2003b). À luz desta noção, é importante notar que não eram considerados como patrimônio coisas ou bens imateriais, a exemplo de uma criação literária, um conhecimento técnico, ou outras formas de produção intelectual, ao contrário do que ocorre hoje, época em que tais elementos podem figurar como componentes da propriedade intelectual de uma pessoa e, portanto, de seu patrimônio. Frente a estas observações, entende-se que a noção de patrimônio apresentada pelo Direito Romano remete à idéia de um conjunto de bens materiais, detentores de valor econômico, passíveis de figurar em relações comerciais, assim como de apropriação privada. Analogamente, não constituíam patrimônio as coisas imateriais, destituídas de valor econômico, que não fossem capazes de figurar como objetos de relações comerciais, como também aquelas que não pudessem ser apropriadas por uma pessoa. 25 Com base nestas noções, as Institutas estabeleciam a divisão das coisas em dois grandes conjuntos: as “res in patrimonium”, ou seja, as coisas que integram o patrimônio de uma pessoa; e as “res extra patrimonium”, coisas que não podem ser objeto de apropriação privada e que, como decorrência, são consideradas coisas fora do patrimônio. Tais conjuntos, por sua vez, apresentam subdivisões, como segue: −“Res in patrimonium” – coisas no patrimônio. Subdividiam-se, de acordo com Cretella Júnior (2003a), em: res mancipi: coisas de grande relevância, adquiridas por meios solenes, formais, a exemplo das terras, das casas e dos escravos. res nec mancipi: coisas adquiridas sem formalismo algum, mediante sua mera entrega a outrem, como no caso de jóias ou dinheiro. res mobiles: coisas móveis, passíveis de serem transportadas, a exemplo de carros, roupas e mobílias. res immobiles: coisas imóveis, impossíveis de serem transportadas, tais como terras e casas. res fungibiles: coisas que podem ser substituídas por outras do mesmo gênero, qualidade e quantidade. Normalmente apresentam relevância não pela individualidade de cada unidade, mas sim pelo peso, quantidade, ou medida, tal qual o vinho, o azeite, a farinha, ou os metais, como o ouro e a prata. res infungibiles: coisas cujas características individuais impedem a substituição por outras do mesmo gênero, como no caso de um quadro, uma estátua, ou uma escultura. res divisibiles: coisas que podem ser divididas, fracionadas, sem que haja perda de suas características originais, como o arroz, o dinheiro, ou o vinho. res indivisibiles: coisas cuja divisão não ocorre sem dano a suas características ou funções originais, como no caso de um animal, de um escravo, de uma liteira, ou de uma estátua. 26 −“Res extra patrimonium” – coisas fora do patrimônio. Também apresentavam subdivisões: res humani juris: coisas do direito humano, subdivididas, por sua vez, em res communes, res universitatis e res publicae. res communes: coisas de uso comum a todos, insuscetíveis de apropriação individual. Esta categoria abrange elementos como a água, o ar e o mar. res universitatis: coisas que pertencem às cidades e não a seus habitantes em particular, como no caso de prédios públicos e monumentos. res publicae: coisas pertencentes ao Estado, porém destinadas a uso público, como no caso das praças e das vias públicas. res divini juris: coisas do direito divino, subdivididas em sagradas, religiosas e santas. res sacrae: coisas consagradas a deuses superiores, a exemplo de templos e objetos de culto. res religiosae: coisas consagradas a deuses de menor importância, a exemplo de túmulos e cemitérios. res sanctae: coisas que, sem serem consagradas aos deuses, também são consideradas sob sua influência, a exemplo das muralhas, ou dos portões de entrada das cidades. Tomando-se como base a classificação oferecida pelas Institutas de Justiniano, pode-se observar que apesar de trazer importantes contribuições para o entendimento da noção de patrimônio em suas origens jurídico-romanas, é bastante restritiva, além de divergente em relação à realidade que se tem hoje, em especial no que diz respeito à consideração da existência de um patrimônio que transcende o particular, para caracterizar-se como patrimônio público, seja ele municipal, estadual, nacional, ou da humanidade. Neste contexto classificatório, o que mais chama a 27 atenção, portanto, não é a forma como se dividem os bens particulares enquanto “res in patrimonium”, mas sim a verificação de um conjunto de bens públicos à margem de um entendimento patrimonial e desprovido, desta forma, de uma classificação que o enquadre como patrimônio. Ante à classificação apresentada, observa-se uma grande lacuna, em função da qual uma série de bens do passado, ou do presente, não poderiam nunca assumir o status de patrimônio. A título de exemplo, cabe considerar que nenhuma das Sete Maravilhas de Filo poderia ser enquadrada como res in patrimonium frente às Institutas de Justiniano. Em uma rápida análise, tanto as Pirâmides de Gizé, como o Mausoléu de Halicarnasso seriam classificados como res religiosae e o Templo de Artemisa em Éfeso se enquadraria como res sacrae, duas das subdivisões que compõem as res divini juris, que por sua vez é um dos tipos de res extra patrimonium. Já quanto ao Colosso de Rodes, a Estátua de Zeus em Olímpia e o Farol de Alexandria, tomariam lugar como res universitatis e conseqüentemente como res humani juris, dividindo espaço com os Jardins Suspensos da Babilônia que, entendido como um jardim de uso público, caracterizar-se-ia como res publicae e também como res extra patrimonium. Sob o invólucro da classificação romana, não só as Sete Maravilhas, mas também uma série de outros bens que atualmente são considerados patrimônio não poderia ser entendida desta forma. Monumentos e fortes entrariam na classificação como res universitatis, igrejas e mosteiros como res sacrae. Museus públicos e Parques Nacionais seriam apenas res publicae e a Antártida, assim como as Cataratas do Iguassu e talvez até a Floresta Amazônica provavelmente se enquadrariam como res communes, compondo, todos, um vasto conjunto de coisas fora do patrimônio. Especificamente no caso do Brasil de hoje, em âmbito histórico-cultural, provavelmente restariam como res in patrimonium apenas as edificações particulares 28 que tivessem passado por processos de tombamento, bem como alguns poucosmuseus e casas de cultura particulares, cujos proprietários quisessem se valer dos benefícios de normas como a Lei Rouanet15. No que se refere ao âmbito natural, a situação não seria muito diferente, afinal a Constituição Federal e a legislação ambiental brasileiras estabelecem que áreas naturais como as praias, o mar territorial, as florestas e também a maioria das Unidades de Conservação da Natureza16 são bens públicos, impassíveis de figurar em relações comerciais e, portanto, à luz da classificação romana, res extra patrimonium. Como exceção ao caso, figuraria apenas a Reserva Particular de Patrimônio Natural (RPPN), único tipo de Unidade de Conservação da Natureza que pode ser criado por um particular em uma área de sua propriedade e que certamente seria um dos únicos casos de áreas naturais consideradas como res in patrimonium no Brasil. Isto, bem entendido, se seu dono não a quisesse destruir, posto que, diferentemente da realidade atual, a ordenação jurídica do Império Romano permitia que os proprietários tivessem irrestrita liberdade para com suas “res”, com base nos princípios do jus utendi, jus fruendi et jus abutendi, que, em outros termos, estabeleciam os direitos de usar, fruir e abusar das coisas que compunham o patrimônio como melhor aprouvesse a seu proprietário, inclusive decidindo sobre sua continuidade ou extermínio (incendiar casas ou matas; abater árvores; matar animais ou escravos etc). Face às observações e transposições de tempo-espaço apresentadas, é possível perceber que muita coisa mudou do tempo de Justiniano à realidade do patrimônio na atualidade. Mas como esta mudança aconteceu? Este questionamento 15 Lei Federal nº 8313/91, também conhecida como Lei de Incentivo à Cultura e que permite abatimento no imposto de renda às pessoas que incentivem o desenvolvimento, a divulgação e a proteção do patrimônio cultural material e imaterial brasileiro. 16 Áreas naturais delimitadas pelo poder público e que devem ser protegidas, em função de suas características naturais, a exemplo de Parques Nacionais, Áreas de Proteção Ambiental e Estações Ecológicas. 29 instigou a continuidade da pesquisa de base histórica, com a finalidade de identificar onde e em que momento o patrimônio passa a ser entendido sob uma visão mais abrangente, sob uma ótica que trouxesse os esclarecimentos acerca das circunstâncias que propiciaram a passagem de outras “res”, que não as particulares, à categoria de patrimônio. Os resultados desta busca remeteram a um período histórico bem mais próximo ao atual, cujas características e desdobramentos serão analisados no próximo item deste capítulo. 1.3. A RE-SIGNIFICAÇÃO DO PATRIMÔNIO NA REVOLUÇÃO FRANCESA A noção romana de patrimônio prevaleceu por vários séculos, especificamente até certos acontecimentos que se originaram a partir da Revolução Francesa. Caracterizada como fato que serviu de marco histórico para o início da Idade Contemporânea e teve seu ápice em 14 de julho de 1789, com a queda da Bastilha17, a Revolução Francesa significou tanto o fim do antigo regime monárquico absolutista francês, como o aparecimento de uma visão diferente de mundo, expressa por atos como a instauração de um novo regime de governo que acabaria por servir de exemplo a muitos outros países na posteridade: a República18. Com o fim da monarquia absolutista, os bens da Coroa, até então “res in patrimonium” da família real, foram confiscados pelos revolucionários franceses e passaram ao poder do Estado republicano que se constituía a partir de então. A esta 17 Fortificação construída para defender Paris e que posteriormente se transformou em uma prisão onde eram encerrados sumariamente todos aqueles considerados pelo rei seus inimigos, assim como aqueles a quem o rei atribuía periculosidade (Camargo, 2005). 18 Do latim, res publicae, ou em português “coisa pública”. Apesar da coincidência terminológica em latim com um dos elementos analisados no item 1.2 deste trabalho, referente ao Direito Romano, cabe ressaltar que aqui não se trata de uma forma de classificação do patrimônio, mas sim de um sistema de governo em que um ou mais indivíduos eleitos pelo povo exercem o poder por tempo determinado. 30 nova ordem estatal instalada acrescentou-se, segundo Rodrigues (2003), o termo “nacional” que, fundamentado em questões políticas, tinha como objetivos reforçar a idéia da existência de um povo francês unido por origens, costumes, cultura, lembranças, interesses e aspirações comuns. Concebida, assim, a expressão “Estado Nacional”, esta levou à criação de outras, como a de “bens nacionais”, utilizada para definir o conjunto de coisas pertencentes ao Estado, a exemplo dos bens da Coroa, anteriormente citados e a de “patrimônio nacional”, que adveio de inspirações no Direito Romano, em uma combinação que se utilizou tanto do Direito das Coisas19, como do Direito das Sucessões20, conforme observado por Camargo (2005, p. 21): “do termo vigente de sucessão das estirpes, os descendentes são herdeiros dos bens do pai, cujos bens materiais constituem o patrimônio. E, (...) ao patrimônio herdado do pai, acrescentou-se o qualificativo de nacional. Ou seja, os cidadãos, com a Revolução Francesa, eram livres e iguais perante a lei (Liberdade/Igualdade) e, nascidos no país, são todos irmãos (Fraternidade) e herdeiros do mesmo pai, o Estado Nacional”. Mais importante do que a expressão em si, ou do que seu significado de herança deixada pelo “Estado pai” à “nação filha”, a idéia de constituição de um patrimônio nacional trouxe significativas mudanças de ordem prática e conceitual para aquela e para as futuras gerações. No que se refere às questões de ordem prática, partindo-se do princípio que o “Estado pai” deveria deixar bens materiais à “nação filha”, tornou-se necessário não apenas constituir bens, mas também conservá-los. Rompendo-se, portanto, com a 19 Inspirado nas Institutas de Justiniano, caracteriza-se como a parte do Direito Privado que trata das relações jurídicas entre pessoas e seus bens. 20 Também inspirado nas Institutas de Justiniano. É a parte do Direito Privado que disciplina as relações jurídicas de uma pessoa depois de sua morte, regulamentando a passagem de seus bens e direitos para seus sucessores. 31 despreocupação protecionista observada desde a Antigüidade, por intermédio de Filo, surgem na França do final do século XVIII as primeiras iniciativas oficiais de proteção ao patrimônio, destacando-se, neste contexto, a figura do padre francês Henri Grégoire, cujos “relatórios que encaminhava para a Convenção Nacional eram verdadeiras peças de campanha para a preservação dos bens patrimoniais, sejam as antiguidades romanas em solo francês, as medievais e até aqueles bens, contemporâneos dele” (Camargo, 2005, p. 20). Ressalta-se que tais iniciativas, caracterizadas principalmente pela criação de leis que proibiam a destruição do patrimônio, ou sua evasão para o exterior, abarcaram apenas os bens considerados culturais, sem qualquer referência aos bens naturais, posto que o que se pretendia era utilizar o patrimônio como um conduto de nacionalismo, onde os bens protegidos “deveriam exprimir e testemunhar o ‘gênio do povo francês’ através do tempo. Seriam a materialização da identidade nacional e, por meio deles, os cidadãos se reconheceriam como franceses” (Camargo, 2005, p. 21). Frente à exposição de Camargo, não se pode deixar de observar que as ações de proteção ao patrimônio nacional francês se desenvolveram de forma tendenciosa, comportando, já em sua origem, uma preocupação muito mais orientada para a consecução de interesses políticos, do quepara a conservação patrimonial em si. Não fosse o patrimônio nacional entendido predominantemente como “uma construção de extrema importância política”, como ressaltado por Rodrigues (2003, p. 16), talvez não houvesse a necessidade de fazer desaparecer monumentos que simbolizassem ideologias políticas diferentes. Desta forma, edificações como a Bastilha, mesmo sendo consideradas “símbolo da arbitrariedade do poder real e daquele Estado monárquico (...) que se queria combater” (Camargo, 2005, p. 12-13), talvez ainda restassem de pé. Não se pode, contudo, tirar por completo o mérito das iniciativas de 32 conservação realizadas à época, nem deixar de entendê-las como um importante passo no sentido de preocupação com a continuidade existencial de bens culturais. Quanto às mudanças de ordem conceitual, o estabelecimento de um patrimônio tido como nacional possibilitou uma revisão do significado do termo “patrimônio”, de modo a propiciar seu entendimento sob uma ótica bem mais abrangente do que aquela oferecida pelas Institutas do Império Romano. Havia-se, afinal, aberto uma brecha que possibilitava a verificação de um caso concreto em que um conjunto de bens considerados “res publicae” era chamado e tratado como “patrimônio”. Sob essa nova ótica, portanto, passaram a ser considerados como patrimônio os bens caracterizados como públicos, que por sua natureza não poderiam ser nem objeto de relações comerciais, nem objeto de apropriação privada e, como tais, tidos como “res extra patrimonium” no Direito Romano. Desta forma, a constituição do patrimônio nacional francês acabou por alterar a ordem das “res in” e “extra patrimonium” oferecida pelo Império Romano, permitindo uma releitura que excluía as “res publicae” e, por analogia, as “res universitatis” das “res extra patrimonium” para entendê-las como “res in patrimonium” e estas, por sua vez, como um conjunto de bens que não precisava, necessariamente, estar no comércio, ou constituir-se como propriedade privada. Ampliava-se, assim, a noção de patrimônio e, ao mesmo tempo, transpunha-se mais uma etapa no caminho rumo à constituição da noção de Patrimônio da Humanidade. 33 1.4. AS CONTRIBUIÇÕES DO DIREITO INTERNACIONAL Se por um lado o transcurso do tempo contribuiu para a difusão da expressão “patrimônio nacional” e sua adoção, em termos conceituais e práticos, por uma série de outros países além da França, por outro lado também testemunhou certa ineficácia das ações nacionais para congregá-los e mantê-los. Não que esta ineficácia se traduzisse em culpa exclusiva de órgãos públicos, ou demais entidades responsáveis por procedimentos como os de inventário e salvaguarda dos bens que compunham o patrimônio nacional de seu Estado, ou ainda de ações danosas provocadas por membros da população: deve-se lembrar que circunstâncias prejudiciais à salvaguarda de bens nacionais não são criadas exclusivamente dentro das fronteiras do país ao qual pertencem estes bens. Assim, em um mundo constantemente marcado por revoluções, conflitos armados, invasões de território, entre outras situações bélicas, proteger o patrimônio nacional nem sempre é tarefa fácil. Em uma análise mais objetiva, entende-se que na ocorrência de uma guerra, proteger o patrimônio nacional de um país é atitude que interessa aos nacionais deste país e não aos invasores, para os quais os bens componentes daquele patrimônio constituem não mais do que objetos propícios à destruição, como forma de imposição frente ao inimigo, ou ao saqueamento, pelo valor que possam possuir, ou como meros prêmios pela empreitada. Assim, situações como as de guerra entre países contribuíram para evidenciar o fato de que a manutenção de interesses nacionais não dependia exclusivamente de ações ou vontades nacionais, intensificando, portanto, uma consciência de interdependência entre os Estados em diversos aspectos, como os que se referem à garantia à vida e ao bem-estar de suas populações, à manutenção de fronteiras, à salvaguarda de bens etc. Desta forma, a observação de inutilidade de 34 tratamento das questões referentes a interesses nacionais apenas em âmbito nacional levou tais assuntos a serem discutidos em uma esfera supranacional21, fazendo emergir, entre outros temas, a problemática da proteção ao patrimônio nacional no campo das relações internacionais22, em especial nos domínios do Direito Internacional. Cabe lembrar que, assim como na época da Revolução Francesa, ainda no final do século XIX e início do século XX o patrimônio nacional de cada país era compreendido, predominantemente, como o conjunto dos bens públicos que se caracterizassem por constituir “as criações de um povo no seu passado e algumas no seu presente, destinando-se à satisfação das necessidades materiais e espirituais desse povo” (Silva, 2003, p. 21), no que se referia à representação de seu passado histórico e cultural, para figurar como elementos de “orientação e testemunho de experiências vividas, permitindo aos homens lembrar e ampliar o sentimento de pertencer a um mesmo espaço, de partilhar uma mesma cultura e desenvolver a percepção de um conjunto de elementos comuns, que fornecem o sentido de grupo e compõem a identidade coletiva” (Rodrigues, 2003, p. 17) que, no caso, nada mais é do que a identidade nacional. Em outras palavras, o patrimônio nacional continuava a ser entendido como o conjunto de bens materiais predominantemente alusivos às características histórico-culturais de uma nação. Neste contexto, são elaboradas as Convenções de Haia de 1899 e de 1907. Apresentadas por Silva (2003) como o marco inicial do quadro evolutivo da 21 Pretende-se caracterizar aqui uma esfera de organização, regulamentação e decisão superior a de um único Estado, da qual participam vários Estados, a exemplo das organizações internacionais. 22 Cabe considerar que as relações internacionais “podem estabelecer-se fundamentalmente de duas formas: pelo uso de armas, no caso das guerras, ou então por meio da diplomacia” (Vieira, Widmer & Melo, 2005, p. 100). Verifica-se, assim, uma situação em que relações internacionais em tempos de guerra, caracterizadas, portanto, como conflitos de interesse, dão margem ao surgimento, em tempos de paz, de outras ações na esfera das relações internacionais, como a criação de regras de Direito Internacional para a tentativa de solução de tais conflitos em caso de situações semelhantes no futuro. 35 proteção internacional dos bens culturais imóveis, são consideradas também como as primeiras normas a disciplinar a proteção de bens pertencentes a patrimônios nacionais em âmbito internacional (estes entendidos como bens histórico-culturais), bem como as primeiras normas internacionais codificadoras dos costumes de guerra. Na verdade, as Convenções de Haia de 1899 e 1907 tinham como principal objetivo tentar diminuir as conseqüências nefastas das guerras para as populações dos países beligerantes, mediante o estabelecimento de restrições ao emprego de certas armas e formas de ataque a pessoas e bens. Ainda assim, contribuíram de forma particular para a proteção dos bens nacionais culturais durante os conflitos. Neste sentido, a Convenção de 1899 apresentava disposições estabelecendo que, no caso de bombardeios, deveriam ser tomadas todas as medidas possíveis para poupar edifícios consagrados às artes, aos cultos, às ciências, aos monumentos históricos, bem como aos locais de reunião de enfermos e feridos, salvo se fossem empregados, ao mesmo tempo, para fins militares. Já a Convenção de 1907 trouxe elementos mais precisos, estabelecendo que os bens a serem protegidos, predominantemente os hospitais, as propriedades civis e os prédios e monumentos históricos, desde que não utilizados para fins militares,
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