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Pavlov e o Reflexo Condicionado

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86 • C I Ê N C I A H O J E • vo l . 3 3 • nº 19 5
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HÁ 100 ANOS ERA COMPROVADA A INFLUÊNCIA DO AMBIENTE NO COMPORTAMENTO
Pavlov e o reflexo
condicionado
motivação fundamental de quase toda a pes-
quisa fisiológica de Pavlov era estender o méto-
do experimental para além da velha ‘mente’, enten-
dida como sede imaterial dos processos cognitivos
e emocionais. A maior parte de seus escritos de psi-
cologia e psicofisiologia visa demonstrar que as
chamadas ‘funções mentais’ eram a mera ativida-
de nervosa superior. E que a enorme variedade de
comportamentos não automáticos, inclusive os ver-
bais, é regida fisiologicamente por um ‘segundo sis-
tema de sinais’.
A obra de Pavlov, por isso, constitui uma supera-
ção de dois dualismos antigos: o que separava corpo
e mente (de inspiração cartesiana) e o que separava
organismo e ambiente. No segundo caso, Pavlov ins-
pirava-se na doutrina do célebre fisiologista russo
Ivan M. Séchenov (1829-1905) de que uma verda-
deira fisiologia não poderia isolar a ação do ambien-
te externo ou prescindir de controlá-lo.
Para Pavlov, uma ‘verdadeira fisiologia’, por res-
peito à concepção do sistema mente-corpo como uma
unidade (de acordo com a teoria monista), deveria
estudar o organismo íntegro, em pleno uso de todas
as suas funções cognitivas e afetivas, e deveria mantê-
lo plenamente sensível às contingências ambientais,
visando a uma fisiologia mais biológica. A digestão,
por exemplo, deveria ser observada in vivo em um
organismo exposto ao seu ambiente natural. Em vez
de examinar cortes cirúrgicos, observar longamente
Além dos estudos sobre o funcionamento
do sistema digestivo, que lhe deram
o prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia
em 1904, o fisiologista russo
Ivan Petrovich Pavlov (1849-1936)
também investigou o sistema
circulatório e o sistema nervoso.
No entanto, hoje o cientista é mais citado
– entre a população leiga –
pela descoberta do reflexo
condicionado, ou seja, a alteração
de uma reação fisiológica
(no caso, a salivação de um cão)
por estímulos ambientais.
Esse achado revelou o controle
do sistema nervoso sobre a salivação
(e outras reações orgânicas)
e abriu a perspectiva de uma análise
experimental do comportamento,
com grande repercussão
no desenvolvimento da psicologia.
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ju lho de 2003 • C I Ê N C I A H O J E • 87
MEMÓRIAMEMÓRIA
um animal íntegro exposto aos sons, imagens e odo-
res do ambiente, nas diferentes fases do processo
digestivo. Era o seu ‘método crônico’, por oposição
ao artificialismo do método agudo, que levara a fi-
siologia da digestão a impasses e erros.
Sua escolha pelo método crônico resultou na ‘con-
taminação’ ambiental sobre o processo fisiológico: a
associação do som de uma campainha à apresenta-
ção de comida a um cão fez com que este passasse a
salivar sempre que ouvia a campainha, mesmo que
a comida não fosse apresentada. Ou seja, as secre-
ções salivares passaram a responder a estímulos es-
tranhos à estrutura nervosa responsável pela respos-
ta reflexa original – diferentes do seu estímulo na-
tural, fisiológico.
A experiência mostrou que as reações reflexas
podiam resultar de sons ou imagens do ambiente,
na ausência de qualquer excitante natural. Era uma
revolução para a fisiologia e para quem quisesse
analisar o comportamento. Pois, de um lado, desco-
bria-se que até funções orgânicas automáticas pode-
riam obedecer a variações do meio circundante, an-
teriormente tidas como neutras; de outro lado, reve-
lava-se que os estímulos ambientais tinham, além
de propriedades excitantes, funções sinalizadoras.
Abria-se, assim, a possibilidade de uma análise
experimental do comportamento. Uma análise cuja
unidade última era o reflexo e cuja operação bási-
ca era o condicionamento: a substituição dos estí-
mulos originais, fisiológicos, por outros, antes neu-
tros. Um processo de aprendizagem, de alteração do
comportamento.
O método crônico mostrava, mais ainda, como
a atividade mental dependia de combinações de es-
tímulos, tanto para a eficiência do comportamen-
to normal quanto para a produção de comporta-
mentos anormais. Tanto que a investigação dos li-
mites de discriminação de certos estímulos (vi-
suais, por exemplo), além de mapear as possibili-
dades de percepção do organismo, mostrava que a
ambigüidade discriminativa desorganizava o com-
portamento: era a ‘neurose experimental’.
Era o caminho para o sonho de uma psicopa-
tologia experimental, a
possibilidade de deter-
minar os correlatos neu-
rofisiológicos das doen-
ças mentais. Isso resultaria, dada a natureza cientí-
fica dessa determinação, na intervenção segura, em
nível neural, sobre o processo mórbido. Esse sonho
se desfez, depois, diante da evidência de processos
subjetivos cuja ‘estimulação’ precisa não podia ser
determinada, impedindo, portanto, a substituição
de estímulos (o instrumento metodológico funda-
mental do sistema pavloviano) e o controle dos si-
nais envolvidos.
A dedução promissora de Pavlov de que suas des-
cobertas levariam a uma psicopatologia científica
(e experimental) refletiam sua permanente preocu-
pação com a integração teórica das observações, mes-
mo que disparatadas. Uma preocupação também im-
posta pelo método adotado por ele. O sistema de re-
lações organismo-ambiente, objeto de sua pesquisa,
era um sistema aberto: o organismo, íntegro, perma-
necia sensível a um meio no qual se poderia alterar
livremente os estímulos, suas propriedades e suas
combinações.
Em tal situação, as relações encontradas, mesmo
que inesperadas ou aberrantes, tinham a mesma im-
portância que as relações buscadas pelo pesquisa-
dor. Então, a relação inesperada ou anômala era in-
tegrada no sistema explicativo ou este devia ser re-
feito. A integração teórica do dado novo seria a
contraprova do sistema teórico e, em conseqüência,
do método que o sustentava.
Dessa postura científica resultam duas influên-
cias marcantes de Pavlov e sua escola: a vinculação
entre pesquisa experimental e aplicação (clínica,
terapêutica ou pedagógica) e a associação entre a
análise do comportamento normal e a psicopatologia.
Cem anos após a apresentação de A psicologia e
a psicopatologia experimentais nos animais no
14º Congresso Internacional de Medicina, em Ma-
dri (Espanha), a obra de Pavlov continua a produzir
frutos. Os conceitos e operações relativas ao condi-
cionamento reflexo estão incorporados definitiva-
mente à pesquisa cotidiana em neurologia, neuro-
fisiologia e psicologia. A herança pavloviana foi
particularmente fecunda nessa última. Seja na teo-
ria da emoção, seja na terapia da
ansiedade, e ainda nos proces-
sos de controle voluntário de
respostas viscerais, na teoria
da aprendizagem, na etio-
logia de distúrbios psicosso-
máticos, na teoria da neurose
ou nas técnicas publicitárias.
Isaías Pessotti
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto,
Universidade de São Paulo
(professor titular aposentado)
Apresentar comida
sempre associada
ao som de uma sineta
faz com que o cão passe
a salivar ao ouvir
a sineta, mesmo
sem receber comida

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