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0 CENTRO UNIVERSITÁRIO FAVENI GEOGRAFIA URBANA GUARULHOS – SP 1 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................ 3 2 ABORDAGENS TEÓRICO-METODOLÓGICAS DA GEOGRAFIA URBANA. 4 3 A EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO URBANO ....................... 7 4 TEORIAS ESPACIAIS NA ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO URBANO .......... 10 5 A DEFINIÇÃO DO TERMO “CIDADE” .......................................................... 14 5.1 Classificação das cidades ........................................................................... 16 5.2 Urbanização versus crescimento urbano .................................................... 18 6 OS DIVERSOS CONCEITOS ACERCA DE ORGANIZAÇÃO E VIDA URBANA...............................................................................................................19 6.1 Da conurbação urbana à “cidade-dormitório” ............................................. 20 6.2 Da metrópole à megalópole ........................................................................ 21 6.3 Quantidade versus qualidade: megacidades e cidades globais ................. 22 6.4 Rede e hierarquia urbanas ......................................................................... 23 7 AS CONTRADIÇÕES NO PROCESSO DA URBANIZAÇÃO BRASILEIRA . 24 8 AS CONTRADIÇÕES DO INTENSO E DESORDENADO PROCESSO DE URBANIZAÇÃO .................................................................................................. 27 9 URBANIZAÇÃO CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA .................................... 29 9.1 As cidades médias ...................................................................................... 32 10 SOCIEDADE, INDUSTRIALIZAÇÃO E REGIONALIZAÇÃO DO BRASIL .... 33 10.1 Natureza técnica e econômica das indústrias ............................................. 37 10.1.1 Indústrias extrativistas e de beneficiamento ........................................... 37 10.1.2 Indústrias de transformação ................................................................... 38 10.1.3 Indústrias de bens de uso durável .......................................................... 39 10.2 Distribuição espacial das indústrias no Brasil ............................................. 42 2 11 CONCEITOS E CATEGORIAS DA GEOGRAFIA URBANA ......................... 46 11.1 Sítios Urbanos ............................................................................................ 46 11.1.1 O que é um sítio? ................................................................................... 46 11.2 Morfologia urbana ....................................................................................... 47 11.2.1 Estratégias para análise de morfologia urbana ...................................... 50 11.2.2 Reflexos da morfologia urbana na paisagem ......................................... 52 11.3 Planejamento Urbano ................................................................................. 55 11.4 Reforma Urbanística ................................................................................... 56 11.5 Centro e Centralidade ................................................................................. 57 11.6 Rede Urbana .............................................................................................. 58 11.6.1 Estrutura das redes urbanas .................................................................. 59 11.7 Estrutura interna das cidades ..................................................................... 60 12 RELAÇÕES ECONÔMICAS E SEU EFEITO NO ESPAÇO URBANO ......... 60 12.1 Organização da economia das cidades ...................................................... 63 13 O TRABALHO DE CAMPO NO ESPAÇO URBANO .................................... 67 14 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................. 69 14.1 Bibliografia Básica ...................................................................................... 69 14.2 Bibliografia Complementar .......................................................................... 69 3 1 INTRODUÇÃO Prezado aluno! O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante ao da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um aluno se levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma pergunta, para que seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimento que serão respondidas em tempo hábil. Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora que lhe convier para isso. A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser seguida e prazos definidos para as atividades. Bons estudos! 4 2 ABORDAGENS TEÓRICO-METODOLÓGICAS DA GEOGRAFIA URBANA Para compreender as principais abordagens da geografia urbana, é importante saber que esse é um ramo da geografia que estuda e busca entender as dinâmicas do chamado espaço urbano e identificar seus agentes e os processos que constituem esse âmbito da sociedade. Ressaltamos que a geografia urbana é uma área interdisciplinar, abrangendo ramos do conhecimento como sociologia, economia, política, arquitetura, urbanismo e saúde pública. Nesse contexto, o espaço urbano é o arranjo das variadas atividades humanas sobrepostas espacialmente, o que resulta na composição e constituição das cidades e suas funções, assim como na organização socioespacial das infraestruturas, das práticas humanas e das condições do meio ambiente. Há, portanto, uma diversidade de entendimentos sobre a urbanização e, no âmbito cientifico, sua compreensão e aplicação só é possível sob abordagens teórico- metodológicas. Ao adotar a geografia urbana sob uma visão demográfica, Laborde (1994) aborda a dinâmica da urbanização pelo aumento da população urbana no conjunto total da população e pelas causas e consequências desse processo. Outra maneira de abordar teoricamente a geografia urbana é definindo o que vem a ser uma cidade, como destaca Beaujeu-Garnier (1980), que entende a urbanização como um movimento de desenvolvimento citadino, simultaneamente em número de habitantes e em infraestruturas e tamanho de sua área, transformando também seus arredores. Para Johnston (1994), a urbanização é um processo estrutural definido por uma população acima de certo tamanho ou densidade demográfica, com funções econômicas características na divisão espacial do trabalho. Alguns autores partem da ideia de uma economia política da urbanização, isto é, um desenvolvimento da urbanização simultâneo às mudanças tecnológicas e à globalização, mais potencializadas no fim do século XX e nas primeiras décadas do século XXI. Tais transformações incidem no âmbito financeiro, principalmente nas grandes cidades e metrópoles, que ganham crescente importância e se ligam 5 cada vez mais à economia, às finanças e à política global, com a ação dos Estados e das grandes corporações. Para Roberts (2014), a urbanização se dá pela concentração populacional em diferentes contextos sociais, com implicações nas relações sociais. Já Castells (2000) parte da ideia de formato espacial da organização social em constante mutação, expressa pelas modificações no meio ambiente edificado. Cabe ressaltar que a urbanização é um processo que deve ser entendido como movimentoespaço-temporal. Segundo Sposito (1992), é importante buscar a unicidade tempo/espaço, considerando, por exemplo, Pierre George (1969; 1990), que destaca a unidade entre geografia e história. O geógrafo Milton Santos (1978a; 1978b; 1985; 1996), bem como Giddens (1991), Harvey (1992), Abreu (1998), Vasconcelos (1999) e Haesbaert (2002) também enfatizam a necessidade de se articular a dimensão temporal à dimensão espacial da realidade. Para entender o processo complexo de urbanização, as abordagens teóricas metodológicas devem analisar as múltiplas conexões entre o tempo e o espaço ao ponderar sucessão de eventos, sua sincronia e o descompasso dos movimentos. Assim, é preciso considerar as relações entre diferentes temporalidades, entre as distintas escalas e a urbanização como um processo de longa duração, que começa com o surgimento das primeiras cidades, segundo diferentes modos de produção e pelas diversas formas que pode assumir. Há, assim, na geografia urbana vertentes que analisam a urbanização como resultado de uma divisão social do trabalho entre o campo e a cidade, já que contém e também expressa a ideia de processo, partindo da análise da origem e evolução histórica das cidades e passando pelo desenvolvimento das forças produtivas e pelas transformações de ordem política, social, cultural e estética, bem como pelas revoluções e contra revoluções ideológicas e do cotidiano (SPOSITO, 1992). Outro termo importante nesse contexto das abordagens teórico- metodológicos da geografia urbana é a cidade. Para Remy e Voyé (1992), trata-se de um conceito que possibilita captar uma realidade e diversas funções sociais, havendo uma variedade de formas de assentamento que recebem a denominação de cidade, devido a sua situação, tamanho, arquitetura, organização e/ou papel na 6 região e país em que está inserida. Para Lé vy (1994), esse conceito é de natureza espacial, com elementos que interagem, como as dimensões econômica, sociológica e política, material e cultural, coletiva e individual, sendo a cidade o espaço da sociedade em ação. Ao pesquisar os assentamentos humanos em diversas sociedades e épocas, percebem-se realidades históricas bem diferentes, considerando que os primeiros assentamentos concentrados remontam a 3.000 a.C. na Mesopotâmia e que, passados 5.000 anos, a questão urbana segue no centro das inquietudes contemporâneas (RONCAYOLO, 1990). O desenvolvimento das formas das cidades no tempo e no espaço, e os termos usados para designar essas aglomerações humanas, indica as mudanças nos papéis exercidos pelas cidades. Ao analisar as nomenclaturas recebidas por elas, pode-se notar mudanças dos papéis urbanos. Para Le Goff (1998, p. 12) o termo ville é recente e proveniente da expressão villa, que aludia ao “[...] centro de um grande domínio sobre as terras ao redor”. A adaptação do termo villa para ville sinaliza a passagem do poder político e econômico do campo para a cidade. Segundo Le Goff (1998), até os séculos XI e XII, utilizava-se os termos em latim civitas, cité ou urbs, que denominavam os papéis políticos exercidos pelas cidades desde a Antiguidade como centros da civilização. Dessa forma, segundo as várias abordagens teórico-metodológicas, a urbanização é um processo e movimento de transformação, em que a cidade deve ser compreendida pelo seu espaço e pelo tempo, bem como pela existência do espaço rural e urbano, o que resulta em transformações na divisão social e territorial do trabalho. Assim, a cidade pode ser entendida como a expressão de cada período num contínuo movimento (SPOSITO, 1992). Para Santos (1981, p. 118), é importante considerar a urbanização como uma “[...] dimensão do processo de humanização e desumanização da sociedade”, dentro da esfera de uma economia política citadina, que deve associar os efeitos da divisão do trabalho sobre as condições locais do mercado em todos seus aspectos para compreender o espaço construí do e suas características como dados sociais e econômicos numa realidade em transformação. 7 3 A EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO URBANO Os estudos sobre o desenvolvimento das cidades pela geografia urbana começam a se intensificar a partir do século XIX, com reflexões sobre como esse processo condiciona mudanças decisivas na sociedade. A partir daí, também passa a ser considerada a expansão da rede urbana, determinando uma evolução no pensamento geográfico sobre o tema. As análises partem da produção, da circulação e do consumo que se realizam na cidade por meio da rede urbana e da expansão da rede de comunicações a ela vinculada, num contexto em que as distantes regiões podem ser articuladas, estabelecendo-se, com o passar do tempo, uma economia mundial estruturada, tendo como base as cidades. (Slack, 2018) O pensamento geográfico, assim, se desenvolve considerando análises dos processos sociais ligados à criação de centros e à transformação da rede urbana, principalmente no final do século XX. A rede urbana é entendida como o conjunto de centros urbanos funcionalmente articulados entre si e são a expressão de como o pensamento geográfico urbano tem se desenvolvido ao longo do tempo. Primeiramente, um ponto importante da evolução desse pensamento é a classificação das cidades segundo suas funções e dimensões, segundo as relações entre seu tamanho demográfico e seu desenvolvimento e segundo sua hierarquia urbana e as relações entre cidade e região. A hierarquia urbana nada mais é do que o modo como as cidades de uma região ou país podem se organizar numa escala de subordinação, seja por seu tamanho ou por suas funções e importância para influenciar aquelas que estão ao seu redor. Esses temas podem convergir de diferentes modos. 8 Estudos sobre a distinção de cidades segundo suas funções, por exemplo, partem das ideias do australiano Marcel Aurousseau, que na década de 1920 propôs uma classificação de cidades em oito tipos, segundo sua função dominante: cidades de administração, de defesa, de atividades culturais, de produção, de coleta, transferência, distribuição e recreação. Na década de 1940, o americano Chauncy Harris conduziu um estudo sobre as cidades dos Estados Unidos utilizando precisão estatística na categorização das cidades em dez tipos, em que cada cidade podia ser definida por combinações de duas ou três funções (VASCONCELOS, 2012). Além disso, vários autores tipificaram as atividades da cidade de acordo com a divisão territorial do trabalho no âmbito da rede urbana, cujas categorias podem variar de acordo com o tempo, dadas as transformações ininterruptas das cidades. A partir das classificações funcionais de cidades, as pesquisas se atêm aos sistemas urbanos, considerando sistematicamente as características demográficas e sociais entre cidades com distintas especializações funcionais. Nesse sentido, são considerados o ritmo de crescimento da população, sua estrutura etária, nível de escolaridade, proporção de homens e mulheres, taxas de desemprego e renda per capita, considerando também a evolução das pesquisas estatísticas e matemáticas sobre a demografia (VASCONCELOS, 2012). Os autores Moser e Scott (1961) iniciaram a sistematização das dimensões básicas das variáveis dos sistemas urbanos ao empregar técnicas estatísticas, como análise fatorial, para entender variáveis econômicas, demográficas e sociais, chegando à conclusão de que cada cidade apresenta um escore que representa sua posição ao longo dessa linha de variação em comparação com as demais cidades. Dadas essas evoluções, foram realizados inúmeros estudos sobre cidades de vários países, como Estados Unidos, Canadá, Índia e a antiga União Soviética. O objetivo era descobrir dimensões básicas de variação de um determinado sistema urbano, se havia uma certa estabilidade ao longo de determinado período e quais tipos de variação semanifestavam. Entre as distintas dimensões básicas estavam tamanho, especialização funcional, particularidades sociais e tipo de crescimento demográfico. 9 Para selecionar as variáveis, um dos principais referenciais teóricos foi o modelo centro–periferia de John Friedmann, cuja concepção é da cidade como centro propagador do desenvolvimento. Outro referencial que demonstra a evolução do pensamento da geografia para entender a urbanização é de Fredrich e Davidovich, que se baseia em três dimensões de variação do sistema urbano, como a estrutura socioeconômica, os tipos de ritmos de crescimento e as formas de concentração espacial urbana. Os estudos sobre hierarquia urbana colocaram em evidência simultaneamente uma série de regularidades empíricas e de características diferenciadoras das redes urbanas. A existência de uma hierarquia urbana em qualquer organização socioespacial estruturada por mecanismos de mercado é a principal regularidade verificada. Porém, as diversas formas que essa hierarquia assume representam a característica mais importante e diferenciadora encontrada. (Santos, 2009) No Brasil, os estudos sobre a hierarquia das cidades são numerosos e tradicionais, desenvolvidos principalmente pelo geógrafo Roberto Lobato Corrêa (1989). Os estudos de Pedro Pinchas Geiger sobre a evolução da rede urbana nacional também influenciaram os estudos realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística relativos à hierarquia e à área de influência das cidades brasileiras. Esses estudos induziram o desenvolvimento de um importante aparato operacional que enriqueceu os estudos sobre redes urbanas e ciência geográfica. Outro autor importante no desenvolvimento do pensamento geográfico urbano é o francês Pierre George, que, ao verificar a rede urbana, buscou entender o conjunto das relações cidade–região, indicando as relações de atração da população rural pela cidade, a renda fundiária urbana, a comercialização da produção agrícola na cidade, os investimentos e a geração de trabalho pela cidade e a distribuição de bens e de serviços em sua área. Os estudos sob essa abordagem destacam as mudanças ocorridas na organização socioespacial da cidade e da região estudadas. Os resultados obtidos indicam que a cidade é um reflexo da região onde está inserida e um resultado das ações da burguesia urbana. As produções de pesquisas nesse âmbito têm 10 influência de vários geógrafos, sociólogos, filósofos, economistas, arquitetos e urbanistas, realçando a interdisciplinaridade inerente à ciência geográfica. Podemos destacar o geógrafo Milton Santos, que participou por 30 anos como precursor e renovador dessa ciência, centrado em princípios do materialismo histórico e dialético como método de interpretação espacial. Ele propôs um movimento de renovação da geografia entre os anos 1960 e 1980, por meio de elaborações sobre a relação tempo–espaço na dialética sócio espacial. Na França, onde estudou e manteve ligações acadêmicas, Milton Santos sofreu grande influência dos pesquisadores Pierre Deffontaines, Pierre George, Yves Lacoste, Henri Lefebvre, David Harvey, Edward Soja, Manuel Castells, Francesco Indovina, Paul Claval e Massimo Quaini. Nos anos 1980 e 1990, ocorreu uma reelaboração da geografia humana, centrada no conceito de espaço geográfico como grande categoria de explicação nessa ciência, com participação de Milton Santos, Manuel Correia de Andrade, Ruy Moreira, Ariovaldo Umbelino de Oliveira, Carlos Walter Porto-Gonçalves, Antônio Carlos Robert Moraes, Armando Corrêa da Silva, Armen Mamigonian, Roberto Lobato Corrêa, entre outros. Santos (2009), por suas relações acadêmicas e científicas com pesquisadores brasileiros e estrangeiros e pelas inúmeras publicações, orientações de pesquisa, consultorias, conferências, cursos, palestras e também atuação política, tornou-se um representante da geografia brasileira. Ele atuou também como professor, pesquisador e pensador de temas e processos do mundo recente, principalmente na evolução do pensamento sobre urbanização, cidades e globalização, com o objetivo de construir uma teoria social para compreender o mundo contemporâneo e contribuir na sua transformação. 4 TEORIAS ESPACIAIS NA ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO URBANO Para compreender a organização e arranjo espacial das cidades e o desenvolvimento acelerado da urbanização, foram desenvolvidas com mais intensidade no fim do século XX teorias para dar conta das análises necessárias desse período em que o processo de globalização se acentuava. Nesse contexto, 11 as abordagens teórico-metodológicas baseadas no marxismo se sistematizavam a partir da década de 1960, para explicar os processos de aumento das desigualdades sociais nas áreas urbanas que se formavam de forma intensa no pós-Segunda Guerra Mundial. Segundo Gottdiener (1993), essas teorias espaciais visavam substituir os arranjos urbanos meramente descritivos por uma síntese que pudesse revelar os processos presentes do espaço urbano e esclarecer as características da distribuição espacial desigual, bem como as crises sociais relacionadas a ela. Tal perspectiva se interessava pelos processos que poderiam desencadear uma maior justiça social, bem como pelas formas das cidades, como suas estruturas “desumanizadoras” resultantes de um planejamento urbano inadequado. Essa análise urbana marxista permite uma noção política e social sobre os eventos urbanos e as configurações da cidade, considerando a produção social e a formação das paisagens em que o ser social, o indivíduo, está posicionado no espaço e no tempo, numa contextualização histórica e também geográfica. As pesquisas sob esse viés têm o objetivo de esclarecer a relação entre a estrutura social e a estrutura espacial, ao considerar as relações entre sociedade e Estado para compreender o processo de produção das formas espaciais nas cidades. Lefebvre (1972) desenvolveu teorias espaciais sob a concepção de produção do espaço embasando-se no conceito de produção proposto por Marx, referente ao desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção. Para Lefebvre, esse conceito se relaciona com a produção de coisas, isto é, produtos, infraestruturas, ideias, ideologias, conhecimento, ilusões e verdades. A unidade desses tipos de produção decorre do fato de que a cidade é a manifestação da produção no sentido amplo. Assim, a cidade materializa o processo de urbanização e sua própria história, em dado período, já que ela é o somatório desses diferentes momentos e, assim, síntese entre o velho e o novo (LEFEBVRE, 1972). Nessa teoria espacial sobre a organização do espaço, o chamado “novo” é entendido como o velho reconstruído, refuncionalizado, revelando-se a cada momento da história pelos processos de transformação social. 12 Ao tratar a cidade sob a ótica dos processos produtivos propostos por Lefebvre, e também como meio pelo qual se realiza a própria produção, distribuição, circulação e consumo individual e coletivo, é imperativo refletir sobre o que são os processos de produção nesse contexto. Santos (1978b, p. 163) destaca que, por intermédio da produção, o ser humano modifica a chamada “[...] natureza primitiva, isto é, a natureza bruta, socializando-a. Assim, o espaço é criado como ‘natureza segunda’, e assim a natureza é transformada e entendida como ‘natureza social’ ou socializada”. Dessa maneira, o ato de produzir é simultaneamente o ato de produzir espaço. Lefebvre (1986) considera que há uma dimensão tríplice desse processo, como, primeiramente, a “prática espacial”, que engloba a produção e reprodução, formando lugares específicos e conjuntos espaciais próprios a cada formação social. Também há as “representações do espaço”, ligadas à s relações de produção, isto é, a ordem imposta ligada aos conhecimentos, aos significados, aoscódigos e à s relações. Por último, Lefebvre (1986) indica os “espaços de representação”, apresentando simbolismos ligados às facetas mais íntimas da vida social, como a arte e espaços de representação. Sob esse enfoque, o autor ressalta que o espaço social unifica os atos sociais dos indivíduos e dos coletivos. Dessa forma, a produção do espaço urbano envolve um conjunto de ações, interesses, valores e ideias que, no plano material e simbólico, movimenta a sociedade e gera e transforma o espaço das cidades (LAFEBVRE, 1986). Atualmente, são incessantes as criações de novas formas de produção territorial do espaço urbano, com novos modos de vida e novas práticas socioespaciais, que determinam esse conjunto de mudanças. No caso do Brasil, ao se urbanizar intensamente, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, produziu-se novas formas de meios urbano, novos modos de viver na cidade e também de consumir. Cabe ressaltar o papel dos interesses econômicos e políticos das corporações e do Estado, que definem os eixos condutores dessa nova produção do espaço urbano e que induzem o movimento da sociedade ao se urbanizar, dada 13 a inserção da maior parte da população no mercado de consumo global e suas consequentes alterações nas práticas socioespaciais. Além disso, notam-se mudanças mais banais, como os modos de se vestir ou falar e se expressar nas ruas, bem como mais profundos, como o modo de se relacionar com o espaço e as maneiras de se apropriar. Ao tornar a sociedade mais urbanizada, o Brasil vivenciou e vivencia a formação do próprio mercado consumidor nacional, principalmente pela origem e influência do complexo cafeeiro, tendo como base territorial o estado de São Paulo, que desenvolveu uma urbanização influenciando outras regiões do país. Assim, as teorias espaciais sobre a organização do espaço urbano devem servir de alicerce para compreender os processos que ocorrem nas cidades brasileiras que, desde a passagem da economia agrária e exportadora para a economia industrial, na primeira metade do século XX, constituem-se em espaços de consumo para a produção capitalista global de bens e serviços, sendo elas mesmas um tipo de mercadoria a ser consumida. Tal processo pode ser exemplificado pelos pedaços da cidade que são comprados e vendidos, como os terrenos e edificações que têm valor diferenciado de acordo com o imaginário social sobre cada região, geralmente orientado pelo marketing e pelas incorporadoras imobiliárias. Assim, para Santos (1994), a cidade constitui o lugar de um processo de valorização seletivo, cuja materialidade é formada pela sobreposição de áreas aptas aos usos mais eficazes de atividades modernas, incluindo o que resta do passado mais remoto, onde se instalam usos menos rentáveis, portadores de técnicas e de capitais menos exigentes. Dessa forma, ainda segundo Santos, cada lugar dentro da cidade tem uma vocação diferente do ponto de vista capitalista. As teorias espaciais sobre a organização espacial urbana permitem entender como são selecionados distintos lugares de cada cidade para realizar diferentes funções e usos, quais ações definem os agentes ou grupos de agentes na estruturação do espaço urbano em cada período tempo e como essas ações são motivadas por processos globais da divisão social e territorial do trabalho. Conforme Santos (1994, p. 118), uma forma operacional de analisar esses processos é partir 14 da economia política da cidade, compreendida como “[...] a forma como a cidade se organiza, em face da produção e como os diversos atores da vida urbana encontram seu lugar, em cada momento, dentro da cidade” 5 A DEFINIÇÃO DO TERMO “CIDADE” Um famoso dicionário brasileiro (principalmente antes de o Brasil ingressar de modo seletivo na era digital) define cidade como um “complexo demográfico formado, social e economicamente, por uma importante concentração populacional não agrícola, dedicada a atividades de caráter mercantil, industrial, financeiro e cultural” (FERREIRA, 1986, p. 403). Embora essa definição seja simples para apresentar um processo de complexidade ímpar na realidade da humanidade, possui alguns conteúdos essenciais para iniciar a reflexão desse fenômeno cuja história se estende desde a Antiguidade clássica até o contexto mundial contemporâneo. Se ao longo de sua extensa jornada passou por altos e baixos, o fenômeno urbano vem configurando as feições mundiais contemporâneas, pois na atualidade, com uma população humana que superou os 7 bilhões de habitantes, a maioria já vive em cidades. As cidades são formadas por assentamentos demográficos de extrema diversidade no que diz respeito às atividades econômicas desenvolvidas em seu interior; assim, sob o ângulo do uso do solo ou das atividades econômicas que a caracterizam, a cidade corresponde a um espaço de produção não agrícola. Trata- se, portanto, de um espaço manufatureiro ou industrial, mas, sobretudo, de uma localidade dedicada ao comércio e à oferta de serviços, ou seja, dedicada, por excelência, ao setor terciário da economia, embora haja cidades de função industrial. Para o sociólogo alemão Max Weber, em artigo publicado em 1921, uma cidade é, primordial e essencialmente, um local de mercado, embora nem todo “local de mercado” seja uma cidade; meticuloso, Weber atenta para localidades nas quais ocorre a prática mercantil fora de um espaço citadino, caso da existência de mercados periódicos em assentamentos como aldeias. No entanto, enfatiza que 15 toda cidade é um local onde ocorre um intercâmbio regular de mercadorias remetendo ao início deste texto, o dicionário Aurélio chama atenção para a questão do mercado. Outro alemão, o geógrafo Walter Christaller, introduziu uma contribuição importante com o conceito de “localidade central”: toda cidade é, na perspectiva geoeconômica (atividades econômicas vistas a partir de uma perspectiva espacial), uma localidade central, de nível maior ou menor de acordo com sua centralidade, fato dado a partir da quantidade de bens e serviços ofertados, os quais permitem atrair compradores apenas das redondezas, de uma região inteira, de todo o país, conforme o nível de sofisticação do bem ou do serviço, ou, ainda (como ocorre em tempos de internacionalização do capital, o que contribuiu para o aparecimento de cidades globais), de outros países. Ademais, devido ao fato de sediar os poderes político e econômico por meio de empresas (estatais ou privadas), a cidade constitui um “centro de gestão do território”. Para além dessas duas definições pioneiras e ainda hoje muito úteis a respeito do entendimento do fenômeno urbano, e para além daquela definição do dicionário, é fundamental colocar em fluxo o fator humano, que, naturalmente, ao longo de toda a história fundamentou a existência da cidade e de toda a gama de contradições que ela sempre carregou. Uma cidade não é apenas um local onde as pessoas trabalham e produzem bens que serão comercializados; é um local onde as pessoas se organizam e interagem com base em interesses e valores dos mais diversos, formando grupos de afinidade e de interesses bem definidos ou moderadamente definidos territorialmente nas identidades culturais e territoriais que seus membros buscam manter e preservar. Ou seja, a cultura desempenha um papel crucial na produção do espaço urbano e na projeção da importância de uma cidade para fora de seus limites físicos. Experiências humanas se materializam especialmente na forma de cidades, que também constituem entes simbólicos. (Borges, 2010) Toda cidade é uma entidade socioespacial de compreensão laboriosa naturalmente, as maiores carregam mais complexidade. Assim, os seres humanos, 16 com seus processos e práticas sociais, são os responsáveis por animar o núcleo urbano e estão envolvidos na dinâmica da produção do espaço urbano.5.1 Classificação das cidades Para ampliar o conhecimento a respeito das cidades, seja para entender esse arranjo espacial fundamental da organização humana, seja para melhor intervir nos seus rumos, ou para empreender seu planejamento, é possível classificar as cidades segundo uma série de aspectos e critérios, entre os quais se destacam os seguintes. Quanto à origem, as cidades podem ser classificadas como espontâneas (também denominadas como naturais), corresponde às cidades que surgem e se expandem sem um plano previamente elaborado de urbanização. Desse modo, é comum que suas ruas sigam trajetos tortuosos ou estreitos, e eventualmente os dois ao mesmo tempo. Por outro lado, é comum que seus bairros mais novos sejam elaborados dentro de critérios e padrões organizativos, mostrando diferenças flagrantes. Essa condição urbana abrange a esmagadora maioria das cidades do mundo, de São Paulo a Nova York, passando por Pequim, Cidade do México, Santos, Poços de Caldas e São João da Boa Vista. Por outro lado, uma cidade pode ser planejada (também chamada de artificial), quando sua construção é precedida por um plano prévio, que lhe garante racionalidade organizativa quanto ao uso dos espaços, com setores bem definidos. Brasília, capital brasileira, e Palmas, no Tocantins, são dois exemplos dessa modalidade urbana. (Lamas, 2010) Quanto ao sítio urbano, há uma diversidade de condicionamentos da cidade. Em uma definição mais ampla e contemporânea, sítio urbano é tratado como o lugar onde a cidade se desenvolve, e pode ser uma planície, um planalto, uma montanha, ou outra formação espacial natural que influencia na dinâmica urbana, desde sua arquitetura até mesmo uma possível função urbana. É possível também classificar as cidades quanto à função urbana, ou seja, os possíveis papéis econômicos que elas possam desempenhar no contexto de 17 uma lógica da divisão do trabalho; nesse sentido, quando sua economia gravita em torno da atividade fabril, há espaços urbanos que ganham contornos de cidade industrial, pois possuem um parque industrial alentado, a ponto de este se tornar sua principal fonte geradora de receita como ocorre com a cidade de São Bernardo do Campo, São Paulo. Há o caso de cidades que possuem a economia baseada em atividade portuária, como Santos (SP), no Brasil, ou Hamburgo, na Alemanha. Há, ainda, cidades que ancoram sua economia no turismo, como a brasileira Porto Seguro, na Bahia, ou Cancun, no México; na atividade religiosa, como Aparecida, em São Paulo, Juazeiro do Norte, no Ceará, ou Meca, situada na Arábia Saudita; ou histórica (Ouro Preto, em Minas Gerais, e Atenas, na Grécia), entre outras tantas funções possíveis. Segundo Slack (2018), toda e qualquer cidade apresenta os mais variados tipos de espaços, de acordo com a atividade predominante. Em áreas residenciais, não se encontra muito mais do que um comércio de bairro; já em espaços com comércio e serviços se observam verdadeiras localidades centrais intraurbanas. Os espaços onde as atividades de comércio e serviços se concentram são de vários tipos: a grande maioria das cidades possui um “centro” muito evidenciado, que geralmente corresponde à localidade onde a urbe foi fundada. Esse “centro” abriga prédios de valor histórico-arquitetônico e, no caso das cidades maiores, tendeu, muitas vezes, a se expandir e evoluir até atingir as dimensões de uma moderna área central de negócios, mais conhecida como Central Business District (CBD). O CBD sozinho não daria conta de atender a todas as demandas da cidade por bens de consumo não rotineiros, assim, à medida que cresce, a cidade vê crescerem as distâncias e a combinação de densidade demográfica, distância em relação ao centro e à renda da população. Isso faz aparecerem importantes subcentros de comércio e de serviços, o que evita que os moradores dos diferentes bairros precisem se deslocar para o CBD sempre que precisam adquirir algo além de pão, leite ou jornal. Os subcentros apresentam um status que reflete as características socioeconômicas da população que reside em seu território; desse modo, há subcentros de status elevado, de status médio e, até mesmo, subcentros populares, na periferia metropolitana. 18 A função urbana e o sítio urbano de uma determinada cidade podem redundar em uma situação urbana, que corresponde à posição da cidade no contexto de uma determinada região, caso de Campina Grande, por exemplo, que corresponde a uma situação de entreposto agreste-sertão no Estado da Paraíba, na região nordestina brasileira. Por fim, vale destacar dois fatos recorrentes no Brasil e no mundo; o primeiro diz respeito a questões comportamentais que levam pessoas a se deslocarem dos grandes centros em direção a cidades menores e, até mesmo, para o campo, em novas experiências de trabalho que se avança espacialmente. Salvo certo exagero, há até uma expressão para identificar o fenômeno, “desmetropolização”. O segundo diz respeito a um evento que tem sido chamado de “rurbanização”, que trata da expansão das atividades terciárias em direção ao espaço rural, palco de atividades econômicas denominadas primárias, e, também, das mudanças no modo de vida e uma nova organização socioespacial do homem do campo. 5.2 Urbanização versus crescimento urbano De tudo que vimos até aqui, você já notou que a urbanização é um processo radical de intervenção humana sobre o espaço geográfico contemporâneo; envolve realidades humanas distintas a partir do momento em que ocorre a transferência de pessoas do campo para a cidade; trata-se de um fenômeno capaz de traduzir a realidade social, econômica e cultural de uma sociedade, e, portanto, não é um fenômeno que ocorre de maneira homogênea no mundo contemporâneo, ainda que a maioria da população mundial resida em cidades. (Santos, 2009) Teoricamente, a urbanização corresponde ao crescimento do meio urbano em relação ao rural e, portanto, à reestruturação espacial das sociedades envolvidas nesse processo, que pode ter ocorrido de modo mais rápido ou mais lento, conforme a localidade em que o fenômeno aconteceu. Portanto, é um processo de modificação de toda uma sociedade e envolve ampla porção territorial e grande contingente demográfico. Desse modo, o conceito de urbanização vai além 19 do crescimento populacional do meio urbano, trata-se do aumento do contingente populacional da cidade sobre o contingente do campo. Para que esse fenômeno ocorra, é necessário haver êxodo rural, ou seja, a transferência massiva da população do campo para as cidades. Assim, urbanização lastreia um processo de modificação de toda uma sociedade, envolvendo ampla porção territorial e grande contingente demográfico. Desse modo, por trás dessa conceituação em princípio bastante simples, em sua lógica numérica, o processo de urbanização envolve realidades sociais, políticas, econômicas e culturais carregadas de grande complexidade, pois ocorre a partir de uma grande travessia, o êxodo rural. 6 OS DIVERSOS CONCEITOS ACERCA DE ORGANIZAÇÃO E VIDA URBANA A urbanização intensificou-se imensamente após a Revolução Industrial, que teve início na Europa (mais especificamente na Inglaterra), em meados do século XVIII, e se expandiu para as áreas periféricas do capitalismo principalmente na segunda metade do século XX. Devido à grande complexidade que o fenômeno urbano atingiu no mundo contemporâneo, houve uma multiplicação de conceitos relativos à organização e à vida urbana. A seguir, são destacados alguns dos mais fundamentais. (Lamas, 2010) 20 6.1 Da conurbação urbana à “cidade-dormitório” Conurbação urbana é a denominação dada à junção territorial de duas ou mais cidades limítrofes até formarem um único núcleo é comum às pessoas se deslocar de um município para outro, dentro de uma área conturbada, e sequer notar seus limites.A conurbação urbana é muito comum em áreas bastante urbanizadas, e provoca diversos problemas relacionados ao uso do solo e das infraestruturas urbanas, como transportes, tratamento e fornecimento de água, serviço de esgoto e de coleta de lixo, entre outros. (Slack, 2018) A fim de que as cidades desse tipo de complexo urbano desenvolvam alternativas satisfatórias para tais problemas, surgem as regiões metropolitanas, que correspondem a um conjunto de municípios próximos e integrados a uma cidade principal (metrópole) pelo aspecto socioeconômico, com serviços públicos de infraestrutura comuns. O caso mais expressivo desse fenômeno no Brasil é a cidade de São Paulo, que está conurbada com quase todos os municípios limítrofes. A migração pendular acaba por tornar-se mais um dos problemas que ocorrem nas áreas conurbadas, onde há forte interdependência entre os municípios, com tendência a mais influência das cidades maiores, que possuem centralidades, também, maiores, sobretudo a metrópole, onde o custo de vida, em geral (e os aluguéis, em específico), são maiores, o que obriga a população de menor renda a residir em cidades menores, cumprindo um exaustivo deslocamento de trabalho cotidiano, considerando que uma das infraestruturas mais precárias é o transporte coletivo. Essa condição urbana provoca, também, o surgimento das chamadas “cidades-dormitórios”, nas quais os residentes não possuem a vivência do cotidiano de seus lugares, pois não vivenciam o seu turno diurno. O Censo de 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta para uma população predominantemente urbana no Brasil, que denota novas formas de migração humana, entre elas a migração de tipo diária (pendular), um típico movimento urbano-urbano local (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2016). 21 6.2 Da metrópole à megalópole Nos municípios onde ocorre a conurbação, surgem as regiões metropolitanas, as quais gravitam em torno de uma metrópole, que corresponde a uma cidade de elevado desenvolvimento urbano que promove intensa centralização ao seu redor, provocando a gravitação de uma extensa porção da rede urbana em torno de si, em razão da concentração de atividades econômicas, como comércio e serviços especializados, e, por conseguinte, do capital e da geração de empregos das mais variadas exigências de qualificação. Note-se que o conjunto de cidades conurbadas à metrópole e que gravitam imediatamente em torno dela constitui uma região metropolitana. (Santos, 2009) A expressão megalópole corresponde a um aglomerado (uma conurbação) de várias regiões metropolitanas, caso de uma faixa que se estende pela costa leste norte-americana, de Boston a Washington DC, e compreende Nova York, Filadélfia e Baltimore, daí sua denominação de Bosnywashou Bos-Wash. Esses tipos de aglomeração são típicos do mundo criado pela Revolução Industrial, mas tornaram- se muito expressivos e evidenciados na segunda metade do século XX. Na porção densamente urbanizada do nordeste dos Estados Unidos, chama atenção outra megalópole, a Chipitts (estende-se de Chicago a Pittsburgh); outra megalópole estadunidense se situa na Califórnia, em uma das regiões mais ricas do mundo, sendo integrada pelas metrópoles de São Francisco, Los Angeles e San Diego. É informalmente conhecida como San-San. Diferente da megalópole Bosnywash, na californiana, o grau de conurbação é bem menor; no entanto, as cidades que a compõem estão fortemente integradas por modernas redes de transportes e telecomunicações. No mundo contemporâneo, ao mesmo tempo em que há uma rede de cidades, estas estão interconectadas globalmente por redes, sendo as cidades globais um bom exemplo disso. Há megalópoles em outras localidades, como na Europa, onde há extensas áreas de conurbação (caso da Londres-Birmingham-Manchester, uma área econômica britânica de grande importância), e no Japão (Tokaido se localiza no sudeste japonês e abrange a capital, Tóquio, além de cidades como Osaka, Kyoto 22 e Kobe, entre outras). No Brasil, há anos vem se formando uma megalópole entre as regiões metropolitanas de São Paulo e do Rio de Janeiro no rodoviário da via Presidente Dutra, situada no Vale do Paraíba. 6.3 Quantidade versus qualidade: megacidades e cidades globais O conceito de “megacidades” corresponde a uma definição quantitativa. Por definição, são áreas urbanas com mais de 10 milhões de habitantes, os pesquisadores da área afirmam que o mundo possui cerca de 60 megacidades, as quais abrigam mais de 600 milhões de pessoas. Atualmente, é nessas áreas que ocorre a maior parte do processo de urbanização global. Já o termo “cidade global” corresponde a um conceito qualitativo, pois essas cidades também conhecidas como metrópoles mundiais possuem influência em âmbito mundial, influenciando, portanto, os centros urbanos do próprio país e de outras áreas do planeta. (Santos, 2009) São algumas características típicas dessas cidades: influência e ativa participação em eventos internacionais, Nova York, por exemplo, sedia a ONU, enquanto Bruxelas é sede da União Europeia (UE) e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN); área central com significativo contingente demográfico (embora não seja o essencial); presença de aeroporto internacional de grande porte, que serve como base para linhas aéreas internacionais; sistema avançado e eficiente de transportes, fato que inclui vias expressas, autoestradas e sistemas de transporte público; sedes de grandes companhias, como conglomerados e empresas transnacionais, que contam com bolsa de valores de projeção mundial com a presença de instituições financeiras de porte, ou seja, um polo financeiro; infraestrutura avançada de telecomunicações e presença de aparato cultural, com museus, centros de referência multicultural, bibliotecas, pinacotecas, teatros, cinemas, entre outros. Seguramente uma das maiores marcas dessas porções territoriais é a cosmologia humana que elas apresentam, pois há um gigante fluxo local e internacional de pessoas, o que lhes confere caráter cosmopolita, com um talhe 23 multicultural e multicomportamental. Nas metrópoles que recebem mais migrantes, são publicados periódicos, até mesmo diários, em variados idiomas. 6.4 Rede e hierarquia urbanas A rede urbana é o conjunto articulado de cidades, desde as pequenas aos grandes centros urbanos, que se integram em escalas mundial, regional e local por meio de fluxos de serviços, mercadorias, capitais, informações e recursos humanos. A rede se configura, portanto, pelo sistema de cidades interligadas umas às outras por meio do sistema de transportes e de comunicações. (Borges, 2010) O professor Milton Santos (1994) nos lembra que vivemos em um meio técnico-científico e informacional, e, nesse contexto, o entendimento das articulações da rede urbana nos leva ao reconhecimento de que está apresenta intensa fluidez devido à integração da rede de cidades em redes informacionais, o que promove a flexibilização das relações intralugares, em vez da rigidez verificada em um passado não muito distante destarte os altos e baixos do desenvolvimento tecnológico no Brasil do último triênio do século XX, algumas instituições empresariais iniciam processo de integração tecnológica nos anos 1970. É comum que essa rede redunde uma estruturação por meio de uma hierarquia, em que as cidades menores costumam ser relativamente dependentes das cidades maiores e economicamente mais desenvolvidas. Nesse caso, quando cidades de maior porte exercem influência nas cidades de menor porte, ocorre uma determinada estrutura econômica e, por conseguinte, uma rede de ligações e de influências entre os centros urbanos, como no caso brasileiro, que possui segundo classificação do IBGE uma divisão em cinco grupos de cidades (metrópoles, capitais regionais, centros sub-regionais,centros de zona e centros locais). 24 7 AS CONTRADIÇÕES NO PROCESSO DA URBANIZAÇÃO BRASILEIRA O conjunto das formações urbanas brasileiras constitui a rede urbana nacional, uma estrutura altamente dinâmica, que foi construída ao longo de um processo histórico com suas idiossincrasias, que lhe conferem características muito particulares, como as gigantescas contradições que marcam a urbanização brasileira. (Slack, 2018) Esse processo remonta aos primórdios da construção do Brasil, ou seja, à própria estruturação da colônia, quando Portugal com sua economia mercantilista e seu regime feudal muito particular organizou o território colonial na forma de “capitanias hereditárias”, com a intenção de tomar posse das terras encontradas em 1500. Essas faixas de terras eram doadas pelo rei a nobres e outras pessoas de confiança, denominados donatários, cuja função era a de colonizar o novo território, ou seja, administrá-lo, protegê-lo e promover o desenvolvimento de atividades econômicas de interesse da metrópole. Em razão das particularidades de uma colonização agroexportadora de fixação rural, as cidades brasileiras se desenvolveram ao longo do litoral e, com isso, não possuíam muita importância política ou econômica, daí serem historicamente marcadas por elevados níveis de pobreza e por graves problemas de salubridade urbana, como no caso dos dejetos lançados nas ruas à espera das chuvas, situação que se agravava mais ainda quando cadáveres destacadamente de escravos eram depositados nos monturos de lixo e torrenciais chuvas tropicais espalhavam a lama pelas ruas, nesse contexto, surgiram as primeiras cidades brasileiras, como Igaraçu, em 1527; Marim (Olinda), em 1530; Recife, em 1531 (todas em Pernambuco); São Vicente e Itanhaém, 1532 (em São Paulo) e Vitória, em 1535 (Espírito Santo). A ocupação do Brasil a partir de 1500 significou, também, o massacre e/ ou a transculturação de nativos que ocupavam seu vasto território e, antes da chegada de Pedro Álvares Cabral, se organizavam sob a forma tribal, com configurações culturais distintas da portuguesa. Nesse contexto, os primeiros embriões das cidades são os aldeamentos indígenas desenvolvidos sobretudo por jesuítas, mas 25 também por franciscanos ou dominicanos, entre outras companhias religiosas. Em geral, esses aldeamentos possuíam uma formatação de “tabuleiro de xadrez”, dentro do qual a Igreja possuía uma posição de destaque. A cidade de São Paulo, capital do Estado homônimo, é um caso expressivo de cidade desenvolvida nesse período. Por outro lado, cidades como Salvador, no Estado da Bahia, Natal, capital do Rio Grande do Norte, Fortaleza, no Ceará, Manaus, a capital do Estado Amazonas, e Belém, no Pará, tiveram origem na função militar. Naturalmente, os clássicos ciclos econômicos são criadores de cidades, caso do “ciclo do ouro”, que gerou suas cidades, atualmente denominadas de “cidades históricas”, as quais retiram boa parte de sua receita do turismo histórico (casos de Ouro Preto, originalmente denominada Vila Rica, em Minas Gerais; e de Ouro Fino, em Goiás). A atividade mineradora, sobretudo nas Minas Gerais, intensificou o deslocamento de tropas em direção à região aurífera, o que exigiu a abertura de caminhos, induzindo, assim, o surgimento de núcleos urbanos, como Pouso Alegre e Pouso Alto, em Minas Gerais. Para chegar a Minas Gerais e Mato Grosso em busca do ouro, os bandeirantes passavam pela região da atual Sorocaba. Há, inclusive, uma significativa lista de casos de cidades associadas à mineração. Porém, no sentido do fenômeno urbano, o mais prodigioso dos ciclos foi o da cafeicultura, que dinamizou intensamente o espaço, como no caso da construção de estradas de ferro, ao longo das quais surgiram cidades, por vezes, aldeias e pousos já instalados tornaram-se cidades. Ainda nesse contexto, a partir de 1850, foi intensificada a vinda de imigrantes (destacadamente para a lavoura do café) que contribuíram para a intensificação e a renovação urbana: a arquitetura foi diversificada com a contribuição de italianos e ingleses, entre outros grupos humanos. Note-se que, nas cidades surgidas no período, a rua principal parte da estação ferroviária e, invariavelmente, há uma praça na qual foi edificada a igreja matriz. (Santos, 2009) Com a dinâmica demográfica, social, econômica e política, desencadeada pela cafeicultura, ocorreu a abolição da escravatura e intensificou-se a circulação humana em direção a alguns centros urbanos, como São Paulo e Rio de Janeiro, 26 onde se avolumou o fenômeno urbano da moradia precária e das populações marginalizadas espacialmente, caso das favelas, das estalagens e cortiços. (Castells, 2000) Assim, em razão do pujante ciclo do café, no final do século XIX, o capitalismo firmou-se no Brasil, provocando uma nova dinâmica econômica que afetou os meios rural e urbano. Houve, a partir daí um crescimento territorial e populacional das cidades, em um processo contínuo que se intensificou substantivamente no pós-Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando foi realizado o desenvolvimento industrial amparado no capital externo. No contexto dessas transformações espaciais verificadas pelo Brasil, ao longo do século, sobretudo após a Segunda Guerra, houve: Intenso êxodo rural, que atingiu a região Sudeste com maior intensidade. Esse fenômeno contribuiu tanto para o processo de urbanização, quanto para o inchaço urbano, uma vez que a dinâmica da economia e o desenvolvimento de infraestruturas essenciais, como educação, saúde, saneamento e lazer, não acompanharam o crescimento populacional. O êxodo rural foi consequência de um conjunto de fatores: principalmente a inserção das relações de produção capitalistas no meio rural, por meio da introdução do trabalho assalariado e das técnicas agrícolas (tratores e máquinas em geral, sementes selecionadas e insumos agrícolas). Destacam-se, ainda, a má qualidade de vida no meio rural, decorrente da precaríssima distribuição de renda, da inexistência ou da precariedade dos serviços oferecidos, da insalubridade das moradias que, em sua maioria, não eram atendidas por água encanada e luz elétrica; a capacidade produtiva reduzida nas pequenas e médias propriedades, que eram devoradas pelos latifúndios, seja para especulação imobiliária ou para produção em escala comercial, pois a produção rural passou a atender cada vez mais à indústria e à exportação; a violência no campo, decorrente da estrutura agrária concentradora ainda hoje existente no Brasil. 27 Intensa atração de contingentes migratórios extra-regionais, entre os quais se destacaram os nordestinos, expulsos de sua região devido às péssimas condições de vida. Esse fato, em conjunto com o êxodo rural e a migração advinda das pequenas localidades em direção às grandes cidades da região Sudeste (destacadamente São Paulo), contribuiu enormemente para a urbanização regional, assim como para o aparecimento de conurbações urbanas, e uma diversidade de problemas. Se o migrante vislumbrava melhorias nas condições de vida, o resultado que se verificou não foi o esperado, pois as cidades não conseguiram oferecer empregos e infraestruturas suficientes para toda a população. Chame a atenção, ainda, para o fato de que a cidade demanda mão de obra minimamente qualificada, e o campo oferece extensiva mão de obra de baixa qualidade formativa, a qual, em princípio, serviu à expansão da construção civil, mas, posteriormente, ampliou muito os estoques de capacidade de trabalho com salários baixos aquilo que Karl Marx denominou de exército de reserva. 8 AS CONTRADIÇÕES DO INTENSO E DESORDENADO PROCESSO DE URBANIZAÇÃO As consequências do crescimento urbano rápido e intenso são persistentemente visíveis em pleno século XXI: deficiências de infraestruturas; precariedade da moradia comoexpressão da segregação espacial e surgimento de sub-habitações, como favelas, cortiços e moradias autoconstruídas; segregação do espaço urbano; precariedade ou insuficiência do transporte urbano; explosão da violência e do narcotráfico; além da hipertrofia do setor terciário e da precarização do trabalho, as quais produziram um denso circuito inferior da economia. Esse crescimento rápido e desordenado das cidades provoca o inchaço urbano, uma situação de deficiências no planejamento, denominada de macrocefalia urbana. (Slack, 2018) Para piorar o quadro, lembremos que o Brasil desenvolveu um sistema de transportes baseado no eixo rodoviário, o que provoca congestionamentos, perda 28 de qualidade de vida para toda a população (em particular a de baixa renda), poluição, entre outros problemas. Soma-se à falta de planejamento urbano e à deficiência de infraestruturas a especulação imobiliária, expressão que denomina uma prática rentista de se produzir estoque de bens imobiliários, como terrenos, prédios, casas, entre outros, com a finalidade de produzir valor futuro por meio da elevação dos preços de tais imóveis. Trata-se de apostas especulativas, que, em geral, produzem impactos variados sobre o tecido social e econômico da vida urbana, geralmente negativos. Se a horizontalização e a verticalização urbanas são marcantes expressões da especulação imobiliária brasileira, a formação de uma cidade dual de um lado uma cidade formal e de outro uma cidade informal, é fortemente influenciada pela mesma prática econômica especulativa. Em todo o mundo, e, em nosso caso, no Brasil, especificamente, algumas cidades apresentam elevado nível de especulação imobiliária, recurso econômico que provoca efeitos variados no espaço geográfico das cidades, sobretudo no que diz respeito à supervalorização do preço do solo urbano, que se torna mercadoria, sujeita às regras do mercado, em detrimento de cumprir papel social. Desse modo, o mercado imobiliário aposta na valorização futura dos imóveis, garantindo estoques de solo urbano à espera da ampliação do valor, ou promove investimentos pontuais que induzam à valorização, como obras, inclusive de embelezamento. (Lamas, 2010) Essa prática envolve a ação de grandes empresas incorporadoras, mas também de pequenos proprietários, que apostam em ganhos futuros com a valorização de certas localidades do espaço urbano. Com isso, ocorre o aumento do preço do solo, fato que expande o desenvolvimento de espaços socialmente especializados, tornando difícil a aquisição de imóveis, sobretudo à população de menor renda. Na esteira dessa prática econômica, ocorre, também, a formação de lotes e edificações vazios, uma vez que os proprietários ficam à espera de valorização espacial, e, por consequência, intensifica-se a horizontalização da cidade (que demanda cada vez mais gastos públicos), pois, além dos espaços vazios no centro 29 ou nas suas proximidades, outros loteamentos vão se firmando em áreas cada vez mais distantes do centro, o que provoca sua valorização e empurra as pessoas de menor renda para distâncias cada vez maiores, nas quais são desprovidas de infraestruturas básicas, como transportes adequado e saneamento básico. Some- se a isso a escalada da violência ancorada no desordenamento espacial. Assim, os espaços residenciais se diferenciam sob o ângulo socioeconômico, sendo a variável renda uma fortíssima definidora de diferenciação, o que não quer dizer que não existam outros fatores, como o étnico, que se entrelaça historicamente com o fator renda: a maioria dos moradores de favela nas regiões Sudeste, Nordeste e Centro-Oeste é afrodescendente, e mesmo na região Sul, onde há presença mais expressiva de brancos residentes em favelas, boa parte da população favelada descende de escravos africanos. Isso nos mostra a força de inércia de uma “liberdade” formalmente conquistada há mais de um século, mas que não veio acompanhada de condições reais de acesso à qualificação profissional, à educação e à moradia digna. (Santos, 2009) No Brasil, a segregação afeta enorme parcela da população de uma cidade, a qual reside em favelas, em loteamentos de periferias ou em cortiços. Não se trata da segregação de um grupo específico, por razões étnicas ou culturais, ainda que a correlação entre pobreza e etnicidade seja flagrante. Ocorre, efetivamente, de os pobres residirem em locais afastados do CBD devido ao seu baixo poder aquisitivo. Por todas essas situações, urbanistas, geógrafos, sociólogos e outros profissionais refletem o fenômeno urbano, além de cidadãos atentos e militantes de movimentos de desfavorecidos, por exemplo, verem com bastante apreensão a escalada da especulação. 9 URBANIZAÇÃO CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA Enquanto a indústria comandava a economia, as aglomerações urbanas surgiam em função dos parques industriais, formando cidades com grande população e relevância na hierarquia urbana. Essas cidades e suas redes urbanas eram articuladas em função da manutenção do processo de urbanização e 30 industrialização, o que tornava os outros núcleos urbanos à sua volta dependentes das decisões das cidade-polo. (Borges, 2010) No decorrer das décadas de 1980 e 1990, a indústria vinha perdendo força e influência na economia brasileira de forma gradativa, enquanto o setor de serviços experimentava um importante crescimento. Além disso, com a globalização, o perfil industrial foi sendo alterado: as grandes indústrias, com muitos empregados em sua linha de produção, foram sendo substituídas por fábricas de alta tecnologia. A mudança no perfil industrial exigia um novo tipo de espaço urbano, pois as grandes cidades já não eram tão atrativas, já que não havia necessidade de tanta mão-de-obra, além dos custos operacionais nas grandes cidades serem mais elevados. O espaço urbano e as cidades foram sendo reestruturados em função da mudança do perfil industrial, além da interação entre as indústrias de alta tecnologia, as atividades artesanais, que são desempenhadas pelas micro e pequenas empresas, e o setor de serviços. Essas duas últimas são também desempenhadas em espaços dispersos, especialmente nas cidades médias, em função do custo. Diante desse cenário, as grandes indústrias começaram a se deslocar para as cidades de porte médio, periféricas aos grandes centros urbanos, onde foi possível diminuir os custos de operação, como aluguéis, salários dos trabalhadores, mobilidade urbana, dentre outros. Foi assim, por exemplo, que a cidade de Cubatão, em São Paulo, localizada a 58 km da região metropolitana da capital, se consolidou como um importante parque industrial. Entretanto, as micro e pequenas empresas apresentam um papel fundamental na articulação espacial das cidades médias. Para essas empresas, as relações entre o cliente e o fornecedor são baseadas em custos relacionados a distância e, por isso, elas se aglomeram, organizando, de uma certa forma, o território. Essa articulação interna dos territórios aumenta a relevância das cidades médias como agentes do processo de descentralização das políticas públicas (SANTOS, 2008). Diversos fatores contribuíram para a mudança do padrão de urbanização no Brasil, dentre os quais podemos destacar a queda nas taxas de fecundidade, a 31 crise econômica entre 1980 e 1990 e a própria descentralização da atividade industrial. A diminuição das taxas de fecundidade pode ser atribuída à própria dinâmica do processo de urbanização. Uma família numerosa na cidade não era uma vantagem; ao contrário, significava maiores gastos, especialmente com relação à habitação, e ainda representava um obstáculo à ascensão social e econômica. Dessa forma, houve uma redução das taxas de fecundidade, diminuindo a oferta de migrantes e o crescimento da população das cidades. (Castells, 2000) Por sua vez, a crise econômicaque o país atravessou entre as décadas de 1980 e 1990, em decorrência das consequências do choque do petróleo, que provocou o aumento dos juros internacionais, só fez crescer a dívida externa brasileira. Além disso, a crise promoveu uma forte queda na produção industrial. Os problemas econômicos acabaram gerando outras mudanças de grande significado, como o fim do regime militar e o retorno do regime democrático; o fim do ciclo de industrialização via substituição de importações; e a implantação das teorias neoliberais, incluindo a privatização de várias grandes empresas nacionais, a abertura da economia e a redução do papel do Estado. Todos esses fatores tiveram consequências que culminaram em um dos impactos mais importantes para o processo de concentração urbana, que foi o aumento do desemprego e da pobreza. As grandes cidades foram as mais afetadas pela crise econômica, especialmente os setores industriais e de construção. A redução das oportunidades econômicas nas grandes cidades diminuiu e até inverteu, por algum tempo, os fluxos migratórios tradicionais, gerando fortes correntes de migração de retorno e até as primeiras correntes importantes de emigração para o exterior. Nesse contexto, as cidades não metropolitanas ou cidades médias se apresentaram como uma opção e uma nova oportunidade, e a partir daí foram registradas taxas de crescimento populacional maiores do que as taxas observadas nas cidades metropolitanas. Ademais, antes mesmo da crise econômica, já estava ocorrendo um processo de descentralização da produção, especialmente na região de São Paulo, 32 o que sinalizava um novo padrão de urbanização e de crescimento das cidades. Somado a isso, também havia uma importante iniciativa por parte dos governos para integrar as diferentes regiões do país por meio de incentivos fiscais e outros investimentos governamentais, como a Zona Franca de Manaus. Os próprios empresários aproveitaram essas iniciativas para descentralizar suas atividades, fugir dos problemas das grandes metrópoles, abrir novos mercados e aumentar sua lucratividade. Por outro lado, essa descentralização das atividades econômicas observada entre as décadas de 1980 e 1990 não diminuiu a relevância das grandes metrópoles no cenário urbano nacional. Mesmo com duas décadas de crescimento econômico reduzido, as metrópoles brasileiras apresentaram um aumento populacional absoluto importante, pois, apesar da estagnação das cidades-polo, as periferias das grandes metrópoles continuaram crescendo a um ritmo acelerado. (Slack, 2018) A partir da década de 1990, uma nova ordem urbana foi sendo constituída na hierarquia urbana brasileira, com a reorganização e a mudança dos papéis das cidades, além do seu reposicionamento em relação à sua importância regional e nacional. Essas alterações se processaram em decorrência do novo padrão urbano, que mudou a forma como as cidades e suas redes urbanas se relacionavam. As mudanças observadas no decorrer da década de 1990 refletiram-se no aparecimento de uma nova rede urbana, com cidades mais ou menos qualificadas dentro da hierarquia urbana, e localizadas longe dos locais tradicionais, como o interior do país. As cidades médias passaram a exercer influência e a atrair novos habitantes em decorrência das suas funcionalidades e do papel que desempenham na rede urbana regional, nacional e internacional. 9.1 As cidades médias O processo de metropolização brasileiro esteve associado ao processo de industrialização de partes do espaço geográfico e às dinâmicas de acúmulo de capital, que originaram nove regiões metropolitanas, as quais comandavam a 33 organização do território. O desenvolvimento das cidades médias foi um aspecto fundamental dessa organização em um nível hierárquico inferior, atuando como polos regionais e contribuindo para a articulação das escalas de produção e consumo (SANTOS, 2009). Entretanto, o fenômeno metropolitano contemporâneo tem resultado em novas formas urbanas, que se caracterizam pela tendência à dispersão, alta mobilidade e desconcentração territorial, espalhando-se pelas áreas urbanas e rurais. Em vista disso, as cidades médias podem ser consideradas um fenômeno oposto ao processo vivenciado inicialmente pelas grandes cidades que resultaram na metropolização. Por definição, as cidades médias não se encontram em um contexto metropolitano, possuindo uma posição definida na hierarquia urbana e na organização do território. No entanto, com a relevância que foram adquirindo com o tempo, essas cidades passaram a indicar o surgimento de um nível hierárquico intermediário. Portanto, as cidades médias brasileiras apresentam uma grande importância para o funcionamento das redes urbanas, pois possuem características que as aproximam das grandes metrópoles, como a oferta de bens e serviços e os demais fluxos econômicos, mas ao mesmo tempo não apresentam os mesmos problemas. 10 SOCIEDADE, INDUSTRIALIZAÇÃO E REGIONALIZAÇÃO DO BRASIL Entender a industrialização a partir dos conhecimentos geográficos é analisar sua relação com os padrões de consumo de diferentes sociedades, a partir da compreensão da dinâmica de uma sociedade industrial que tem se transformando e absorvido novos elementos das tecnologias e da informática, provocando grande mudança no mundo do trabalho. Conforme aponta Scarlato (2009, p. 31): 34 Tendências na evolução das técnicas associadas à cultura do consumo tornam-se importantes fatores na análise do processo de distribuição espacial de indústrias pelo mundo, na produção de bens de consumo duráveis (eletrodomésticos, automóveis, etc.). Isso permite compreender que a geografia das indústrias está intimamente relacionada com o estudo dos comportamentos do consumo, que por sua vez está relacionado com o processo do crescimento e da distribuição de renda. A indústria é uma atividade integrante da cultura humana, que aliou energia e trabalho para produzir coisas ao longo da história. É importante situar a questão da industrialização de forma mais ampla, uma vez que produzir e consumir são práticas intrínsecas na vida da sociedade. Como destaca Scarlato (2009, p. 330), “[...] ao consumir, pode-se estar realizando sonhos é o ‘fetiche da mercadoria’, o consumo como alienação”. Associado ao sentido dessa cultura de consumo no Brasil, a atividade industrial está ligada aos padrões estéticos que o mercado demanda. Nesse aspecto, o processo de industrialização vai além da natureza econômica, tendo o produtor que se atentar ao que o consumidor está interessado, considerando também os aspectos estéticos ao desenhar e colocar um produto no mercado (SCARLATO, 2009). Além disso, os produtos a serem consumidos também exprimem a influência dos mercados, sobretudo a partir da globalização. É o que ocorre com a influência norte-americana no mundo. Assim, muito do que se produz e se consome é pela divisão cultural dos comportamentos e costumes permitida pela velocidade das trocas de informação com os meios de comunicação. As mudanças tecnológicas revolucionaram a cultura das sociedades, implicando em transformações dos territórios e das paisagens. É o caso do surgimento da energia elétrica, do petróleo, da energia nuclear, dentre outros. Como se não bastasse, o desenvolvimento das redes de transportes, em seus diferentes modais (rodoviário, ferroviário, hidroviário, etc.), e dos meios de comunicação favoreceu a descentralização industrial pelo mundo, permitindo a expansão geográfica de grandes empresas dos países desenvolvidos para os países subdesenvolvidos. Hoje é possível controlar e administrar uma empresa de 35 outro continente, por exemplo, apenas a partir dos avanços tecnológicos da informática e das telecomunicações, como ocorre com as empresas multinacionais. De acordo com Scarlato (2009, p. 336): O avanço dastécnicas e das ciências que estruturam o mundo contemporâneo criou as bases de uma nova ordem mundial, de novas formas de agir e de pensar. As sociedades que controlavam essa revolução tecnológica são capazes de estabelecer novas fronteiras políticas, econômicas e culturais, tanto da divisão das fronteiras entre os países como no interior dos mesmos. O Brasil tem seu papel nessa mesma ordem mundial, tanto na estruturação de seu território quanto nas diferenças regionais verificadas, fenômeno também chamado de nova colonização empresarial (SCARLATO, 2009), que procura se apropriar da cultura e de novos mercados, independentemente da propriedade do território. Para uma empresa se fixar em determinada localidade, são observados itens das chamadas economias externas. Isso ocorre porque ela não produzirá tudo o que necessita, dependendo de outros produtores. Assim, para viabilizar sua produção, a empresa procurará locais para disponibilidade de bens e serviços como energia, insumos, transporte, serviços bancários e de comunicação, mão de obra, reparo e manutenção de equipamentos. Com isso, a existência das economias externas foi um dos fatores que determinaram a escolha de certas localidades. É o que explica a região Sudeste ter recebido grandes empreendimentos estrangeiros que vieram para o Brasil, justamente por apresentar economias externas mais desenvolvidas, que em grande parte foram feitas por investimentos públicos do Estado brasileiro. No entanto, o Brasil ainda precisa de investimentos em diversas áreas para garantir segurança às empresas que desejam se instalar no país, como em transportes ferroviários, ciência, tecnologia, dentre outros, fundamentais para o avanço da produção, principalmente aumentando oferta de energia, para que indústrias possam ter segurança energética suficiente ao seu processo produtivo ao se instalarem no país. Cada região brasileira teve e tem sua importância do ponto de vista industrial. Durante o período entre a colonização até o início da Segunda Guerra 36 Mundial, a importância de cada região era dada pela sua representatividade nas exportações dos produtos primários produzidos naquela época, como cana-de- açúcar (Nordeste), ouro (Minas Gerais), café (São Paulo) e borracha (Amazônia). Segundo Scarlato (2009), ao mesmo tempo em que esses produtos geraram grandeza e riqueza, também levaram várias regiões à estagnação econômica, exceto o café, que criou seu próprio ciclo socioeconômico, que mais tarde favoreceu o processo de industrialização brasileiro. Desde a década de 1990, o Brasil voltou a ter seu setor industrial desfavorecido, havendo um retrocesso na industrialização brasileira, sobretudo pela redução no número de indústrias e a decadência da qualidade da indústria manufatureira, tornando-se um país dependente de importações de alto padrão tecnológico (BORGES; CHADAREVIAN, 2010). Esse processo, que alguns economistas chamaram de desindustrialização, é marcante em países como o Brasil (BRESSER-PEREIRA, 2007, p. 129): [...] diferente do que vem ocorrendo nos países ricos. Enquanto nesses países a desindustrialização implica transferência de trabalho para setores com maior conteúdo mercadológico e tecnológico, no Brasil a desindustrialização é regressiva, consequência [...] da política de atrair poupança externa; é um processo de transferência da mão de obra para setores agrícolas e mineradores, agroindustriais, e industriais tipo maquiladora caracterizados por baixo valor adicionado per capita. Cabe salientar também os danos que o processo de industrialização acarreta à natureza, afetando diretamente a qualidade de vida da sociedade, como aponta Ross (2009, p. 213): Enquanto o homem cultivava, criava, coletava ou extraía do solo recursos naturais apenas para sua sobrevivência, a distância entre ele e a natureza era pequena. Com a expansão do comércio por todo o planeta e as necessidades que foram sendo criadas pelas sociedades humanas, intensificou-se a apropriação dos recursos naturais. As necessidades de sobrevivência e a grande criatividade humana têm possibilitado aos homens aproveitar cada vez mais os recursos disponíveis na natureza. A intensificação comercial, como o acúmulo de reservas monetárias, fez surgir a ideologia do capital, ou seja, da concentração de riquezas através do ganho pela troca de mercadorias e moedas entre diferentes sociedades humanas. 37 E para satisfazer as necessidades do consumo humano no ritmo em que a sociedade demanda, foi necessário intensificar o processo de produção, utilizando cada vez mais os recursos naturais. Até mesmo os recursos naturais renováveis já dão sinais de exaustão, no sentido de que já não mais se renovam na velocidade em que precisamos para produzir e consumir. A crescente industrialização concentrada em cidades, a mecanização da agricultura em sistemas de monocultura, a generalizada implantação de pastagens para criação de gado, a intensa exploração de recursos energéticos, como o carvão mineral e o petróleo, a extração de recursos minerais, como o cobre, o ferro, o ouro, o estanho, o alumínio, o manganês, entre inúmeros outros, alteram de modo significativo a terra, o ar e a água do planeta, chegando algumas áreas a degradações ambientais irreversíveis (ROSS, 2009, p. 213). Embora o país tenha evoluído gradativamente na sua industrialização e existam bons exemplos de indústrias de ponta, o setor agroindustrial e a indústria de base ainda são os mais representativos em termos quantitativos e financeiros dentro do setor industrial brasileiro, os quais também têm agregado muita tecnologia nos últimos anos, sobretudo a agroindústria, com maquinários e técnicas modernas. 10.1 Natureza técnica e econômica das indústrias Para entender a distribuição espacial das indústrias, é necessário entender como elas estão organizadas e, posteriormente, como estão classificadas em diferentes categorias, como observa Scarlato (2009). 10.1.1 Indústrias extrativistas e de beneficiamento Trabalham com produtos obtidos da natureza, como minério de ferro, que precisa ser britado para facilitar o transporte, como ilustra a Figura 1. 38 Fonte: Menegati (2016, documento on-line). 10.1.2 Indústrias de transformação Utilizam diferentes técnicas e tecnologias para transformar as propriedades dos recursos naturais a serem utilizados na fabricação de produtos, como a indústria que transforma a madeira em celulose para ser utilizada na fabricação de papel (Figura 2). Fonte: Menegati (2016, documento on-line). É importante destacar que, de acordo com a Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) (BRASIL, 2013), as atividades artesanais e 39 manuais, mesmo feitas em casa, e a venda direta ao consumidor de produtos de produção própria também podem ser consideradas indústrias de transformação quando transformam um elemento em um produto novo. De acordo com o destino dos seus produtos, as indústrias de transformação podem ser classificadas em indústrias de bens de produção de uso único, que produzem bens intermediários, como as matérias-primas, e bens de uso permanente ou bens de capital fixo, como máquinas e equipamentos; e indústrias de bens de consumo imediato ou não duráveis, os quais são rapidamente destruídos pelo uso, como alimentos, remédios, roupas, dentre outros. 10.1.3 Indústrias de bens de uso durável Produzem bens com vida útil mais prolongada, como eletrodomésticos e automóveis. Um exemplo nessa categoria seria uma montadora de carros. A localização de uma empresa é um fator determinante e uma decisão muito importante que deve ser tomada, seja ela do setor produtivo de bens ou da prestação de serviços, devendo considerar os recursos disponíveis, as operações e clientes com os quais terá que interagir. Slack, Brandon-Jones e Johnston (2018) consideram que duas
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