Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
EQUIDADE, SELETIVIDADE E ASSISTÊNCIA À SAÚDE GIOVANNI BERLlNGUER A seleçãodeagentes,métodose sujeitosda assistênciaà saúde combaseemcritériossociaise morais,umcapítulofreqüentementeigno- radoou nãorevelado,é partedequasetodaa históriadamedicina. Apenasexcepcionalmentemédicosou filósofosa admitiramou justificaram.Platão,porexemplol,estabeleceuaexistência"nosestadosde dois tiposdepacientes:oshomenslivreseosescravos",e descreveucomo elesdiferiamno queconcerneaosagentes(médicoslivresou escravos),à abordagem(consultaou coerção,calmaoupressa),emuitoprovavelmente aos resultados.Na Europa,duranteo Iluminismo,os pobreseramassisti- dos em hospitaisdesconfortáveise os ricos em casa;essesúltimos,em Paris,eramestimuladosadarapoioaoshospitaisatravésdecaridadespara seuprópriobenefício:"o pacientequeestáno leitoquevocêpossibilitou sofredeummalquevocêterá,maiscedoou maistarde.Ele serecuperará ou perecerá.Em ambososcasos,o destinodelepodeiluminarseumédico e salvarsuavida"2.QuandoingresseinaEscoladeMedicina,naItália,nós estudávamosanatomiaapenasnos defuntosquehaviamsido tratadosde graçapelaMunicipalidade,cujoscorposapósa morteeramconsiderados como resnulliusou propriedadecomum.Há quinzeanos,umaanálise,na • "Equity. RationingandSelectionin HealthCare". TraduçãodaClariceCohn. 1Platão:Laws, IV, 720. 2 J. Dulaurens.Analysedu livre intitulé ..Moyensde rendreles hospitauxutilesetdepeifee- tionner Ia médecine".Paris 1788.p. 12. ~ ESTAMOS EM GUERRA? 3 J. M. De Miguel, L. Lenkow, J. A. Rodriguez. "Spain". in The Health Burden oI Social Inequities OMS, RegionalOffice for Europe,Copenhague,1984. 4 C. Peruccietai: no prelo. S Um projeto internacionaldo Hastings Center: The Goals of' Medicine. Settin!i New P,ioriries. HastingsCenterReport,SuplementoEspecial,Novembro-Dezembro1996. 6 The Global HealthEquiryInitiative, 1996. Na realidade,o debateteveorigem,maisdoqueemumdesejode discutirabertamentee definiressescritérioseprincípios,nasdespesaspúbli- cascrescentes(e às vezesdescontroladas)com a assistênciaà saúdeem muitospaísesdo mundo.Pode-semesmoconsideraressefatocornoumdos "pecadosoriginais"dodebate,quelevouaseconsideraro racionamentoape- nascornoumarespostaàescassezdosrecursosfinanceiros.Ao mesmotempo, surgiuanecessidade,especialmenteempaísesdesenvolvidos,deurnarevisão críticadosobjetivosdamedicina5,daorganizaçãodossistemasdeassistência àsaúde,edaeqüidadenasaúdeenaassistênciaàsaúde6.Foramapresentadas alternativasàsinterpretaçõespuramentefinanceirasdo problema,queincor- poramaquestãodadespesacomsaúdemasconsideramo racionamentocorno um instrumentoparadefiniros direitosdospacientes(e seuslimites),para Espanha,do tempodevotadopor clínicos geraisno examemédico dos pacientesanunciouque ele erá de menosde 5 minutospara 65%'dos pobres,38% dos trabalhadoresmanuais,22% da classemédia e 5% da alta3•Nos anos90, uma investigaçãofeita em Roma sobreo acessoao transplantederins, no qual asprioridadesdeveriamseguirregras"justas" e "objetivas",mostrouqueo tempodeesperaparapacientescomeducação primáriaeraduasvezesmaiordo queaquelescommaioreducaçã04. Citeiapenaspoucosexemplosdiacrônicos,sobreumavariedadede casos,apartirdosquaispodemostirarduasconclusões.A primeira,quemuitos dosdilemasbioéticos,cornoaquelesquedizemrespeitoaosprincípiosmorais queguiama alocaçãoe distribuiçãodosrecursosparaa assistênciaà saúde, têmantecedenteshistóricosquedeveriamseranalisadosmaisprofundamente. A segunda,queumadasconseqüênciaspositivasdo debateatualdo raciona- mentodeserviçosdesaúdepodeser,paraopassadoeaindamaisparao futuro, tomarexplícitososagentes,o critériosocialeosprincípiosmoraisqueguiam asdecisõesemquestõescomo:o quê?quando?onde?corno?eparaquem? LUA NOVA N° 47 - 9960 i I 11 ~. 1 , !!!!!!' •• •• ••• •• ;I•• ••"- ••••••••••••"•••" '"•••••• EQUIDADE, SELETIVIDADE E ASSISTÊNCIA À SAÚDE 61 tomartransparentesasescolhaspúblicas,e parapromoverumamaioreqüi- dadenoacessoenaqualidadedaassistênciaà saúde. Essa tendênciapodeabrir um caminhoparaumaética "mais baseadaem valoreshumanos",parapolíticasmaiscompreensivas,e, por quenão?,paraumareconsideraçãodaadequaçãodo termoracionamento. Racionamentofoi definidocomo"um termode origemmilitar, que significaproporcionara cadamembrodo gruposuapartedos supri- mentos"?Esse sistema"foi aplicadoprimeiroà distribuiçãonacionalde alimentosna Primeira Guerra Mundial"; e, durantea SegundaGuerra Mundial, foi postoempráticatambémempaísesneutrosqueenfrentavam carênciae preçosaltos.Uma definiçãomaisabrangentepoderiaser:"uma medidaparalimitaro consumo,aplicadaemcircunstânciasdeemergência, especialmenteduranteguerras,paradistribuireqüitativamentebensindis- pensáveisdisponíveis"8. Ninguémirá pôr em dúvidao direitode utilizaressetermo(e essaprática),estabelecidoemcircunstânciastãodiferentes,em um novo contexto.Mas a mensagemqueo termocarregaé a deumaguerra,ou de algumaemergênciamundial,quecria condiçõespersistentesde escassez debensessenciais,e impõeregrasestritasparasuadistribuiçãoeqüitativa, demodoa fazerdessanecessidadeumavirtude.Faz-setambémnecessário quesesublinhea principaldiferença(entretantas)frenteaoracionamento em temposde guerra.Duranteumaguerra,o acessoa bensracionadosé universal,ninguémpodedistribuirlegalmentealimentosatravésdecanais privados,eninguémé excluído;apenascrianças,mãese pacientes,ou tra- balhadoresbraçais,podemrecebersuprimentosextras.O racionamentode assistênciaà saúdeé exatamenteo oposto:refere-seprincipalmente(ou unicamente)aoqueé distribuídoatravésderecursospúblicos,nãoaoque podesercompradonomercado;eprocedepelaexclusãodetratamentosou de indivíduos.Ao invés de introduzirjustiça em trocade uma parcela comumde sacrifícios,podeconsolidare aumentarasdesigualdades. Está claro que a distânciaentre as oportunidadesdadas(ou prometidas)pelamedicinae os recursosdisponíveisestácrescendo,que mesmoa mobilizaçãodesejávelde outrosrecursosnãopermitiráa satis- façãodessasnecessidades,e queescolhasdevemserfeitas.Mas provavel- 7 Encycl0plledillBritllnnica. 1959. 8Dizionario Encic1opedicoItaliano. 1970. \ . i 62 ; t LUA NOVA N" 47 - 99 " . menteas palavrasprioridade, quandorelativaàs decisõespúblicas,e seleção,quandorelativaao destinodos indivíduos,são menospolitica- mentecorretasmasmaisapropriadasediretas.De qualquermodo,maisdo quepalavras,é importantequeseanalisee reconsidereo contextointerna- cionalno qualo racionamentoestásendoproposto. oPARADIGMA DA SAÚDE SUBVERTIDO Nas duasúltimasdécadas,umamudançano paradigmase for- mouemescalamundial9.A noçãode saúdecomoumapedrafundamental do desenvolvimentoeconômico,como um multiplicadorde recursos humanos,e, mais importante,como um objetivo primário de políticas públicasfoi amplamentesubstituídapor umanoçãooposta.Serviçosde saúdepúblicae assistênciaà saúdeparatodosestãosendoapresentados hoje como um obstáculo,e freqüentementecomo o maior deles,que obstruiasfinançaspúblicase aRiquezadasNaçõese transformaaredução das despesasem saúde(não seu controlee racionalização,que são um imperativoemqualquerlugar!)numadasprincipaisprioridadesdemuitos governosepoderosasagênciasinternacionais. Essa mudançade paradigmafoi acompanhadade um múltiplo reducionismo,quetentoresumirnosseguintes(algoparciais,aviso)pontos: a saúdereduzidaà assistênciaà saúde,e a prevençãoà me- dicinapreventiva; os fatoresde saúdee doençareduzidosbasicamentea fatores individuais(genéticaemodosdevida),ouconfundidoscomuma "teiadecausas",naqualsetomaimpossívelidentificaraaranha; • o dever do estado reduzido da assistênciauniversal à assistênciaapenasaospobres,comonas"cidadeslivres"do Renascimentoe nasnaçõeseuropéiasdo séculoXIX; • a reduçãodo debatesobreosrecursosdeassistênciaà saúde a principalmente(ouunicamente)recursosfinanceiros; • asmuitasquestõesrelativasà alocaçãoderecursosreduzidas à trágicaescolhade"paraquem". 9 G. Rerlinguer.Globalization and Global Health. No prelo. EQUIDADE. SELETIVIDADE E ASSISTÊNCIA À SAÚDE 63 Um desenvolvimentoparalelotevelugarnamedicina- "A me- dicina científicado séculoXX, focadana buscade meiosmédicose tec- nológicosparaa reduçãodamortalidadee damorbidade,deixoudeladoasaúdepúblicae a assistênciaprimária.Nenhumadasduastinhao charme necessárioparaatrairfinanciamentode pesquisase prêmiosNobel, nem prometiamgrandesretornosà indústriade assistênciaà saúdevoltadaao lucro.O público,emmuitaspartesdo mundo,assimcomomuitoslíderes políticos,temsidofeliz emnadarcomamaré"lO. oCRESCIMENTO DAS DESIGUALDADES NA SAÚDE Os trêsfenômenosque tenteiresumir,ou seja,um novo para- digma,o reducionismoe as tendênciasna medicina,têmcomo cenário comumos desenvolvimentospolíticose culturaisdasúltimasdécadasdo séculoXX. Além domais,elesconvergememultiplicamseusefeitos,tanto em princípios moraisquantonas conseqüênciaspráticas.Não é minha ambiçãoaqui analisaressesdesenvolvimentos;e não é minha intenção subestimarasnumerosase abrangentesconquistasdenossotempo,inclu- sive aquelasno campoda saúde.Posso aindaacrescentarque sua afir- maçãorápidae universalse devenãoapenasa interesseseconômicose decisõespolíticas,mastambémà satisfaçãodenecessidadesreais. No entanto,quaissãoasconseqüênciasmoraise práticasdessa tendência?A idéiabásicadequea economiademercadoe aspolíticasde "ajuste" poderiamestenderespontaneamenteseus benefíciosà vida (e saúde)cotidianadas pessoasestásendosubstituída,quandose tomao futuro em consideração,por preocupaçõese, às vezes,consternação. "Quandoajustamoso desequilíbrioorçamentário,devemosreconhecerque osprogramasparamanterascriançasnaescolapodemserperdidos,queos programasparaassegurara assistênciaàsaúdeparaosmaispobrespodem ser perdidos,que empreendimentospequenose médios...podemter seus créditossecados,e falhar...[Isso]refleteumsentimentocrescentedequehá algoerradocomo sistemano qualmesmoos paísesquetiverampolíticas econômicasfortesporumperíododeanossãonocauteadospormercados financeirosinternacionais,no qual os trabalhadoresnessespaísesserão 10 D. Callahan. Equity and lhe GoaLsaI Medicine. WHO-CIOMS Conferenceon Ethics. Equity andtheRenewalof WHO's Health for Ali Strategy.12-14de março1997. 64 LUA NOVA W 47- 99 \ . " despejadosdo trabalho,no qual ~educaçãode suascriançasseráinter- rompida,suasesperançasesonhosdestruídos"Il.Avaliandoo impactopro- fundoqueas políticasdo Banco Mundial tiveramnasreformasda saúde orientadasparao mercadoemtodoo mundo(quepodemserconsideradas comoumdosmaioresexperimentoshumanosjá realizados,provavelmente sem consenso informado pleno, e certamentesem uma análise de custolbenefícioem termosde resultadose equidadena saúde),pode-se questionarseessainstituição,quesubstituiua liderançaperdidaou aban- donadada OMS12,representaumasoluçãoou umapartedesseproblema. As diferençasinjustasequepoderiamserevitadasnasaúdeentre ospaíseseemseuinteriorestãoaumentando,quaseemtodolugar.De acor- docomaOMS, "Hoje, quase1,3bilhõesdepessoasvivemnamisériaabso- luta.A pobreza éumadasmaiorescausasde desnutriçãoe insalubridade; ela contribuicom a disseminaçãoda doença,diminui a efetividadedos serviçosde saúdee desacelerao controlepopulacional.A morbidadee a invalidezlevama um círculo viciosode marginalização,permanênciana condiçãode miséria,e, por suavez, maiorinsalubridade"13.As desigual- dadesaumentamtambémnospaísesdesenvolvidos.Na Grã-Bretanha,que temdesde1912a melhortradiçãode análisenessecampo,o Independent lnquiry into lnequalitiesin Healthl4mostrouquea diferençana mortali- dadeentreasclassesI e 11(profissionais,administradorese técnicos)e as classesIV ev (trabalhadorespoucoou nãoqualificados)cresceude 53% no fim dosanos70para68%no fim dos80paraoshomens,e de50%para 55%paraasmulheres(p. 11);queaexpectativadevidade65anoseracon- sideravelmentemaiornasclassesmaisaltas,e quea diferençaaumentou, no mesmoperíodo,particularmenteparaas mulheres(p. 13);que dife- rençassemelhantesexistemnastaxasde mortalidadee acidentes(pp. 14- 16).Em outrospaísesdesenvolvidos,a tendência(semprequeanalisada)é a mesma.Podemosargumentarque a saúdepropriamentedita tem sido racionadado modomaisdesigual. I I J. D. Wolfesohn,Presidentedo Banco Mundial. The Orher Crisis. Addressto rheBoard of Govemors.WashingtonD. c.,6 deoutubrode 1998.. 12 M. Koivusalo e Eeva Ollila. Health Policies by Defaulr. The Changing Scene of .; lntemationalHealth Policies. CongressoMundial de Sociologia,Montreal, 1998. \ 13Health For Ali in theTwenty-firsrCentury.OMS, A 51/5,Genebra1998,p. 9. \ 14 Relatório(Chairman:Sir DonaldAcheson),The StationeryOffice, Londres 1998. rA. &n.Lo li"'"' irnJi,i<bm1,,,~ imp~gM~"'k. L"""". Bori 1997. EQlJIDADE. SELETIVIDADE E ASSISTÊNCIA À SAÚDE 65 Do pontode vistamoral,umarazãoparasepreocuparé quea noçãoda saúdemundialcomo indivisível - umapedrafundamentalem meadosdo séculoXX, o princípio fundanteda própriaOMS, e um dos principais objetivosdas políticas de bem-estarna Europa - pode ser suplantadaporumacrençadisseminadadequeumgrupodepaísespodese favorecerda melhor saúdepossívelem um mundoque sofre; e que o mesmopodeacontecerno interiordecadapaís.Umarazãoparaleladepre- ocupaçãofoi formuladaem um editorial do Hastings Center Report: "Ontem,a éticafalavadejustiçae acessoaosdireitosdospacientes;hoje fala de racionamentodos serviçosde saúde".Na realidade,a saúde,que temum valor intrínsecoe instrumental(comoumabaseda auto-determi- nação),é tambémum dos melhoresindicadoresparamedircomooutros direitoshumanostêmsidoprotegidosoupromovidospelasociedade;mais queisso,a afirmaçãoou a negaçãododireitoàsaúdeenvolvequasetodos os outrosdireitos. UMA NOVA TENDÊNCIA Nos últimosdoisanos,muitosgruposeiniciativaspelaeqüidade nasaúdee na assistênciaà saúdecresceramem muitaspartesdo mundo. Revistascientíficasqualificadascomeçaramaescreverintensamentesobre isso,agênciasinternacionais(comoa OMS e tambémo BancoMundial) começaramafalarsobreo temae associaçõesinternacionaisa incluí-Iaem seusprogramas,e o problemafoi postona agenda,com mais rapideze forçado quesepoderiaesperarnosanos90. Se tentarmosinterpretarascausasdessedesenvolvimento,posso encontrarduasrazõesdiferentes.Umaé negativa:as desigualdadesconti- nuamacrescer,etornam-semaisemaisevidentes.A outraépositiva,epode serexplícadapor umacitaçãode AmartyaSen: "A informaçãosobredis- criminações,tortura,miséria,doençaeabandonoajudamacoalizãodeforças contraesseseventos,estendendoaoposiçãodasvítimasapenasparao públi- co vasto.Issoé possívelporqueaspessoastêmcapacidadee disposiçãode reagiràsdificuldadesdosoutros"15. Pode-seacrescentarqueprovavelmente a desigualdadena saúdeé menosaceitae toleradaque, por exemplo, 16On lhe Deve/opmentof Pub/ic Hea/lh in lhe European Community.Comunicaçãoda 66 I 1 , t,,,,, I I • ,. •, •,,,,, It • t t • t t ~ ~ t • ~, t • " LUA NOVA N° 47 - 99 desigualdadesderenda:porquese.voltaà vidapropriamentedita,eporquea interconexãodasaúdedecadaumaindaé amplamentepercebida. Essedesenvolvimentoconecta-secomumamudançanaatmos- fera internacional,a qual ousodefinir como o declínioda hegemoniado jundamentalismomonetário.cuja autoridadenão equivale mais a seu poder.Pode ser interessantesublinhar- rejeitandoobviamentea idéia de que a saúdesejaconsideradaum "problemapartidário"- que um papel chavenasescolhaspolíticas,feitaspeloscidadãosdemuitospaísesperten- centesà União Européiaentre1996e 1999,foi encenadopelo destinodo bem-estare dossistemasdeassistênciaà saúde.O conflitosecolocavaàs vezesentreataquee defesa,masmais freqüentementeentredesmantela- mentoe inovação,o queinclui definirprioridadese tornaro sistemamais justo, livre, flexível e eficaz.Ninguémpodetercertezahoje sobreondee como as escolhaspela inovação,feitas pela maior partedos paísesda União, serãoefetivamenteimplementadas.Por ora, podemostomarisso comoumsintomae umaesperança. Uma mudançasignificativajá foi iniciadapelaatitudeda União Européiaemrelaçãoà saúde.Essaregiãoalcançou,nomundo,umdosme- lhoresníveis,nãoporgastarmaiscomaassistênciaàsaúde(osEUA gastam quaseo dobro),maspor ter"adicionadovalor"àsaúdee ao bem-estarpela combinaçãode democracia,livre mercadoe justiça social.O Tratadode Maastrichtl6já incluiu,pelaprimeiravez,a saúdepúblicaentreasfunções da Comunidade(Artigo 129),emboracommuitaslimitaçõese a partirde umaperspectivaque consideraprincipalmenteos "grandesmales"(como AIOS, dependênciade drogase câncer),como se os europeusestivessem sendoameaçadosporinimigosexteriores.O novoTratadodeAmsterdã,que está sendo ratificadoagora, amplia as funções da União Européia.A Comissãoconsideraque uma dasprincipaisdireçõesde açãodeveriaser "lidarcomdeterminantesda saúdeatravésda promoçãoda saúdee dapre- vençãodedoenças".As principaisidéiasl7sãoconsiderar"a conscientização crescentedosfatoressociaiseculturaiscomovariáveisexplicativasdostatus na saúdee dasdesigualdades"(3.3) e contrastar"a guetoizaçãoda saúde pública"(ponto4.1).A primeiraRecomendaçãoé a de que"o núcleodos Comissão,COM (1998)230 final Bruxelas, 15deabril de 1998. 17 European Union Health Policy on lhe Eve of lhe MiIlennium. Public Hearing on Health Policy, 28 deoutubrode 1998,SACO 102EN. 18R. Porter:TheGreateslBenejit10 Mankind.A Medica! History of Humanity,W. W. Norton \& Company,1997,pp. 584-585. '\ l' EQUIDADE, SELETIVIDADE E ASSISTÊNCIA À SAÚDE 67 esforçosfuturosdaUnião Européianasaúdepúblicadevesera integração da avaliaçãodo impactoda saúdenasáreasdassuaspolíticasqueincidem sobrea saúde"(5.5.i). REDISTRIBUIÇÃO DO QUÊ? Vejo essesdesenvolvimentos(osquaissão,no interiordaUnião Européia,acompanhadosde muitascontradições,e acimadetudopor seu isolamentofrenteaosproblemasde saúdeno mundo!)comoumatendên- cia parareconhecer:primeiro,quea saúdedeveriaser,emsi, umapriori- dademáximadaspolíticaspúblicas;segundo,queos principaisdetermi- nantesdasdesigualdadesnasaúdesãosociaiseculturais;e terceiro,queas principaisameaçassãoas internas,equea avaliaçãopreliminardaspolíti- cas(edaaçãohumana,emgeral)éessencialparaareduçãoderiscosepara a promoçãode umasaúdemelhor. Quandoseconsideraadistribuição(aqualdeveriasero principal propósitodo racionamento),pode-sedizerquea tarefaprimeiraé a redis- tribuiçãomaiseqüitativadasaúde.Mesmoqueissopareçadesejável,o alvo deveriasermaisamplo:melhorara saúdede todos(inclusivedosricos),de modoater,comoresultado,nãouma"saúdeigualparatodos",queéumnon- sensedo pontodevistabiológicoe antropológico,masa oportunidadepara cadaindivíduodealcançarseupróprioníveldesaúde,Issopodeserobtido principalmentepelareduçãodemortese doençasinjustase quepodemser evitadas,quetêmumadistribuiçãoindividualaleatória,masmuitoinfluen- ciadapor classesocial,exposição,renda,gêneroe educação.Esseobjetivo correspondea interessese valorescomuns,porqueasaúdenãoéumresulta- do soma-zero,um bemque necessitaapenasde umamelhordistribuição. Maior eqüidadeemsaúdepodeatuarcomoummultiplicador. A "nova tendência"de que falei (que é tão velhaquantoa tradiçãodeprevençãoesaúdepública)deveincorporar,paraserrealista,a questãodosrecursos,desuadefiniçãoedistribuição.Gostariadeintroduzir esseproblemacom umnquestão:quais são, na era pós-antibióticos,as medidasespecíficasque,citandoo títulodo livro deRoy Porter,dariamà humanidadeo maiorbenefício,reduzindoas mortesquepodemser evi- tadas?Minha escolha(muitasoutrassãolegítimas,assimcomoqualquer análisecomparativaéproblemática)favoreceduasdescobertas. A primeiraéa identificaçãodosdiferentesfatoresquecausama mortepordoençacardíacacoronária,taiscomonutrição,hipertensão,stress, I I . , , 68 LUA NOVA N" 47 - 99 ., i ,I fumoevidasedentária,feitaem)lmaamplapesquisaepidemiológicaemsete paísesnos anos60. Roy Porter,depoisde criticaras "bateriasde equipa- mentosde monitoraçãosofisticados... extremamentecustosose que re- queremintensaqualificação"usadasnosEUA desdeosanos50,e sublinhar que"a utilidaderealdasunidadesdecuidadocoronárioemmanteraspes- soasvivasjamaisfoi testada",escreve:"o quetalveztenhacontribuídomais paraa quedada taxade mortescoronárias,particularmentenos Estados Unidos, nãosãoessastécnicasde controleremendadase custosas,masos movi~entosem direçãoa estilosde vida mais saudáveisque são conse- qüênciadamelhorcompreensãodacausademuitasdoençascardíacas"18. A segundaé adaterapiadereidrataçãooral (TRO), descobertaa partirdeexperiênciasnosanos60e introduzidahá30anos,queseutilizade umasoluçãoextraordinariamentesimplesdeaçúcar,saleáguaesalvaavida debebêsecrianças(eoutros)severamentedesidratadospeladiarréia,queé, nospaísespobres,umadasprincipaiscausasdemorte.TRO éumtratamen- to que "apenas"previneas mortespor diarréia,mas que permite,desse modo,quebebêse criançassobrevivam,e freqüentementeserecuperem,a partirde suasforçase deapoioexterno.Ele salvoue continuaa salvarmi- lhõesdejovensvidas.Um historiadorescreveu:"A ignorânciaformidávele persistentedo establishmentmédicoocidental,que permanecedepoisde vintee cincoanosda descoberta,é fenomenal... suaaçãopareceserdire- donada tambémpor consideraçõesfinanceiras"19. Usar a terapiaintra- venosa,adespeitodo riscode infecções,ouprescreverantibióticos,embora causemresistência,émaiscaro,maspodesermais"conveniente". Esses dois exemplos,mesmo que pertencentesa diferentes esferasebeneficiempovose paísesdiferentes,temduascaracterísticasem comum:a) baixocusto;b) fácil acesso;c) distribuiçãoeqüitativa;d) mobi- lizaçãoderecursosindividuais,tantonaturaisquantoculturais. QUEM DECIDE? Talvezminhasescolhassejamtendenciosase inapropriadas.O quepretendosublinhar,longedemenosprezarosenormesbenefíciosoriun- 19J. Nalibow Rukin: "Magic Bullet: lhe HistoryofOral RehydratationTherapy", in: MedicaL History, 38.363-397. 20D. Callahan.FaLseHapes. Why America'squestfor perfectheaLthis a recipefor fllilure. Simon & Schusler.1998. EQUIDADE. SELETIVIDADE E ASSISTÊNCIA À SAÚDb 69 dosdepesquisasavançadase do avançotecnológico,écomoétendencioso limitaro conceitode recursosàquelesfinanceiros,e comoé inapropriado acreditarque apenasbenscustosos,profissionaisespecializadose instru- mentosde altatecnologia- cujacaracterísticacomumsãogeralmentealto custo(e lucro),acessodifícil e injusto,e a delegaçãodenossasaúdea algo ou alguém- podemterefeitosprofundoseamplosnaprevençãoe terapia. As escolhassãoinfluenciadaspela"indústriadesaúdedelucro", poresperançasespontâneasoufalsamenteinduzidas2o,e tambémpelasati- tudesdos sistemasde assistênciaà saúdee dosmédicos,quandodesde- nhama medicinabaseadaem evidênciase aquela,disseminada,baseada em invasões.Operaçõescesarianas,por exemplo,representammenosde 10%dospartosnaBélgicaenaHolanda,23,5%nosEUA, 26,1%naItália e 32%noBrasi121•É fatoconhecidoqueasdespesascomsaúdesãoampla- menteinfluenciadaspelo modocomoos médicossãopagos.Nos países desenvolvidoshá umavariedadedemétodos,masasdespesascomsaúde são45% maisaltasondese baseiamprincipalmenteem "pagamentopor serviço"queondesãofeitas"percapita"22.A probabilidadedeasmulheres sofreremumahisterectomianosEUA ou naSuíçaé35-70%maisaltaque naFinlândiae 165-230%quenaNoruega,umcasoondeaquestãodainte- gridadee daliberdadesubstantivadasmulherestemumarelevânciamoral maiorqueo gastoderecursosfinanceiros.Os filhos e filhasdecirurgiões e advogadosnapopulaçãototaldosEUA têma menortaxade operações deamígdala,nãoporrazõesclínicasmasporrazõessociaisclaramenteper- ceptíveis(solidariedadecomosprimeiros,medodossegundos),e suainte- gridadeé assimmaisprotegida. A despeitodessesfatos,aprincipalpressãosevoltaà extensão dossistemasde"pagamentoporserviço",e areformasnasaúdeorientadas parao mercado,ao invés da buscade sistemasnos quais os interesses profissionaise industriaispossamconvergiràsnecessidadesdoscidadãos e aocontroledosgastos23. 21 I. Figà Talamanca."La violenzacontrole donne".in La salutein Italia. Rapporto 1999. Ediesse.Roma, 1999. 22 OECD HealthData Base. 1998. 23A. Donzelli. "Modifiche dei comportamentomedicoin relazioneai sistemiretributivi".in Salute in Italia. Rapporro1999.Ediesse.Roma 1999. 24J. Hanis. "QALYfying thevalueof life". in: lournal ofmediealethies.13.1997.p. 122.e The valueof lire. Routledge& KeganPaul. London 1985,capítulo3. r ! 70 LUA NOVA N" 47 - 99 - ", .1 REC'URSOS FINANCEffiOS:.ESCASSEZ ABSOLUTA OU RELATIVA? o reconhecimentoda escassezdos recursosfinanceirosparaa assistênciaàsaúdedeverialevara essadireção.Ademais,sobreaescassez, duasquestõespodemserformuladas.A primeira:seriaelaabsolutaou re- lativa?lohnHarrissugeriuque"a questãodeveriasercolocadaemtermos. nãosomentedo orçamentoparaaassistênciaà saúde,masdo orçamento nacional [einternacional].Se issofor feito,ficarámaisclaroquesimples- mentenãoé verdadequeos recursosnecessáriosparasalvaras vidasdos cidadãosnãosãodisponíveis"24.Mesmoqueissosejaverdadeapenas(ou principalmente)em paísesdesenvolvidos(masmuitosdos paísespobres gastamproporcionalmentemais comprandoarmamentos),dois pontos devemserpostosà clara:queos recursosfinanceirosnãosão infinitos;e quenãopodemosconsiderarasprioridadesna assistênciaà saúde(o quê e paraquem)semconsiderarantese ao mesmotempoa prioridade da saúdecomoumobjetivocomumà sociedade. A segundaquestãoé: de ondevêm os recursosfinanceiros,e para onde vão? Não elaborareiesseponto,que implica uma crítica de alguns sistemaspúblicos que transferemrecursosdos trabalhadoresà classemédiae deixamparcelasimportantesda populaçãosemqualquer proteção.O problemadaeqüidadeabrangetambémaanálisedasdiferentes perspectivasexistentessobreo financiamentodaassistênciaàsaúde:recei- ta geral, impostos diferenciados,contribuiçõesà previdência social, prêmiosdeplanosdesaúdeprivados,taxasparausuários,e financiamento comunitário.Cada sistematem um impactodiferentena distribuição,e podemter tambémprofundasimplicaçõesmorais.Na Coréia do Sul, por exemplo,a passagemà vacinaçãogratuitalevoua umanovadiscriminação de gênero:a proporçãodos sexosde criançasrecentementevacinadasé hojede4 a 125. PARA QUEM? Minhas conclusõesvão da perspectivainternacionalde voltaà questão:"seráo racionamentoda assistênciaà saúdeinevitável?".Há na 25I. Figà Talamanca."La violenzacontrole donne"(vejanota21). 26P. Makara.Health Promotionand Democracy.EuropeanStandingConferenceof National EthicsComminees,Paris, 12e 13dejaneiro de 1998. - EQUIDADE.SELETIVIDADE E ASSIST~NCIAÀ SAÚDE 71 literaturapelomenosseteprocedimentosde racionamentoimplícito,que podemserdocumentadose expostos,e há pelomenosdozecritériospara umarespostaexplícitaà questão:"paraquem?",as quaissão freqüente- mentecontlitantes.São escolhasque concememprincipalmenteà popu- lação,eseriaumademocraciaestranhaeenfraquecidaaquelaqueexcluísse de suaagendaprocedimentos(quedevemser implementadoscomtodoo devidocuidado)a respeitoda vida e da morte.Muito freqüentementeas "políticasdesaúde...dãopoucaatençãoa seuimpactosobreaspessoas,as quais em muitoscasossão vistascomo recebedoras[ou excluídas!]de serviços"26.Em outraspalavras,"deveríamostentarretomaraopovo,res- gatandodos especialistas,o problemada saúde".Informare envolveros cidadãos,na tentativade evitartantoo viésquantoa demagogia,poderia tambémestimularo enormepotencialdos indivíduos,dasfamíliase das comunidadescomo produtoresde sua própria saúdee como parceiros ativosnatomadadedecisõesconcernentesa macroalocações. Poderiatambémajudara bioéticaa evitarumpadrão"justifica- tivo", por exemploao legitimara discriminaçãode indivíduos.Tenhoem mentea qualidadede vida,umconceitoquefoi criadocomumpropósito positivo- depoisde teradicionadoemnossoséculomuitosanosàsvidas humanas,adicionarvida (qualidade)aosanos- e estásendosugerido(ou utilizado)hoje nãocomo umamedidado quetemhavidoou poderiaser obtido em favor de cadaindivíduoou grupo,mascomoum instrumento (QALY =qualityadjustedlife years,ouanosdevidaajustadosàqualidade) dedecisãosobrequemmerecemaisou menosviver. Uma respostapreliminarà questão"paraquem?"poderiaser encontrada,voltandoaoponto3 desseartigo,aostrêsfenômenosqueten- tei descrever(novoparadigma,reducionismo,tendênciasdamedicina),na sugestãodequeasalternativasaoracionamentopoderiamconsistirprinci- palmente(e nãointeiramente)em alternativasa eles.Isso significaconsi- derara saúdee o bem-estarhumanodequalquerpessoacomoumobjetivo primeirodaspolíticaspúblicas,concentraros esforçosem seusdetermi- nantese naeqüidade,e mudarasprioridadesdamedicina. GIOVANNI BERLINGUER éprofessordo Departamentode BiologiaAnimal e do HomemnaUniversità degli Studidi Roma"La Sapienza"
Compartilhar