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Dom Casmurro - Machado de Assis I

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Dom Casmurro 
Texto de referência: 
Obras Completas de Machado de Assis, vol. I, 
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. 
 
 Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1899. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
CAPÍTULO PRIMEIRO 
DO TÍTULO 
 
Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da 
Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. 
Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da Lua e dos ministros, e 
acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não 
fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, fechei 
os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e 
metesse os versos no bolso. 
 
— Continue, disse eu acordando. 
 
— Já acabei, murmurou ele. 
 
— São muito bonitos. 
 
Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não passou do gesto; 
estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou 
alcunhando-me Dom Casmurro. Os vizinhos, que não gostam dos meus hábitos 
reclusos e calados, deram curso à alcunha, que afinal pegou. Nem por isso me 
zanguei. Contei a anedota aos amigos da cidade, e eles, por graça, chamam-me 
assim, alguns em bilhetes: "Dom Casmurro, domingo vou jantar com você”.— 
"Vou para Petrópolis, Dom Casmurro; a casa é a mesma da Renânia; vê se deixas 
essa caverna do Engenho Novo, e vai lá passar uns quinze dias comigo”.— "Meu 
caro Dom Casmurro, não cuide que o dispenso do teatro amanhã; venha e dormirá 
aqui na cidade; dou-lhe camarote, dou-lhe chá, dou-lhe cama; só não lhe dou 
moça”. 
 
Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, 
mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por 
ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não 
achei melhor título para a minha narração; se não tiver outro daqui até ao fim do 
livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo 
rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é 
sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto. 
 
 
 
CAPÍTULO II 
DO LIVRO 
 
Agora que expliquei o título, passo a escrever o livro. Antes disso, porém, digamos 
os motivos que me põem a pena na mão. 
 
Vivo só, com um criado. A casa em que moro é própria; fi-la construir de 
propósito, levado de um desejo tão particular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. 
Um dia, há bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em 
que me criei na antiga Rua de Mata-cavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e 
economia daquela outra, que desapareceu. Construtor e pintor entenderam bem 
as indicações que lhes fiz: é o mesmo prédio assobradado, três janelas de frente, 
varanda ao fundo, as mesmas alcovas e salas. Na principal destas, a pintura do 
teto e das paredes é mais ou menos igual, umas grinaldas de flores miúdas e 
grandes pássaros que as tomam nos bicos, de espaço a espaço. Nos quatro cantos 
do teto as figuras das estações, e ao centro das paredes os medalhões de César, 
Augusto, Nero e Massinissa, com os nomes por baixo... Não alcanço a razão de 
tais personagens. Quando fomos para a casa de Mata-cavalos, já ela estava assim 
decorada; vinha do decênio anterior. Naturalmente era gosto do tempo meter 
sabor clássico e figuras antigas em pinturas americanas. O mais é também 
análogo e parecido. Tenho chacarinha, flores, legume, uma casuarina, um poço e 
lavadouro. Uso louça velha e mobília velha. Enfim, agora, como outrora, há aqui o 
mesmo contraste da vida interior, que é pacata, com a exterior, que é ruidosa. 
 
O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a 
adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em 
tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, 
vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mais falto eu 
mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui está é, mal comparando, semelhante à 
pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito 
externo, como se diz nas autópsias; o interno não agüenta tinta. Uma certidão que 
me desse vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os 
documentos falsos, mas não a mim. Os amigos que me restam são de data 
recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos-santos. Quanto às 
amigas, algumas datam de quinze anos, outras de menos, e quase todas crêem na 
mocidade. Duas ou três fariam crer nela aos outros, mas a língua que falam obriga 
muita vez a consultar os dicionários, e tal freqüência é cansativa. 
 
Entretanto, vida diferente não quer dizer vida pior; é outra coisa. A certos 
respeitos, aquela vida antiga aparece-me despida de muitos encantos que lhe 
achei; mas é também exato que perdeu muito espinho que a fez molesta, e, de 
memória, conservo alguma recordação doce e feiticeira. Em verdade, pouco 
apareço e menos falo. Distrações raras. O mais do tempo é gasto em hortar, 
jardinar e ler; como bem e não durmo mal. 
 
Ora, como tudo cansa, esta monotonia acabou por exaurir-me também. Quis 
variar, e lembrou-me escrever um livro. Jurisprudência, filosofia e política 
acudiram-me, mas não me acudiram as forças necessárias. Depois, pensei em 
fazer uma História dos Subúrbios, menos seca que as memórias do padre Luís 
Gonçalves dos Santos, relativas à cidade; era obra modesta, mas exigia 
documentos e datas, como preliminares, tudo árido e longo. Foi então que os 
bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que 
eles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contasse 
alguns. Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras viessem perpassar 
ligeiras, como ao poeta, não o do trem, mas o do Fausto: Aí vindes outra vez, 
inquietas sombras?... 
 
Fiquei tão alegre com esta idéia, que ainda agora me treme a pena na mão. Sim, 
Nero, Augusto, Massinissa, e tu, grande César, que me incitas a fazer os meus 
comentários, agradeço-vos o conselho, e vou deitar ao papel as reminiscências 
que me vierem vindo. Deste modo, viverei o que vivi, e assentarei a mão para 
alguma obra de maior tomo. Eia, comecemos a evocação por uma célebre tarde de 
novembro, que nunca me esqueceu. Tive outras muitas, melhores, e piores, mas 
aquela nunca se me apagou do espírito. É o que vais entender, lendo. 
 
 
 
CAPÍTULO III 
A DENÚNCIA 
 
Ia a entrar na sala de visitas, quando ouvi proferir o meu nome e escondi-me 
atrás da porta. A casa era a da rua de Mata-cavalos, o mês novembro, o ano é que 
é um tanto remoto, mas eu não hei de trocar as datas à minha vida só para 
agradar às pessoas que não amam histórias velhas; o ano era de 1857. 
 
— D. Glória, a senhora persiste na idéia de meter o nosso Bentinho no seminário? 
É mais que tempo, e já agora pode haver uma dificuldade. 
 
— Que dificuldade? 
 
— Uma grande dificuldade. 
 
Minha mãe quis saber o que era. José Dias, depois de alguns instantes de 
concentração, veio ver se havia alguém no corredor; não deu por mim, voltou e, 
abafando a voz, disse que a dificuldade estava na casa ao pé, a gente do Pádua. 
 
— A gente do Pádua? 
 
— Há algum tempo estou para lhe dizer isto, mas não me atrevia. Não me parece 
bonito que o nosso Bentinho ande metido nos cantos com a filha do Tartaruga, e 
esta é a dificuldade, porque se eles pegam de namoro, a senhora terá muito que 
lutar para separá-los. 
 
— Não acho. Metidos nos cantos? 
 
— É um modo de falar. Em segredinhos, sempre juntos. Bentinho quase não sai de 
lá. A pequena é uma desmiolada; o pai faz que não vê; tomara ele que as coisas 
corressem de maneira que... Compreendo o seu gesto; a senhora não crê em tais 
cálculos, parece-lhe que todos têm a alma cândida... 
 
— Mas, Sr. José Dias, tenho visto os pequenos brincando, e nunca vi nada que 
faça desconfiar. Basta a idade; Bentinho mal tem quinze anos. Capitu fez quatorzeà semana passada; são dois criançolas. Não se esqueça que foram criados juntos, 
desde aquela grande enchente, há dez anos, em que a família Pádua perdeu tanta 
coisa; daí vieram as nossas relações. Pois eu hei de crer? ... Mano Cosme, você 
que acha? 
 
Tio Cosme respondeu com um "Ora!" que, traduzido em vulgar, queria dizer: "São 
imaginações do José Dias; os pequenos divertem-se, eu divirto-me; onde está o 
gamão?" 
 
— Sim, creio que o senhor está enganado. 
 
— Pode ser, minha senhora. Oxalá tenham razão; mas creia que não falei senão 
depois de muito examinar... 
 
— Em todo caso, vai sendo tempo, interrompeu minha mãe; vou tratar de metê-lo 
no seminário quanto antes. 
 
— Bem, uma vez que não perdeu a idéia de o fazer padre, tem-se ganho o 
principal. Bentinho há de satisfazer os desejos de sua mãe. E depois a igreja 
brasileira tem altos destinos. Não esqueçamos que um bispo presidiu a 
Constituinte, e que o padre Feijó governou o Império... 
 
— Governo como a cara dele! atalhou tio Cosme, cedendo a antigos rancores 
políticos. 
 
— Perdão, doutor, não estou defendendo ninguém, estou citando. O que eu quero 
é dizer que o clero ainda tem grande papel no Brasil. 
 
— Você o que quer é um capote; ande, vá buscar o gamão. Quanto ao pequeno, 
se tem de ser padre, realmente é melhor que não comece a dizer missa atrás das 
portas. Mas, olhe cá, mana Glória, há mesmo necessidade de fazê-lo padre? 
 
— É promessa, há de cumprir-se. 
 
— Sei que você fez promessa... mas uma promessa assim... não sei... Creio que, 
bem pensado... Você que acha, prima Justina? 
 
— Eu? 
 
— Verdade é que cada um sabe melhor de si, continuou tio Cosme; Deus é que 
sabe de todos. Contudo, uma promessa de tantos anos... Mas, que é isso, mana 
Glória? Está chorando? Ora esta! Pois isto é coisa de lágrimas? 
 
Minha mãe assoou-se sem responder. Prima Justina creio que se levantou e foi ter 
com ela. Seguiu-se um alto silêncio, durante o qual estive a pique de entrar na 
sala, mas outra força maior, outra emoção... Não pude ouvir as palavras que tio 
Cosme entrou a dizer. Prima Justina exortava: "Prima Glória! Prima Glória!" José 
Dias desculpava-se: "Se soubesse, não teria falado, mas falei pela veneração, pela 
estima, pelo afeto, para cumprir um dever amargo, um dever amaríssimo...” 
 
 
 
CAPÍTULO IV 
UM DEVER AMARÍSSIMO! 
 
José Dias amava os superlativos. Era um modo de dar feição monumental às 
idéias; não as havendo, servia a prolongar as frases. Levantou-se para ir buscar o 
gamão, que estava no interior da casa. Cosi-me muito à parede, e vi-o passar com 
as suas calças brancas engomadas, presilhas, rodaque e gravata de mola. Foi dos 
últimos que usaram presilhas no Rio de Janeiro, e talvez neste mundo. Trazia as 
calças curtas para que lhe ficassem bem esticadas. A gravata de cetim preto, com 
um arco de aço por dentro, imobilizava-lhe o pescoço; era então moda. O rodaque 
de chita, veste caseira e leve, parecia nele uma casaca de cerimônia. Era magro, 
chupado, com um princípio de calva; teria os seus cinqüenta e cinco anos. 
Levantou-se com o passo vagaroso do costume, não aquele vagar arrastado dos 
preguiçosos, mas um vagar calculado e deduzido, um silogismo completo, a 
premissa antes da conseqüência, a conseqüência antes da conclusão. Um dever 
amaríssimo! 
 
 
 
CAPÍTULO V 
O AGREGADO 
 
Nem sempre ia naquele passo vagaroso e rígido. Também se descompunha em 
acionados, era muita vez rápido e lépido nos movimentos, tão natural nesta como 
naquela maneira. Outrossim, ria largo, se era preciso, de um grande riso sem 
vontade, mas comunicativo, a tal ponto as bochechas, os dentes, os olhos, toda a 
cara, toda a pessoa, todo o mundo pareciam rir nele. Nos lances graves, 
gravíssimo. 
 
Era nosso agregado desde muitos anos; meu pai ainda estava na antiga fazenda 
de Itaguaí, e eu acabava de nascer. Um dia apareceu ali vendendo-se por médico 
homeopata; levava um Manual e uma botica. Havia então um andaço de febres; 
José Dias curou o feitor e uma escrava, e não quis receber nenhuma remuneração. 
Então meu pai propôs-lhe ficar ali vivendo, com pequeno ordenado. José Dias 
recusou, dizendo que era justo levar a saúde à casa de sapé do pobre. 
 
— Quem lhe impede que vá a outras partes? Vá aonde quiser, mas fique morando 
conosco. 
 
— Voltarei daqui a três meses. 
 
Voltou dali a duas semanas, aceitou casa e comida sem outro estipêndio, salvo o 
que quisessem dar por festas. Quando meu pai foi eleito deputado e veio para o 
Rio de Janeiro com a família, ele veio também, e teve o seu quarto ao fundo da 
chácara. Um dia, reinando outra vez febres em Itaguaí, disse-lhe meu pai que 
fosse ver a nossa escravatura. José Dias deixou-se estar calado, suspirou e acabou 
confessando que não era médico. Tomara este título para ajudar a propaganda da 
nova escola, e não o fez sem estudar muito e muito; mas a consciência não lhe 
permitia aceitar mais doentes. 
 
— Mas, você curou das outras vezes. 
 
— Creio que sim; o mais acertado, porém, é dizer que foram os remédios 
indicados nos livros. Eles, sim; eles, abaixo de Deus. Eu era um charlatão... Não 
negue; os motivos do meu procedimento podiam ser e eram dignos; a homeopatia 
é a verdade, e, para servir à verdade, menti; mas é tempo de restabelecer tudo. 
 
Não foi despedido, como pedia então; meu pai já não podia dispensá-lo. Tinha o 
dom de se fazer aceito e necessário; dava-se por falta dele, como de pessoa da 
família. Quando meu pai morreu, a dor que o pungiu foi enorme, disseram-me, 
não me lembra. Minha mãe ficou-lhe muito grata, e não consentiu que ele 
deixasse o quarto da chácara; ao sétimo dia, depois da missa, ele foi despedir-se 
dela. 
 
— Fique, José Dias. 
 
— Obedeço, minha senhora. 
 
Teve um pequeno legado no testamento, uma apólice e quatro palavras de louvor. 
Copiou as palavras, encaixilhou-as e pendurou-as no quarto, por cima da cama. 
"Esta é a melhor apólice", dizia ele muita vez. Com o tempo, adquiriu certa 
autoridade na família, certa audiência, ao menos; não abusava, e sabia opinar 
obedecendo. Ao cabo, era amigo, não direi ótimo, mas nem tudo é ótimo neste 
mundo. E não lhe suponhas alma subalterna; as cortesias que fizesse vinham 
antes do cálculo que da índole. A roupa durava-lhe muito; ao contrário das 
pessoas que enxovalham depressa o vestido novo, ele trazia o velho escovado e 
liso, cerzido, abotoado, de uma elegância pobre e modesta. Era lido, posto que de 
atropelo, o bastante para divertir ao serão e à sobremesa, ou explicar algum 
fenômeno, falar dos efeitos do calor e do frio, dos pólos e de Robespierre. Contava 
muita vez uma viagem que fizera à Europa, e confessava que a não sermos nós, já 
teria voltado para lá; tinha amigos em Lisboa, mas a nossa família, dizia ele, 
abaixo de Deus, era tudo. 
 
— Abaixo ou acima? perguntou-lhe tio Cosme um dia. 
 
— Abaixo, repetiu José Dias cheio de veneração. 
 
E minha mãe, que era religiosa, gostou de ver que ele punha Deus no devido 
lugar, e sorriu aprovando. José Dias agradeceu de cabeça. Minha mãe dava-lhe de 
quando em quando alguns cobres. Tio Cosme, que era advogado, confiava-lhe a 
cópia de papéis de autos. 
 
 
 
CAPÍTULO VI 
TIO COSME 
 
Tio Cosme vivia com minha mãe, desde que ela enviuvou. Já então era viúvo, 
como prima Justina; era a casa dos três viúvos. 
 
A fortuna troca muita vez as mãos à natureza. Formado para as serenas funções 
do capitalismo, tio Cosme não enriquecia no foro: ia comendo. Tinha o escritório 
na antiga rua das Violas, perto do júri, que era no extinto Aljube. Trabalhava no 
crime. José Dias não perdia as defesas orais de tio Cosme. Era quem lhe vestia e 
despia a toga, com muitos cumprimentos no fim. Em casa, referia os debates. Tio 
Cosme, por mais modesto que quisesse ser, sorria de persuasão. 
 
Era gordo e pesado, tinha a respiração curta e os olhos dorminhocos. Uma das 
minhas recordações mais antigas era vê-lo montar todas as manhãs a besta que 
minha mãelhe deu e que o levava ao escritório. O preto que a tinha ido buscar à 
cocheira, segurava o freio, enquanto ele erguia o pé e pousava no estribo; a isto 
seguia-se um minuto de descanso ou reflexão. Depois, dava um impulso, o 
primeiro, o corpo ameaçava subir, mas não subia; segundo impulso, igual efeito. 
Enfim, após alguns instantes largos, tio Cosme enfeixava todas as forças físicas e 
morais, dava o último surto da terra, e desta vez caía em cima do selim. 
Raramente a besta deixava de mostrar por um gesto que acabava de receber o 
mundo. Tio Cosme acomodava as carnes, e a besta partia a trote. 
 
Também não me esqueceu o que ele me fez uma tarde. Posto que nascido na roça 
(donde vim com dois anos) e apesar dos costumes do tempo, eu não sabia 
montar, e tinha medo ao cavalo. Tio Cosme pegou em mim e escanchou-me em 
cima da besta. Quando me vi no alto (tinha nove anos), sozinho e desamparado, o 
chão lá embaixo, entrei a gritar desesperadamente: "Mamãe! mamãe!" Ela acudiu, 
pálida e trêmula, cuidou que me estivessem matando, apeou-me, afagou-me, 
enquanto o irmão perguntava: 
 
— Mana Glória, pois um tamanhão destes tem medo de besta mansa? 
 
— Não está acostumado. 
 
— Deve acostumar-se. Padre que seja, se for vigário na roça, é preciso que monte 
a cavalo; e, aqui mesmo, ainda não sendo padre, se quiser florear como os outros 
rapazes, e não souber, há de queixar-se de você, mana Glória. 
 
— Pois que se queixe; tenho medo. 
 
— Medo! Ora, medo! 
 
A verdade é que eu só vim a aprender equitação mais tarde, menos por gosto que 
por vergonha de dizer que não sabia montar. "Agora é que ele vai namorar 
deveras", disseram quando eu comecei as lições. Não se diria o mesmo de tio 
Cosme. Nele era velho costume e necessidade. Já não dava para namoros. 
Contam que, em rapaz, foi aceito de muitas damas, além de partidário exaltado; 
mas os anos levaram-lhe o mais do ardor político e sexual, e a gordura acabou 
com o resto de idéias públicas e específicas. Agora só cumpria as obrigações do 
ofício e sem amor. Nas horas de lazer vivia olhando ou jogava. Uma ou outra vez 
dizia pilhérias. 
 
 
 
CAPÍTULO VII 
D. GLÓRIA 
 
Minha mãe era boa criatura. Quando lhe morreu o marido, Pedro de Albuquerque 
Santiago, contava trinta e um anos de idade, e podia voltar para Itaguaí. Não 
quis; preferiu ficar perto da igreja em que meu pai fora sepultado. Vendeu a 
fazendola e os escravos, comprou alguns que pôs ao ganho ou alugou, uma dúzia 
de prédios, certo número de apólices, e deixou-se estar na casa de Mata-cavalos, 
onde vivera os dois últimos anos de casada. Era filha de uma senhora mineira, 
descendente de outra paulista, a família Fernandes. 
 
Ora, pois, naquele ano da graça de 1857, D. Maria da Glória Fernandes Santiago 
contava quarenta e dois anos de idade. Era ainda bonita e moça, mas teimava em 
esconder os saldos da juventude, por mais que a natureza quisesse preservá-la da 
ação do tempo. Vivia metida em um eterno vestido escuro, sem adornos, com um 
xale preto, dobrado em triângulo e abrochado ao peito por um camafeu. Os 
cabelos, em bandós, eram apanhados sobre a nuca por um velho pente de 
tartaruga; alguma vez trazia a touca branca de folhos. Lidava assim, com os seus 
sapatos de cordovão rasos e surdos, a um lado e outro, vendo e guiando os 
serviços todos da casa inteira, desde manhã até à noite. 
 
Tenho ali na parede o retrato dela, ao lado do marido, tais quais na outra casa. A 
pintura escureceu muito, mas ainda dá idéia de ambos. Não me lembra nada dele, 
a não ser vagamente que era alto e usava cabeleira grande; o retrato mostra uns 
olhos redondos, que me acompanham para todos os lados, efeito da pintura que 
me assombrava em pequeno. O pescoço sai de uma gravata preta de muitas 
voltas, a cara é toda rapada, salvo um trechozinho pegado às orelhas. O de minha 
mãe mostra que era linda. Contava então vinte anos, e tinha uma flor entre os 
dedos. No painel parece oferecer a flor ao marido. O que se lê na cara de ambos é 
que, se a felicidade conjugal pode ser comparada à sorte grande, eles a tiraram no 
bilhete comprado de sociedade. 
 
Concluo que não se devem abolir as loterias. Nenhum premiado as acusou ainda 
de imorais, como ninguém tachou de má a boceta de Pandora, por lhe ter ficado a 
esperança no fundo; em alguma parte há de ela ficar. Aqui os tenho aos dois bem 
casados de outrora, os bem-amados, os bem-aventurados, que se foram desta 
para a outra vida, continuar um sonho provavelmente. Quando a loteria e Pandora 
me aborrecem, ergo os olhos para eles, e esqueço os bilhetes brancos e a boceta 
fatídica. São retratos que valem por originais. O de minha mãe, estendendo a flor 
ao marido, parece dizer: "Sou toda sua, meu guapo cavalheiro!" O de meu pai, 
olhando para a gente, faz este comentário: "Vejam como esta moça me quer..." 
Se padeceram moléstias, não sei, como não sei se tiveram desgostos: era criança 
e comecei por não ser nascido. Depois da morte dele, lembra-me que ela chorou 
muito; mas aqui estão os retratos de ambos, sem que o encardido do tempo lhes 
tirasse a primeira expressão. São como fotografias instantâneas da felicidade. 
 
 
 
CAPÍTULO VIII 
É TEMPO 
 
Mas é tempo de tornar àquela tarde de novembro, uma tarde clara e fresca, 
sossegada como a nossa casa e o trecho da rua em que morávamos. 
Verdadeiramente foi o princípio da minha vida; tudo o que sucedera antes foi 
como o pintar e vestir das pessoas que tinham de entrar em cena, o acender das 
luzes, o preparo das rabecas, a sinfonia... Agora é que eu ia começar a minha 
ópera. "A vida é uma ópera", dizia-me um velho tenor italiano que aqui viveu e 
morreu... E explicou-me um dia a definição, em tal maneira que me fez crer nela. 
Talvez valha a pena dá-la; é só um capítulo. 
 
 
 
CAPÍTULO IX 
A ÓPERA 
 
Já não tinha voz, mas teimava em dizer que a tinha. "O desuso é que me faz mal", 
acrescentava. Sempre que uma companhia nova chegava da Europa, ia ao 
empresário e expunha-lhe todas as injustiças da Terra e do Céu; o empresário 
cometia mais uma, e ele saía a bradar contra a iniqüidade. Trazia ainda os bigodes 
dos seus papéis. Quando andava, apesar de velho, parecia cortejar uma princesa 
de Babilônia. Às vezes, cantarolava, sem abrir a boca, algum trecho ainda mais 
idoso que ele ou tanto; vozes assim abafadas são sempre possíveis. Vinha aqui 
jantar comigo algumas vezes. Uma noite, depois de muito Chianti, repetiu-me a 
definição do costume, e como eu lhe dissesse que a vida tanto podia ser uma 
ópera como uma viagem de mar ou uma batalha, abanou a cabeça e replicou: 
 
— A vida é uma ópera e uma grande ópera. O tenor e o barítono lutam pelo 
soprano, em presença do baixo e dos comprimários, quando não são o soprano e o 
contralto que lutam pelo tenor, em presença do mesmo baixo e dos mesmos 
comprimários. Há coros numerosos, muitos bailados, e a orquestração é 
excelente... 
 
— Mas, meu caro Marcolini... 
 
— Quê?... 
 
E, depois, de beber um gole de licor, pousou o cálice, e expôs-me a história da 
criação, com palavras que vou resumir. 
 
Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro, que 
aprendeu no conservatório do céu. Rival de Miguel, Rafael e Gabriel, não tolerava 
a precedência que eles tinham na distribuição dos prêmios. Pode ser também que 
a música em demasia doce e mística daqueles outros condiscípulos fosse 
aborrecível ao seu gênio essencialmente trágico. Tramou uma rebelião que foi 
descoberta a tempo, e ele expulso do conservatório. Tudo se teria passado sem 
mais nada, se Deus não houvesse escrito um libreto de ópera, do qual abrira mão, 
por entender que tal gênero de recreio era impróprio da sua eternidade. Satanás 
levou o manuscrito consigo para o inferno. Com o fim de mostrar que valia mais 
que os outros, — e acaso para reconciliar-se com o céu, — compôs a partitura, e 
logo que a acabou foi levá-la ao Padre Eterno. 
 
— Senhor, não desaprendi as lições recebidas, disse-lhe. Aqui tendes a partitura,escutai-a, emendai-a, fazei-a executar, e se a achardes digna das alturas, admiti-
me com ela a vossos pés... 
 
— Não, retorquiu o Senhor, não quero ouvir nada. 
 
— Mas, Senhor... 
 
— Nada! nada! 
 
Satanás suplicou ainda, sem melhor fortuna, até que Deus, cansado e cheio de 
misericórdia, consentiu em que a ópera fosse executada, mas fora do céu. Criou 
um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com todas as 
partes, primárias e comprimárias, coros e bailarinos. 
 
— Ouvi agora alguns ensaios! 
 
— Não, não quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libreto; estou 
pronto a dividir contigo os direitos de autor. 
 
Foi talvez um mal esta recusa; dela resultaram alguns desconcertos que a 
audiência prévia e a colaboração amiga teriam evitado. Com efeito, há lugares em 
que o verso vai para a direita e a música, para a esquerda. Não falta quem diga 
que nisso mesmo está a beleza da composição, fugindo à monotonia, e assim 
explicam o terceto do Éden, a ária de Abel, os coros da guilhotina e da escravidão. 
Não é raro que os mesmos lances se reproduzam, sem razão suficiente. Certos 
motivos cansam à força de repetição. Também há obscuridades; o maestro abusa 
das massas corais, encobrindo muita vez o sentido por um modo confuso. As 
partes orquestrais são aliás tratadas com grande perícia. Tal é a opinião dos 
imparciais. 
 
Os amigos do maestro querem que dificilmente se possa acha obra tão bem 
acabada. Um ou outro admite certas rudezas e tais ou quais lacunas, mas com o 
andar da ópera é provável que estas sejam preenchidas ou explicadas, e aquelas 
desapareçam inteiramente, não se negando o maestro a emendar a obra onde 
achar que não responde de todo ao pensamento sublime do poeta. Já não dizem o 
mesmo os amigos deste. Juram que o libreto foi sacrificado, que a partitura 
corrompeu o sentido da letra, e, posto seja bonita em alguns lugares, e trabalhada 
com arte em outros, é absolutamente diversa e até contrária ao drama. O 
grotesco, por exemplo, não está no texto do poeta; é uma excrescência para 
imitar as Mulheres Patuscas de Windsor. Este ponto é contestado pelos satanistas 
com alguma aparência de razão. Dizem eles que, ao tempo em que o jovem 
Satanás compôs a grande ópera, nem essa farsa nem Shakespeare eram nascidos. 
Chegam a afirmar que o poeta inglês não teve outro gênio senão transcrever a 
letra da ópera, com tal arte e fidelidade, que parece ele próprio o autor da 
composição; mas, evidentemente, é um plagiário. 
 
— Esta peça, concluiu o velho tenor, durará enquanto durar o teatro, não se 
podendo calcular em que tempo será ele demolido por utilidade astronômica. O 
êxito é crescente. Poeta e músico recebem pontualmente os seus direitos autorais, 
que não são os mesmos, porque a regra da divisão é aquilo da Escritura: "Muitos 
são os chamados, poucos os escolhidos". Deus recebe em ouro, Satanás em papel. 
 
— Tem graça... 
 
— Graça? bradou ele com fúria; mas aquietou-se logo, e replicou: Caro Santiago, 
eu não tenho graça, eu tenho horror à graça. Isto que digo é a verdade pura e 
última. Um dia, quando todos os livros forem queimados por inúteis, há de haver 
alguém, pode ser que tenor, e talvez italiano, que ensine esta verdade aos 
homens. Tudo é música, meu amigo. No princípio era o dó, e do dó fez-se ré, etc. 
Este cálice (e enchia-o novamente), este cálice é um breve estribilho. Não se 
ouve? Também não se ouve o pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma 
ópera... 
 
 
 
CAPÍTULO X 
ACEITO A TEORIA 
 
Que é demasiada metafísica para um só tenor, não há dúvida; mas a perda da voz 
explica tudo, e há filósofos que são, em resumo, tenores desempregados. 
 
Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela 
verossimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se 
casa bem à definição. Cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um 
quatuor... Mas não adiantemos; vamos à primeira parte, em que eu vim a saber 
que já cantava, porque a denúncia de José Dias, meu caro leitor, foi dada 
principalmente a mim. A mim é que ele me denunciou. 
 
 
 
CAPÍTULO XI 
A PROMESSA 
 
Tão depressa vi desaparecer o agregado no corredor, deixei o esconderijo, e corri 
à varanda do fundo. Não quis saber de lágrimas nem da causa que as fazia verter 
a minha mãe. A causa eram provavelmente os seus projetos eclesiásticos, e a 
ocasião destes é a que vou dizer, por ser já então história velha; datava de 
dezesseis anos. 
 
Os projetos vinham do tempo em que fui concebido. Tendo-lhe nascido morto o 
primeiro filho, minha mãe pegou-se com Deus para que o segundo vingasse, 
prometendo, se fosse varão, metê-lo na igreja. Talvez esperasse uma menina. 
Não disse nada a meu pai, nem antes, nem depois de me dar à luz; contava fazê-
lo quando eu entrasse para a escola, mas enviuvou antes disso. Viúva, sentiu o 
terror de separar-se de mim; mas era tão devota, tão temente a Deus, que 
buscou testemunhas da obrigação, confiando a promessa a parentes e familiares. 
Unicamente, para que nos separássemos o mais tarde possível, fez-me aprender 
em casa primeiras letras, latim e doutrina, por aquele padre Cabral, velho amigo 
do tio Cosme, que ia lá jogar às noites. 
 
Prazos largos são fáceis de subscrever; a imaginação os faz infinitos. Minha mãe 
esperou que os anos viessem vindo. Entretanto, ia-me afeiçoando à idéia da 
igreja; brincos de criança, livros devotos, imagens de santos, conversações de 
casa, tudo convergia para o altar. Quando íamos à missa, dizia-me sempre que 
era para aprender a ser padre, e que reparasse no padre, não tirasse os olhos do 
padre. Em casa, brincava de missa, — um tanto às escondidas, porque minha mãe 
dizia que missa não era coisa de brincadeira. Arranjávamos um altar, Capitu e eu. 
Ela servia de sacristão, e alterávamos o ritual, no sentido de dividirmos a hóstia 
entre nós; a hóstia era sempre um doce. No tempo em que brincávamos assim, 
era muito comum ouvir à minha vizinha: "Hoje há missa?" Eu já sabia o que isto 
queria dizer, respondia afirmativamente, e ia pedir hóstia por outro nome. Voltava 
com ela, arranjávamos o altar, engrolávamos o latim e precipitávamos as 
cerimônias. Dominus, non sum dignus... Isto, que eu devia dizer três vezes, penso 
que só dizia uma, tal era a gulodice do padre e do sacristão. Não bebíamos vinho 
nem água; não tínhamos o primeiro, e a segunda viria tirar-nos o gosto do 
sacrifício. 
 
Ultimamente não me falavam já do seminário, a tal ponto que eu supunha ser 
negócio findo. Quinze anos, não havendo vocação, pediam antes o seminário do 
mundo que o de São José. Minha mãe ficava muita vez a olhar para mim, como 
alma perdida, ou pegava-me na mão, a pretexto de nada, para apertá-la muito. 
 
 
 
CAPÍTULO XII 
NA VARANDA 
 
Parei na varanda; ia tonto, atordoado, as pernas bambas, o coração parecendo 
querer sair-me pela boca fora. Não me atrevia a descer à chácara, e passar ao 
quintal vizinho. Comecei a andar de um lado para outro, estacando para amparar-
me, e andava outra vez e estacava. Vozes confusas repetiam o discurso do José 
Dias: 
 
"Sempre juntos..." 
 
"Em segredinhos..." 
 
"Se eles pegam de namoro..." 
 
Tijolos que pisei e repisei naquela tarde, colunas amareladas que me passastes à 
direita ou à esquerda, segundo eu ia ou vinha, em vós me ficou a melhor parte da 
crise, a sensação de um gozo novo, que me envolvia em mim mesmo, e logo me 
dispersava, e me trazia arrepios, e me derramava não sei que bálsamo interior. Às 
vezes dava por mim, sorrindo, um ar de riso de satisfação, que desmentia a 
abominação do meu pecado. E as vozes repetiam-se confusas: 
 
"Em segredinhos..." 
 
"Sempre juntos..." 
 
"Se eles pegam de namoro..." 
 
Um coqueiro, vendo-me inquieto e adivinhando a causa, murmurou de cima de si 
que não era feio que os meninos de quinze anos andassem nos cantos com as 
meninas de quatorze; ao contrário, os adolescentes daquela idade não tinham 
outro ofício, nem os cantosoutra utilidade. Era um coqueiro velho, e eu cria nos 
coqueiros velhos, mais ainda que nos velhos livros. Pássaros, borboletas, uma 
cigarra que ensaiava o estio, toda a gente viva do ar era da mesma opinião. 
 
Com que então eu amava Capitu, e Capitu a mim? Realmente, andava cosido às 
saias dela, mas não me ocorria nada entre nós que fosse deveras secreto. Antes 
dela ir para o colégio, eram tudo travessuras de criança; depois que saiu do 
colégio, é certo que não restabelecemos logo a antiga intimidade, mas esta voltou 
pouco a pouco, e no último ano era completa. Entretanto, a matéria das nossas 
conversações era a de sempre. Capitu chamava-me às vezes bonito, mocetão, 
uma flor; outras pegava-me nas mãos para contar-me os dedos. E comecei a 
recordar esses e outros gestos e palavras, o prazer que sentia quando ela me 
passava a mão pelos cabelos, dizendo que os achava lindíssimos. Eu, sem fazer o 
mesmo aos dela, dizia que os dela eram muito mais lindos que os meus. Então 
Capitu abanava a cabeça com uma grande expressão de desengano e melancolia, 
tanto mais de espantar quanto que tinha os cabelos realmente admiráveis; mas eu 
retorquia chamando-lhe maluca. Quando me perguntava se sonhara com ela na 
véspera, e eu dizia que não, ouvia-lhe contar que sonhara comigo, e eram 
aventuras extraordinárias, que subíamos ao Corcovado pelo ar, que dançávamos 
na Lua, ou então que os anjos vinham perguntar-nos pelos nomes, a fim de os dar 
a outros anjos que acabavam de nascer. Em todos esses sonhos andávamos 
unidinhos. Os que eu tinha com ela não eram assim, apenas reproduziam a nossa 
familiaridade, e muita vez não passavam da simples repetição do dia, alguma 
frase, algum gesto. Também eu os contava. Capitu um dia notou a diferença, 
dizendo que os dela eram mais bonitos que os meus; eu, depois de certa 
hesitação, disse-lhe que eram como a pessoa que sonhava... Fez-se cor de 
pitanga. 
 
Pois, francamente, só agora entendia a comoção que me davam essas e outras 
confidências. A emoção era doce e nova, mas a causa dela fugia-me, sem que eu 
a buscasse nem suspeitasse. Os silêncios dos últimos dias, que me não 
descobriam nada, agora os sentia como sinais de alguma coisa, e assim as meias 
palavras, as perguntas curiosas, as respostas vagas, os cuidados, o gosto de 
recordar a infância. Também adverti que era fenômeno recente acordar com o 
pensamento em Capitu, e escutá-la de memória, e estremecer quando lhe ouvia 
os passos. Se se falava nela, em minha casa, prestava mais atenção que dantes, 
e, segundo era louvor ou crítica, assim me trazia gosto ou desgosto mais intensos 
que outrora, quando éramos somente companheiros de travessuras. Cheguei a 
pensar nela durante as missas daquele mês, com intervalos, é verdade, mas com 
exclusivismo também. 
 
Tudo isto me era agora apresentado pela boca de José Dias, que me denunciara a 
mim mesmo, e a quem eu perdoava tudo, o mal que dissera, o mal que fizera, e o 
que pudesse vir de um e de outro. Naquele instante, a eterna Verdade não valeria 
mais que ele, nem a eterna Bondade, nem as demais Virtudes eternas. Eu amava 
Capitu! Capitu amava-me! E as minhas pernas andavam, desandavam, 
estacavam, trêmulas e crentes de abarcar o mundo. Esse primeiro palpitar da 
seiva, essa revelação da consciência a si própria, nunca mais me esqueceu, nem 
achei que lhe fosse comparável qualquer outra sensação da mesma espécie. 
Naturalmente por ser minha. Naturalmente também por ser a primeira. 
 
 
 
CAPÍTULO XIII 
CAPITU 
 
De repente, ouvi bradar uma voz de dentro da casa ao pé: 
 
— Capitu! 
 
E no quintal: 
 
— Mamãe! 
 
E outra vez na casa: 
 
— Vem cá! 
 
Não me pude ter. As pernas desceram-me os três degraus que davam para a 
chácara, e caminharam para o quintal vizinho. Era costume delas, às tardes, e às 
manhãs também. Que as pernas também são pessoas, apenas inferiores aos 
braços, e valem de si mesmas, quando a cabeça não as rege por meio de idéias. 
As minhas chegaram ao pé do muro. Havia ali uma porta de comunicação 
mandada rasgar por minha mãe, quando Capitu e eu éramos pequenos. A porta 
não tinha chave nem taramela; abria-se empurrando de um lado ou puxando de 
outro, e fechava-se ao peso de uma pedra pendente de uma corda. Era quase que 
exclusivamente nossa. Em crianças, fazíamos visita batendo de um lado, e sendo 
recebidos do outro com muitas mesuras. Quando as bonecas de Capitu adoeciam, 
o médico era eu. Entrava no quintal dela com um pau debaixo do braço, para 
imitar o bengalão do doutor João da Costa; tomava o pulso à doente, e pedia-lhe 
que mostrasse a língua. "É surda, coitada!", exclamava Capitu. Então eu coçava o 
queixo, como o doutor, e acabava mandando aplicar-lhe umas sanguessugas ou 
dar-lhe um vomitório: era a terapêutica habitual do médico. 
 
— Capitu! 
 
— Mamãe! 
 
— Deixa de estar esburacando o muro; vem cá. 
 
A voz da mãe era agora mais perto, como se viesse já da porta dos fundos. Quis 
passar ao quintal, mas as pernas, há pouco tão andarilhas, pareciam agora presas 
ao chão. Afinal fiz um esforço, empurrei a porta, e entrei. Capitu estava ao pé do 
muro fronteiro, voltada para ele, riscando com um prego. O rumor da porta fê-la 
olhar para trás; ao dar comigo, encostou-se ao muro, como se quisesse esconder 
alguma coisa. Caminhei para ela; naturalmente levava o gesto mudado, porque 
ela veio a mim, e perguntou-me inquieta: 
 
— Que é que você tem? 
 
— Eu? Nada. 
 
— Nada, não; você tem alguma coisa. 
 
Quis insistir que nada, mas não achei língua. Todo eu era olhos e coração, um 
coração que desta vez ia sair, com certeza, pela boca fora. Não podia tirar os 
olhos daquela criatura de quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um 
vestido de chita, meio desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com 
as pontas atadas uma à outra, à moda do tempo, desciam-lhe pelas costas. 
Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo 
largo. As mãos, a despeito de alguns ofícios rudes, eram curadas com amor; não 
cheiravam a sabões finos nem águas de toucador, mas com água do poço e sabão 
comum trazia-as sem mácula. Calçava sapatos de duraque, rasos e velhos, a que 
ela mesma dera alguns pontos. 
 
— Que é que você tem? repetiu. 
 
— Não é nada, balbuciei finalmente. 
 
E emendei logo: 
 
— É uma notícia. 
 
— Notícia de quê? 
 
Pensei em dizer-lhe que ia entrar para o seminário e espreitar a impressão que lhe 
faria. Se a consternasse é que realmente gostava de mim; se não, é que não 
gostava. Mas todo esse cálculo foi obscuro e rápido; senti que não poderia falar 
claramente, tinha agora a vista não sei como... 
 
— Então? 
 
— Você sabe... 
 
Nisto olhei para o muro, o lugar em que ela estivera riscando, escrevendo ou 
esburacando, como dissera a mãe. Vi uns riscos abertos, e lembrou-me o gesto 
que ela fizera para cobri-los. Então quis vê-los de perto, e dei um passo. Capitu 
agarrou-me, mas, ou por temer que eu acabasse fugindo, ou por negar de outra 
maneira, correu adiante e apagou o escrito. Foi o mesmo que acender em mim o 
desejo de ler o que era. 
 
 
 
CAPÍTULO XIV 
A INSCRIÇÃO 
 
Tudo o que contei no fim do outro capítulo foi obra de um instante. O que se lhe 
seguiu foi ainda mais rápido. Dei um pulo, e antes que ela raspasse o muro, li 
estes dois nomes, abertos ao prego, e assim dispostos: 
 
BENTO 
 
CAPITOLINA 
 
Voltei-me para ela; Capitu tinha os olhos no chão. Ergueu-os logo, devagar, e 
ficamos a olhar um para o outro... Confissão de crianças, tu valias bem duas ou 
três páginas, mas quero ser poupado. Em verdade, não falamos nada; o muro 
falou por nós. Não nos movemos, as mãos é que se estenderam pouco a pouco, 
todas quatro, pegando-se, apertando-se, fundindo-se. Não marquei a hora exata 
daquele gesto. Devia tê-la marcado; sinto a falta de uma nota escrita naquela 
mesma noite, e que eu poria aqui com os erros de ortografia que trouxesse, mas 
não traria nenhum, tal era a diferença entre oestudante e o adolescente. 
Conhecia as regras do escrever, sem suspeitar as do amar; tinha orgias de latim e 
era virgem de mulheres. 
 
Não soltamos as mãos, nem elas se deixaram cair de cansadas ou de esquecidas. 
Os olhos fitavam-se e desfitavam-se, e depois de vagarem ao perto, tornavam a 
meter-se uns pelos outros... Padre futuro, estava assim diante dela como de um 
altar, sendo uma das faces a Epístola e a outra o Evangelho. A boca podia ser o 
cálice, os lábios a patena. Faltava dizer a missa nova, por um latim que ninguém 
aprende, e é a língua católica dos homens. Não me tenhas por sacrílego, leitora 
minha devota; a limpeza da intenção lava o que puder haver menos curial no 
estilo. Estávamos ali com o céu em nós. As mãos, unindo os nervos, faziam das 
duas criaturas uma só, mas uma só criatura seráfica. Os olhos continuaram a dizer 
coisas infinitas, as palavras de boca é que nem tentavam sair, tornavam ao 
coração caladas como vinham... 
 
 
 
 
CAPÍTULO XV 
OUTRA VOZ REPENTINA 
 
Outra voz repentina, mas desta vez uma voz de homem: 
 
— Vocês estão jogando o siso? 
 
Era o pai de Capitu, que estava à porta dos fundos, ao pé da mulher. Soltamos as 
mãos depressa, e ficamos atrapalhados. Capitu foi ao muro, e, com o prego, 
disfarçadamente, apagou os nossos nomes escritos. 
 
— Capitu! 
 
— Papai! 
 
— Não me estragues o reboco do muro. 
 
Capitu riscava sobre o riscado, para apagar bem o escrito. Pádua saiu ao quintal, a 
ver o que era, mas já a filha tinha começado outra coisa, um perfil, que disse ser o 
retrato dele, e tanto podia ser dele como da mãe; fê-lo rir, era o essencial. De 
resto, ele chegou sem cólera, todo meigo, apesar do gesto duvidoso ou menos que 
duvidoso em que nos apanhou. Era um homem baixo e grosso, pernas e braços 
curtos, costas abauladas, donde lhe veio a alcunha de Tartaruga, que José Dias lhe 
pôs. Ninguém lhe chamava assim lá em casa; era só o agregado. 
 
— Vocês estavam jogando o siso? perguntou. 
 
Olhei para um pé de sabugueiro que ficava perto; Capitu respondeu por ambos. 
 
— Estávamos, sim, senhor; mas Bentinho ri logo, não agüenta. 
 
— Quando eu cheguei à porta, não ria. 
 
— Já tinha rido das outras vezes; não pode. Papai quer ver? 
 
E séria, fitou em mim os olhos, convidando-me ao jogo. O susto é naturalmente 
sério; eu estava ainda sob a ação do que trouxe a entrada de Pádua, e não fui 
capaz de rir, por mais que devesse fazê-lo, para legitimar a resposta de Capitu. 
Esta, cansada de esperar, desviou o rosto, dizendo que eu não ria daquela vez por 
estar ao pé do pai. E nem assim ri. Há coisas que só se aprendem tarde; é mister 
nascer com elas para fazê-las cedo. E melhor é naturalmente cedo que 
artificialmente tarde. Capitu, após duas voltas, foi ter com a mãe, que continuava 
à porta da casa, deixando-nos a mim e ao pai encantados dela; o pai, olhando 
para ela e para mim, dizia-me, cheio de ternura: 
 
— Quem dirá que esta pequena tem quatorze anos? Parece dezessete. Mamãe 
está boa? continuou voltando-se inteiramente para mim. 
 
— Está. 
 
— Há muitos dias que não a vejo. Estou com vontade de dar um capote ao doutor, 
mas não tenho podido, ando com trabalhos da repartição em casa; escrevo todas 
as noites que é um desespero; negócio de relatório. Você já viu o meu gaturamo? 
Está ali no fundo. Ia agora mesmo buscar a gaiola; ande ver. 
 
Que o meu desejo era nenhum, crê-se facilmente, sem ser preciso jurar pelo Céu 
nem pela Terra. Meu desejo era ir atrás de Capitu e falar-lhe agora do mal que nos 
esperava; mas o pai era o pai, e demais amava particularmente os passarinhos. 
Tinha-os de vária espécie, cor e tamanho. A área que havia no centro da casa era 
cercada de gaiolas de canários, que faziam cantando um barulho de todos os 
diabos. Trocava pássaros com outros amadores, comprava-os, apanhava alguns, 
no próprio quintal, armando alçapões. Também, se adoeciam, tratava deles como 
se fossem gente. 
 
 
 
CAPÍTULO XVI 
O ADMINISTRADOR INTERINO 
 
Pádua era empregado em repartição dependente do ministério da guerra. Não 
ganhava muito, mas a mulher gastava pouco, e a vida era barata. Demais, a casa 
em que morava, assobradada como a nossa, posto que menor, era propriedade 
dele. Comprou-a com a sorte grande que lhe saiu num meio bilhete de loteria, dez 
contos de réis. A primeira idéia do Pádua, quando lhe saiu o prêmio, foi comprar 
um cavalo do Cabo, um adereço de brilhantes para a mulher, uma sepultura 
perpétua de família, mandar vir da Europa alguns pássaros, etc.; mas a mulher, 
esta D. Fortunata que ali está à porta dos fundos da casa, em pé, falando à filha, 
alta, forte, cheia, como a filha, a mesma cabeça, os mesmos olhos claros, a 
mulher é que lhe disse que o melhor era comprar a casa, e guardar o que 
sobrasse para acudir às moléstias grandes. Pádua hesitou muito; afinal, teve de 
ceder aos conselhos de minha mãe, a quem D. Fortunata pediu auxílio. Nem foi só 
nessa ocasião que minha mãe lhes valeu; um dia chegou a salvar a vida do Pádua. 
Escutai; a anedota é curta. 
 
O administrador da repartição em que Pádua trabalhava teve de ir ao Norte, em 
comissão. Pádua, ou por ordem regulamentar, ou por especial designação, ficou 
substituindo o administrador com os respectivos honorários. Esta mudança de 
fortuna trouxe-lhe certa vertigem; era antes dos dez contos. Não se contentou de 
reformar a roupa e a copa, atirou-se às despesas supérfluas, deu jóias à mulher, 
nos dias de festa matava um leitão, era visto em teatros, chegou aos sapatos de 
verniz. Viveu assim vinte e dois meses na suposição de uma eterna interinidade. 
Uma tarde entrou em nossa casa, aflito e desvairado, ia perder o lugar, porque 
chegara o efetivo naquela manhã. Pediu à minha mãe que velasse pelas infelizes 
que deixava; não podia sofrer a desgraça, matava-se. Minha mãe falou-lhe com 
bondade, mas ele não atendia a coisa nenhuma. 
 
— Não, minha senhora, não consentirei em tal vergonha! Fazer descer a família, 
tornar atrás... Já disse, mato-me! Não hei de confessar à minha gente esta 
miséria. E os outros? Que dirão os vizinhos? E os amigos? E o público? 
 
— Que público, Sr. Pádua? Deixe-se disso; seja homem. Lembre-se que sua 
mulher não tem outra pessoa... e que há de fazer? Pois um homem... Seja 
homem, ande. 
 
Pádua enxugou os olhos e foi para casa, onde viveu prostrado alguns dias, mudo, 
fechado na alcova, — ou então no quintal, ao pé do poço, como se a idéia da 
morte teimasse nele. D. Fortunata ralhava: 
 
— Joãozinho, você é criança? 
 
Mas, tanto lhe ouviu falar em morte que teve medo, e um dia correu a pedir à 
minha mãe que lhe fizesse o favor de ver se lhe salvava o marido que se queria 
matar. Minha mãe foi achá-lo à beira do poço, e intimou-lhe que vivesse. Que 
maluquice era aquela de parecer que ia ficar desgraçado, por causa de uma 
gratificação menos, e perder um emprego interino? Não, senhor, devia ser 
homem, pai de família, imitar a mulher e a filha... Pádua obedeceu; confessou que 
acharia forças para cumprir a vontade de minha mãe. 
 
— Vontade minha, não; obrigação sua. 
 
— Pois seja obrigação; não desconheço que é assim mesmo. 
 
Nos dias seguintes, continuou a entrar e sair de casa, cosido à parede, cara no 
chão. Não era o mesmo homem que estragava o chapéu em cortejar a vizinhança, 
risonho, olhos no ar, antes mesmo da administração interina. Vieram as semanas, 
a ferida foi sarando. Pádua começou a interessar-se pelos negócios domésticos, a 
cuidar dos passarinhos, a dormir tranqüilo as noites e as tardes, a conversar e dar 
notícias da rua. A serenidade regressou; atrás dela veio a alegria, um domingo, na 
figura de dois amigos, que iam jogar o solo, a tentos. Já ele ria, já brincava, tinha 
o ar do costume; a ferida sarou de todo. 
 
Com o tempo veio um fenômeno interessante. Pádua começou a falar da 
administração interina, não somente sem as saudades dos honorários, nem o 
vexame da perda, mas até com desvanecimento e orgulho. A administraçãoficou 
sendo a hégira, donde ele contava para diante e para trás. 
 
— No tempo em que eu era administrador... 
 
Ou então: 
 
— Ah! sim, lembra-me, foi antes da minha administração, um ou dois meses 
antes... Ora espere; a minha administração começou... É isto, mês e meio antes; 
foi mês e meio antes, não foi mais. 
 
Ou ainda: 
 
— Justamente; havia já seis meses que eu administrava... 
 
Tal é o sabor póstumo das glórias interinas. José Dias bradava que era a vaidade 
sobrevivente; mas o padre Cabral, que levava tudo para a Escritura, dizia que com 
o vizinho Pádua se dava a lição de Elifás a Jó: "Não desprezes a correção do 
Senhor; Ele fere e cura". 
 
 
 
CAPÍTULO XVII 
OS VERMES 
 
"Ele fere e cura!". Quando, mais tarde, vim a saber que a lança de Aquiles 
também curou uma ferida que fez, tive tais ou quais veleidades de escrever uma 
dissertação a este propósito. Cheguei a pegar em livros velhos, livros mortos, 
livros enterrados, a abri-los, a compará-los, catando o texto e o sentido, para 
achar a origem comum do oráculo pagão e do pensamento israelita. Catei os 
próprios vermes dos livros, para que me dissessem o que havia nos textos roídos 
por eles. 
 
— Meu senhor, respondeu-me um longo verme gordo, nós não sabemos 
absolutamente nada dos textos que roemos, nem escolhemos o que roemos, nem 
amamos ou detestamos o que roemos; nós roemos. 
 
Não lhe arranquei mais nada. Os outros todos, como se houvessem passado 
palavra, repetiam a mesma cantilena. Talvez esse discreto silêncio sobre os textos 
roídos fosse ainda um modo de roer o roído. 
 
 
 
CAPÍTULO XVIII 
UM PLANO 
 
Pai nem mãe foram ter conosco, quando Capitu e eu, na sala de visitas, falávamos 
do seminário. Com os olhos em mim, Capitu queria saber que notícia era a que me 
afligia tanto. Quando lhe disse o que era, fez-se cor de cera. 
 
— Mas eu não quero, acudi logo, não quero entrar em seminários; não entro, é 
escusado teimarem comigo; não entro. 
 
Capitu, a princípio, não disse nada. Recolheu os olhos, meteu-os em si e deixou-se 
estar com as pupilas vagas e surdas, a boca entreaberta, toda parada. Então eu, 
para dar força às afirmações, comecei a jurar que não seria padre. Naquele tempo 
jurava muito e rijo, pela vida e pela morte. Jurei pela hora da morte. Que a luz me 
faltasse na hora da morte se fosse para o seminário. Capitu não parecia crer nem 
descrer, não parecia sequer ouvir; era uma figura de pau. Quis chamá-la, sacudi-
la, mas faltou-me ânimo. Essa criatura que brincara comigo, que pulara, dançara, 
creio até que dormira comigo, deixava-me agora com os braços atados e 
medrosos. Enfim, tornou a si, mas tinha a cara lívida, e rompeu nestas palavras 
furiosas: 
 
— Beata! carola! papa-missas! 
 
Fiquei aturdido. Capitu gostava tanto de minha mãe, e minha mãe dela, que eu 
não podia entender tamanha explosão. É verdade que também gostava de mim, e 
naturalmente mais, ou melhor, ou de outra maneira, coisa bastante a explicar o 
despeito que lhe trazia a ameaça da separação; mas os impropérios, como 
entender que lhe chamasse nomes tão feios, e principalmente para deprimir 
costumes religiosos, que eram os seus? Que ela também ia à missa, e três ou 
quatro vezes minha mãe é que a levou, na nossa velha sege. Também lhe dera 
um rosário, uma cruz de ouro e um livro de Horas... Quis defendê-la, mas Capitu 
não me deixou, continuou a chamar-lhe beata e carola, em voz tão alta que tive 
medo fosse ouvida dos pais. Nunca a vi tão irritada como então; parecia disposta 
a dizer tudo a todos. Cerrava os dentes, abanava a cabeça... Eu, assustado, não 
sabia que fizesse; repetia os juramentos, prometia ir naquela mesma noite 
declarar em casa que, por nada neste mundo, entraria no seminário. 
 
— Você? Você entra. 
 
— Não entro. 
 
— Você verá se entra ou não. 
 
Calou-se outra vez. Quando tornou a falar, tinha mudado; não era ainda a Capitu 
do costume, mas quase. Estava séria, sem aflição, falava baixo. Quis saber a 
conversação da minha casa; eu contei-lha toda, menos a parte que lhe dizia 
respeito. 
 
— E que interesse tem José Dias em lembrar isto? perguntou-me no fim. 
 
— Acho que nenhum; foi só para fazer mal. É um sujeito muito ruim; mas, deixe 
estar que me há de pagar. Quando eu for dono da casa, quem vai para a rua é 
ele, você verá; não me fica um instante. Mamãe é boa demais; dá-lhe atenção 
demais. Parece até que chorou. 
 
— José Dias? 
 
— Não, mamãe. 
 
— Chorou por quê? 
 
— Não sei; ouvi só dizer que ela não chorasse, que não era coisa de choro... Ele 
chegou a mostrar-se arrependido, e saiu; eu então, para não ser apanhado, deixei 
o canto e corri para a varanda. Mas, deixe estar, que ele me paga! 
 
Disse isto fechando o punho, e proferi outras ameaças. Ao relembrá-las, não me 
acho ridículo; a adolescência e a infância não são, neste ponto, ridículas; é um dos 
seus privilégios. Este mal ou este perigo começa na mocidade, cresce na 
madureza e atinge o maior grau na velhice. Aos quinze anos, há até certa graça 
em ameaçar muito e não executar nada. 
 
Capitu refletia. A reflexão não era coisa rara nela, e conheciam-se as ocasiões pelo 
apertado dos olhos. Pediu-me algumas circunstâncias mais, as próprias palavras 
de uns e de outros, e o tom delas. Como eu não queria dizer o ponto inicial da 
conversa, que era ela mesma, não lhe pude dar toda a significação. A atenção de 
Capitu estava agora particularmente nas lágrimas de minha mãe; não acabava de 
entendê-las. Em meio disto, confessou que certamente não era por mal que minha 
mãe me queria fazer padre; era a promessa antiga, que ela, temente a Deus, não 
podia deixar de cumprir. Fiquei tão satisfeito de ver que assim espontaneamente 
reparava as injúrias que lhe saíram do peito, pouco antes, que peguei da mão dela 
e apertei-a muito. Capitu deixou-se ir, rindo; depois a conversa entrou a cochilar e 
dormir. Tínhamos chegado à janela; um preto, que, desde algum tempo, vinha 
apregoando cocadas, parou em frente e perguntou: 
 
— Sinhazinha, qué cocada hoje? 
 
— Não, respondeu Capitu. 
 
— Cocadinha tá boa. 
 
— Vá-se embora, replicou ela sem rispidez. 
 
— Dê cá! disse eu descendo o braço para receber duas. 
 
Comprei-as, mas tive de as comer sozinho; Capitu recusou. Vi que, em meio da 
crise, eu conservava um canto para as cocadas, o que tanto pode ser perfeição 
como imperfeição, mas o momento não é para definições tais; fiquemos em que a 
minha amiga, apesar de equilibrada e lúcida, não quis saber de doce, e gostava 
muito de doce. Ao contrário, o pregão que o preto foi cantando, o pregão das 
velhas tardes, tão sabido do bairro e da nossa infância: 
 
Chora, menina, chora, 
Chora, porque não tem 
 Vintém, 
 
a modo que lhe deixara uma impressão aborrecida. Da toada não era; ela a sabia 
de cor e de longe, usava repeti-la nos nossos jogos da puerícia, rindo, saltando, 
trocando os papéis comigo, ora vendendo, ora comprando um doce ausente. Creio 
que a letra, destinada a picar a vaidade das crianças, foi que a enojou agora, 
porque logo depois me disse: 
 
— Se eu fosse rica, você fugia, metia-se no paquete e ia para a Europa. 
 
Dito isto, espreitou-me os olhos, mas creio que eles não lhe disseram nada, ou só 
agradeceram a boa intenção. Com efeito, o sentimento era tão amigo que eu 
podia escusar o extraordinário da aventura. 
 
Como vês, Capitu, aos quatorze anos, tinha já idéias atrevidas, muito menos que 
outras que lhe vieram depois; mas eram só atrevidas em si, na prática faziam-se 
hábeis, sinuosas, surdas, e alcançavam o fim proposto, não de salto, mas aos 
saltinhos. Não sei se me explico bem. Suponde uma concepção grande executada 
por meios pequenos. Assim, para não sair do desejo vago e hipotético de me 
mandar para a Europa, Capitu, se pudesse cumpri-lo, não me faria embarcar no 
paquete e fugir; estenderia uma fila de canoas daqui até lá, por onde eu, 
parecendo ir à fortaleza da Laje em ponte movediça, iria realmente até Bordéus,deixando minha mãe na praia, à espera. Tal era a feição particular do caráter da 
minha amiga; pelo que, não admira que, combatendo os meus projetos de 
resistência franca, fosse antes pelos meios brandos, pela ação do empenho, da 
palavra, da persuasão lenta e diuturna, e examinasse antes as pessoas com quem 
podíamos contar. Rejeitou tio Cosme; era um "boa-vida"; se não aprovava a 
minha ordenação, não era capaz de dar um passo para suspendê-la. Prima Justina 
era melhor que ele, e melhor que os dois seria o Padre Cabral, pela autoridade, 
mas o padre não havia de trabalhar contra a igreja; só se eu lhe confessasse que 
não tinha vocação... 
 
— Posso confessar? 
 
— Pois, sim, mas seria aparecer francamente, e o melhor é outra coisa. José 
Dias... 
 
— Que tem José Dias? 
 
— Pode ser um bom empenho. 
 
— Mas se foi ele mesmo que falou... 
 
— Não importa, continuou Capitu; dirá agora outra coisa. Ele gosta muito de você. 
Não lhe fale acanhado. Tudo é que você não tenha medo, mostre que há de vir a 
ser dono da casa, mostre que quer e que pode. Dê-lhe bem a entender que não é 
favor. Faça-lhe também elogios; ele gosta muito de ser elogiado. D. Glória presta-
lhe atenção; mas o principal não é isso; é que ele, tendo de servir a você, falará 
com muito mais calor que outra pessoa. 
 
— Não acho, não, Capitu. 
 
— Então vá para o seminário. 
 
— Isso não. 
 
— Mas que se perde em experimentar? Experimentemos; faça o que lhe digo. 
Dona Glória pode ser que mude de resolução; se não mudar, faz-se outra coisa, 
mete-se então o Padre Cabral. Você não se lembra como é que foi ao teatro pela 
primeira vez, há dois meses? D. Glória não queria, e bastava isso para que José 
Dias não teimasse; mas ele queria ir, e fez um discurso, lembra-se? 
 
— Lembra-me; disse que o teatro era uma escola de costumes. 
 
— Justo; tanto falou que sua mãe acabou consentindo, e pagou a entrada aos 
dois... Ande, peça, mande. Olhe; diga-lhe que está pronto a ir estudar leis em São 
Paulo. 
 
Estremeci de prazer. São Paulo era um frágil biombo, destinado a ser arredado um 
dia, em vez da grossa parede espiritual e eterna. Prometi falar a José Dias nos 
termos propostos. Capitu repetiu-os, acentuando alguns, como principais; e 
inquiria-me depois sobre eles, a ver se entendera bem, se não trocara uns por 
outros. E insistia em que pedisse com boa cara, mas assim como quem pede um 
copo de água a pessoa que tem obrigação de o trazer. Conto estas minúcias para 
que melhor se entenda aquela manhã da minha amiga; logo virá a tarde, e da 
manhã e da tarde se fará o primeiro dia, como no Gênesis, onde se fizeram 
sucessivamente sete. 
 
 
 
CAPÍTULO XIX 
SEM FALTA 
 
Quando voltei a casa era noite. Vim depressa, não tanto, porém, que não 
pensasse nos termos em que falaria ao agregado. Formulei o pedido de cabeça, 
escolhendo as palavras que diria e o tom delas, entre seco e benévolo. Na 
chácara, antes de entrar em casa, repeti-as comigo, depois em voz alta, para ver 
se eram adequadas e se obedeciam às recomendações de Capitu: "Preciso falar-
lhe, sem falta, amanhã; escolha o lugar e diga-me". Proferi-as lentamente, e mais 
lentamente ainda as palavras sem falta, como para sublinhá-las. Repeti-as ainda, 
e então achei-as secas demais, quase ríspidas, e, francamente, impróprias de um 
criançola para um homem maduro. Cuidei de escolher outras, e parei. 
 
Afinal disse comigo que as palavras podiam servir, tudo era dizê-las em tom que 
não ofendesse. E a prova é que, repetindo-as novamente, saíram-me quase 
súplices. Bastava não carregar tanto, nem adoçar muito, um meio-termo. "E 
Capitu tem razão, pensei, a casa é minha, ele é um simples agregado... Jeitoso é, 
pode muito bem trabalhar por mim, e desfazer o plano de mamãe." 
 
 
 
CAPÍTULO XX 
MIL PADRE-NOSSOS E MIL AVE-MARIAS 
 
Levantei os olhos ao céu, que começava a embruscar-se, mas não foi para vê-lo 
coberto ou descoberto. Era ao outro Céu que eu erguia a minha alma; era ao meu 
refúgio, ao meu amigo. E então disse de mim para mim: "Prometo rezar mil 
padre-nossos e mil ave-marias, se José Dias arranjar que eu não vá para o 
seminário". 
 
A soma era enorme. A razão é que eu andava carregado de promessas não 
cumpridas. A última foi de duzentos padre-nossos e duzentas ave-marias, se não 
chovesse em certa tarde de passeio a Santa Teresa. Não choveu, mas eu não rezei 
as orações. Desde pequenino acostumara-me a pedir ao Céu os seus favores, 
mediante orações que diria, se eles viessem. Disse as primeiras, as outras foram 
adiadas, e à medida que se amontoavam iam sendo esquecidas. Assim cheguei 
aos números vinte, trinta, cinqüenta. Entrei nas centenas e agora no milhar. Era 
um modo de peitar a vontade divina pela quantia das orações; além disso, cada 
promessa nova era feita e jurada no sentido de pagar a dívida antiga. Mas vão lá 
matar a preguiça de uma alma que a trazia do berço e não a sentia atenuada pela 
vida! O Céu fazia-me o favor, eu adiava a paga. Afinal perdi-me nas contas. 
 
— Mil, mil, repeti comigo. 
 
Realmente, a matéria do benefício era agora imensa, não menos que a salvação 
ou o naufrágio da minha existência inteira. Mil, mil, mil. Era preciso uma soma que 
pagasse os atrasados todos. Deus podia muito bem, irritado com os 
esquecimentos, negar-se a ouvir-me sem muito dinheiro... Homem grave, é 
possível que estas agitações de menino te enfadem, se é que não as achas 
ridículas. Sublimes não eram. Cogitei muito no modo de resgatar a dívida 
espiritual. Não achava outra espécie em que, mediante a intenção, tudo se 
cumprisse, fechando a escrituração da minha consciência moral sem deficit. 
Mandar dizer cem missas, ou subir de joelhos a ladeira da Glória para ouvir uma, 
ir à Terra Santa, tudo o que as velhas escravas me contavam de promessas 
célebres, tudo me acudia sem se fixar de vez no espírito. Era muito duro subir 
uma ladeira de joelhos; devia feri-los por força. A Terra Santa ficava muito longe. 
As missas eram numerosas, podiam empenhar-me outra vez a alma... 
 
 
 
CAPÍTULO XXI 
PRIMA JUSTINA 
 
Na varanda achei prima Justina, passeando de um lado para outro. Veio ao 
patamar e perguntou-me onde estivera. 
 
— Estive aqui ao pé, conversando com D. Fortunata, e distraí-me. É tarde, não é? 
Mamãe perguntou por mim? 
 
— Perguntou, mas eu disse que você já tinha vindo. 
 
A mentira espantou-me, não menos que a franqueza da notícia. Não é que prima 
Justina fosse de biocos, dizia francamente a Pedro o mal que pensava de Paulo, e 
a Paulo o que pensava de Pedro; mas, confessar que mentira é que me pareceu 
novidade. Era quadragenária, magra e pálida, boca fina e olhos curiosos. Vivia 
conosco por favor de minha mãe, e também por interesse; minha mãe queria ter 
uma senhora íntima ao pé de si, e antes parenta que estranha. 
 
Passeamos alguns minutos na varanda, alumiada por um lampião. Quis saber se 
eu não esquecera os projetos eclesiásticos de minha mãe, e dizendo-lhe eu que 
não, inquiriu-me sobre o gosto que eu tinha à vida de padre. Respondi esquivo: 
 
— Vida de padre é muito bonita. 
 
— Sim, é bonita; mas o que pergunto é se você gostaria de ser padre, explicou 
rindo. 
 
— Eu gosto do que mamãe quiser. 
 
— Prima Glória deseja muito que você se ordene, mas ainda que não desejasse, 
há cá em casa quem lhe meta isso na cabeça. 
 
— Quem é? 
 
— Ora, quem! Quem é que há de ser? Primo Cosme não é, que não se importa 
com isso; eu também não. 
 
— José Dias? concluí. 
 
— Naturalmente. 
 
Enruguei a testa interrogativamente, como se não soubesse nada. Prima Justina 
completou a notícia dizendo que ainda naquela tarde José Dias lembrara a minha 
mãe a promessa antiga. 
 
— Prima Glória pode ser que, em passando os dias, vá esquecendo a promessa; 
mas como há de esquecer se uma pessoa estiver sempre, nos ouvidos, zás que 
darás, falando do seminário? E os discursos que ele faz, os elogios da igreja, e que 
a vida de padre é isto e aquilo, tudo com aquelaspalavras que só ele conhece, e 
aquela afetação... Note que é só para fazer mal, porque ele é tão religioso como 
este lampião. Pois é verdade, ainda hoje. Você não se dê por achado... Hoje de 
tarde falou como você não imagina... 
 
— Mas falou à toa? perguntei, a ver se ela contava a denúncia do meu namoro 
com a vizinha. 
 
Não contou; fez apenas um gesto como indicando que havia outra coisa que não 
podia dizer. Novamente me recomendou que não me desse por achado, e 
recapitulou todo o mal que pensava de José Dias, e não era pouco, um intrigante, 
um bajulador, um especulador, e, apesar da casca de polidez, um grosseirão. Eu, 
passados alguns instantes, disse: 
 
— Prima Justina, a senhora era capaz de uma coisa? 
 
— De quê? 
 
— Era capaz de... Suponha que eu não gostasse de ser padre... a senhora podia 
pedir a mamãe... 
 
— Isso não, atalhou prontamente; prima Glória tem este negócio firme na cabeça, 
e não há nada no mundo que a faça mudar de resolução; só o tempo. Você ainda 
era pequenino, já ela contava isto a todas as pessoas da nossa amizade, ou só 
conhecidas. Lá avivar-lhe a memória, não, que eu não trabalho para a desgraça 
dos outros; mas também, pedir outra coisa, não peço. Se ela me consultasse, 
bem; se ela me dissesse: "Prima Justina, você que acha?", a minha resposta era: 
"Prima Glória, eu penso que, se ele gosta de ser padre, pode ir; mas, se não 
gosta, o melhor é ficar". É o que eu diria e direi se ela me consultar algum dia. 
Agora, ir falar-lhe sem ser chamada, não faço. 
 
 
 
CAPÍTULO XXII 
SENSAÇÕES ALHEIAS 
 
Não alcancei mais nada, e para o fim arrependi-me do pedido: devia ter seguido o 
conselho de Capitu. Então, como eu quisesse ir para dentro, prima Justina reteve-
me alguns minutos, falando do calor e da próxima festa da Conceição, dos meus 
velhos oratórios, e finalmente de Capitu. Não disse mal dela; ao contrário, 
insinuou-me que podia vir a ser uma moça bonita. Eu, que já a achava lindíssima, 
bradaria que era a mais bela criatura do mundo, se o receio me não fizesse 
discreto. Entretanto, como prima Justina se metesse a elogiar-lhe os modos, a 
gravidade, os costumes, o trabalhar para os seus, o amor que tinha a minha mãe, 
tudo isto me acendeu a ponto de elogiá-la também. Quando não era com palavras, 
era com o gesto de aprovação que dava a cada uma das asserções da outra, e 
certamente com a felicidade que devia iluminar-me a cara. Não adverti que assim 
confirmava a denúncia de José Dias, ouvida por ela, à tarde, na sala de visitas, se 
é que também ela não desconfiava já. Só pensei nisso na cama. Só então senti 
que os olhos de prima Justina, quando eu falava, pareciam apalpar-me, ouvir-me, 
cheirar-me, gostar-me, fazer o ofício de todos os sentidos. Ciúmes não podiam 
ser; entre um pirralho da minha idade e uma viúva quarentona não havia lugar 
para ciúmes. É certo que, após algum tempo, modificou os elogios a Capitu, e até 
lhe fez algumas críticas, disse-me que era um pouco trêfega e olhava por baixo; 
mas ainda assim, não creio que fossem ciúmes. Creio antes... sim... sim, creio 
isto. Creio que prima Justina achou no espetáculo das sensações alheias uma 
ressurreição vaga das próprias. Também se goza por influição dos lábios que 
narram. 
 
 
 
CAPÍTULO XXIII 
PRAZO DADO 
 
— Preciso falar-lhe amanhã, sem falta; escolha o lugar e diga-me. 
 
Creio que José Dias achou desusado este meu falar. O tom não me saíra tão 
imperativo como eu receava, mas as palavras o eram, e o não interrogar, não 
pedir, não hesitar, como era próprio da criança e do meu estilo habitual, 
certamente lhe deu idéia de uma pessoa nova e de uma nova situação. Foi no 
corredor, quando íamos para o chá; José Dias vinha andando cheio da leitura de 
Walter Scott que fizera a minha mãe e a prima Justina. Lia cantado e compassado. 
Os castelos e os parques saíam maiores da boca dele, os lagos tinham mais água 
e a "abóbada celeste" contava alguns milhares mais de estrelas cintilantes. Nos 
diálogos, alternava o som das vozes, que eram levemente grossas ou finas, 
conforme o sexo dos interlocutores, e reproduziam com moderação a ternura e a 
cólera. 
 
Ao despedir-se de mim, na varanda, disse-me ele: 
 
— Amanhã, na rua. Tenho umas compras que fazer, você pode ir comigo, pedirei a 
mamãe. É dia de lição? 
 
— A lição foi hoje. 
 
— Perfeitamente. Não lhe pergunto o que é; afirmo desde já que é matéria grave 
e pura. 
 
— Sim, senhor. 
 
— Até amanhã. 
 
Fez-se tudo o melhor possível. Houve só uma alteração; minha mãe achou o dia 
quente e não consentiu que eu fosse a pé; entramos no ônibus, à porta de casa. 
 
— Não importa, disse-me José Dias; podemos apear-nos à porta do Passeio 
Público. 
 
 
 
CAPÍTULO XXIV 
DE MÃE E DE SERVO 
 
José Dias tratava-me com extremos de mãe e atenções de servo. A primeira coisa 
que conseguiu logo que comecei a andar fora, foi dispensar-me o pajem; fez-se 
pajem, ia comigo à rua. Cuidava dos meus arranjos em casa, dos meus livros, dos 
meus sapatos, da minha higiene e da minha prosódia. Aos oito anos os meus 
plurais careciam, alguma vez, da desinência exata, ele a corrigia, meio sério para 
dar autoridade à lição, meio risonho para obter o perdão da emenda. Ajudava 
assim o mestre de primeiras letras. Mais tarde, quando o Padre Cabral me 
ensinava latim, doutrina e história sagrada, ele assistia às lições, fazia reflexões 
eclesiásticas, e, no fim, perguntava ao padre: "Não é verdade que o nosso jovem 
amigo caminha depressa?" Chamava-me "um prodígio"; dizia a minha mãe ter 
conhecido outrora meninos muito inteligentes, mas que eu excedia a todos esses, 
sem contar que, para a minha idade, possuía já certo número de qualidades 
morais sólidas. Eu, posto não avaliasse todo o valor deste outro elogio, gostava do 
elogio; era um elogio. 
 
 
 
CAPÍTULO XXV 
NO PASSEIO PÚBLICO 
 
Entramos no Passeio Público. Algumas caras velhas, outras doentes ou só vadias 
espalhavam-se melancolicamente no caminho que vai da porta ao terraço. 
Seguimos para o terraço. Andando, para me dar ânimo, falei do jardim: 
 
— Há muito tempo que não venho aqui, talvez um ano. 
 
— Perdoe-me, atalhou ele, não há três meses que esteve aqui com o nosso vizinho 
Pádua; não se lembra? 
 
— É verdade, mas foi tão de passagem. . . 
 
— Ele pediu a sua mãe que o deixasse trazer consigo, e ela, que é boa como a 
mãe de Deus, consentiu; mas ouça-me, já que falamos nisto, não é bonito que 
você ande com o Pádua na rua. 
 
— Mas eu andei algumas vezes... 
 
— Quando era mais jovem; era criança, era natural, ele podia passar por criado. 
Mas você está ficando moço e ele vai tomando confiança. D. Glória, afinal, não 
pode gostar disso. A gente Pádua não é de todo má. Capitu, apesar daqueles olhos 
que o Diabo lhe deu... Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana 
oblíqua e dissimulada. Pois, apesar deles, poderia passar, se não fosse a vaidade e 
a adulação. Oh! a adulação! D. Fortunata merece estima, e ele não nego que seja 
honesto, tem um bom emprego, possui a casa em que mora, mas honestidade e 
estima não bastam, e as outras qualidades perdem muito de valor com as más 
companhias em que ele anda. Pádua tem uma tendência para gente reles. Em lhe 
cheirando a homem chulo é com ele. Não digo isto por ódio, nem porque ele fale 
mal de mim e se ria, como se riu, há dias, dos meus sapatos acalcanhados... 
 
— Perdão, interrompi suspendendo o passo, nunca ouvi que falasse mal do 
senhor; pelo contrário, um dia, não há muito tempo, disse ele a um sujeito, em 
minha presença, que o senhor era "um homem de capacidade e sabia falar como 
um deputado nas câmaras." 
 
José Dias sorriu deliciosamente, mas fez um esforço grande e fechou outra vez o 
rosto; depois replicou: 
 
— Não lhe agradeço nada. Outros, de melhor sangue, me têm feito o favor de 
juízos altos. E nada disso impede que ele seja o que lhe digo. 
 
Tínhamos outra vez andado, subimos ao terraço, e olhamos para o mar. 
 
— Vejo que o senhornão quer senão o meu benefício, disse eu depois de alguns 
instantes. 
 
— Pois que outra coisa, Bentinho? 
 
— Neste caso, peço-lhe um favor. 
 
— Um favor? Mande, ordene, que é? 
 
— Mamãe... 
 
Durante algum tempo não pude dizer o resto, que era pouco, e vinha de cor. José 
Dias tornou a perguntar o que era, sacudia-me com brandura, levantava-me o 
queixo e espetava os olhos em mim, ansioso também, como a prima Justina na 
véspera. 
 
— Mamãe quê? Que é que tem mamãe? 
 
— Mamãe quer que eu seja padre, mas eu não posso ser padre, disse finalmente. 
 
José Dias endireitou-se pasmado. 
 
— Não posso, continuei eu, não menos pasmado que ele, não tenho jeito, não 
gosto da vida de padre. Estou por tudo o que ela quiser; mamãe sabe que eu faço 
tudo o que ela manda; estou pronto a ser o que for do seu agrado, até cocheiro de 
ônibus. Padre, não; não posso ser padre. A carreira é bonita, mas não é para mim. 
 
Todo esse discurso não me saiu assim, de vez, enfiado naturalmente, peremptório, 
como pode parecer do texto, mas aos pedaços, mastigado, em voz um pouco 
surda e tímida. Não obstante, José Dias ouvira-o espantado. Não contava 
certamente com a resistência, por mais acanhada que fosse; mas o que ainda 
mais o assombrou foi esta conclusão: 
 
— Conto com o senhor para salvar-me. 
 
Os olhos do agregado escancararam-se, as sobrancelhas arquearam-se, e o prazer 
que eu contava dar-lhe com a escolha da proteção não se mostrou em nenhum 
dos músculos. Toda a cara dele era pouca para a estupefação. Realmente, a 
matéria do discurso revelara em mim uma alma nova; eu próprio não me 
conhecia. Mas a palavra final é que trouxe um vigor único. José Dias ficou 
aturdido. Quando os olhos tornaram às dimensões ordinárias: 
 
— Mas que posso eu fazer? perguntou. 
 
— Pode muito. O senhor sabe que, em nossa casa, todos o apreciam. Mamãe pede 
muita vez os seus conselhos, não é? Tio Cosme diz que o senhor é pessoa de 
talento... 
 
— São bondades, retorquiu lisonjeado. São favores de pessoas dignas, que 
merecem tudo... Aí está! nunca ninguém me há de ouvir dizer nada de pessoas 
tais; por quê? porque são ilustres e virtuosas. Sua mãe é uma santa, seu tio é um 
cavalheiro perfeitíssimo. Tenho conhecido famílias distintas; nenhuma poderá 
vencer a sua em nobreza de sentimentos. O talento que seu tio acha em mim 
confesso que o tenho, mas é só um, — é o talento de saber o que é bom e digno 
de admiração e de apreço. 
 
— Há de ter também o de proteger os amigos, como eu. 
 
— Em que lhe posso valer, anjo do céu? Não hei de dissuadir sua mãe de um 
projeto que é, além de promessa, a ambição e o sonho de longos anos. Quando 
pudesse, é tarde. Ainda ontem fez-me o favor de dizer: "José Dias, preciso meter 
Bentinho no seminário". 
 
Timidez não é tão ruim moeda, como parece. Se eu fosse destemido, é provável 
que, com a indignação que experimentei, rompesse a chamar-lhe mentiroso, mas 
então seria preciso confessar-lhe que estivera à escuta, atrás da porta, e uma 
ação valia outra. Contentei-me de responder que não era tarde. 
 
— Não é tarde, ainda é tempo, se o senhor quiser. 
 
— Se eu quiser? Mas que outra coisa quero eu, senão servi-lo. Que desejo, senão 
que seja feliz, como merece? 
 
— Pois ainda é tempo. Olhe, não é por vadiação. Estou pronto para tudo; se ela 
quiser que eu estude leis, vou para São Paulo... 
 
 
 
CAPÍTULO XXVI 
AS LEIS SÃO BELAS 
 
Pela cara de José Dias passou algo parecido com o reflexo de uma idéia, — uma 
idéia que o alegrou extraordinariamente. Calou-se alguns instantes; eu tinha os 
olhos nele, ele voltara os seus para o lado da barra. Como insistisse: 
 
— É tarde, disse ele; mas, para lhe provar que não há falta de vontade, irei falar a 
sua mãe. Não prometo vencer, mas lutar; trabalharei com alma. Deveras, não 
quer ser padre? As leis são belas, meu querido... Pode ir a São Paulo, a 
Pernambuco, ou ainda mais longe. Há boas universidades por esse mundo fora. Vá 
para as leis, se tal é a sua vocação. Vou falar a Dona Glória, mas não conte só 
comigo; fale também a seu tio. 
 
— Hei de falar. 
 
— Pegue-se também com Deus, — com Deus e a Virgem Santíssima, concluiu 
apontando para o céu. 
 
O céu estava meio enfarruscado. No ar, perto da praia, grandes pássaros negros 
faziam giros, avançando ou pairando, e desciam a roçar os pés na água, e 
tornavam a erguer-se para descer novamente. Mas nem as sombras do céu, nem 
as danças fantásticas dos pássaros me desviavam o espírito do meu interlocutor. 
Depois de lhe responder que sim, emendei-me: 
 
— Deus fará o que o senhor quiser. 
 
— Não blasfeme. Deus é dono de tudo; ele é, só por si, a Terra e o Céu, o 
passado, o presente e o futuro. Peça-lhe a sua felicidade, que eu não faço outra 
coisa... Uma vez que você não pode ser padre, e prefere as leis... As leis são 
belas, sem desfazer na teologia, que é melhor que tudo, como a vida eclesiástica é 
a mais santa. Por que não há de ir estudar leis fora daqui? Melhor é ir logo para 
alguma universidade, e ao mesmo tempo que estuda, viaja. Podemos ir juntos; 
veremos as terras estrangeiras, ouviremos inglês, francês, italiano, espanhol, 
russo e até sueco. Dona Glória provavelmente não poderá acompanhá-lo; ainda 
que possa e vá, não quererá guiar os negócios, papéis, matrículas, e cuidar de 
hospedarias, e andar com você de um lado para outro... Oh! as leis são 
belíssimas! 
 
— Está dito, pede a mamãe que me não meta no seminário? 
 
— Pedir, peço, mas pedir não é alcançar. Anjo do meu coração, se vontade de 
servir é poder de mandar, estamos aqui, estamos a bordo. Ah! você não imagina o 
que é a Europa; oh! a Europa... 
 
Levantou a perna e fez uma pirueta. Uma das suas ambições era tornar à Europa, 
falava dela muitas vezes, sem acabar de tentar minha mãe nem tio Cosme, por 
mais que louvasse os ares e as belezas... Não contava com esta possibilidade de ir 
comigo, e lá ficar durante a eternidade dos meus estudos. 
 
— Estamos a bordo, Bentinho, estamos a bordo! 
 
 
 
CAPÍTULO XXVII 
AO PORTÃO 
 
No portão do Passeio, um mendigo estendeu-nos a mão. José Dias passou adiante, 
mas eu pensei em Capitu e no seminário, tirei dois vinténs do bolso e dei-os ao 
mendigo. Este beijou a moeda; eu pedi-lhe que rogasse a Deus por mim, a fim de 
que eu pudesse satisfazer todos os meus desejos. 
 
— Sim, meu devoto! 
 
— Chamo-me Bento, acrescentei para esclarecê-lo. 
 
 
 
CAPÍTULO XXVIII 
NA RUA 
 
José Dias ia tão contente que trocou o homem dos momentos graves, como era na 
rua, pelo homem dobradiço e inquieto. Mexia-se todo, falava de tudo, fazia-me 
parar a cada passo diante de um mostrador ou de um cartaz de teatro. Contava-
me o enredo de algumas peças, recitava monólogos em verso. Fez os recados 
todos, pagou contas, recebeu aluguéis de casa; para si comprou um vigésimo de 
loteria. Afinal, o homem teso rendeu o flexível, e passou a falar pausado, com 
superlativos. Não vi que a mudança era natural; temi que houvesse mudado a 
resolução assentada, e entrei a tratá-lo com palavras e gestos carinhosos, até 
entrarmos no ônibus. 
 
 
 
CAPÍTULO XXIX 
O IMPERADOR 
 
Em caminho, encontramos o Imperador, que vinha da Escola de Medicina. O 
ônibus em que íamos parou, como todos os veículos; os passageiros desceram à 
rua e tiraram o chapéu, até que o coche imperial passasse. Quando tornei ao meu 
lugar, trazia uma idéia fantástica, a idéia de ir ter com o Imperador, contar-lhe 
tudo e pedir-lhe a intervenção. Não confiaria esta idéia a Capitu. "Sua Majestade 
pedindo, mamãe cede", pensei comigo. 
 
Vi então o Imperador escutando-me, refletindo e acabando por dizer que sim, que 
iria falar a minha mãe; eu beijava-lhe a mão, com lágrimas. E logo me achei em 
casa, à esperar, até que ouvi os batedores e o piquete de cavalaria; é o 
Imperador! é o Imperador! toda a gente chegava às janelas para vê-lo passar, 
mas não passava, o coche parava à nossa porta, o Imperador apeava-se e 
entrava. Grande alvoroço

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