Prévia do material em texto
INTOXICAÇÃO POR CHUMBO (Pb) EPIDEMIOLOGIA No nosso meio, os homens constituem a maior parte dos atingidos pela intoxicação pelo chumbo dada a natureza das atividades que utilizam o metal (empregam predominantemente o sexo masculino). No Brasil, além dos casos relacionados à produção e reforma de baterias automotivas tem sido relatados casos entre trabalhadores da indústria de plástico (PVC), entre trabalhadores que usam rebolos contendo chumbo para lapidação de pedras preciosas, instrução e aprendizado de tiro, reparação de radiadores de carro, reciclagem de baterias automotivas, redução de minérios ricos em ouro para obtenção deste, entre outros. As pessoas podem se contaminar ao disparar uma arma de fogo, resquícios em forma gasosa ou aerossol não só de Pb, mas de bário e antimônio, além de pólvora fundida (resíduo de tiro), são expelidos da espoleta e do seu contato com o projétil, solidificando e contaminando a mão do atirador, além de carnes de caça, pois muitas conservam fragmentos de Pb e tintas com pigmentos à base de Pb. FISIOPATOLOGIA 1. EXPOSIÇÃO A concentração máxima permitida de Pb no ar em uma jornada de 48 horas semanais é de 100 μg m-3. O Pb é um elemento químico amplamente distribuído no ambiente (encontrado nas armas, baterias, borrachas e tintas), não essencial para nossa vida. A exposição ao Pb pode ocorrer por diversas vias, mas as principais são as vias oral (16% em adultos e 50% em crianças) e respiratória (50-70%). No entanto, pode haver absorção via cutânea também das formas orgânicas por meio de tintas para cabelo e ceras, causando os distúrbios neurológicos. A principal exposição em crianças é proveniente da tinta contendo chumbo, como da transferência do metal presente em lascas de tinta e na poeira do chão de casas mais antigas. Como indicadores biológicos de exposição, tem a determinação direta de Pb (máx. de 600 μg L-1) e de zincoprotoporfirina (1 mg L-1) no sangue, assim como do ácido delta- aminolevulínico (10 mg g-1 de creatinina) na urina. No entanto, os dois últimos podem mascarar algum caso de intoxicação! O Pb não sofre biotransformação, sendo diretamente absorvido, distribuído e excretado. 2. DISTRIBUIÇÃO Após ser absorvido, 99% do Pb é ligado aos eritrócitos. O Pb livre no plasma (1%), é distribuído para o fígado, rins, cérebro, pulmões e baço. O Pb pode estar no sangue (meia vida de 37 dias), tecidos moles (40 dias) ou no plasma, além de poder se depositar nos ossos e tecidos mineralizados, onde a meia-vida pode chegar a 27 anos e o armazenamento alcança de 90 a 95% de todo o chumbo do organismo. A distribuição depende da transferência da corrente sanguínea para os diferentes órgãos e tecidos. O acúmulo no tecido ósseo é devido à semelhança do raio atômico do Pb com o cálcio, podendo armazenar até 90% de todo o Pb do corpo! E, ao longo da vida, remodelamento ósseo com reabsorção e/ou mobilização óssea podem ocorrer, por ex durante a gravidez, crescimento e até quando do desenvolvimento da osteoporose, podendo ocorrer uma nova intoxicação. A implantação do Pb nos ossos não expressa toxicidade porque é fixada na forma de fosfato de chumbo, o qual pode se dizer que não é tóxico. Acerca das alterações neuronais, ainda não há muita compreensão, mas o chumbo parece produzir distúrbios de neurotransmissão, inibindo a função colinérgica e reduzindo o cálcio extracelular- fenômenos explicados pela habilidade do chumbo em mimetizar o cálcio nos tecidos.O chumbo bloqueia a entrada de cálcio para os terminais nervosos, inibe as ATPases do cálcio, afetando o transporte das membranas, além de inibir a utilização de cálcio pelas mitocôndrias, diminuindo a produção de energia essencial as funções cerebrais. Há algumas diferenças no processo de detoxificação do Pb associadas com variações genéticas, como as diferenças na enzima ácido delta- aminolevulínico desidratase (ALA-D) que determinam as diferentes concentrações de Pb. O Pb, ao se ligar a grupamentos sulfidrilas, inibe três enzimas: ALA-D, coproporfirinogênio oxidase e ferro-quelatase. As enzimas estão envolvidas na rota bioquímica de produção do grupamento heme, ocasionando, por conseguinte, distúrbios hematológicos. A enzima ALA-D, quando inibida, gera acúmulo de ácido delta-aminolevulínico na urina, enquanto que as enzimas coproporfirina oxidase e ferroquelatase, uma vez inibidas, causam aumento da concentração de coproporfirina na urina e de protoporfirina no sangue, respectivamente. Além disso, o Pb causa desequilíbrio a favor de oxidantes no organismo com danos a proteínas, lipídeos e até ao DNA. 3. EXCREÇÃO A eliminação é extremamente lenta, favorecendo sua acumulação no organismo. 90% do Pb que não é absorvido via GI é excretado nas fezes e pouco mais de 60% do Pb absorvido é eliminado pela urina e fezes -biliar, podendo sofrer reabsorção, e outra parte é eliminada pelo cabelo, saliva, unhas e suor. Os efeitos tóxicos depende da dose e duração da exposição, e variam da simples inibição de enzimas à produção de patologias graves ou morte. MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS Os sinais e sintomas dependem da via de exposição, duração do contato e concentração do chumbo, com efeitos mais evidentes no sistema nervoso, hematopoético, renal e ósseo. As crianças são mais sensíveis aos efeitos no sistema nervoso central, enquanto a neuropatia periférica, a nefropatia crônica e a hipertensão são preocupações em adultos. Outros tecidos-alvo incluem os sistemas digestório, imune, esquelético e reprodutivo. Os efeitos na biossíntese do heme fornecem um indicador bioquímico sensível, mesmo na ausência de outros efeitos detectáveis. 1. INTOXICAÇÃO AGUDA Ocorre quando o Pb é ingerido em grandes quantidades, causando dor abdominal (dor plúmbica), náuseas, vômitos, gosto metálico na boca, hepatite, anemia hemolítica, fezes com coloração negra (devido a reação do Pb com compostos sulfuratos), e encefalopatia. 2. INTOXICAÇÃO SUBAGUDA OU CRÔNICA · EFEITOS CONSTITUCIONAIS Fadiga, mal-estar, irritabilidade, anorexia, insônia, perda de peso, redução da libido, atralgias e mialgias. Uma característica do saturnismo/ plumbismo é o aparecimento da Linha de Burton, uma linha de coloração azul-escuro no limite da mucosa gengival. Na fase inicial da deposição, a concentração do chumbo é maior nas metáfises dos ossos, sendo possível identificar no exame radiológico as linhas de chumbo/ banda densa radiopaca na parte distal das metáfises ósseas, principalmente em crianças. Outras manifestações clínicas são o transtorno de déficit de atenção, hiperatividade, deficiência auditiva e dificuldade de equilíbrio, podendo persistir até a vida adulta. · EFEITOS NEUROLÓGICOS, NEUROCOMPORTAMENTAIS E DE DESENVOLVIMENTO EM CRIANÇAS A encefalopatia inicia com letargia, vômito, irritabilidade, perda do apetite e tonturas, progredindo para ataxia e um nível reduzido de consciência, além da presença de vômitos em jato devido à hipertensão intracraniana, com a evolução, pode aparecer a confusão e posteriormente letargia e coma. a qual se desenvolve somente após doses maciças, sendo raro quando os níveis de Pb estão abaixo de 100ug/dl. A recuperação é geralmente acompanhada de sequelas, incluindo epilepsia, retardo mental e, em alguns casos, neuropatia óptica e cegueira. O chumbo pode agir como um substituto para o cálcio e/ou interromper a homeostase do mineral. O estímulo da proteína C quinase pode resultar na alteração da barreira hematencefálica. O chumbo afeta virtualmente todo o sistema neurotransmissor no cérebro, incluindo os sistemas glutamatérgico, dopaminérgico e colinérgico, importantes para a plasticidade sináptica e mecanismos celulares para a função cognitiva, a aprendizagem e a memória. · EFEITOS NEUROLÓGICOS EM ADULTOS É comum anormalidades em uma série de medidas neurocomportamentais. Quadros de neuropatia leve a moderada podem cursar com cefaleia, comprometimento cognitivo leve, fadiga, perda de memória, perda de concentração e atenção e alterações do humor. A neuropatia periférica é uma manifestação clássica da toxicidade do chumboem adultos. Pé e pulso caídos podem ser observados em trabalhadores com exposição ocupacional excessiva ao metal. A neuropatia periférica é caracterizada pela desmielinização segmental e, possivelmente, degeneração axonal. · EFEITOS RENAIS Os danos causados no túbulo proximal são reversíveis diante de uma nefrotoxicidade aguda. Já a nefrotoxicidade crônica consiste em fibrose intersticial e perda progressiva dos néfrons, azotemia e falência renal, onde há interferência na síntese renal das enzimas contendo heme, como a envolvida no metabolismo da vitamina D, causando efeitos nos ossos, além de se tornar mais comum a hiperuricemia com gota, ou seja, pode gerar uma leve e progressiva insuficiência renal e, caso haja exposição contínua, a nefropatia aguda pode evoluir para nefrite crônica. EFEITOS GASTROINTESTINAIS A manifestação mais incômoda é a cólica saturnina, com dor abdominal intensa, devido a alteração nos níveis de cálcio, passa a ocorrer espasmos intestinais provenientes da contração espasmódica da parede intestinal, essa dor pode ser confinada a região periumbilical ou epigástrica, podendo ter náuseas, constipação/ diarreia, anorexia, vômitos intermitentes, pirose. O chumbo pode provocar tumores nos sistemas digestório e respiratório. · EFEITOS OSTEOMUSCULARES Nos adultos, pode haver osteoporose, e nas crianças, deficiência no crescimento dos ossos e estatura, se for quadro crônico, pode evoluir para mialgia generalizada. · EFEITOS HEMATOLÓGICOS Diminuição nos níveis de hemoglobina e hematócrito, apresentando anemia normocítica e normocrômica, sendo mais grave em crianças. A anemia ocorre devido aos efeitos tóxicos sobre as células vermelhas e eritropoéticas na medula óssea, isso se dá porque o Pb inibe a enzima ferroquelatase e a ALA-D, fazendo com que no lugar do ferro, o zinco se junte à protoporfirina IX, com isso, os efeitos são a inibição da síntese da hemoglobina (Hb) e diminuição do tempo de vida dos eritrócitos circulantes, resultando em estimulação da eritropoese. Mas, vale lembrar que a anemia não é uma manifestação precoce da intoxicação! Varia do aumento de porfirinas urinárias, coproporfirinas, ácido -aminolevulínico (ALA) e zinco-protoporfirina, até anemia. · EFEITOS REPRODUTIVOS Pode causar aborto espontâneo e anormalidades no esperma, além de perda de libido em alguns casos. · EFEITOS CARDIOVASCULARES Ocorre aumento da pressão/ hipertensão, devido: (1) inativação do óxido nítrico endógeno e guanosina monofosfato cíclico (GMPc), possivelmente por meio de espécies reativas de oxigênio induzidas pelo chumbo; (2) mudanças no sistema renina-angiotensina-aldosterona e aumento da atividade simpática, que são importantes componentes humorais da hipertensão; (3) alterações nas funções ativadas pelo cálcio das células musculares lisas vasculares, incluindo a contratilidade ao diminuir a atividade Na+/K+-ATPase e o estímulo da bomba de troca de Na+/Ca2+; e (4) um possível aumento na endotelina e no tromboxano. · EFEITOS ENDÓCRINOS Hipertireoidismo, com impedimento da conversão da vitamina D- calciferol- em 1,25-di-hidroxicolecal-ciferol. DIAGNÓSTICO CLÍNICO E LABORATORIAL Clinicamente os sistemas mais sensíveis são o sistema nervoso central, o hematopoiético, o renal, o gastrointestinal, o cardiovascular, o musculoesquelético e o reprodutor. Existe uma grande variação na susceptibilidade individual, mas os sintomas clínicos em adultos podem se manifestar a partir de concentrações sanguíneas de chumbo de 25µg/dl. De uma forma continuação geral, o leque de sintomas, e a severidade dos mesmos aumenta com o crescimento da concentração sanguínea de chumbo. Os sintomas iniciais são frequentemente sutis e inespecíficos envolvendo o sistema nervoso (fadiga, irritabilidade, distúrbios do sono, cefaléia, dificuldades de concentração, redução da libido), gastrointestinais (cólicas abdominais inespecíficas de fraca intensidade, anorexia, náusea, constipação intestinal, diarréia) e dor em membros inferiores. As manifestações clínicas evoluem de forma insidiosa e muitas vezes trabalhadores com evidências laboratoriais inequívocas de exposição apresentam-se assintomáticos. Quadros crônicos de maior gravidade manifestam-se por meio de nefropatia com gota (redução da eliminação de uratos) e insuficiência renal crônica, encefalopatia crônica com alterações cognitivas e de humor, e neuropatia periférica. Intoxicações agudas decorrentes de exposições intensas por períodos curtos são excepcionais. Habitualmente, os quadros agudos surgem no curso de intoxicações crônicas e se caracterizam por encefalopatia aguda (confusão mental, cefaléia, vertigens e tremores aos quais se seguem convulsões, delírio e coma), neuropatia periférica grave com paralisia de músculos cuja inervação foi fortemente atingida (geralmente o nervo radial). Os quadros agudos podem cursar ainda com cólicas abdominais difusas de forte intensidade (muitas vezes acompanhadas de constipação intestinal, hipertensão arterial, ausência de leucocitose ou alterações no exame do abdome e excepcionalmente febre). São relatados ainda quadros de nefropatia aguda com tubulopatia proximal com aminoaciduria, fosfatúria e glicosúria (síndrome de Fanconi). Redução na hemoglobina é detectada a partir de 50 µg/dl no sangue e alterações na morfologia e contagem numérica de espermatozoides com níveis de 40µg/dl. Em mulheres o chumbo pode atravessar a barreira placentária ocasionando danos ao desenvolvimento cognitivo do feto, efeito este que pode ser agravado por exposições pós-natais ao metal motivo pela qual mulheres em idade fértil são desaconselhadas a engravidar enquanto os níveis de chumbo estiverem acima de 20 µg/dl no sangue. O chumbo está ainda presente no leite materno. TRATAMENTO Realizar a interrupção da exposição ao metal, com medidas de suporte, como desobstruir vias aéreas, monitorizar sinais vitais, manter acesso venoso calibroso e hidratação adequada. DESCONTAMINAÇÃO Ingestão aguda em crianças, pode se indicar irrigação intestinal, considerando remoção endoscópica para retirar corpos estranhos contendo chumbo. Se for exposição cutânea ou ocular, deve remover roupas e objetos contaminados. ANTÍDOTO O tratamento realizado com quelantes reduz as concentrações sanguíneas de chumbo e aumenta a excreção urinária, sua indicação vai depender do paciente (exames laboratoriais + sintomatologia), embora o mais importante seja reduzir a exposição. Em adultos, a quelação deve ser reservada para casos com evidentes manifestações clínicas ou sinais de toxicidade, assim como em crianças. Ou seja, a quelação em crianças ou adultos assintomáticos com baixas concentrações de Pb no sangue não é indicada! A terapia quelante primariamente reduz o chumbo no sangue e tecidos moles tais como fígado e rins, mas geralmente não remove os grandes reservatórios corporais presentes nos ossos. Os agentes quelantes incluem o EDTA cálcio dissódico parenteral (versenato de cálcio) ou o ácido dimercaptosuccínico (DMSA, succimer).