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História da Índia EMILIANO UNZER ________________________________________________________________ Catalogação na Publicação (CIP) Ficha Catalográfica feita pelo autor ________________________________________________________________ U141h Unzer, Emiliano, 1977 – História da Índia / Columbia, Carolina do Sul, EUA: Amazon Independent Publishing, 2018. 416p. : 21 cm Inclui bibliografia e índice. ISBN: 9781790159666 1. Índia – História. I. Título. CDU: 94(540) ________________________________________________________________ Capa: Pintura da trindade divina (trimurti) prestando homenagem à deusa Kali. Copyright © 2018 Emiliano Unzer Todos os direitos reservados. ISBN: 978179015966 À Míriam, por tudo. “How can the mind take hold of such a country?'' (“Como pode a mente se apoderar de tal país?”) (tradução nossa) - E. M. Forster (1879 - 1970), ''A Passage to India''. "India is, the cradle of the human race, the birthplace of human speech, the mother of history, the grandmother of legend, and the great grandmother of tradition. our most valuable and most instructive materials in the history of man are treasured up in India only." ("A Índia é o berço da humanidade, o lugar de nascença da fala humana, a mãe da história, a avó das lendas, e a bisavó das tradições. Nossos mais valiosos e instrutivos materiais da história humana estão entesourados na Índia, apenas") (tradução nossa) – Mark Twain (1835 - 1910), “Following the Equator”. SUMÁRIO INTRODUÇÃO DO VALE DO RIO INDO AOS SATAVANAS Harappa e Mohenjo-Daro Os arianos Os Vedas Os Mahajanapadas e a ascensão do império Mágada O Budismo e o Jainismo A Dinastia Máuria - auge do Império Mágada A Dinastia dos Sungas e Kanvas – o declínio do Império Mágada O Império Cuchana As narrativas da mitologia hindu e o florescimento cultural indiano Os Guptas Literatura Sangam O reinos de Calinga e de Satavana DOS PANDIAS AOS CHALUKYAS O Tamilakam – Os impérios Pandia, Chola e Chera no sul da Índia Os Pandias Os Cholas Os Cheras Harsha O Império Pratihara dos Gurjaras Rashtrakuta Os Palas Os Pallavas Os Chalukyas O florescimento das culturas regionais indianas DE MAHMUD DE GHAZNI A VIJAYANAGARA Mahmud de Ghazni O Sultanato de Delhi No Planalto do Decão e o Sul da Índia O Sultanato de Bamani O reino Gajapati de Orissa Vijayanagara DE BABUR A BAJI RAO Babur Humayun Akbar Jahangir Shah Jahan Aurangzeb A Guerra Mogol-Marata DE DUPLEIX A CORNWALLIS Os europeus e a Índia Robert Clive Warren Hastings e as Guerras Anglo-Mysore Lord Cornwallis Fatores para a dominação britânica na Índia DE WELLESLEY A CURZON Wellesley a Hardinge Dalhousie As Revoltas de 1857 e as Reformas Britânicas O Raj Britânico - de Canning a Curzon DE GOKHALE A GANDHI Reformas Políticas e Nacionalismo na Índia Gandhi As Conferências de 1930 a 1932 e a Lei do Governo da Índia de 1935 A Missão Cripps, “Deixem a Índia” e a 2ª. Guerra Mundial A Partição e a Independência DE JAWAHARLAL NEHRU A MANMOHAN SINGH Os Estados Principescos e a Adesão A Questão da Caxemira e Jammu A Assembleia Constituinte Governo de Nehru Indira Gandhi Rajiv Gandhi Narasimha Rao A era das coligações partidárias Vajpayee Manmohan Singh CONCLUSÃO ÍNDICE REFERÊNCIAS INTRODUÇÃO Como definir a Índia? Em termos históricos, a Índia tem origem no Vale do Rio Indo hoje em território paquistanês. Em termos culturais e religiosos, a Índia foi berço das crenças do hinduísmo, budismo, jainismo, siquismo entre outros, e abrigou os zoroastrianos advindos das terras persas a oeste, assim como foi local onde prosperou o Islã desde o século 7º. através do Gujarate e Sind, no noroeste indiano. Em termos geográficos o país desde 1947 delimita-se ao norte com o Paquistão, Bangladesh, Butão, Nepal e a China. Com a ex-Birmânia, hoje o Mianmar, ao leste. Além da proximidade com a ilha de Sri Lanka ao sul. Ou seria a Índia também a sua numerosa comunidade de diáspora pelo mundo estimada em mais de 30 milhões? Seria a Índia simplesmente hindu que perfaz quase 80% de sua população? Se assim fosse, seriam os hindus apenas os ortodoxos bramanistas, ou também os xivaístas, vixnuístas e outras correntes populares? E as grandes comunidades hindus no Nepal, nas ilhas Maurício, em Bali e em outras partes do mundo? Seriam elas a Índia também? E os aproximadamente 14% da população indiana que se declaram muçulmanos, em torno de 172 milhões de pessoas, segunda maior comunidade muçulmana do mundo, não seriam eles também indianos? E a comunidade budista, sikh, jainista e cristã [1] na Índia? Em termos linguísticos, a Índia abriga mais de 20 línguas oficiais, mais de 1500 dialetos e grupos étnicos. Quem desses seriam mais indianos que os outros? O conceito de Índia, portanto, é mais complexo do que parece ser à primeira vista. Para entendermos esse estonteante e caleidoscópico país, devemos buscar sua história que poderá nos fornecer alguma perspectiva de como a Índia se formou, se consolidou, influenciou e assimilou suas políticas, identidades, valores e culturas. Enfim, a Índia é talvez muito mais um conceito civilizacional do que uma mera expressão definida apenas em termos geográficos, religiosos e étnicos. Esse estudo, naturalmente, tem seus limites e adota uma abordagem histórica e política em forma narrativa, com algumas ênfases culturais e sociais. Por vezes serão enfocados alguns personagens históricos, por outras vezes eventos, ideias e locais - como não considerar o vital rio Ganges ou o Passo Khyber, por exemplo? O estudo também busca partir das perspectivas indianas, evitando uma ênfase histórica eurocêntrica principalmente a partir da chegada de navegadores europeus com Vasco da Gama em 1498. No entanto, inevitavelmente será considerado o protagonismo dos britânicos a partir da presença e atuação da Companhia Britânica das Índias Orientais desde a vitória de Robert Clive em Plassey em 1757. Em certo sentido, os estrangeiros fazem parte da história da Índia. A passagem terrestre mais acessível à Índia fica localizada a noroeste, pela porção mais ocidental da cadeia dos Himalaias, o Hindu Kush, no norte afegão, através do chamado Passo Khyber, passagem pelos quais muitos nômades das estepes asiáticas chegaram e invadiram as férteis planícies do vale do rio Indo, do Ganges e Yamuna. Foi por onde o Islã chegou de maneira predominante às terras indianas a partir dos afegãos e dos infames saques de Mahmud de Ghazni (971 - 1030) ao templo hindu xivaísta de Somnath em Gujarate em 1024. E depois foram sucedidos pelas sucessivas invasões de povos centro-asiáticos como os timúridas sob Tamerlão (1336 - 1405), e dos túrquicos e mogóis, a partir de meados do século 16. Os mogóis estabeleceram-se no norte indiano após a vitória sobre a dinastia túrquica dos Lodis em Délhi (na batalha de Panipat, em 1526) e fundaram um império unificado sob comando político e militar muçulmano - e que deixaram como heranças inconfundíveis o mausoléu do Taj Mahal (1632 - 1653) e o conjunto do Forte Vermelho em Agra (1648) – até a predominância dos britânicos a partir de meados do século 18 em diante. A história indiana defronta-se com certa novidade na chegada dos europeus a partir de fins do século 15 na costa a sudoeste de Malabar. Esse elemento inovador, de acordo com Pannikar [2], foi o uso armado das embarcações oceânicas. O Oceano Índico sempre foi cenário de um intenso comérciointernacional entre árabes, malaio-indonésios, chineses, e mercadores indianos gujaratis (de Gujarate) e sindis (do Sind). As atividades entre esses eram feitas, no geral, de maneira pacífica visando zelar pela continuidade da prática comercial, até a chegada das caravelas portuguesas, embarcações fortemente armadas e com uma atitude bélica irrestrita, com ameaças de sequestro e tomada de cargas valiosas no mar, prática antes pouco concebidas e consideradas desleais à boa prática do comércio. Posteriormente, a predominância europeia sobre a Índia se tornará evidente com a atuação política e militar de agentes britânicos da Companhia Britânica das Índias Orientais, apesar das amplas resistências indianas organizadas por líderes como Baji Rao (1700 – 1740) e Tipu Sultan (1750 - 1799). Em 1857, após massivas rebeliões indianas, as autoridades de Londres e Calcutá decidiram rever e administrar diretamente a Índia como colônia da Coroa Britânica. Nessas propostas de reformas administrativas, surgiram dentro do criado corpo de funcionários públicos, o Serviço Público Indiano (Indian Civil Service), as primeiras lideranças indianas que depois inspirou o movimento pela independência no século 20. Nos estudos asiáticos toda obra corre o risco de exotizar o Oriente, baseado no clássico estudo de Edward Said [3], algo como um complexo de Marco Pólo em considerar os costumes e valores asiáticos como muito diferentes ou até mesmo antípodas aos costumes ocidentais, resultado seja do nosso maravilhamento, seja pela tentação de tornar algo mais exótico e diferente às nossas habituais percepções. Nesse sentido, o risco maior é considerar as categorias religiosas (hindus [4], muçulmanos, sikhs, cristãos, budistas, jainistas, zoroastrianos, judeus etc.), ou étnicas, linguísticas e de castas (varna), como atemporais e estanques, sem enxergar nelas as possibilidades de convivência, sincretismo e tolerância num ambiente diversificado que historicamente predominou na Índia, emblematizado no minarete de Qutub Minar (1193 - 1368) em Delhi [5] que mescla os elementos artísticos hindus e islâmicos túrquicos. Esse fenômeno histórico indiano de coexistência na pluralidade, considerado nesse estudo, se pauta no conceito do “cosmopolitismo indiano”, defendido por indologistas como o professor Vinay Lal [6]. Em termos temporais, esta obra foi organizada por uma sequência cronológica com ênfase nos personagens, locais e eventos de destaque na história indiana. Foi evitado, na medida do possível, o uso de marcos históricos como o período da antiguidade, medieval e moderna, visando enfatizar uma temporalidade própria indiana, apesar de sempre estar ligada aos eventos históricos mundiais. O estudo buscou também fugir de uma excessiva simplificação da história indiana como categorizou James Mill (1773 - 1836) em sua monumental obra The History of British India [7], em que foi seccionada a história em três grandes fases – a fase hindu, muçulmana e cristã (britânica). Este livro, em suma, pretende narrar mais as complexidades, convivências, ambiguidades, tolerâncias e conflitos da diversidade política, étnica, linguística, religiosa e cultural indiana. Ao que remete ao resultado histórico da Índia em tempos atuais: é a maior democracia do mundo, com estimado um bilhão e duzentos milhões de pessoas, a se valer num de seus lemas oficiais, “unidade na diversidade”. DO VALE DO RIO INDO AOS SATAVANAS Harappa e Mohenjo-Daro A noroeste da Índia e leste do Paquistão há uns quatro mil anos atrás, corriam rios abundantes e perenes que propiciaram um acesso regular à água potável, vital para o sustento de animais e humanos. Terra essa que é chamada de Punjab, “cinco rios”, pois assim corriam os rios a desaguarem todos como afluentes do rio Indo. E desse nome adveio, através dos cronistas e viajantes estrangeiros a nos relatar pelos séculos seguintes, o que se convencionou referir-se a toda a região como a “Índia” [8]. Foi então no vale do rio Indo que foram encontrados os primeiros vestígios de assentamentos planejados e permanentes de comunidades humanas datando por volta de 2200 a.C. Em locais hoje referidos como Harappa e Mohenjo-Daro (mapa) ficou evidenciado um avançado sistema de planejamento urbano e sanitário, com largas ruas pavimentadas e locais que parecem remeter a banhos públicos e tanques de água (fig.). Mapa do Vale do Indo e dos sítios de Harappa e Mohenjo-Daro. Figura – Ruínas de Mohenjo-Daro. Nesses dois sítios podemos identificar, portanto, as primeiras evidências de uma sociedade sedentária organizada com algum controle centralizado e as primeiras manifestações civilizacionais do passado indiano. Havia necessidade, diante demonstra o avançado planejamento dos sítios, de um comando centralizado e de um mínimo de especialização social demandada para o planejamento e execução de construções que teriam servido ao bem público – como as reservas de água para tempos de seca – ou a um rico e poderoso membro sobre o restante da sociedade. Mas isso são ainda conjecturas, pois tudo ainda permanece um mistério. Há outros vestígios materiais que podemos inferir sobre as sociedades dos locais citados. Uma escultura de pedra, hoje num museu de Carachi, Paquistão, nos mostra uma pessoa de vestes elaboradas e aparência serena e imponente que sinaliza uma pessoa proeminente, talvez um sacerdote. Em outra gravação, é retratada uma pessoa em posição peculiar, talvez meditativa, indicando remotas origens de posições defendidas pelas escolas iogues. E pelos símbolos e retratos silvestres na gravação, talvez seja até mesmo uma divindade, um antecessor de Xiva, deus indiano caracteristicamente próximo do meio silvícola e da animália, num dos seus atributos como Pashupati, “senhor dos animais”. Há evidências de continuado assentamento em outros sítios. E mais recuados no tempo, como em Mehrgarh, no Baluchistão, ao oeste indiano em direção ao atual sudeste iraniano. Nesse local as datas vão desde o sétimo milênio a.C., na transição da vida nômade para a sedentária. Em Amri, no Sind, também ao oeste indiano, a datação situa-se em torno de 3600 a.C., e neste parece indicar que o desenvolvimento de sua cerâmica, por exemplo, se deu em termos autóctones, sem, portanto, ser influenciado por contatos com outros povos. Algo extraordinário, pois há evidências de cerâmicas e outros produtos originados dessa região encontrada mais ainda ao oeste, na Mesopotâmia, no sul do Iraque, e ao norte, nas estepes da Ásia Central. A partir de 2500 a.C. além dos centros como Harappa e Mohenjo-Daro, outros locais como Kalibangan, indicam que o padrão de construção convergiu num mesmo padrão e estilo, possivelmente apontando para uma confederação política unida. E já no fim do mesmo milênio, em Harappa, houve a construção de muralhas e fortes para fins defensivos contra invasores. Sobre as hipóteses de seu declínio dessa cultura do vale do Indo, a maior parte dos arqueólogos concorda situar num período entre 1800 a.C. a 1700 a.C. Alguns estudiosos [9] apontam para as crescentes invasões de estrangeiros vindos do norte, com uso de armas de bronze e a cavalo, povos chamados de arianos [10], sustentando os seus argumentos nos achados de ferramentas e utensílios que foram subitamente abandonados nos sítios escavados. Outro fator considerado foram os fatores de mudanças ambientais. Com o clima alterado, grandes inundações do vale do Indo alteraram de maneira definitiva o curso dos rios, gerando erosão do solo e seca do clima na região. Os arianos Por volta do segundo milênio a.C. uma onda migratória de povos advindos da Ásia Central começou a avolumar-se nas regiões do noroeste indiana e do Punjab. Com esses chegaram o uso de armas de cobre, bronze, montagem em cavalos e carruagens. A origem desses povos, chamados em sânscrito de aryas [11], arianos, ainda é motivo de viva controvérsia entre historiadores e arqueólogos. Alguns apontam para a vasta estepeda região central asiática, outros em regiões meridionais russas ou até mesmo mais a oeste, na Europa [12]. O grande estudioso britânico, Sir William Jones, no seu clássico estudo [13] sobre a escrita sânscrita trazida com esses povos, buscou estabelecer a origem dessa cultura com as línguas europeias. Atestando para uma suposta dominação inerente dos povos indo-europeus sobre outros povos asiáticos, uma forma de legitimar a dominação britânica sobre a Índia em fins do século 18. Não se sabe ao certo a relação desses povos arianos com o que é recitado pelo mais antigo dos sagrados quatro épicos védicos, o Rig Veda. Neste, não é descrito nenhuma forma urbana de organização social, algo que já era notável em locais como em Harappa, local onde, a partir de 2000 a.C. a 1400 a.C., os arianos gradativamente começaram a se mesclar com os elementos locais. Talvez fosse mais apropriado considerarmos um extenso período de contato e miscigenação entre os elementos pré-arianos anteriores no noroeste indiano com a chegada de povos arianos. Interpenetrações que irão combinar elementos harappanos de culto a divindades e animais, como visto na figura do proto-Xiva, com o culto ariano do cavalo, do fogo e do raio (como nos deuses Agni e de Indra, respectivamente). E que depois se inseriu uma relação de dominação e diferenciação social, em castas sociais hierarquizadas (varnas) com os setores dominantes arianos, sacerdotes (brâmanes) e guerreiros (xátrias), a prevalecer sobre outros (shudras) da sociedade [14]. Na convivência dos tempos, os arianos foram ordenando a hierarquia social conforme sua posição de dominação. Os Vedas O conjunto dos épicos védicos é a mais importante fonte de informação a respeitos dos arianos, e é a base mais antiga de crenças, práticas, valores e línguas da Índia. Em sua consideração a respeito da importância dos Vedas, Rabindranath Tagore (1861 - 1941)[15] com propriedade assim os descreveu: Um testamento poético da reação coletiva de um povo pela admiração e respeito da existência. Um povo de vigorosa e simples imaginação que foi despertado logo no início da civilização a um sentido do mistério inesgotável que está implícito na vida.[16] (tradução nossa) Os épicos são compostos por quatro categorias de textos. Os mantras, que tratam de palavras sagradas, os brâmanas que ordenam os rituais sacrificiais, os upanixades que são tratados esotéricos e filosóficos e os sutras, instruções ritualísticas. Essas categorias, conforme Kulke & Rothermund [17], expressam etapas históricas dos arianos desde a vida seminômade nas estepes asiáticas até o seu gradual assentamento e incorporação dos elementos urbanos sedentários no vale do rio Indo e posteriormente nas planícies a leste do rio Ganges [18]. Os mantras, conjunto mais sagrado transmitidos apenas entre os sacerdotes (brâmanes), são compostos por quatro grupos: o Rig Veda (o mais antigo deles), o Sama Veda, o Iajur Veda e o Atarva Veda. O Rig é a mais completa e valiosa fonte histórica que temos sobre a sociedade ariana, pois se considera que fora composto por volta de 1300 a 1000 a.C. Os primeiros livros do Rig tratam mais de assuntos filosóficos e sagrados, além de ordenamentos sociais e familiares. Os livros posteriores do épico Rig têm como assuntos a política e a guerra, ao abordar os confrontos entre os arianos e povos do vale do rio Ganges. Nesses, há relatos de povos não-arianos de pele escura, chamados de dasas ou dasyus que serão gradativamente incorporados, expulsos ou dominados. Nas inúmeras campanhas de guerra descritas, há hinos védicos do Rig que glorificam uma das mais destacadas divindades arianas, o deus do fogo, raio e destruidor de fortes (purandara), Indra: Armado com seu raio e confiante em sua proeza, ele vagou quebrando os fortes dos dasas. Lança o seu dardo, (...) ó Trovejante, sobre os dasyus; a aumentar o poder e glória dos arianos , ó Indra. (Rig Veda, Livro 1, Hino CIV) Indra, (...) o destruidor de fortes, dispersou os anfitriões dasas que habitavam nas trevas (...). A ele rendido (...), a Indra no tumulto da batalha. Quando em seus braços estendeu o raio, ele massacrou os dasyus e derrubou seus fortes de ferro. (Rig Veda, livro 2, Hino XX) [19] (tradução nossa) A expansão dos povos arianos se deu em etapas subsequentes advindos da região da Ásia Central para o noroeste indiano, e em direção a leste ao longo da planície dos rios Ganges e Yamuna, local de excepcional fertilidade para o plantio de culturas como o arroz e propício para rebanhos de animais domesticados como o gado bovino. Junto com os rios da região do Punjab, a importância das regiões fluviais, cultivo de culturas agrícolas e gado parecem ter ganhado proeminência entre esses povos antes seminômades das estepes. Assim como nos revela trechos do Rig Veda: Quando dois exércitos opostos entram em contenda em batalha por sementes e proles, águas, vacas ou milho da terra. (Rig Veda, livro 6, Hino 25) [20] (tradução nossa) A vida sedentária, portanto, começou a partir de meados do primeiro milênio a. C. entre os arianos, com o estabelecimento de vilas e cidades, e de campos cultivados descerrados da condição silvestre resultado de uso de ferramentas (e armas) de ferro. O comércio e o artesanato ganharam proeminência na sociedade ariana, a surgir uma casta nova, os vaixás. E houve, concomitantemente, um incremento nas reflexões e preocupações filosóficas a respeito da vida, sociedade e universo. Nessas sociedades assentadas, várias entidades políticas arianas começaram a despontar na região do vale do Ganges-Yamuna, entre eles os báratas e os purus que uniram-se como a clã dos kurus e predominaram sobre outros povos da terra que a partir de então passou a ser chamada de kurukshetra, lar dos kurus. E são os kurus, suas glórias e feitios que são recitados no épico Maabárata, como na batalha de Bárata, supostamente ocorrida por volta de 950 a.C., combatida entre duas grandes tribos arianas dos kurus, os kauravas e os pandavas. Os arianos se mesclaram com o passar dos séculos com outras etnias locais, resultando numa sociedade cada vez mais indo-ariana. Em tempos de paz como nos é revelado nos textos védicos, é distinguida uma diferenciação social entre aqueles membros livres (vish) e aqueles nobres guerreiros (xátrias) dentre dos quais era selecionado um rei (rajan). Os sacerdotes (brâmanes) também são mencionados como grupo distinto nos textos. Povos não-arianos submetidos ao trabalho manual eram considerados à parte de todos. E todos foram sistematizados em castas, (varnas). Essa ordem estabelecida aparece em textos védicos: Quando os deuses prepararam o sacrifício de Purusha [21] Seu óleo era a primavera, o dom era o outono, verão era a madeira Quando dividiram Purusha, quantas porções eles fizeram? Do que eles chamam de sua boca, seus braços? Do que eles chamam suas coxas e os pés ? O Brâmane era sua boca, de ambos os braços foi o Raj feito [Xatriá] Suas coxas se tornaram o Vaixá, de seus pés o Shudra foi produzido. (Rig Veda, Livro 10, hino 90) [22] (tradução nossa) A estratificação social foi mais explicitada no período tardio védico, ou seja, por volta de 1100 a.C. a 500 a.C., com a necessidade de ordenamento social e político a consolidar as conquistas e o poderio sobre os povos submetidos. Nesse sentido, o topo do poder residia na mão de um gramani, espécie de líder guerreiro da sociedade ariana advindo, portanto, da casta dos guerreiros, vaixás. A inserção de sacerdotes, brâmanes, junto à elite, constituiu sinal de que entre os arianos desde tempos seminômades era reservada a líderes espirituais uma posição de destaque e influência na sociedade. Tal é atestado com a cerimônia anual de um rei, o rajasuya, que deveria ser guiada e conduzida segundo rituais sacrificiais e preceitos guardados por sacerdotes. Abaixo desses vinham os artesãos e trabalhadores, carpinteiros, ceramistas e ferreiros, normalmente advindos de sociedades submetidas. Compostos de povos de pele maisescura. Eles são mencionados nos textos védicos pela sua importância na manutenção de carruagens e fabrico de armas e instrumentos. Muitos eram desconsiderados pela elite, que os enxergavam como shudras, o estrato mais baixo social, indicando sua posição marginal na sociedade védica. Com relação ao comércio, a atividade não era considerada tão impura, podendo brâmanes e xátrias participar dessa ocupação considerada crucial para a economia e prosperidade das sociedades arianas [23]. O que nos remete ao conceito de jati (“nascimento, origem”) que somente aparece no corpus védico num período tardio. Esse conceito social é uma forma de casta que conviveu com o sistema de varnas e buscou organizar as diferentes comunidades, tribos, nações e grupos religiosos e linguísticos da Índia designando-lhes determinadas ocupações na sociedade. Assim, as milhares de categorias jatis iam desde as funções militares (srivastava) até vendedores de perfume (gandhi), nomes que depois foram incorporados como nomes de famílias e clãs. E cada categoria era dinâmica, pois dependia do prestígio e poder de cada jati numa determinada sociedade, o grupo poderia ascender ou decair dentro da ordem social. O aparecimento tardio desse conceito aos Vedas parece indicar uma incorporação posterior de uma antiga prática social em vigor em outras partes da Índia além do compasso dos varnas [24]. O Maabárata e os Upanixades O maior épico da literatura indiana, o Maabárata [25] nos conta a respeito das guerras e intrigas no Kurukshetra – região ocidental do vales do Ganges e Yamuna – de duas entidades políticas arianas tardias relacionadas, e o drama dos regentes de ambos os lados. Há controvérsias de sua autoria, mas atribui- se tradicionalmente a compilação dos seus cantos ao lendário sábio Vyasa (literalmente, “compilador”) e ao deus Ganesha [26] [27], e sua datação remete acerca de 800 a. C. até suas versões finais por volta de 400 a. C. Seu tema trata das intrigas e disputas pelo trono dos kurus, na capital Hastinapura, disputado pelos regentes dos kauravas e pandavas. Ambos os lados discordavam sobre o casamento da princesa kuru Draupati. As disputas políticas pelo poder culminaram na Guerra de Kurukshetra, em que os pandavas saíram vitoriosos. Muita além das batalhas, o foco maior é em torno da tragédia humana em busca de poder, riqueza, glória acompanhada de mortes, perdas e miséria. As lealdades de família e política se entrelaçam e resultam, com frequência, em conflitos dramáticos revelados no épico. Entre as inúmeras histórias que compõe o Maabárata, a mais notória é o Bhagavad Gita. Num momento dramático no campo de batalha, um avatar [28] do deus Vixnu, Krishna, aparece ao angustiado príncipe pandava, Arjuna, a aconselhá-lo sobre o seu dever (darma) de um guerreiro (xátria) diante do seu destino. Em determinado momento, Arjuna começa a questionar a real divindade de Krishna e este, após hesitar, decide então revelar todo o esplendor divino e do universo, uma forma de teofania (vishvarupa) (fig.): Ó Mestre (...), se você acha que é possível, em seguida, gentilmente mostra-se em sua forma imortal para mim. (...) Krishna respondeu: (...) eis minhas formas divinas ilimitadas de vários matizes e formas. Ó descendente de Bharata [Arjuna], eis aqui os Adityas, Vasus, Rudras, os Ashvini-Kumaras e os Marutas [29]. Eis as múltiplas formas surpreendentes, nunca antes vistas. Ó conquistador do sono, eis que neste único lugar todo o cosmos, incluindo todos os seres móveis e imóveis, tudo dentro dessa Minha forma, juntamente com qualquer outra coisa que você deseja ver. No entanto, você é incapaz de perceber isso com os olhos do presente, por isso vou dar-lhe visão divina. Agora, eis meu esplendor místico! (...) Krishna revelou a Sua forma de bocas infinitas e os olhos, adornado com muitos ornamentos divinos e levantando muitas armas celestes. Ele foi decorado com guirlandas e roupas divinas e ungiu com fragrâncias celestiais. Ele era o mais maravilhoso, esplendoroso, ilimitado e que a tudo permeia. (Bhagavad Gita, Capítulo 11, versos 4 a 11) [30] (tradução nossa). Figura – A revelação (vishvarupa) de Krishna a Arjuna, de acordo com o Bhagavad Gita. A filosofia indiana no período tardio védico começou a refletir uma mudança de atitude diante do destino e do universo, diferentemente da atitude anterior dos arianos seminômades de fatalismo, magia e transitoriedade. A partir de então, a visão enfatiza cada vez mais a vulnerabilidade e brevidade do indivíduo, e da importância de sua conduta na vida com relação aos outros, surgindo conceitos como o carma (“ação”, em sânscrito), uma boa conduta a gerar consequências no futuro e em outras formas de vida. E samsara (“perambulação”), em que nossas ações irão se refletir nas subsequentes reencarnações, consistindo estas num ciclo incessante de renascimentos. Esses dois conceitos talvez tenham sido incorporados pelos arianos védicos diante das mudanças sociais e políticas ao estabelecerem-se e ordenarem-se em reinos permanentes e dinásticos, a refletirem sobre os efeitos da guerra, morte e fragilidade da vida humana [31]. Esses acréscimos filosóficos e religiosos foram sendo adotados pela sociedade, desde os brâmanes aos shudras e incorporados como comentários finais aos textos védicos, conhecidos como os Upanixades, ao final dos textos védicos (por isso conhecido como vedanta, “fim dos Vedas”) entre 750 a.C. e 500 a. C. A ênfase dada no período final dos Vedas e dos Upanixades, portanto, se voltam mais para o caminho místico do indivíduo, para a sua alma (atma) e sua relação com a alma do universo (brahman), acreditando numa relação entre esses dois universos em termos de conciliação e unidade, através de transmigrações e renascimentos [32]. Os Mahajanapadas e a ascensão do império Mágada Por volta de 700 a.C. ocorreram assentamentos indo-arianos na região de Ujjain, capital do reino de Avanti, a mais de 800 km ao sul de Kurukshetra. Ao norte e a leste, houve deslocamentos para regiões de altitude com temperaturas amenas e menos florestadas em comparação ao sul e ao leste indiano. Mas foram as terras férteis a leste, em direção ao vale do rio Ganges e Yamuna, hoje nos estados indianos de Bihar e Uttar Pradesh, que provaram ser irresistíveis aos povos indo-arianos. Da região do Kurukshetra no século 6 a. C., a maior migração foi em busca de kshetra, termo que designa terras propícias ao cultivo e gado. As terras do leste indiano forneceram também as condições para a formação de estados unificados sob comando militar e sacerdotal, em categorias chamadas de janapadas. Algumas dessas unidades após anexações e ampliações resultaram em mahajanapadas, ou grandes reinos. Entre esses constaram alguns com maior projeção: os reinos de Mágada (Magdha ou Magadha), Kosala, Vatsa e Avanti a disputarem entre si a supremacia. Em essência, foi essa a história política da Índia do século 6 a.C., com a gradual predominância do reino de Mágada [33]. A maior expansão deste reino se deu na dinastia dos Haryankas (c. 600 a 413 a. C.), especificamente sob o reinado de Bimbisara (r. 542 – 492 a.C.). Com este, o reino ganhou contornos imperiais, abarcando as regiões indianas de Bihar e Bengala a leste, além mais de Uttar Pradesh e Odisha ao longo da costa sul. A estrutura desses estados Mahajanapadas foi, em essência, um conjunto fluido de alianças e lealdades entre lideranças políticas. O comando central direto exercia-se apenas sobre territórios nos arredores da capital e algumas entidades tribais adjacentes. Os reinos mais afastados e aliados tinham considerável autonomia, somente sendo exigida lealdade em casos de guerra e atendimento a ocasionais cerimônias reais. As fronteiras imperiais confinaram-se em grande parte a limites naturais, como rios, desertos e montanhas. Esse sistema político de alianças, conceituado como rajamandala (“círculo de estados”) [34] por Cautília (Kautilya) [35], foi praticado em tempos posteriores entre regentes hindus e o sistemaimperial indo-britânico a partir do século 18. O Budismo e o Jainismo Na fase histórica entre o final do século 7 a.C. ao final do século 5 a.C., foi decisivo o desenvolvimento da cultura indiana e regiões próximas. Foi uma fase de intensa urbanização e efervescência cultural [36]. E foi sob o império Mágada que o budismo e o jainismo foram fundados e floresceram. Nos cânones budistas em língua páli [37] consta que Bimbisara concedeu proteção e culto à primeira destacada personalidade histórica da Índia, o príncipe Sidarta Gautama (563 a. C. ou 480 a.C. – 483 a.C. ou 400 a. C.), o Buda, na região onde ele caminhou e atingiu a Iluminação pelos estados de Uttar Pradesh, Bihar e na sagrada cidade de Bodh Gaya (fig.). Figura – O imponente templo de Mahabodhi, em Bodh Gaya, em Bihar. Os ensinamentos de Buda foram uma expressão espiritual de reforma. Nas crônicas budistas que narram sobre a vida e as encarnações de Buda, como no Jataka [38], há vivo retrato de que Sidarta cresceu e pregou em inquietos e florescentes ambientes urbanos ao longo do Ganges, a questionar a dominação da elite guerreira e sacerdotal (xátrias e brâmanes). Outro grande reformista da época, talvez um contemporâneo, foi o fundador do jainismo, Mahavira (599 a.C. – 527 a.C.), uma religião ascética que se popularizou entre os mercadores e comerciantes indianos, pois condenava veementemente a agressão e violência contra qualquer forma de vida – desde insetos a mamíferos – algo impeditivo para agricultores e pastoralistas. Ambos os movimentos religiosos do século 5 a.C. caracterizaram-se como uma transição de um período magicista e místico dos textos védicos e dos Upanixades para um novo tipo de racionalidade. O Buda centrou seu pensamento na busca pela salvação individual a romper o ciclo de reencarnações e sofrimentos (samsaras), a atingir a libertação (moksha). Após a morte de Buda, um concílio de monges começou a editar o conjunto de seus ensinamentos a ser preservado em 404 a.C na cidade de Rajgir, no Bihar (fig.) [39]. Em concílios posteriores, ocorreram cismas entre aqueles que defenderam os ideais ascéticos da comunidade dos monges (sanga), enquanto outros defenderam um maior envolvimento dos monges com a população leiga, alargando o conceito estrito de sanga. Este novo movimento, mais amplo, originou depois o chamado “Grande Veículo” (Maaiana), enxergando os outros movimentos budistas como mais restritos e ortodoxos, considerando-os como “Pequeno Veículo”, Hinayana, expressão pejorativa de referência à escola teravada. Esse cisma foi de crucial importância para o posterior alastramento do budismo por regiões além da Índia. Figura – O Primeiro Concílio Budista de Rajgir. Pintura no mosteiro de Jetavana em Uttar Pradesh. A Dinastia Máuria - auge do Império Mágada Por volta de 320 a.C., um comandante militar local em campanha conseguiu um feito extraordinário à época. Entra triunfante pelos portões da capital dos Mágadas, Pataliputra (atual Patna), uma das maiores e mais fortificadas cidades indianas. Seu nome era Chandragupta. Tal evento ocorreu em momento pouco propício ao que restava do passado Mágada, pois ao oeste ocorreram desde o século 6 a.C. invasões persas aquemênidas nas regiões do Sind e Punjab. A noroeste, sucessivas incursões gregas macedônicas, resultado do espetacular avanço de Alexandre, o Grande (356 a. C. – 323 a. C.) sobre o Império Persa, tinha estabelecido uma dinastia local, Greco- Báctrio (250 a.C. – 125 a.C.) sob comando de governadores macedônicos (sátrapas). Foram sucedidos por um reino indo-grego (180 a.C. – 10 d. C.), na região da Báctria [40], que sintetizou as heranças indianas e Greco- Macedônicas como ficou demonstrado no reinado de Menandro I (r. 155 a. C. – 130 a. C.), patrono do budismo e protagonista nos sagrados textos Milinda Panha [41]. Chandragupta Máuria (r. 321 a. C. – 297 a. C.) (fig.) ascendeu ao poder em período conturbado da ordem Mágada e de retraimento dos macedônicos no norte-noroeste indiano em Punjab (Báctria). A partir de 325 a. C. o líder indiano avançou mais ao leste, e foi derrotando as forças do Império Mágada, em Pataliputra, e fundou a dinastia Máuria. Teve como mentor e professor o sábio brâmane Cautília, que o aconselhou na manutenção e expansão do poder e efetiva administração política. De acordo com textos jainistas, o Parisistaparvan, Chandragupta converteu-se ao jainismo no final de sua vida quando abdicou do trono em favor de seu filho, Bindusara (r. 298 – 272 a. C.). Há relatos de que realizou o rito jainista de fome até a morte (sallekhana) em Belgola, perto de Mysore, hoje no estado de Karnataka [42]. Figura – Chandragupta Máuria, primeiro governante do Império Máuria. Bindusara, conhecido pelos gregos como Amitrochates (do sânscrito, Amitraghata, o “destruidor de inimigos”), empreendeu grandes campanhas militares e expansão de alianças políticas na direção sul, no planalto do Decão, a estender o controle Máuria até a região de Mysore. De acordo com relatos históricos, sua conquista chegou à “terra entre os dois mares”, presumivelmente entre o Mar Arábico e a Baía de Bengala. No entanto, na costa leste indiana, o reino de Calinga (hoje Orissa ou Orisha) manteve-se hostil e somente foi conquistada após longas batalhas no reinado de seu filho, Asoka (Asoca ou Ashoka) (r. 268 – 232 a. C.), um dos mais famosos imperadores indianos [43]. A morte de Bindusara em 272 a. C. levou a uma luta pela sucessão entre seus filhos que durou quatro anos. Em 268 a. C. ascendeu ao trono Asoka. De acordo com o Asokavadana (“narrativa de Asoka”), a mãe do imperador, Subhadrangi, era filha e descendente de brâmanes de Champa. O que lhe conferia certo status e legitimidade, diferentemente das origens humildes e obscuras de Chandragupta Máuria. Segundo a lenda, Asoka tinha sido enviado para acabar com uma revolta na cidade de Taxila, notável centro de estudos budistas, durante o reinado de seu pai. A sua missão foi bem- sucedida após negociações pacíficas. Após o fato, sua fama aumentou, e ganhou o controle como vice-rei de Ujjain, quando se casou com Devi de Vedisa em 286 a.C. (Vidisamahadevi ou Sakyani), além de duas outras consortes [44]. Ademais, Asoka concedeu amplas doações religiosas e de caridade pelo seu reino. Após uma vida de prazeres mundanos, período em que era chamado de Kamasoka, de acordo com Taranatha [45], viveu uma fase de extrema crueldade que lhe valeu o nome de Candasoka. Após sua conversão ao budismo, passou a ser conhecido como Dhamaasoka. O evento mais importante do reinado de Asoka após a sua conversão ao budismo foi a vitória sobre o reino de Calinga em 260 a. C., ganhando o controle das rotas para o sul da Índia, tanto por terra como por mar, expandindo e prosperando o Império Máuria (mapa). Mapa do império Máuria por volta de 265 a. C. Os horrores e misérias da guerra contra Calinga causaram profundo remorso a Asoka, conforme descrito em um dos seus éditos em pedra (mapa) [46]: “150 mil pessoas foram deportadas, 100 mil foram mortos e muitos mais pereceram posteriormente”. Conta-se que foi essa experiência que o fez converter ao budismo e a evitar qualquer forma de violência. A conversão parece não ter sido imediato, contudo, mas após um período de autorreflexão e reclusão de dois anos sob influência de um monge budista, Upagupta, de acordo com o Édito Bhabra [47] da região do Rajastão. Neste também constam a sua aceitação dos ensinamentos de Buda e compromisso com a retidão e caminho espiritual (darma) e o senso de comunidade (sanga). Mapa dos Éditos de Asoka pela Índia. Foi durante o seu reinado que ocorreu o Terceiro Concílio Budista em Pataliputra, em 250 a.C., no qual resultaram importantes avanços de definições doutrinárias e proselitismo da escola Teravada [48] para outras regiões como o sul indiano, a ilha de Sri Lanka, ao leste em direção à Birmânia (atual Mianmar) e Sudeste Asiático, e envio de missionários da escola Maaiana ao norte em direção ao Tibete, Ásia Central e China [49]. Emergiramdo concílio importantes discussões dos mais ortodoxos teravadas sobre a necessidade de conter heresias e outras versões heterodoxas do budismo. No aspecto externo, Asoka trocou intensas relações diplomáticas com o mundo helênico, via os gregos macedônicos do Império Selêucida (312 a.C. – 63 a.C.) na Báctria, a noroeste da Índia. Conforme consta em seu 13º. Édito, parte escrito em sânscrito, parte em aramaico e grego, o imperador indiano chegou inclusive a enviar representantes budistas para o mundo helênico no Mediterrâneo [50]. Tudo isso demonstrou a capacidade de projeção e diálogo internacional de Asoka na época. Segundo a tradição a Caxemira, no norte indiano, foi incorporada pelo Máurias e ali foi construída a cidade de Srinagar. O Nepal tinha relações estreitas como parte do império, e foi dito que uma das filhas de Asoka, Charumati, tenha se casado com um príncipe das montanhas nepalesas, Devpala [51]. Conta-nos a lenda de que a grandiosa estupa budista de Boudhanath, nos arredores de Katmandu, foi engrandecida por ordens da princesa indiana. A leste, a influência de Asoka se estendeu até o delta do rio Ganges. Tamralipti (hoje Tamluk) foi um importante porto na costa da baía de Bengala a partir do qual os navios zarpavam para a Birmânia (hoje Mianmar), Ceilão (hoje Sri Lanka) e partes meridionais da Índia. Na extensão mais ocidental, o Império Máuria controlou os povos Gandharis, Kambojas e Yonas – este último termo genérico, uma referência a muitas nações a oeste, inclusive os indo-gregos macedônicos – como seus aliados de fronteira. No Ceilão, ao sul, as relações foram intensas e próximas, chegando Asoka a enviar seu filho Mahendra (“conquistador do mundo” em sânscrito) e sua filha Sanghamitra para pregar o budismo pela ilha no 3º. Século a.C atendendo aos pedidos do rei cingalês Devanampiya Tissa (r. 307 a.C. – 267 a.C.) [52]. E na região meridional indiana, há referência de contatos diplomáticos amigáveis com vários reinos, como consta no 2º. Édito: Cholas, Pandyas, Stiyaputras e Keralaputras. A desintegração do império da dinastia iniciada por Chandragupta Máuria foi um processo lento e desintegrante iniciado após a morte de Asoka em 232 a.C. Fontes como os Puranas [53], além da literatura budista e jainista não fornecem dados consistentes sobre a decadência imperial. O único consenso, como nos Puranas é de que a dinastia perdurou 137 anos. A morte de Asoka acarretou em maiores divisões do império, em partes ocidentais e orientais. A parte oriental do Império, com sua capital em Pataliputra, passou a ser governado por Dasarata Máuria (r. 252 a.C. – 242 a.C.), provável neto de Asoka. De acordo com os Puranas, Dasaratha reinou por oito anos. As províncias ao oeste e ao norte, Gandara e Caxemira, foram governadas por um de seus filhos – que fora cegado na infância pela madrasta – Kunala (r. 263 a.C. - 242 a.C. ?) e, em seguida, por Samprati (r. 224 a.C. – 215 a.C.). Este último foi, segundo algumas fontes [54] como no capítulo Theravali (ou Sthaviravali) do sagrado livro Kalpa Sutra [55], um importante patrono e devoto do jainismo. Essa região foi posteriormente ameaçada pelos helênicos vindos da Báctria a quem foi praticamente perdida em 180 a.C. Kunala provavelmente deve ter morrido aproximadamente em período próximo ao de Dasarata; de modo que Sampriti passou a governar tanto a leste como ao norte e oeste e pode ter recuperado a unidade imperial e o trono em Pataliputra. Este evento ocorreu em 223 a.C. Após algumas décadas, no entanto, a tendência desagregadora ficou mais uma vez evidente. O último regente da dinastia Máuria, Briadrata (r. c. 187 a.C. – 185 a.C.), governou por territórios bastante encolhidos desde os tempos de Asoka. Em 185 a.C., foi assassinado em um desfile militar por seu comandante-chefe de sua guarda, pelo general Pusiamitra Sunga, que tomou então as rédeas do poder e fundou uma nova dinastia, a Sunga [56]. As causas do declínio da dinastia dos Máurias foram múltiplas. Guerras sucessivas exauriram os recursos imperiais, como na desgastante conquista de Calinga por Asoka em 232 a. C. Outros fatores apontam o declínio como resultado de uma sucessão de reis ineptos e fracos após Asoka. A partição do império em partes ocidentais e orientais após Asoka fragmentou a unidade política e pulverizou a rede de lealdades imperiais. Os demais motivos podem ter sido a inquietação de brâmanes na conversão budista de Asoka e ao jainismo de Samprati. Ou a tendência em fase posterior da vida de Asoka e adotada por seus sucessores de promover a não-violência que resultou em descontentamento das castas militares e alentando possíveis usurpadores ao poder. A Dinastia dos Sungas e Kanvas – o declínio do Império Mágada Com a queda dos Máurias em 185 a.C. a história da Índia derivou para uma tendência centrífuga. Os acontecimentos políticos se tornaram mais difusos, envolvendo uma variedade de reis, guerreiros e pessoas. O norte da Índia viu- se apanhado num turbilhão de acontecimentos advindos da Ásia Central, uma questão sempre permanente na sua história, pois muitos invasores nômades, habitantes das montanhas, alvejaram as riquezas dos vales indianos. Os arianos foram os mais remotos. Os sucessores imediatos da dinastia dos Máurias do Império Mágada e nas províncias vizinhas foram, de acordo com os Puranas, os da dinastia Sunga (180 a.C. – 73 a. C.) considerados descendentes de uma família brâmane pertencente ao clã Bharadvaja. Os sungas vieram da região de Ujjain, no oeste da Índia, onde eles eram funcionários sob os Máurias. O fundador da dinastia sunga foi Pusiamitra Sunga (r. 180 a. C. – 149 a. C.) um general do último rei Máuria Brihadratha que conseguiu usurpar o trono matando seu mestre. Ele não tomou títulos régios, mas foi durante todo o seu reinado referido pelo simples título Senapati, ou “General”. Pusiamitra era um defensor da fé bramânica ortodoxa, e reviveu os antigos sacrifícios védicos, incluindo o sacrifício de cavalos [57]. A literatura budista o retrata como um perseguidor de budistas, destruidor dos seus mosteiros e lugares de culto especialmente aqueles que tinham sido construídos por Asoka. Isso claramente foi um exagero, já que as evidências arqueológicas revelam que diversos monumentos budistas no período foram renovados [58]. Apesar de praticar o infame regicídio para subir ao poder, Pusiamitra teve seu valor histórico ao defender o Império Mágada contra as invasões dos gregos macedônicos bactrianos a noroeste e ao restaurar seu poder e prestígio a uma extensão considerável pelo norte da Índia. Quando Pusiamitra morreu por volta de 149 a. C., após um reinado de 36 anos, ele foi sucedido por seu filho, o príncipe Agnimitra (r. 149 a.C. – 141 a.C.) que havia governado as províncias meridionais durante a vida de seu pai. Agnimitra governou por apenas oito anos. E serviu de inspiração a Calidasa [59] para a figura do herói da sua obra Malavikagnimitram [60]. Agnimitra foi sucedido por sucessores ineptos e fracos. A exceção por ser dada à Bagabadra (r. c. 110 – 83 a.C.), rei Sunga de certa proeminência, pois foi para sua corte em 113 a. C. que o grego Heliodoro representou como embaixador os interesses do rei bactriano Antialcidas (r c. 115 a.C. – 95 a.C.), e não poupou admiração e elogios aos palacianos e cortesãos. Isso não só mostra que os sungas mantiveram estreita relação com os reis gregos bactrianos, mas também demonstra a vitalidade da cultura indiana quando Heliodoro se converteu ao hinduísmo na vixnuísta, conforme fica claro nos escritos na chamada Coluna de Heliodoro (fig.) próximo da cidade de Bhophal [61]. Bagabadra mostrou ser um ativo patrono das crenças de Buda, pois foi no seu reinado que a estupa de Sanchi, em Madhya Pradesh, foi ampliada. Ao fim de sua vida, foi sucedido por Devabuti (r. 83 – 75 a.C.), que foi derrubado por seu ministro brâmane Vasudeva que fundou a dinastia Kanva em 75 a.C. Figura – Coluna de Heliodoro, século 2 a. C. Os Kanvas, de acordo com os Puranas, governaram apenas por 45 anose tiveram quatro reis sucessivos. Após assassinar o rei dos sungas, Devabuti, Vasudeva Kanva (r. 75 – 66 a.C.) governou por nove anos para ser sucedido por seu filho, Bumimitra (r. 66 – 52 a. C.) e depois por Naraiana (r. 52 – 40 a. C.) e Susarma (r. 40 – 28 a. C.). A dinastia Kanva teve curta duração e testemunhou o declínio absoluto do Império Mágada que se desintegrou em vários mahajanapadas. O epicentro político da Índia se deslocou mais para o noroeste, onde várias dinastias estrangeiras, como entre os gregos bactrianos, lutaram pelo controle da região. Em 28 a. C. o último rei Kanva, Susarma, foi derrotado por outro regente, antes vassalo dos Mágadas, da dinastia Satavana da região central indiana [62]. Este fato não só sinalizou o fim do Império Mágada após cinco séculos de eminência, mas também a ascensão de outras regiões indianas ao centro e sul do subcontinente. O Império Cuchana Os cinco séculos entre o declínio dos Máurias e a ascensão do Império Gupta em 320 d. C. tem sido frequentemente considerado como um período obscuro e de instabilidades na história indiana, em que dinastias diversas digladiaram- se por controles políticos efêmeros e de curta duração na região norte da Índia. Com exceção dada ao império dos Cuchanas (30 – 375 d. C.) sob Kanishka, o Grande [63] (r. 127 – 163 d. C.) que rivalizou em extensão com o dos romanos e partas a oeste e à dinastia Han dos chineses ao nordeste, o período no restante da Índia certamente faltou em grandeza e unidade imperial. Mas essa suposta desordem, especialmente nos dois primeiros séculos d. C., foi um período de intensos contatos e trocas comerciais e culturais, encontrando-se a Índia na encruzilhada entre partes do continente asiático com o mundo budista e muçulmano ao norte e europeu mais ao ocidente. A resultar, como exemplo, em ambiente de múltiplas religiosidades, crenças e sincretismos, como ficou atestado no reinado de Kanishka em Gandara [64]. O Budismo, que tinha sido fomentado por regentes indianos desde Asoka, ganhou notáveis projeções internacionais através do reino grego bactriano e depois de Cuchana na região noroeste indiana. E a partir dali, através de estudiosos, monges e missionários, seguindo os caminhos da Rota da Seda, expandiu-se para a Ásia Central e para as terras chinesas. Ao mesmo tempo em que houve relatos de conversão de gregos ao budismo, como o fez o governante Menandro I (r. 165/155 a.C. – 130 a. C.), elementos culturais helênicos bactrianos foram incorporados ao budismo maaiana, como a adaptação da figura de Hércules como uma entidade budista, um bodisatva [65] (Vajrapani, Jingang Shou na China ou Kongo Rikishi no Japão) (fig.), protetor e guarda de Buda [66]. Ao sul da Índia e ao sudeste asiático, as ligações estabelecidas através da expansão budista provaram ser fundamentais para o futuro curso da história asiática. Nessa vertente, a escola teravada foi determinante [67]. Figura – Vajrapani (ou Hércules) a proteger a figura de Buda. Obra do século 2 d. C. de Gandara. Mas foi na Índia mesmo que experiências sociais e culturais cruciais tomaram seus cursos. Estrangeiros e castas inferiores na Índia começaram a enxergar o budismo como uma comunidade mais igualitária distante das barreiras de castas do hinduísmo ortodoxo. Isso não significou um declínio do hinduísmo. Ao contrário, formas populares de cultos hindus como ao deus asceta Xiva e a Krishna – que tinham sido figuras marginalizadas no passado ortodoxo predominado pelos arianos e bramânicos – ganharam proeminência nos primeiros cinco séculos de nossa era [68]. A rivalidade entre o budismo adotado oficialmente por algumas autoridades desde os tempos de Asoka e o hermetismo das castas bramânicas pelo ortodoxismo hindu fez com que cultos heterodoxos ganhassem terreno entre a maioria da população (camponeses, trabalhadores em geral, comerciantes, mulheres entre outros) e de comunidades de estrangeiros. De grande importância para a renovação do hinduísmo foi a promoção realizada pelos regentes Cuchanas e sua legitimação ao identificarem-se com certas divindades do panteão hindu. Ademais, a legitimação religiosa foi de crucial importância para regentes estrangeiros a serem aceitos pela sociedade indiana. Assim o fez Menandro I ao se converter por volta do ano 100 a.C. após discussões com o sábio Nagasena, e suas cinzas foram espalhadas de obedecendo aos ritos budistas [69]. Kanishka foi identificado com Mitras, divindade zoroastriana, mas também por vezes retratados em moedas como relacionado à Xiva. Com relação às artes do período, as realizações foram nada menos que sublimes. As esculturas e imagens budistas de herança indo-grega-bactriana em Gandara formaram parâmetro antropomórficos para as posteriores representações artísticas em escolas como em Matura, além das esculturas de Bamiyan e alhures na China. Matura se tornará o epicentro de toda a arte budista indo-cuchana possibilitando a ascensão da escola Sarnath que definiu o estilo artístico do período Gupta. Vindos do oeste, as influências pérsicas foram incorporadas no período dos sungas e resultaram em interessantes resultados em esculturas como visto na estupa de Sanchi. No campo social, o período testemunhou a grande codificação dos costumes, valores e normas das leis hindus (darmashastra) no Código de Manu [70] (Manu Smriti) provavelmente escrito entre os séculos 2 e 3 d. C. A ordenação geral que permeia a obra foi fruto de sua época, de incertezas e questionamentos depois do declínio dos Máurias e sungas, a buscar fontes tradicionais de normas sociais. Todos esses elementos, de renovação popular de cultos, de novos sincretismos e escolas artísticas e codificações de normas formaram a base social e cultural de uma nova era indiana, a do império dos Guptas (320 d. C. – 550 d. C.). As narrativas da mitologia hindu e o florescimento cultural indiano Procederemos a compreender como foi construída a narrativa e estrutura mitológica indiana. Foi no período desde os Vedas até os primeiros séculos d. C. que obras e narrativas foram feitas a ordenar não somente a sociedade e suas normas, como o Código de Manu, mas a dos deuses e outras entidades do vasto panteão hindu. Essa vastidão se explica em boa parte por essa religião ter sido uma construção de séculos, a incorporar e ordenar diferentes divindades do universo indiano. Há estimativas nos tempos atuais de que são aproximadamente 330 milhões de entidades e deuses [71]. Nessa imensa estrutura, no topo, situam-se na trindade sagrada (trimurti) os deuses Brama (representa a força criativa ativa no universo), Vixnu (a manutenção e preservação da ordem do universo) e Xiva (destruição e renovação do universo). Brama é considerado muito distante dos anseios da humanidade e pouco cultuado, apenas em raríssimos templos na Índia, como na vila sagrada de Pushkar no Rajastão. Vixnu e Xiva dividem os corações da maior parte dos adeptos hindus, vixnuístas e xivaístas, respectivamente. Vixnu (também chamado de Naraiana e Hari) é comumente retratado com pele pálida azul e segurando nos seus quatro braços uma concha (representando os cinco elementos da criação ao soprá-la, Om), lótus, disco de energia (suprema arma a controlar os demônios) e um cajado (força física e mental originária de todo o universo) (fig.). Segundo os Puranas, ele encarnou-se em avatares [72] através de dez personagens (dashavatara) sendo os mais conhecidos Rama, Krishna e, segundo algumas interpretações, Buda. Assim descreve o Bhagavad Gita sobre os avatares de Vixnu: Em qualquer lugar e sempre que a verdade vacilar e a mentira dominar, Eu me manifestarei, ó descendente de Bárata. Para restabelecer os princípios religiosos, para salvar os devotos e aniquilar os canalhas, Eu surjo em cada milênio. (Bhagavad Gita, canto IV, versos 7 e 8)[73] Figura –Vixnu. Segundo um dos Puranas, os dez avatares de Vixnu serviram para ordenar a sociedade humana e o cosmos, atendendo aos seus princípios. Os avatares manifestaram-se em partes zoomórficas e antropomórficas.O primeiro foi Matsya, em parte forma de peixe, e foi o que resgatou Manu de um dilúvio, apesar dos avisos prévios feitos. Assim ele resgatou o ordenador das sociedades humanas da catástrofe maior da natureza. Em segundo, Vixnu veio como Kurma, parte em forma de tartaruga. Em que foram salvas a figura da imortalidade (Amrita), as divindades com relação às asuras (“demônios”) e a ordem cósmica ao garantir o fluxo dos oceanos de leite do universo (kshir sagar) a representar a galáxia Via Láctea. Varaha veio em parte como javali. Que combateu e derrotou o demônio Hiranyaksha ao mergulhar nas águas e erguer a Terra das profundezas. E depois como o leão Narasimha, que se manifestou para novamente derrotar Hiranyaksha quando testou a fé de seu filho. Esse ciclo de quatro avatares, chamada Era da Satya Yuga (“Era da Verdade”), em o mal e a mentira eram desconhecidos e prevaleciam o bem e a verdade. A era subsequente foi a dos homens, na Treta Yuga, em que a ganância dos homens é maior e suas virtudes são menores, mais materialistas e menos propensos à espiritualidade. Nessa era, primeiro veio Vixnu como Vamana, um brâmane anão, que foi derrotar o deus dos demônios, Bali, a pedido do deus Indra, irmão mais velho de Vixnu. Vamana teve audiência com Bali que resolveu atender ao pedido do brâmane por um pedaço de terra para viver. Ao constatar a sua reduzida estatura, Bali concedeu ao seu pedido a ser definido em três passos dados. Mas Vixnu, na forma do anão, deu o primeiro passo do tamanho da galáxia, o segundo abarcando o Universo e o terceiro sobre a cabeça de Bali. Segundo a tradição da época, Bali, inteligentemente, forçou este último ato, pois a sola sobre a cabeça significa a submissão de quem coloca o pé, em forma de autoridade, vida e posses [74]. Parashurama, um brâmane guerreiro, foi o avatar seguinte, no qual Vixnu veio vingar todos aqueles guerreiros (xátrias) arrogantes que mataram injustamente brâmanes. O avatar seguinte foi Rama, grande e perfeito homem, com suas façanhas descritas no épico Ramaiana [75]. Neste maior épico da mitologia indiana, uma miríade de tópicos é abordada, incluindo a guerra, o amor, a fraternidade, a conduta ideal, amor filial entre outros. É essencialmente a história de um governante ideal, filho, pai e homem. Uma das histórias mais dramáticas do épico retrata Rama a obedecer lealmente aos desejos de seu pai, o rei Dasaratha, de viver 14 anos na floresta, junto com sua esposa, Sita, e seu irmão Lakshman. Durante sua estadia na floresta, o demônio Ravana sequestra Sita. Rama vai prontamente atrás dela, e nisso ele busca aliados na floresta e faz amizade com o rei dos macacos, Sugriva e seu devoto Hanuman. No final, ele trava grandiosa guerra com Ravana, supostamente imperador da ilha de Lanka (Sri Lanka), e resgata Sita para depois governar por mais mil anos. Sita, ao final de sua vida, precisa provar de que o filho dela não é fruto com Ravana, e assim deu luz a gêmeos e foi resgatada de volta ao ventre da Terra por sua mãe, a deusa Bhumi, provando sua suprema lealdade e pureza [76].(fig.) Figura – Sita retornando ao seio da Terra pela sua mãe, Bhumi, para consternação de Rama. Em momento posterior, Vixnu encarna-se como Krishna, conforme descrito no Bhagavad Gita, além Maabárata e nos Puranas. Krishna foi um avatar complexo e nem sempre de conduta exemplar, apresentando-se com todas as contradições humanas. Num dos episódios mais conhecidos descritos nos textos purânicos (Bhagavata Purana) Krishna, que era afeito aos prazeres mundanos da vida, depara-se com várias donzelas solteiras (gopis) a banharem-se desnudas no rio Yamuna. Na ocasião, Krishna decide por roubar as roupas delas e anuncia sua presença em cima de uma árvore, conforme narrado (fig.): No início da manhã, as gopis costumavam ir ao rio Yamuna para tomar banho. Elas se reuniram em conjunto, segurando as mãos umas das outras, e em voz alta cantaram hinos louvando Krishna. É um costume antigo entre meninas e mulheres que quando tomam banho no rio colocam suas vestes sobre a margem e mergulham na água completamente nuas. A parte do rio onde as meninas e as mulheres tomam banho era estritamente proibido a qualquer membro do sexo masculino, e este ainda é o sistema. (...) Quando as gopis viram Krishna que permanecia forte e determinado [em cima de uma árvore próxima com as vestes delas], viram que não tinham alternativas a não ser obedecer Sua ordem [de sair da água e ir buscar as vestes com ele]. Uma após outra, elas saíram da água, mas porque elas estavam completamente nuas, elas tentaram cobrir sua nudez, colocando a mão esquerda na região pubiana. Todas elas foram assim tremendo. A atitude delas foi tão pura que o Senhor Krishna tornou-se imediatamente satisfeito [77] (tradução nossa). Figura – Krishna na árvore com as roupas das donzelas (gopis). Buda é considerado como avatar de Vixnu apenas entre alguns da comunidade de vixnuístas, pois muitos desconfiam de que isso foi uma maneira de incorporar o budismo de volta ao sistema religioso hindu [78]. E, por fim, aquele último avatar que está por vir, Kalki, a apresentar-se em cima de um cavalo branco e com espada flamejante a eliminar todo o mal e restaurar a ordem, darma, no universo [79]. Xiva, o deus asceta, é a terceira divindade da Tríade (trimurti) hindu (fig.). Como todas as coisas e formas de vida estão sujeitas a deteriorar e decair, um destruidor era necessário; e destruição é considerada como a função peculiar de Xiva. Isso parece pouco em harmonia com a forma pela qual ele é normalmente representado. Deve-se lembrar, porém, que, de acordo com o ensinamento do hinduísmo, a morte não é o fim, no sentido de passar para a não-existência, mas simplesmente uma mudança para uma nova forma de vida. Aquele que destrói, portanto, faz com que os seres a assumir novas fases de existência, o Destruidor é realmente um re-Criador; daí o nome Xiva, o brilhante ou feliz, que é dado a ele, o que não teria sido o caso, se ele tivesse sido considerado como apenas como o destruidor, no sentido comum do termo [80]. Figura – Xiva. Xiva normalmente é representado com um terceiro olho na sua testa (tri netra) e nu com o cabelo preso em um coque. No seu cabelo aparece uma lua crescente e uma caveira, a simbolizar a quinta cabeça de Brama que foi punido por desejar a sua filha, Sandhya. Um colar de cabeças e serpentes como pulseiras atestam ao seu caráter impiedoso e de ligação ao mundo da natureza, como Pashupati, “senhor dos animais”. Com frequência Xiva está em postura de dança (Nataraja), com um fogo (agni, “fogo divino”) numa das mãos e na outra um tambor (damaru, “o som da criação”) representando o ritmo da destruição criativa do universo (fig.). Ao aparecer pisando num anão (Apasmara), representa-se a vitória sobre a ignorância. O ciclo que aparece ao seu redor, na figura, é o ciclo da vida e morte do universo. No pedestal, abaixo do anão, há uma referência à flor de lótus, significando renascimento [81]. Figura – Escultura em bronze de Nataraja. A esposa de Xiva era Parvati, muitas vezes representada como seu lado mais destrutiva e terrível, Kali e Durga. Ela é, de fato, uma reencarnação de Sati (ou Dakshayani), a filha do deus Daksha. Daksha não aprovava o casamento de Sati a Xiva e até foi mais longe e realizou uma cerimônia de sacrifício especial a todos os deuses, exceto a Xiva. Indignado com esta desfeita, Sati se jogou no fogo sacrificial. Xiva reagiu a esta tragédia através da criação de dois demônios (Virabhadra e Rudrakali) de seu cabelo, que causaram grandes estragos na cerimônia e decapitou Daksha. Aos outros deuses, Xiva apelou para que acabassem de vez com a violência e, cumprindo a sua promessa, trouxe Daksha de volta à vida, mas com a cabeça de um carneiro (ou cabra). Sati acabou por ser reencarnada como Parvati em sua próxima vida e novamente casou-se com Xiva [82]. De com os Puranas, Xiva teve um filho com Parvati, o deus Ganesha. O menino foi na verdade criado a partir de terra e argila parafazer companhia a ela e protegê-la, enquanto Xiva continuou suas andanças meditativas. No entanto, Xiva voltou um dia e, encontrando o menino que guardava a sala onde Parvati foi tomar banho, ele perguntou quem era. Não acreditando que o menino era seu filho, mas um mendigo impudente, Xiva invocou os demônios bhutaganas que lutaram contra o menino que, eventualmente, conseguiram distraí-lo com a aparência da bela Maya (“ilusão”). Enquanto admirava a sua estonteante, mas ilusória beleza, Maya cortou-lhe sua cabeça. No tumulto, Parvati apressada saiu de seu banho e gritou que seu filho tinha sido morto. Percebendo seu erro, Xiva, em seguida, enviou o pedido desesperado para fazer com que o menino fique inteiro de novo, e a única cabeça por perto era a de um elefante. E assim Ganesha, o deus com cabeça de elefante, nasceu [83]. Outros filhos de Xiva são Skanda ou Karttikeya, o deus da guerra e Kuvera, o deus dos tesouros. Entre os feitos de Xiva que atestam seu caráter virtuoso e exemplar, aparecem episódios de auto-sacrifício, quando Vasuki, o rei das serpentes, ameaçou vomitar veneno de cobra através dos mares. Xiva, assumindo a forma de uma tartaruga gigante, recolheu o veneno na palma da mão e o bebeu. O veneno queimou sua garganta e deixou uma cicatriz permanente azul, daí um dos seus muitos títulos se tornou Nilakanta ou “Pescoço Azul” [84]. Xiva está intimamente associado com o linga (ou lingam) - um falo ou símbolo de fertilidade ou energia divina encontrada em templos ao deus. Após a morte de Sati, e antes de sua reencarnação, Xiva ficou de luto e foi para a floresta Daru para viver com os sábios (rishis). No entanto, as esposas dos rishis logo começaram a se interessar por Xiva. Movidos pelo ciúme, os rishis enviaram um grande antílope e, em seguida, um tigre enorme contra o deus, que foram rapidamente dominados e Xiva passou a vestir a pele do tigre. Os sábios então amaldiçoaram a masculinidade de Xiva que, em consequência, cujo órgão caiu ao chão. Quando seu falo atingiu o chão, terremotos de grandes proporções começaram e os rishis se apavoraram e clamaram por seu perdão. Isto foi dado, mas Xiva disse-lhes que o culto do falo como o linga simbólico deveria ser observado para toda a eternidade [85]. Uma infinidade de outras divindades e entidades recheia os contos dos épicos e dos Puranas, que por volta dos últimos séculos antes de nossa era estavam ganhando suas versões definitivas. Além dessa literatura, um ramo literário laico, a tratar de leis, costumes, valores e contos morais foram escritos, classificados como xastras (shastras). Um conjunto importante de compêndios e tratados que se subdivide em aqueles que tratam das questões morais de contos populares, Nitixastra (Neeti Shastra), como a coleção de poemas no Sumati Satakam de Baddena Bhupaludu (1220 – 1280?), que inspirará a literatura desse gênero de outros povos como entre os persas. O Artaxastra (Arta Shastra), como o de Cautília, trata essencialmente das questões de política e governo [86]. Outro gênero, Darmaxastra (Dharma Shastra), lida com os deveres, direitos e responsabilidades da pessoa, família e sociedade [87]. E aquela tradição que enfatiza os prazeres, desejos sensuais e espirituais, agrupados como Kamaxastra (Kama Shastra) – do qual deriva uma parte relacionada a conselhos sexuais, como o Kama Sutra de Vatsyayana (segundo século d. C.) [88]. Para as questões do corpo, higiene, respiração, concentração e meditação, houve a influente compilação de sutras (coletânea de aforismos) por Patanjali (fig.) (c. 400 d. C.) voltadas para a Ioga (do sânscrito yuj, “somar, juntar, unificar”) tirando de tradições e práticas mais recuadas no tempo [89]. Entre esses escritos iogues, o Hata Ioga ganhou maior popularidade, principalmente no Ocidente, que trata mais das posturas físicas. Mas há uma enormidade de outras escolas, o jnana, o raja, o karma, o laya, o tântrico, o bakhti entre outros. Figura – Estátua de Pantajali. Em suma, tal como no Japão no período Heian (794 – 1185) ou como o fez o Venerável Beda (673 – 735) durante a decadência do Império Romano Ocidental, foi num período de desunidade e crise política que a Índia testemunhou um fervor social e cultural. Épicos antigos como o Maabárata, Ramaiana, o conjunto dos Puranas foram compilados nesses tempos conturbados da Índia. Assim como os xastras (shastras) de cunho laico, ou os escritos iogues. E o Código de Manu. Serviram de orientação, ensino, exemplo de vida e conduta, ética e filosofia para aqueles que viveram num período de desorientação. Os Guptas O Império Gupta representou um zênite unificado da Índia, entre 320 a 550 d. C. No período, ficaram conhecidas as notáveis realizações nas artes, arquitetura, ciência, religião e filosofia indiana. E foram sintetizadas e amplificadas as criações culturais do período anterior. Foi no reinado de Chandragupta I (r. 320 – 335) que os Guptas consolidaram sua mais ampla dominação sobre grande parte da Índia, algo inexistente desde a queda dos Máurias. Ademais, houve um período sustentado de prosperidade durante dois séculos e meio que veio depois a ser considerado na história indiana como a “Idade de Ouro”. Ainda permanecem obscuras as origens da dinastia Gupta. Escritos de monges budistas consistem na fonte mais recorrida sobre isso, como os diários de viagem dos monges chineses Faxian (337 – 422), Xuazang (602 – 664) e I Tsing (635 – 713), valiosos e únicos a respeito. O primeiro governante (adiraja) que é narrado da dinastia remete a Sri-Gupta (c. 240 – 280), que aparentemente governou, tal como os Máurias, a partir de Pataliputra e partes da região de Bengala mais a leste. Sri-Gupta foi sucedido no trono por seu filho Gatotkacha (c. 280 – 319) [90]. Mas foi a partir do governo de Chandragupta I (r. 305 – 335) que o domínio dos Guptas ganhou maior extensão. E isso foi em parte resultado de anos de alianças e casamentos com poderosas famílias e clãs a assegurar uma dominação maior no norte indiano. A cavalaria ligeira, assim como uma disciplinada infantaria garantiram campanhas bem sucedidas dos Guptas em campos de batalha. No campo político, um dos maiores feitos políticos iniciais de Chandragupta I foi seu casamento com a princesa Kumadevi do reino Licchiavi [91], no atual estado de Bihar e partes do Nepal, região onde viveu Sidarta (Buda). Com isso, o estadista Gupta garantiu uma ampla base territorial com abundantes minas de minério de ferro, a fornecer material para a metalurgia, para a confecção de armas e uma valiosa mercadoria para o comércio. Quem sucedeu Chandragupta foi seu filho, Samudragupta (r. c. 335 – c. 380), um gênio militar que expandiu as fronteiras do império Gupta. Além de consolidar a dominação no norte indiano, Samudragupta avançou e incorporou as terras mais meridionais ao sul dos Montes Víndias. Alguns estimam que os Guptas nesse período estenderam-se desde os Himalaias ao norte, até os rios Krishna e Godaveri ao sul, de Balkh no Afeganistão a oeste até o rio Brahmaputra na região de Assam no leste (mapa). Mapa do império Gupta sob Chandragupta II e extensões feitas por Samudragupta, século 4-5 d. C.. O testamento mais eloquente dos feitos de Samudragupta é a grande quantidade de moedas de ouro achadas com sua figura e uma inscrição presente numa coluna antes erguida por Asoka em Allahabad. Neste, constam as qualidades do regente (prashasti, espécie de elogio) que promoveu a convivência entre as diversas crenças no seu império [92]. Como exemplo, concedeu ao rei do Ceilão (hoje Sri Lanka), Sri-Meghavanna [93] (304 - 332), permissão para a construção do imponente mosteiro budista na cidade de Bodh Gaya, em Bihar, onde Buda atingiu a Iluminação. No aspecto político, Samudragupta seguiu cuidadosamente os conselhos de Cautília e assegurou alianças e lealdades com regentes locais, como recomenda os deveres de um rei (rajdarma) no Artaxastra. Como filantropo, doou grandes valores de dinheiro, e promoveu de acordo com sua paixão, as artes, a educação, a poesiae a música. Chandragupta II (380 – 413) (fig.), após uma breve luta sucessória pelo poder, sobe ao trono após desbancar seu irmão mais velho, Ramagupta. Assim nos é contado nos fragmentos achados da obra perdida Devichandragupta de Visakhadatta (séculos 4 a 5 d. C.) [94]. Também em versões diferentes como no Harshacharita (“Vida de Harsha”) de Banabhatta (século 7 d. C.). Nesta última, o escritor conta-nos de que Ramagupta manteve apaixonado interesse por uma rainha, Dhruvadevi, que acabou desistindo de sua mão para seu adversário político e concorrente amoroso, o rei de Matura [95]. Somente após esses eventos dramáticos que o irmão mais novo de Ramagupta, Chandragupta II, com seus aliados mais próximos, foi ao encontro do inimigo, resgatou Dhruvadevi e assassinou o regente rival. Eventualmente, Ramagupta foi morto por seu irmão mais novo que se casou com Dhruvadevi tempos depois. Mas essa versão pode ter suas dúvidas, pois as evidências de Ramagupta não aparecem em inscrições nem em moedas do período [96]. Figura – Moeda de ouro com Chandragupta II a cavalo, como símbolo inconteste de autoridade e virilidade. Seguindo os feitos imperiais de seu pai, Chandragupta II foi um governante tolerante, capaz e administrador qualificado. Chegou a expandir seu reino a oeste para a costa do Mar Arábico. Sua coragem e audácia lhe renderam o título de Vikramaditya [97] (“Bravo como o Sol”). Para melhor governar a vastidão do império expandido de forma mais eficiente, Chandragupta II fundou sua segunda capital em Ujjain. Ele também teve o cuidado de reforçar sua frota marítima. Os portos de Tamralipta e Sopara consequentemente tornaram-se centros movimentados de comércio [98]. Ele foi um grande patrono da arte e da cultura também. Alguns dos maiores estudiosos do dia, incluindo os chamados Navaratna (“Nove Gemas”) enfeitaram sua corte [99]. Numerosas instituições de caridade, orfanatos e hospitais beneficiaram de sua generosidade. E locais de repouso para os viajantes foram criadas ao longo das estradas. Em termos políticos e administrativos, o império Gupta foi dividido em províncias, pradesh, nome até os dias atuais usados na Índia – como em Uttar Pradesh, Madhya Pradesh, Andhra Pradesh, Arunachal Pradesh – e foram nomeados a partir da capital (visando assim maior centralidade e disciplina administrativa) chefes administrativos para cada província. Em regiões mais meridionais, pela grande distância da capital, houve prudência ao delegar a autoridade aos regentes originais após as campanhas vitoriosas, assim como o fez Samudragupta, exigindo apenas certa parcela da cobrança de impostos. No aspecto jurídico, na área penal, as penas foram mais brandas e a tortura banida [100]. As pessoas podiam circular entre bairros e cidades livremente, a lei e a ordem prevaleceram sobre os furtos e roubos. Assim constatou um dos primeiros dos peregrinos budistas chineses a escrever sobre os costumes indianos, Faxian (Fa-Hien ou Fah-Hian) (337 – c. 422) (fig.). As condições sociais e econômicas da população em geral foram descritas como satisfatórias e seguras pelo chinês. Muitos optaram pelo vegetarianismo e evitaram as bebidas alcoólicas. Assim segue Faxian sobre a condição da população à época de Chandragupta II na cidade de Matura: As pessoas são prósperas e contentes, livres de qualquer imposto ou restrições oficiais. Apenas aqueles que trabalham na terra do rei pagam um imposto, e eles são livres para ir ou ficar como desejam. Os reis governam sem recorrer à pena capital, mas os infratores são multados pouco ou muito de acordo com a natureza do seu crime. Mesmo aqueles que conspiram alta traição só têm a mão direita cortada. Todos os serventes do rei recebem emolumentos e pensões. As pessoas neste país não matam seres vivos, não bebem vinho, e não comem cebola ou alho. A única exceção a isso são os chandalas, que são conhecidos como "homens maus" e são separados dos outros. Quando eles entram em cidades ou mercados, alardem com um pedaço de madeira para anunciar sua presença, para que os outros possam saber que eles estão chegando a evitá-los (tradução nossa)[101]. Figura – Faxian, peregrino budista e viajante chinês que retratou aspectos da sociedade à época dos Guptas. As moedas de ouro e prata foram emitidas em grande número, um indicativo geral da vitalidade da economia Gupta. O comércio floresceu tanto dentro do reino e quanto fora. Algodão, especiarias, pedras preciosas, pérolas, metais preciosos foram exportados por via marítima. As relações comerciais com Oriente Médio, África e Extremo Oriente foram notáveis. Da África vinham marfim e cascas de tartaruga. Seda e plantas medicinais da China e do Extremo Oriente. No mercado interno, alimentos, grãos, especiarias, sal, pedras e barras de ouro constituíram os produtos mais negociados [102]. O período Gupta mostrou-se tolerante diante da diversidade religiosa nos primeiros séculos de nossa era. Os regentes e brâmanes dominantes eram em geral devotos vixnuístas, que adoram Vixnu. O que não os impediu de serem tolerantes com os outros crentes hinduístas, budistas e jainistas. Os mosteiros budistas receberam doações generosas, como constatou outro cronista chinês budista à época, Yijing [103], assim como a construção e manutenção de casas de repouso a monges e peregrinos budistas. Nalanda, no atual estado de Bihar, foi local proeminente de estudo e educação budista na era Gupta. O jainismo floresceu em várias regiões indianas, como demonstra as cavernas em Udayagiri em Orissa, e as inúmeras estátuas de tirthankaras [104] em Bengala, Gorakhpur, e Gujarate. No campo artístico, o sânscrito alcançou status de lingua franca e estabeleceu-se como a norma culta da corte e das artes. Foi nessa língua que Calidasa(fig.) escreveu os épicos Abhijnanasakuntalam (“O Reconhecimento de Sakuntala”), Meghaduta (“O Mensageiro das Nuvens”), Raghuvansha (“As Façanhas de Raghu”) e Kumarsambhaba (“O Nascimento de Kumara”). Harisena, outro poeta de renome, panegírico e flautista, compôs no pilar em Allahabad os grandes feitos de Samudragupta, por volta de 345. Sudraka escreveu três obras consideradas seminais para o teatro indiano: Vinavasavadatta, o monólogo Padmaprabhritaka e a sua mais famosa peça, Mrichchhakatika (“Pequeno Carrinho de Argila”). Vishnu Sarma escreveu as famosas fábulas indianas, Panchatantra (“Os Cinco Princípios”), que influenciaram outras literaturas depois de traduzidas como no persa (na obra “Kelileh o Demneh”) e árabe (em “Kalila wa dimna”)[105]. Figura – Estátua contemporânea de Calidasa. As obras literárias e científicas foram publicadas tanto em sânscrito, em páli e também em forma mais corrente, o prácrito. Varahamihira (505 -587) escreveu a obra enciclopédica Brihat-Samhita que abrangeu os campos da astrologia, órbitas planetárias, eclipses, chuvas, nuvens, arquitetura, crescimento das plantações, fabricação de perfume, matrimônio, relações domésticas, pedras preciosas, pérolas e rituais. O gênio matemático e astrônomo Ariabata (fig.) (476 – 550) escreveu o seu magnum opus Aria Batiia, abrangendo aspectos da geometria, trigonometria e cosmologia, chegando inclusive a sugerir o modelo heliocêntrico cerca de mil antes de Copérnico [106]. E as inúmeras publicações de medicina indiana ayuvérdica refinaram as práticas cirúrgicas e inoculação contra doenças contagiosas. Figura – Ariabata, gênio matemático e astrônomo do século 6 d. C. Os melhores exemplos da pintura, escultura e arquitetura dos Guptas podem ser encontrados em Ajanta, Ellora, Sarnate, Matura na Índia, e Anuradhapura e Sigiriya no Sri Lanka. Floresceu nos templos o uso da música vocal, instrumentos musicais como a flauta e mridangam (espécie de tambor), símbolos de devoção. Em suma, as realizações artísticas e filosóficas no período foram profundas e férteis. Artistas e literatos foram encorajados a meditar sobre a capacidade humana conjugada com a divina e capturar sua essência em suas criações. Como foi sugerido em um dos Puranas, no Agni Purana,
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