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HOMENS E SABERES NA IDADE MÉDIA Aula 10 – IDADE MÉDIA OCIDENTAL ■ Uma das características fundamentais da cultura erudita da Idade Média é o lugar essencial que nela possuía à língua latina. ■ Por vezes, dizemos que a civilização medieval é uma civilização bilíngue, marcada pela coabitação, em todos os países do Ocidente, do latim e de uma ou até mais línguas vernáculas, ■ Desde a Alta Idade Média, com efeito, não se filava mais o latim em parte 'alguma do Ocidente, uma vez que o latim deixara de ser a língua materna, ou mesmo a língua predominante de qualquer grupo numericamente importante. ■ Por todo lado, novas línguas vernáculas se impunham, freqüentemente elas mesmas divididas em vigorosos subgrupos de dialetos. ■ Nos países da Antigüidade romana, falavam-se diversas línguas: italiano, catalão, castelhano, português, lahgue d'oc e larígue d'oü; em outros lugares, triunfavam as línguas anglo-saxônicas ou germânicas; na Europa central, havia a reunião de países de língua eslava ou húngara; enquanto que, na direção do Atlântico, as línguas célticas eram já de alguma forma marginalizadas. ■ No final da Idade Média, essas línguas vernáculas já haviam alcançado seu período áureo, comportando, inclusive, um longo passado e múltiplos títulos de glória. Socialmente, elas eram faladas tanto pela mais alta aristocracia quanto pelo povo comum; muitos nobres, e até príncipes, não falavam outras línguas e ignoravam o Latim. ■ Seu papel cultural era igualmente bem estabelecido. Mesmo se algumas (o bretão, o basco...) fossem ainda essencialmente línguas orais, a maior parte, desde há muito, dispunha da escrita e se alimentava de uma produção abundante e diversa. ■ A despeito de tudo isso, o estatuto da língua vernácula mantinha-se discutível e sua dignidade contestada. Os gramáticos presumiam ignorar sua existência, pelo menos até o século XV, e ela não era, para falar _com sinceridade, ensinada como tal e de maneira autônoma. ■ Completamente diferente era o estatuto do latim. Seu prestígio persistente tinha longínquas origens, que remontam ao Renascimento carolíngeo (séculos VIII e IX). ■ O latim medieval era, antes de tudo, a língua sagrada, aquela da Escritura, aquela da liturgia, do culto e dos sacramentos; em outras palavras, era a língua dos padres e monges. ■ No domínio religioso, a língua vernácula, restringia-se praticamente à pregação oral destinada aos leigos. A redação ou a tradução em língua vernácula de obras religiosas, a começar pela própria Bíblia, ainda que não fosse completamente desconhecida ou proibida, któo era praticada sem muita parcimônia e suscitava facilmente a |, desconfiança da Igreja, sobretudo quando os autores eram, eles também, laicos. ■ O latim era, por outro lado, a língua portadora de toda a herança da Antigüidade. ■ Passemos, agora, para os saberes realmente valorizados na imagem e na prática que as elites do final da Idade Média possuíam da cultura erudita. Para tento, a lista é curta e identifica-se praticamente com aquela das disciplinas efetivamente ensinadas nas escolas, studia e universidades daquele tempo: ■ essas últimas jamais conheceram, além da faculdade preparatória das artes, mais que três faculdades superiores: teologia, medicina e direito. Tais eram, portanto, as disciplinas cujo domínio, com maior ou menor impulso, caracterizavam verdadeiramente os homens de saber no Ocidente do fim da Idade Média. ■ No mais alto degrau se colocava evidentemente a ciência sagrada (sacra pagina, sacra doctrtna), que se passou a caracterizar como "teologia", sobretudo a partir do século XIII. ■ Teoricamente, a teologia permanecia como disciplina mestra, aquela que oferecia aos teologos uma espécie de direito de olhar sobre todos os outros saberes para controlá-los pela ortodoxia cristã, sendo que as disciplinas preparatórias da faculdade de artes, especialmente a dialética e a filosofia, eram naturalmente as mais diretamente visadas por tais eventuais censuras. ■ Do que dissemos no capítulo anterior, depreende-se claramente que a quase totalidade de pessoas cultas, no final da Idade Média, havia feito, de maneira geralmente prolongada, estudos do tipo escolar. Não podemos evidentemente excluir a existência de autodidatas. Contudo, nem o contexto social e político, nem as condições materiais de acesso à cultura lhes favorecia. O auto- didatismo moderno será filho do livro impresso. ■ A peça mestra do sistema educativo medieval, o elemento central, era constituído, a partir do século XIII, pelas universidades ou, como se dizia então, pelos studia generalia. ■ As primeiras universidades apareceram por volta de 1200, herdeiras diretas das principais escolas do século XII. Existiam, para o conjunto do Ocidente, quinze universidades no princípio de 1300 e quatro vezes mais, dois séculos mais tarde. ■ No conjunto das instituições educativas medievais, as universidades são, de longe, aquelas que deixaram os arquivos mais ricos (ainda que eles não satisfaçam a todas as nossas curiosidade) e aquelas que se beneficiaram das mais vigorosas pesquisas históricas. ■ De tudo o que dissemos nos dois primeiros capítulos deste trabalho, conclui-se que as pessoas cultas, nas sociedades ocidentais do final da Idade Média, eram homens do livro e, mais amplamente, da escrita. ■ Isso não ocorria de maneira exclusiva. Eles sabiam também usar a palavra. Graças a seus conhecimentos gramaticais, eles poderiam exprimir- se tanto em latim quanto em língua vernácula, ■ Seus estudos de lógica e de retórica lhes teria dado a arte do raciocínio correto e da demonstração convincente. Uma longa aprendizagem da memória lhes permitia convocar, sem se referir a notas escritas, múltiplas citações de "autoridades" que fundamentavam seu saber. ■ Homens de conselho, embaixadores ou membros de qualquer assembleia de Estados, eles deveriam ser capazes de discursar para o príncipe ou para a multidão, de se fazer entender no tumulto ou de fazer deslizar pelo ouvido palavras decisivas. ■ Permanece, contudo, que os homens de saber eram fundamentalmente, e, sobretudo, aos olhos de seus contemporâneos, homens do livro e da escrita, e essa era inclusive, em relação a todos os outros grupos sociais, uma de suas especificidades mais marcantes. ■ Eram, em última instância, os livros que os mantinham por si sós no poder; pela leitura, ou até pelo manuseio correto, eles obtinham seu saber e, portanto, a própria justificação de seu papel social. Era nos livros e nos arquivos que eles tinham, que eles consignavam e conservavam suas decisões e suas opiniões. ■ As pessoas simples sabiam muito bem disso e frequentemente, em motins populares e revoltas urbanas, bibliotecas, livros, registros, " papéis foram os primeiros alvos da vingança popular. Dessa forma, é muito importante para nosso propósito procurar descobrir o lugar que ocupava o livro na vida dos homens de saber. ■ Sem refazer aqui toda a história do livro medieval, convém antes recordar que sua confecção e circulação são sempre cercadas por múltiplos obstáculos que lhes tornavam difícil o acesso. ■ O primeiro e principal obstáculo era de ordem econômica. O livro custava caro. Esse custo vinha, antes de mais nada, do preço do suporte. Um livro requeria grande quantidade de pergaminho (de acordo com o formato do livro, obtinha-se de dez a dezesseis folhas por pele) e o pergaminho era um material oneroso. ■ A difusão do papel chiffon, ocorrida na Espanha desde o século XII, na França no XII, permitiu baixar o preço. Mas é somente no século XIV e, sobretudo, no XV que o uso do papel se difundiu largamente no domínio do livro manuscrito. ■ Na realidade, o fator principal do elevado preço dos livros era o custo da cópia. Os bons copistas eram raros. No final da Idade Média, os scríptoria monásticos haviam perdido o essencial de sua importância e a maior parte dos escribasseriam, doravante, artesãos profissionais que se encontravam principalmente em grandes cidades, especialmente aquelas que abrigavam uma clientela importante, quer dizer, as capitais da nobreza e as cidades universitárias. ■ Os bons copistas trabalhavam lenta* mente: por volta de duas folhas e meia por dia, em média. Por outras palavras, em um ano, um bom copista produzia apenas cinco livros de duzentas folhas; ou ainda, se preferirmos, para chegar a fornecer mil livros deste tipo em um ano, não se poderia ter menos de duzentos copistas trabalhando o tempo inteiro. ■ No caso da França, esses estudos, primeiramente, permitiram mostrar que, uma vez colocados à parte o rei, os príncipes de sangue e os grandes senhores, os homens de saber são praticamente os únicos a possuírem, até o final do século XV, bibliotecas de alguma importância. ■ Entre os próprio» homens de saber, as coleções de livros possuíam importância variável. A biblioteca de um estudante, ainda que abastado, não ultrapassava praticamente, em média, uma dúzia de volumes; os livros de estudos fundamentais, de um lado, uma ou duas coleções de textos religiosos, de outro, ■ Seus professores, que-tinham necessidade de uma pequena biblioteca pessoal para preparar seus cursos, eram um pouco melhor aquinhoados e possuíam, para além das "autoridades" de base, um determinado número de comentários e de tratados modernos; isso representava, no mínimo, cerca de trinta livros. ■ Contudo, alguns mestres, mais ricos ou de espírito mais curioso, possuíam bibliotecas que alcançavam ou até ultrapassavam uma centena de volumes. ■ Os proprietários de bibliotecas consideravam-nas verdadeiros tesouros e as tratavam com o maior cuidado, O valor de um livro era, para um homem de saber, simultaneamente simbólico e material. Cuidadosamente conservados dentro de um cofre ou armário, os livros proclamavam a ciência de seu proprietário... os livros eram indissoluvelmente ligados aos estudos e aos diplomas. ■ A entrega de um livro ao candidato não era um dos gestos rituais das cerimônias de doutorado? Por outro lado, toda biblioteca de alguma importância possuía um alto valor de mercado. Ela representava uma forma de entesouramento, um capital tanto intelectual quanto financeiro que se pretendia legar aos seus herdeiros, se eles empreendessem seus próprios estudos, fosse num colégio, fosse em alguma igreja. ■ Os juristas sempre se bateram para que os livros não fossem computados quando os oficiais do imposto vinham avaliar seus bens móveis; a seus olhos, esse privilégio não era apenas uma apreciável vantagem fiscal - porque não era raro que tais livros representassem, em valor, ■ a metade ou mais do capital mobiliário mas também o reconhecimento público da nobreza do seu saber e das atividades que eles exerciam a título de sua competência intelectual. Não mais do que as armas do cavaleiro; os livros do doutor não deveriam recair nas malhas do imposto.' ■ Primeiramente, as bibliotecas principescas. Na altura da morte do rei d» França Carlos V (1380), sua "livraria" do Louvre contava com pouco menos de 1300 volumes; no século XY o duque de Bourgogne Filipe, o Bom teria uma biblioteca com cerca de 880 livros. Por seu turno, os papas de Avignon enriqueceram sem cessar suas coleções de livros. Eles possuíam mais de dois mil quando morre Urbano V, de acordo com um inventário de 1369, e apesar dos avatares do Grande Cisma, ao morrer no exílio em Peniscola, o último papa de Avignon, Benoit XIII (13944423), possuía ainda praticamente a mesma quantidade . ■ As bibliotecas dos príncipes e dos pontífices eram abertas ao público? Seu catálogo preciso deixa supor que pelo menos os familiares do soberano, seus visitantes distintos e conselheiros poéticos tinham acesso a elas. ■ Vinham em seguida as bibliotecas das catedrais, dos mosteiros e dos conventos. ■ No total, é provável que, no exercício cotidiano de suas atividades profissionais ou administrativas, o conjunto dos homens de saber, sobretudo os leigos - fossem eles médicos, advogados, procuradores, juizes ou oficiais do rei -, deveria, antes de tudo, contar com os recursos de sua pequena livraria pessoal... ■ Algumas bibliotecas parecem muito tradicionais, outras acolheram rapidamente os novos livros. Algumas parecem bastante neutras, outras claramente deixam adivinhar uma orientação /doutrinai particular. Algumas, enfim, parecem muito escolares, produtos diretor do ensino recebido ou ministrado, enquanto outras contêm Obras completamente alheias ao ensino e expressamente vinculadas a uma prática profissional. ■ Vem, enfim, a inevitável rubrica "diversos". Ela é por vezes, em algumas bibliotecas austeras, praticamente vazia. Em outras, pelo contrário, pode representar uma porcentagem considerável, ainda que sempre minoritária. ■ Ela traduz então, além dos acasos que podiam presidir o Agrupamento de algumas coleções, 05 interesses e os- gostos pessoais do proprietário. Percebe-se que este hão se limitava forçosamente a seu domínio de atividade profissional nem às disciplinas aprendidas na escola .ou na universidade. ■ A existência de livros religiosos (Bíblias, tratados de espiritualidade, vidas de santos, livros de horas) será tida como sinal de piedade e de devoção, talvez sob a influência das ordens mendicantes. Outros marcam seu interesse pela história (crônicas universais, história antiga, ou história nacional contemporânea). ■ Naturalmente, a presença dos clássicos - até mesmo de alguns italianos: um Dante, um Petrarca, um Bocaccio, um pouco mais tarde, os Elegantioe de Lorenzo Valia - mostrará que alguns desses homens de saber, muitas vezes formados na pura tradição escolástica, puderam ser bem cedo sensíveis às novas correntes humanistas; ■ Enfim, um pequeno setor em língua vernácula, infelizmente muitas vezes mal repertoriado, com uma significativa condescendência, pelos redatores do inventário ("Item,um pequeno livro eiji romance"),ou ainda, algumas coleções de "prognósticos" recordam-nos que os homens de cultura essencialmente latina não eram necessariamente alheios a toda forma de literatura vernácula, e nem mesmo à cultura popular. ■ Elemento maior do capital mobiliário de cada um, tais bibliotecas eram, entretanto, primeiramente bibliotecas de trabalho... ■ ... é verdade que a metade desses conselheiros eram os clérigos e que eles deviam julgar tanto matérias eclesiásticas quanto matérias laicas, sendo estas julgadas normalmente segundo o costume e não segundo o direito romano. ■ ...pode-se, sem dúvida, somar igualmente como testemunhos de preocupações profissionais alguns tratados políticos, todos favoráveis à prerrogativa real. ■ Se nos reportarmos à parte mais pessoal dessas bibliotecas, os livros religiosos prevalecem e não apenas entre os conselheiros clérigos: alguns tratados teológicos, mas, sobretudo as Bíblias, os breviários e os livros de devoção e de espiritualidade. Em contrapartida, nem a história, nem os clássicos ocupavam um lugar importante. Junte-se a isso a ausência praticamente total da língua vernácula; tais bibliotecas eram, em geral, exclusivamente latinas. ■ A conclusão impõe-se, portanto, por si mesma. Em uma época onde o humanismo de Petrarca abria uma brecha importante no colégio de Navarra e no meio dos notários e secretários do rei (o "primeiro humanismo" francês) - onde a biblioteca real do Louvre era, por seu turno, constituída por uma quantidade de 60% de livros em francês. ■ Teria sido abrandado esse conservadorismo, na segunda metade do século XV, pela invenção da tipografia? Essa invenção, que transformou completamente, tanto em rapidez quanto' em quantidade, a circulação da informação escrita no seio daí sociedade, foi realmente uma das revoluções técnicas mais importantes da história da humanidade. Teria ela também conseguido fazer com que seus efeitos fossem imediatamente sentidosno meio dos homens de saber da sociedade medieval? ■ naturalmente deixando de lado p problema dos antecedentes chineses - que é difícil apontar para a invenção da tipografia uma data e um autor únicos, o célebre; Háns Gutenberg (c.1400 - c.1468) sendo provavelmente apenas o mais conhecido desses artesãos, geralmente: ourives de origem, os quais, nos países renanos, no segundo terço do século XV, conseguiram inaugurar unia nova técnica de impressão por caracteres moveis gravados, os quais a moda das imagens xilográficas fazia, já há algum tempo, pressentir, quer pela possibilidade material, quer pelo interesse prático. ■ ...a difusão da tipografia foi relativamente lenta. ■ Os primeiros livros impressos dos quais foram conservados alguns exemplares - a "Bíblia em 42 linhas", dita de Gutenberg; ô Psautíer de Mayence - datam dos anos 1450. Tratava-se então de uma técnica essencialmente germânica, implantada em Mayence} Cologne, Estrasburgo, Bale. ■ Além disso, durante uma geração ainda-, através de toda a Europa, os impressores serão na grande maioria os alemães. Praticamente, foi apenas em 1470 que eles começaram a emigrar para além de suas fronteiras.
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