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Cult 184 O poder da psiquiatria

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Sumário
entrevista Arnaldo Antunes
cinema
A TV Encolheu o cinema
meu filme de formação
Danton – o processo da revolução, de Andrzej Wajda
retrato do artista Adriana Zapparoli
coluna
Marcia Tiburi
Alcir Pécora
Vladimir Safatle
dossiê O mal-estar na civilização do DSM-5
Apresentação
O poder da psiquiatria
O futuro de uma classificação
Uma alma não se fatia como se fatia um corpo
O sequestro da neurose
O DSM e a crise da psiquiatria
perfil Reinaldo Moraes
livros
Uma possível Ana Cristina Cesar
Labirintos da crítica literária
Fragmentos de um livro invisível
oficina literária
Antonio Kapp dos Santos
colaboraram nesta edição
entrevista Arnaldo Antunes
As canções do disco
MARCUS PRETO
Antes que ele mesmo pudesse imaginar, Arnaldo Antunes estava em estúdio registrando uma leva de
canções que havia composto durante as férias. O plano inicial era lançar um álbum apenas em 2014. Mas
o entusiasmo com a produção recente era tão intenso que resolveu registrá-la nos intervalos da turnê que
então corria o Brasil.
Gravou as novas canções às prestações, conforme arrumava um tempo no cronograma dos shows. E,
invertendo o método tradicional, optou por também mostrá-las ao público aos pouquinhos. Aproveitou as
facilidades da internet para divulgar, uma por mês, quatro das músicas que integrariam o álbum.
Disco, como foi batizado o trabalho completo (são 15 faixas), chega, enfim, às lojas. Traz canções
inéditas escritas por Arnaldo Antunes com seus colaboradores de sempre, como Nando Reis e Marisa
Monte, e com parceiros recentes, como Luê, Felipe Cordeiro, Hyldon, Céu e Caetano Veloso.
Interessante o esquema de ir lançando as faixas avulsas, criando já com a resposta do público. Mas
havia sempre o risco: e se o interesse do público pelo álbum se esvaziasse durante o processo?
“Inicialmente, eu também tive esse medo”, admite Arnaldo. “Tanto que ia lançar seis singles, mas pensei
nessa esvaziada e diminuí para quatro. As pessoas podiam dispersar. Espero que não tenham se
dispersado, mas se despertado para o disco.”
Em entrevista recente, perguntei a Luiz Tatit como os compositores da nova geração da música
brasileira estavam lidando com a poesia concreta. Ele respondeu que, embora Caetano Veloso
tenha sido um dos primeiros a casar concretismo e canção popular, você é a referência forte para
esses jovens. Porque seu método de lidar com o concretismo na música resulta em algo realmente
pop, que pode ser consumido por todo mundo. Esse tema ainda está entre os seus interesses?
É um deles. Foi a poesia concreta que me nutriu a querer fazer poesia. Ou, se eu não puder dizer isso,
posso dizer que é uma das coisas que me incentivaram muito na adolescência. Mas acho que essa relação
com a poesia concreta já está incorporada e disseminada em várias fontes da música popular brasileira. É
um dado que já se integrou à cultura contemporânea. Não existe mais aquele trauma que havia nos anos
1950.
Que trauma?
Diziam que aquilo não tinha emoção, que não era lírico, essa bobagem toda. Tinha muita resistência
contra o lado mais formalista, mais construtivista da poesia concreta. Mas a minha geração já recebeu
isso com muito mais naturalidade, vendo a potência daquilo sem ter vivido o problema que aquilo
causou para os criadores.
Desse seu novo álbum, pode-se dizer que a canção “Muito muito pouco” tem essa raiz concretista?
Não sei se dá para chamar uma letra como “Muito muito pouco” de poesia concreta. O que teria mais a
ver com poesia concreta, por exemplo, é a canção “O quê”, do tempo dos Titãs: essa, sim, tem um
aspecto construtivista, criei inclusive uma versão visual para ela, circular. É um poema visual muito
devedor à poesia concreta. “Muito muito pouco” é uma letra enumerativa, mas que tem um lado ácido,
também de crítica social e comportamental. É um comentário sobre desperdício e escassez, sobre miséria
e fartura. Isso em várias áreas. Existe aí uma série de fontes além da coisa mais formalista.
Você falou em crítica social. Músicas como “Querem mandar” e “Dizem (Quem me dera)”
poderiam ter sido inspiradas pelas manifestações políticas dos últimos tempos. Foram?
Há nelas uma afinidade com o que a gente viu nas manifestações, mas as canções foram feitas nas férias,
antes de tudo aquilo acontecer nas ruas. “Dizem” tem ao mesmo tempo uma coisa esperançosa e
desesperançada. Não sei como explicar isso. Mas é certo que o discurso que ela traz faz mais sentido
agora, por conta do que aconteceu e está acontecendo.
Você começa a canção com o verso “O mundo está bem melhor/ Do que há cem anos atrás, dizem”.
O mundo está bem melhor hoje do que há dez anos?
Não sei dizer. Melhor em que sentido? É claro que morre muito menos gente, mas temos problemas
enormes. A gente nunca enfrentou uma crise ambiental nessas proporções. E ainda estamos vendo
guerras. Sou esperançoso em relação ao mundo, mas a música não pode ser. A música joga a
interrogação.
“Sentido”, parceria sua com Nando Reis, é antiga?
Sim. Mas não é da época dos Titãs. Eu já tinha saído da banda. Assim que o Marcelo Fromer morreu,
encontrei o Nando e entreguei essa letra para ele. Tinha escrito pensando na morte do Marcelo.
Sentamos uma noite em um hotel e terminamos. Os Titãs estavam preparando um disco, o Nando ainda
estava na banda, mas eles não se interessaram. Agora, aproveitei a bipolaridade para resgatar a música.
Como também resgatei “Fogo”, que fiz com o João Donato há mais de dez anos.
A versão que você fez para “Mamma”, do Gilberto Gil, é dessa mesma época?
Por aí. Adoro esse disco de Londres do Gil [Gilberto Gil, de 1971, gravado no exílio do cantor, em que
todas as letras foram escritas em inglês]. Ouvi muito na minha adolescência, ouço até hoje. Pensei que
ninguém tinha feito nenhuma versão dessas coisas para o português. Tentei essa e saiu. Não cheguei nem
a mostrar ao Gil na época em que a fiz, mas quando o Lenine estava produzindo o segundo disco da
Maria Rita, mandei essa versão, achando que faria sentido ela cantar isso para a Elis. Uma afirmação de
autonomia diante da presença da Elis. Mas acho que ela não se identificou. Acabou não gravando.
Seu álbum se chama Disco a arte da capa e da contracapa remetem aos formatos do LP e ao CD.
Isso recola em pauta a questão: “fazer ou não fazer um álbum?”. Ou: “alguém ainda compra
discos?”. Tatá Aeroplano, um dos nomes importantes da nova geração paulista, foi direto ao
ponto: “Lembra das bandas que, no começo dos anos 2000, decidiram que só lançariam música
pela internet? Alguma delas sobreviveu?”.
É verdade [rindo]. As bandas não sobreviveram e os discos delas não existiram. Para o artista, é uma
liberdade enorme não ter que ter um conjunto de canções pra poder lançar. Poder soltar uma, duas, três,
quatro – seja na internet, seja em um single. Como fizeram Tom Zé e Roberto Carlos. É uma liberdade a
mais. Ao mesmo tempo, tenho pena de quem só consome faixas avulsas. É uma perda conceitual e
também ritualística. Ir ali, colocar o álbum para tocar – mesmo que seja em formato mp3 – é muito
diferente de ouvir só no “shuffle”. Acredito que um formato não vai substituir o outro. Eles convivem.
Até o vinil está de volta. Temos mais alternativas hoje, e isso é legal.
Nando Reis diz que faz músicas só para elas se transformarem em álbuns, que pensa as canções em
conjunto desde o início. E você? Como começou a criação de Disco, por exemplo?
Comecei a compor coisas muito díspares. Eu tinha um corpo de canções que queria fazer com o
[pianista] Daniel Jobim e o [violonista] Cesar Mendes, principalmente. Depois, chegou o [baixista] Dadi.
Mas, para essas canções, eu pensava em uma praia de sonoridade bem cool. Ao mesmo tempo, compus
uns rocks pesados, como “Ah, mas assim vai ser difícil” e “Sentido”. Eles eram um contraponto àquela
primeira leva de canções, quase o oposto delas. Pensei então fazer um CD com o conceito de lado A e
lado B, como no vinil: um muito cool e outro bem pesado. E chamar o disco de Bipolar.
Bipolar? A ideia é boa...
Era a ideia do ano passado. Depois, nas férias, fiz uma viagempara Ilha Grande, quando encontrei
Marisa Monte e compus as músicas que acabariam se tornando o eixo desse trabalho. São aquelas três
parcerias com Marisa e Dadi e mais algumas que fiz sozinho, como “Muito muito pouco”, “Ah, mas
assim vai ser difícil” e “Oxalá chegar”. Todas essas têm uma cara mais pop, que não se encaixava em
nenhum lado do bipolar. E agora? Chamar o disco de Tripolar? E a ideia dos dois polos ficou pra traz.
Terminei fazendo um disco mais misturado e menos conceitual. Assim, coube minha parceria com a Céu
e o Hyldon – uma delas, a gente já tem umas seis ou sete músicas juntos. E a que fiz com o Caetano...
Você está se referindo a “Morro, amor”, né? O título dessa sua letra apresenta essas duas
palavras, “morro” e “amor”, uma ao lado da outra. Isso tem muito a ver com a fase atual do
Caetano Veloso, que anda cantando que está muito triste, que o lugar mais frio do Rio é o quarto
dele...
Tem a ver, sim. Ainda que a música que ele fez para a minha letra tenha resultado em uma sonoridade
muito diferente da que o Caetano vem usando nos últimos discos. Ele fez uma canção. Essa parceria foi
feita para o filme Romance, do Guel Arraes. Mas a música não entrou. Chegaram a gravar, mas
desistiram. A [cantora] Mariana de Moraes gravou, mas o disco dela não saiu ainda. Acabei gravando e é
capaz de sair antes da gravação dela. Mas não é um problema existirem duas gravações da mesma
música ao mesmo tempo.
E mais parcerias se abrem na faixa “Ela é tarja preta”, escrita a dez mãos com Betão Aguiar, que
toca na sua banda, e com os paraenses Luê, Manoel Cordeiro e Felipe Cordeiro. O Pará entrou,
merecidamente, no radar da música pop brasileira – como havia acontecido antes com a cena de
Recife e a de São Paulo. Que fatores você acha que fazem uma região, de repente, se destacar?
Eu não gosto de pensar que o momento agora é da “bola da vez”, que o que veio antes “já era”.
Pernambuco continua nos dando coisas geniais – o Zé Cafofinho, o China, por exemplo. Aquilo não
para, tem novas gerações muito boas depois de Mundo Livre S/A e Nação Zumbi. A mídia elege coisas,
mas eu sempre relutei com essa ideia de “a onda agora é isso”. O fato de ter escrito essa música com eles
foi casual. Eu tinha participado do disco da Luê produzido pelo Betão Aguiar, que toca comigo. E ele
trouxe o Felipe aqui em casa. Fizemos duas músicas, que vão estar no disco do Felipe. Mas gostei tanto
de “Ela é tarja preta” que resolvi também gravar. Mas não tem esse olhar de “vou gravar uma tecnobrega
porque é a onda”. Fica parecendo um pouco assim...
Claro que não. Eu conheço o seu trabalho. Pergunto de uma maneira menos agressiva do que isso.
Assim: tem horas que o Brasil, seja pela influência da imprensa ou por algum fator imponderável,
começa a olhar para um lugar que sempre esteve ali, mas nunca havia sido notado com a devida
atenção.
Que bom que aquilo tem visibilidade agora, porque estão acontecendo coisas interessantes por lá já faz
tempo. Mas, ao mesmo tempo, sempre foi assim: sempre tem uma coisa hegemônica. Foi assim com a
descoberta da lambada, com o axé music, com a música dos anos 1980. Acho isso chato. A coisa
hegemônica é chata. Não tem a ver com quem está preocupado em fazer arte. Quem está surfando atrás
de uma onda sempre vai chegar depois, porque quando chega, aquela onda passou e já é outra. Então,
sempre relutei com esse tipo de ideia, pelo menos como direção do meu trabalho. Eu me interesso mais
pelas exceções do que pela onda do momento.
Entendo. Mas independentemente da onda, a cena paraense foi finalmente reconhecida. E isso é
muito bom.
Tomara que essas coisas tenham o reconhecimento devido. A programação das rádios hoje em dia está
muito distante do que eu gosto, musicalmente. Esse papel hoje passou para a internet. A internet é onde
eu vou procurar as músicas das novas gerações que me interessam. Mas não está tudo pronto ali. As
pessoas precisam procurar, cavar. Então, minha torcida é para que as coisas cheguem ao público. Isso,
em parte, está acontecendo. Mas as rádios deveriam se abrir mais para isso. 
cinema
A TV Encolheu o cinema
FRANTHIESCO BALLERINI
Robert Mckee é uma espécie de guru dos roteiristas de Hollywood. Em seu portfólio, alunos seus já
levaram mais de 50 estatuetas do Oscar e 170 prêmios do Emmy. Entre seus ex-alunos está, por
exemplo, Peter Jackson (O senhor dos anéis). Em resumo: quando os produtores de Hollywood estão em
apuros, chamam Robert Mckee – hoje com 71 anos – para ajudar a melhorar os roteiros de filme.
No entanto, é justamente esse guru do cinema norte-americano que vem bradando, nos últimos anos,
a ideia de que Hollywood está em crise de criatividade e que a TV dos EUA vive sua era de ouro. Isso
mesmo, o centenário cinema norte-americano – responsável por clássicos memoráveis como Cidadão
Kane (1941) e O poderoso chefão (1972) – é hoje menos importante do que a “telinha”, voltada
exclusivamente para o lucro e o sucesso de audiência.
Quando e por que Hollywood inverteu a posição com a TV nos Estados Unidos? A resposta é mais
longínqua do que a própria existência da televisão. E um dos primeiros “culpados” disso se chama
Charles Chaplin.
Chaplin foi uma dos primeiros profissionais ditos “completos” de Hollywood. Ele era ator, diretor,
roteirista na maioria das vezes e, mais importante, produtor de seus próprios filmes. Isso quer dizer que
ele controlava a ideia (roteiro), a transformação da ideia em audiovisual (direção), a grana do filme
(produtor) e ainda executava de frente tudo isso (ator). Quando criou seu tipo memorável, Carlitos, antes
mesmo do surgimento do som, fez tanto sucesso com o personagem que decidiu repeti-lo em novas
situações. Estava, talvez sem querer, solidificando o conceito de franquia no cinema: um produto
(personagem) repetido diversas vezes em novas embalagens (história, cenários, coadjuvantes distintos).
Mas embora ele tenha feito isso nos anos 1910, as franquias em Hollywood só foram entrar com força
nos anos 1970, especialmente a partir de Star Wars (1977), de George Lucas.
E o que a franquia tem a ver com a crise criativa de Hollywood? Tudo. Se um estúdio – ou todo o
sistema hollywoodiano – passa por uma crise, já que Hollywood visa o lucro e seus diretores não
recebem ajuda do governo – como nos países cujo cinema é subsidiado, como o Brasil –, os produtores
de Hollywood tendem a concentrar seus recursos financeiros nos projetos com menor risco possível, ou
seja, nas franquias. E como Hollywood até agora não se recuperou totalmente da crise financeira de
2008, são as franquias que explicam por que temos visto tão poucos roteiros originais no cinema e
muitos Se beber não case 2, Kung fu panda 2, Harry Potter 8, Madagascar 3 etc. Afinal de contas, se
deu certo uma vez, por que não daria certo novamente? E então a franquia é explorada à exaustão – a
ponto de se dividir um livro em dois para lucrar mais, como ocorreu com Harry Potter e Crepúsculo.
Robert Mckee já citou, em algumas entrevistas, que acha que Hollywood está demasiadamente
politicamente correto, com medo de ofender – um receio que a arte não pode ter. No entanto, embora a
TV tenha fama de ser mais comercial, é ela quem tem tentado, nos EUA, abarcar vários níveis sociais e
seus complexos gostos. Ele diz que os roteiros para TV no país não têm limitação de assuntos, pode-se
falar de política, sexo, religião e corrupção de forma ousada, pois como a competitividade entre as
produtoras de conteúdo para TV é alta nos EUA, todos querem fisgar o público alheio. Ganha aquele que
seduzir o público logo nos primeiros episódios, evitando o cancelamento da série e, se seu ritmo
continuar surpreendente, garantindo contratos para mais e mais temporadas.
TIME DE ROTEIRISTAS
Mas essa não é, de fato, a principal razão do sucesso da TV nos EUA, afinal de contas, os estúdios de
Hollywood também competem entre si toda semana. O que explica, então, tantos astros do cinema
quererem migrar para a TV – um movimento antes impensável até os anos 1990 – e, inclusive, diretores
e roteiristas abandonarema telona e irem para a telinha? Uma das razões pode ser o ego.
Enquanto o cinema alimenta o glamour profissional – graças ao sucesso comercial, de crítica e de
festivais como o Oscar – nas séries de TV, o ego do roteirista deve ser deixado em segundo plano. Não
se faz o que quer na TV, aliás, não se faz sozinho. Enquanto os filmes são escritos quase sempre por um
roteirista e alguns assistentes, as séries de TV nos EUA são escritas a seis, oito e até dez mãos, todas de
pesos iguais. Um time de roteiristas pensando junto nos detalhes de cada minuto, nas reviravoltas da
trama e dos personagens.
Além disso, o tempo está a favor da TV e contra o cinema. É preciso tempo para dar profundidade à
personalidade dos personagens principais, só que o cinema tem pouco mais de duas horas para fazer isso
– e quase nunca faz, uma vez que a linguagem norte-americana privilegia a ação e a aventura, nem
sempre a densidade do personagem. Já a televisão tem tempo de sobra para ter tudo isso. Além de
oferecer o prato preferido do público norte-americano – cenas de ação –, as séries também viciam o
telespectador, pois, em vez de duas horas, ele acompanha a “vida” dos personagens por quase 100 horas
– dependendo do número de temporadas de uma série. Resultado: se a série tem um bom time de
roteiristas, eles serão capazes de brincar com o tempo como se fosse um jogo de xadrez (Lost), imaginar
o fisicamente inimaginável nas mãos humanas (Fringe), envolver o público no passado conturbado do
protagonista (Mad Men), acompanhar amigos e a interação de suas personalidades ao longo dos anos
(Friends), ou mesmo não falar sobre nada especificamente (Seinfeld). As chances de sucesso então são
altas, pois é como se o público se sentisse “íntimo” de quem eles conhecem tão bem porque ficaram
“perto” por horas.
O Brasil vive uma situação quase inversa. Enquanto é no cinema que vemos ousadia de linguagem,
como em Cidade de Deus (2002), Amarelo manga (2002), Jogo de cena (2007) e, recentemente, O som
ao redor (2012), as novelas brasileiras minguam audiências cada vez menores. As razões podem ser
muitas: o medo de chocar e afugentar o público – o beijo gay que até hoje não saiu na TV Globo – o
sistema de escrita das novelas – calcadas na mão de um único autor e alguns assistentes de peso menor –
ou talvez porque toda a produção fica nas mãos de poucos (Globo e Record), sufocando a saudável
competitividade das produtoras norte-americanas, ávidas para emplacar seus produtos no horário nobre
televisivo de lá.
Ainda assim, nem mesmo a televisão brasileira pode mais se dar ao luxo de fazer o público esperar
nove meses para descobrir “quem matou Odete Roitman”. É muito pouco, quase nada, para quem dedica
tantas horas em frente a um produto. É onde as séries norte-americanas arrasam: matam personagens
principais no meio da temporada, a gravidez esperada vem no segundo episódio, a união do casal está
logo ali e os mistérios são desvendados ao longo de todos os episódios. Com muitas mãos, dinheiro, sede
de ousar e menos egos, as séries televisivas dos Estados Unidos justificam, quase sempre, o simples ato
de ficar em casa. 
meu filme de formação
Danton – o processo da revolução, de Andrzej Wajda
MANUEL DA COSTA PINTO
Quando pensa nos filmes fundamentais para sua formação profissional, Manuel da Costa Pinto coloca no
topo da lista dois longas-metragens italianos. São eles, A terra treme (1948) e E la nave va (1983), de
Luchino Visconti e Federico Fellini, respectivamente.
Porém, é o longa do diretor polonês Andrzej Wajda que faz o crítico literário falar de forma
apaixonada e entusiasmada. Manuel tinha cerca de 16 anos quando assistiu Danton – o processo da
revolução no cinema pela primeira vez. De lá pra cá, o filme já foi revisto incontáveis vezes. “É muito
diferente a relação com um filme reconhecido dentro de uma tradição estética que você valoriza e um
filme importante para você pessoalmente”, diz.
Danton remonta o momento do terror da Revolução Francesa, quando os jacobinos Danton (Gérard
Depardieu) e Robespierre (Wojciech Pszoniak) estão disputando o poder entre si. “O filme narra esse
momento histórico decisivo e apresenta como contraste a ideia de uma razão de Estado fria e abstrata,
que dita os destinos da história, e uma visão menos idealista e abstrata, que defende o homem concreto
com suas contradições”.
Manuel entende que essa contradição aparece no filme na forma dos dois protagonistas: um
Robespierre frio, distante e racional contracena com um Danton sensual, voluptuoso e detentor de uma
relação sensorial com o mundo.
“Essa contraposição entre razão de Estado e liberdade individual é algo que cabe no contexto em que
o filme foi feito, quando havia um conflito entre a razão de Estado do regime pró-soviético da Polônia e
o Sindicato Solidariedade, que reivindicava os direitos individuais dos trabalhadores. Essa complexidade
acrescenta ao filme uma coisa que me interessa. Um bom filme histórico nunca é apenas um filme
histórico, mas é um filme sobre o presente. Essa foi uma lição que Danton me deu”.
Para seu deleite, quando cursava Jornalismo na PUC, um professor chileno, chamado Jorge Rafael,
trouxe o filme para a sala de aula como forma de explicar a ação do acaso no processo histórico. “Em
geral, os marxistas pensam a história como uma sucessão inevitável. Existem personalidades históricas,
mas o que conta são as engrenagens mais abstratas e mecânicas”.
Ele recorda que, para explicar esse conceito, o professor trouxe como exemplo uma de suas cenas
preferidas: no momento em que está sendo julgado no tribunal, Danton perde a voz. Puro acaso. “Toda
essa passagem do tribunal é, para mim, o papel mais importante e brilhante da carreira de Gérard
Depardieu. Ele vai se dando conta de que sua voz está sumindo e que irá sucumbir à razão do adversário
político. Esse acaso determina o rumo da história, ou seja, ela não é tão previsível como querem os
marxistas. A cena é de uma dramaticidade shakespeariana. Me enriquece cada vez que eu a vejo. Mês
passado mesmo, eu estava revendo esse monólogo. É um dos momentos mais magistrais de Danton”. 
retrato do artista Adriana Zapparoli
A poesia como um aprendizado de esmeraldas vivas
CLAUDIO DANIEL
Adriana Zapparoli é uma autora que se destaca no cenário da nova poesia brasileira por sua capacidade
imaginativa, que incorpora referências mitológicas de diferentes culturas do Ocidente e do Oriente, uma
variedade de plantas, insetos e feras reais ou inventadas, nomes científicos, extraídos do vocabulário
biológico, e formas inusitadas de representação do amor erótico e das relações interpessoais. Sua
mitologia pessoal é desenvolvida em formas poéticas híbridas, com destaque para o poema em prosa,
gênero literário criado no século 19 pelo francês Charles Baudelaire que dilui as balizas tradicionais
entre verso e narrativa ficcional. A palavra híbrido, como se sabe, deriva do grego hybris, que significa
orgulho, excesso, desmedida, violação das leis naturais (no caso de seres resultantes do cruzamento de
indivíduos de espécies diferentes). A escrita híbrida, assim como acontece na biologia, é uma forma de
transgressão, de superação de limites, normas, probabilidades, sem temor ao sacrilégio, ao monstruoso
ou ao sublime. Em A flor-da-Abissínia, primeiro título impresso da autora, publicado em 2008, na forma
de plaquete (publicação de poucas páginas, de produção artesanal ou gráfica, geralmente com elaborado
projeto de arte), somos surpreendidos pelo diálogo vocabular entre os textos escritos originalmente em
português e as traduções para o espanhol realizadas por Jair Cortés e Berenice Huerta, bem como pelo
diálogo visual dos poemas com o projeto de arte e a ilustração de Francisco dos Santos, que valorizam a
plaquete como um objeto estético. Compõem o volume seis poemas breves, escritos ao longo de sete
dias, na forma de um diário íntimo, em que as sensações eróticas são descritas em delicadas sinestesias e
inusitadas associações de termos: “uma flor no inferno / levemente molhado./ a sua parte mais fina, em
límpida essência turmalina...”, ou ainda com o brutalismo do “falo eletrocutado” e da “sesha em corrente
lunar” (Sesha é o nome do deus-serpente indiano que serve de leito a Vishnu, o criador e sustentador dos
mundos). Referências indianas aparecem ainda nos poemas mêntula e yoni, sendo essa última palavra o
termo sânscrito que designa a vulva. Cocatriz, plaquete publicada no mesmo ano que A flor-da-
Abissínia, é um monólogo lírico que explora a dimensão musical das palavras, utilizando recursos como
a aplicação de cores, fontes, itálicos e negritos para registrar sutilezas sonoras e mudanças de timbre,
como em uma partitura musical. A estrutura melódica e visual do poema define uma sintaxe própria, em
que as linhas funcionam como frases de um bizarro recitativo cantado em concerto: “... unha do polvo-
gestante / de colmo de fruta, açafrão-de-outono e coleção de zamu de / um mundo impiedoso, a pleura
vista por dentro / e pelo entorno, escarra-ouro; não... ainda que se sin- / ta náusea logo na curva entre
pérola e safira”. A estranheza semântica da poesia de Adriana Zapparoli e sua voluntária dissonância,
que pode chocar leitores habituados à lírica tradicional de uma Cecília Meireles, encontram poucos
paralelos na literatura brasileira; podemos pensar em Sousândrade, Kilkerry, Cruz e Sousa, Augusto dos
Anjos, seus antepassados espirituais.
FÁBULAS LÍRICAS
Violeta de Sofia, a terceira plaquete de Adriana Zapparoli, publicada em 2009, é uma narrativa poética
dividida em oito partes, em que a autora fabula o desencontro amoroso de dois personagens, Sofia e
Angel-blue: contrariando o horizonte de expectativas do leitor, não há aqui os elementos tradicionais que
compõem uma trama ficcional, como a delimitação de tempo e espaço e as peripécias; toda a “ação” do
poema se resume a descrições metafóricas de um universo de sensações corporais e oníricas: “... em
peito de roda- / moinho, cata-vento enguia, spathula, / em declínio, em pé espadrille, omoplata / de fruta,
de cana-de-açúcar”. A linguagem densa e hermética da autora, presente em quase todas as suas plaquetes
(às quais devemos também acrescentar Tílias e tulipas, de 2010, e Lontra corola libido, de 2012) logo
tornou-se um aparente beco sem saída: como prosseguir a escrita criativa sem cair na repetição de suas
primeiras conquistas? A resposta a esse difícil desafio foi Flor de lírio, sua plaquete mais recente,
publicada em 2012, em que a poeta adota um novo vocabulário, incorporando a gíria e o palavrão em
formas poéticas mais concisas, próximas ao minimalismo, sem evitar metáforas como “corvo
apodrecido”, “peras adolescentes”, “luciferino em vômito”, “peixes-pênis” e “nocaute relâmpago”. As
metáforas relacionadas com a anatomia estão mais presentes nessa coleção de poemas, em que nos
deparamos com “fístula / cílio e pecíolo / púbis...”, “entre falanges pontiagudas, a tíbia e a patela”,
“vagina suas luzes / de couro” e “o canto da costela, / de uma epiderme que nunca sossega”. As cinco
plaquetes de poemas de Adriana Zapparoli podem ser entendidas como cadernos de íntimas obsessões,
em que a autora, seguindo o conselho de Vicente Huidobro, intentou criar o seu território poético com
fauna e flora próprias.
O fruto mais maduro de sua literatura, no entanto, é o livro O leão de Nemeia, publicado em 2011 na
coleção Caixa Preta, da Lumme Editor. Neste livro, vamos encontrar poemas em prosa admiráveis, em
que a poeta, baseada na lógica da metamorfose, cria uma série de bestas fantasiosas, que recordam os
delírios da teratologia de Lautréamont, como o “escorpião de olhos tangerina”, o “leopardo rubi”, a
andarilha de “olhos lagartos”, uma quimera com “cabeça de leão / em corpo de cabra / e cauda ofídica”.
O erotismo, já manifesto em seus primeiros títulos, ganha aqui contornos ainda mais expressivos: “d’Ele
sentia o movimento sinuoso do corpo. continha. aquela uma lontrafagia poética de peixe-anfíbio,
reptílica ave em ética lírica. seus sistemas de galerias, suas entradas de zonas rochosas, suas entranhas,
umas subaquáticas e outras ao nível do solo”. A riqueza imaginativa e semântica da poesia de Adriana
Zapparoli situa a autora entre as vozes mais inventivas que surgiram na poesia brasileira nos últimos
anos. 
Adriana Zapparoli é poeta e doutora em Farmacologia pela Universidade de Campinas
(Unicamp). Publicou as plaquetes de poesia A Flor da Abissínia (2007), Cocatriz (2008), Violeta de
Sofia (2009), Tílias e tulipas (2010), Flor de lírio (2012) e Lontra corola libido (coleção Poesia Viva do
Centro Cultural São Paulo, 2012) e o livro de poemas O leão de Nemeia (2011). Colaborou em
revistas literárias impressas e eletrônicas como Zunái, Germina, Cronópios, A Cigarra e Et Cetera. A
autora participa de diversas antologias publicadas no Brasil e no exterior.
e olhamos para baixo. habitamos além das copas-casas...
ESCREVO PARA O AMOR: - alimentando-nos de folhas em mel de cereja, alguma larva e tantas
mariposas e abelhas. ouça: - é à noite enquanto eu te escrevo... e se olhamos para o alto, de onde
estampam gotas, é centeio, entre nossos cabelos, volatilizando meio ao sereno e acalmando a sede em
bebedouro-planta-perene. nossa casa, em nossas bocas de onde seus vasos trazem seiva. que entra sob os
galhos, de nossa cama, de onde flutuamos entre a floema, a clorofila e o xilema... e onde, muitas vezes,
cavalgamos por entre lianas nossos neurônios e cerebelo... continuamos em silêncio e olhamos as outras,
outros seres, que habitam os seus troncos, seus arroubos, ossos-trancos de onde precipitam... são pessoas
de raízes e íris empedernidas entre o tronco e a raiz... ceifamos o céu e ouvimos flores... e
venha meu amor, porque na morte, todo silêncio é pouco... sem uma orelha.
não se atrase amor... não se atrase.
... dos ratos que circulam no sótão, juntos aos abortos de risadas míopes, as flores murchas dos
cadáveres, das comunicações eletrônicas que se cortam ao mesmo tempo que os colares de pérolas e as
cordas dos andaimes... nãose atrase amor...
não se atrase.
enquanto você observa o marulho: -
cetáceos sobrevoam aquáticos, entre outros, um peixe-tigre-golias, o aço de um tubarão-cobra, um peixe-
ogro, em raios ósseos. são seres voláteis, feito primatas, sem sistema límbico. quelônios de carapaças
fúcsias transpassam as rubras gotas vertidas por cnidários - mais simples - pólipos e medusas...
e enquanto pensa naqueles olhos
um tapete de alga... (sargassum)
-- na solidão, em um quadrilátero, à beira-mar.
coluna
Manifesto Makumbacyber
MARCIA TIBURI
Manifesto Makumbacyber é um manifesto ao infinito. Obra de arte e obra da vida, ele foi criado por
Xarlô, o artista incomum que habita o espaço da rara e sincera criação artística em nossa cultura.
Ruidocrático, autiditivo-poderoso, seu objetivo é acordar tudo e todos com um grito amoroso e curativo
de alegria.
Beto Brant fez um filme de 12 minutos na intenção de registrá-lo. O filme leva o nome do Manifesto
Makumbacyber cujo caráter mágico é inegável. Quem o ouve é tocado por uma sorte de alegria sagrada.
Mágico, não mítico, o Manifesto pode ser lido, mas é dito e cantado por Xarlô e seus companheiros. É
uma oração em que o arcaico e o moderno encontram-se finalmente como curativo de feridas históricas e
culturais, que têm sangrado nosso corpo e alma.
O filme dirigido por Brant não é sobre o Makumbacyber. Ele é, desde seu mesmo nome, parte do
Manifesto. E, como tal, é político. Mas político enquanto sagrado. Sagrado em nome do melhor afeto
que leva à melhor política. O hino de louvor à alegria sagrada celebrada contra a avareza política que
devora nossa sociedade. O filme é como o Manifesto estende e amplifica seu barulho sagrado, servindo-
lhe de autofalante.
Do mesmo modo que o filme é parte do Manifesto Makumbacyber, gostaria que este texto, à maneira
da filosofia selvagem que tanto prezo, fosse também sua extensão, sua continuação e voz auxiliar. O
Manifesto Mackumbacyber diz-se remédio afetivo – e espiritual-intelectual – desde que estamos doentes
de contato, doentesem nossas relações com o mundo, com a sociedade, com o outro. A doença de cada
um consigo mesmo.
A doença do contato nos deforma em robôs frios, tornando-nos secos e duros, obrigando-nos a
inconscientes gestos repetitivos, que nos levam a viver crentes no mais do mesmo. Mortos-vivos,
devorados por demandas estúpidas no cotidiano abrutalhado do trabalho, a produzir e a aceitar o
sofrimento como um dever. A devoção ao capitalismo é o sintoma coletivo da doença do contato cuja
cura passa a ser anunciada.
As categorias que regem o Manifesto Makumbacyber são a Força-Curativa, a Força-Motriz, a
Regeneração, a Vida na Terra, a Auto-Cura, o Bem e a Paz. A Força-Motriz do Manifesto dispara-se
contra a falta de ética, a falta de respeito, a falta de solidariedade. Por isso, o Manifesto é a Vida, que se
pronuncia como um canto sagrado, um canto terrível de amor ao que é. Contra toda maldade, inclusas as
fantasmagorias capitalistas, que nos impedem de discernir.
Contra o horror infeliz do capitalismo, somente o sentido do processo da vida como comum, como
entre nós, poderá levar a uma expansão real de nossas consciências enquanto verdade do corpo-espírito.
E nos livrar, assim, da covardia à qual somos convidados diariamente pelo sistema econômico
capitalista, que nos humilha e, nos envenenando, nos torna dominados doentes infelizes.
A religião do capitalismo pseudorracional e amedrontado confirmou-se como um grande medo e a
grande destruição da religiosidade como verdade brutal, sensível e primitiva do universo do qual somos
parte. O profundo sentido da religião é simples contra-alienação. É essa a verdade teológica da política
desde Spinoza. O poder que vem da multidão e que nos faz marchar, falar e amar. O poder xamânico da
lucidez de lugar contra toda alienação.
O poder negativo que administra o êxtase da alegria de viver, colocando em seu lugar a miséria da
mercadoria servida aos mortos que passeiam desesperados entre shopping centers e farmácias, é o que
precisa ser combatido. O estupefaciente da mercadoria é a falsidade contra a verdade da vida. O otário,
vítima do envenenamento capitalista, tem no capital a sua religião e na religião o seu capital. Contra isso,
o Manifesto Makumbacyber acorda os laços incríveis do espírito da linguagem que nos une.
Xarlô, xamã, autêntico tecnoxamã, ousa rezar por nós na contramão da violência que as religiões
afrobrasileiras vêm sofrendo. Xarlô reza com toda a sua lucidez, e nós rezaremos com ele em nome da
prática democrática que é o Makumbacyber. Nossa macumba, nosso chip de poder, a heresia que nos
salva de todo o mal. 
coluna
Vanitas
ALCIR PÉCORA
(Para Vincent e Vivien)
Provavelmente Jim nunca sequer desconfiou da existência de Antonio, assim como Antonio jamais
poderia ter ouvido falar de Jim e do seu bando de patetas, composto pelos irmãos Ron (in memoriam) e
Scott e ainda pelo desmiolado Dave que, salvo engano, por essa altura, ainda não tinha ateado fogo a si
mesmo.
Mas curiosamente – num desses acasos que caem como laranja madura na beira da estrada, Zé – Jim
estava lá, berrando coisas incríveis para mim no mesmo momento em que eu bebia as mais terríveis
palavras de Antonio.
Por essa época, eu vivia com cabeça, coração e estômago pendentes do fio daquelas palavras, em
busca de uma tese que pudesse unificar os muitos argumentos e atividades, aparentemente
irreconciliáveis, que Antonio articulava como pregador, diplomata sem pasta, missionário nas brenhas
amazônicas, político antimaquiavélico, escritor soberbo, profeta de ocasião etc. etc.
Então eu estava lá – exposto aos dois apelos vibrantes, quando, num momento preciso — in a one
precise moment, both — Jim e Antonio — uttered the same words — berraram as mesmíssimas
palavras: the first howled that he wanted to be my dog — o primeiro uivou que queria porque queria ser
meu cachorro —, at any price; the second protested again and again to the Superior of the Jesuits — o
segundo protestou muitas vezes diante do Superior da Província —, when he was in imminent danger of
being expelled from the order on account of several political intrigues —, quando corria perigo iminente
de ser expulso da ordem, pela muita intriga em que andava envolvido —, that he preferred to be a dog in
the shade of the door of the Company than to occupy whatever position of the highest honor was being
offered to him —, que ele preferia mil vezes ser um vira-lata à sombra do frontão da Companhia de
Jesus do que ocupar a mais alta posição das muitas que lhe ofereciam.
Both Jim and Antonio, at a certain moment of their lives — tanto Jim como Antonio, nesse momento
decisivo da vida —, judged a dog to be the best figure for their identity — viram num vira-lata a melhor
figura para identificá-los —, and it so happened that they would repeat just that to me — e então
aconteceu essa coisa doida de repetirem esse bordão para mim —, at the same time, for years — juntos,
ao mesmo tempo, toda a vida.
I swear that, since the beginning, when I first heard them saying they wanted to be dogs — juro que,
desde o começo dessa história, quando pela primeira vez eu os ouvi gritando daquele jeito que eles
queriam ser meus vira-latas, pois acho que nunca disseram “cães”, nem “cadelas” —, I collected them
and treated them both with affection —, eu os recolhi da rua e trouxe para minha casa, sem barganhar
preço ou carinho.
Through the openings of the ears or the portals of the eyes — através dos vãos dos ouvidos ou dos
arcos dos olhos —, both have always coexisted well in my understanding —, ambos coexistiram em
mim —, even though they have rarely, if ever, felt any need of communicating with each other —
mesmo que raramente, se não jamais, sentissem necessidade de se comunicar entre si.
Each — cada um deles — barks loudly — late pra valer — in his own yard — no seu próprio quintal.
As an open-minded father —, como um pai de cabeça aberta —, I guarantee to each his privacy — eu
faço o que me cabe e garanto a cada um o direito de privacidade —, but as owner of my own head, I do
not allow them to be separated from me, not even for a single day — mas como dono de minha própria
cabeça, não lhes permito, nem mesmo por um dia, que se separem de mim.
Their barks will be possibly the last thing I will hear — Os latidos serão possivelmente o último som
que vou ouvir — when the unhealthy — quando a insalubre — and transitory — e transitória — room —
sala, cela — in which I keep them close to me — na qual os mantenho bem juntinhos junto de mim —
will be ruined forever. 
coluna
Da arte de nosso desejo de política
VLADIMIR SAFATLE
Em sua última coluna, Christian Dunker lembrou de um possível descompasso entre a produção artística
atual e as demandas de transformação política que parecem, cada vez mais, ocupar espaços públicos. Eu
diria que este problema está vinculado não a uma questão de produção, mas de circulação. A
sensibilidade política em mutação atualmente foi, como sempre, adiantada por experiências estéticas que
marcaram os nossos últimos vinte anos.
Não é o caso de procurar estabelecer uma linha reta na qual temáticas e palavras de ordem políticas
apareçam como material para a expressão estética. Se fosse o caso, não teríamos nada muito diferente de
uma relação tipicamente propagandística entre arte e política. Na verdade, há uma sensibilidade, uma
dinâmica afetiva que, à sua maneira, foi inicialmente impulsionada pela experiência estética. É neste
ponto que devemos procurar alguma forma de proximidade.
Este é um ponto importante, pois não se trata de dizer aqui que manifestantes foram diretamente
influenciados por proposições estéticas. Mas há de se fazer uma genealogia da sensibilidade política
nascente. Uma genealogia que trabalha com relações indiretas, que tenta compreender como se constitui
campos no interior do quais uma verdadeira forma renovada de pensar paulatinamente se afirma.
Certamente, a análise da produção artística atual não admite uma aceitação simples. Como a arte
transformou-se, há muito, em espaço privilegiado de rentabilizaçãofinanceira e em dinâmica social de
produção de glamour para setores hiperfetichizados da cultura (como publicidade, moda, design, entre
tantos outros), uma leitura da força transformadora da experiência estética contemporânea pede um
primeiro momento de partilha. É na produção, no mais das vezes, mais estranha aos fluxos hegemônicos
de circulação, com seus museus, revistas e prêmios, que encontraremos o que procuramos.
TEMPO ARRUINADO
No entanto, notemos algumas articulações importantes. Se é fato que um eixo maior das manifestações
que começaram em 2011 é a procura de construir novos sujeitos políticos, fora de estruturas
institucionais tradicionais, como partidos, sindicatos e outras representações, então deveríamos nos
perguntar de onde veio a ideia de que há apresentação do que não se deixa completamente representar.
Devemos nos perguntar também de onde vem a percepção de que caminhamos para um situação social
de ruína e descrença, onde as afirmações do poder são feitas para não serem levadas à sério, onde a
política não passa por um processo de argumentação, mas de mobilização contínua de afetos, como o
medo, a insegurança e a constituição forçada de vínculos comunitários. De onde vem a consciência de
que habitamos um tempo arruinado, sem acontecimento, a não ser sob a forma da recusa e da negação?
Tal consciência não é apenas o resultado da análise da realidade social e política, embora também
dependa dela. Há algo que vem da frequentação demorada com experiências estéticas importantes. São
elas que, de uma maneira indireta, dão uma certa garantia de que criar é possível quando recusamos tudo
o que nos parecia natural.
Em um filme de David Cronemberg, intitulado Cosmópolis, o protagonista, um yuppie que vive
isolado em sua limusine atravessando uma Nova York cheia de manifestações e engarrafamentos,
afirma: “O capital perdeu sua força narrativa”. Esta consciência do esgotamento da força narrativa do
capital, condição primeira para a construção de novas subjetividades políticas, nos foi ensinada pelas
artes. Resta fazer o inventário deste processo. Mas isto nos exige um cuidado interpretativo com a
produção atual que muitas vezes nos falta. 
dossiê O mal-estar na civilização do DSM-5
Apresentação
A publicação da nova edição do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM), pela
Associação Psiquiátrica Norte-americana (APA), em maio deste ano, desencadeou uma série de artigos e
livros questionando o “caráter normativo de suas classificações, fundadas num movimento vertiginoso
de psiquiatrização da vida cotidiana e numa psicopatologização do mal-estar subjetivo”, como bem
definem, neste dossiê, o filósofo Gilson Iannini e o psiquiatra Antonio Teixeira.
Assim como um dicionário psiquiátrico, o DSM classifica os mais diversos distúrbios mentais e
oferece parâmetros para o diagnóstico de cada um deles, e, a cada atualização, apresenta novas
categorias de doenças e altera diretrizes consolidadas por suas edições anteriores. A quinta versão do
manual – que cataloga 450 categorias diagnósticas – dividiu ainda mais a comunidade de psiquiatras,
psicólogos e psicanalistas.
Mesmo sendo um assunto que poderia ficar restrito ao meio psi, o debate sobre o DSM-5 tem
envolvido profissionais e intelectuais de diversas áreas do conhecimento. Como escreve o filósofo
Vladimir Safatle, organizador deste dossiê, “tudo isso poderia interessar apenas a uma comunidade
limitada, composta por todos aqueles profissionais designados para tratar de problemas de saúde mental
(psicólogos, psiquiatras, psicanalistas, entre outros). Mas talvez seja o caso de colocar algumas questões.
Pois, e se categorias como ‘saúde’, ‘doença’, ‘normal’ e ‘patológico’, principalmente quando aplicadas
ao sofrimento psíquico, não forem meros conceitos de um discurso científico, mas definições carregadas
de forte potência política?”
Os cinco artigos publicados aqui – escritos por filósofos, psicanalistas e psiquiatras – procuram, desta
forma, refletir sobre os “efeitos colaterais” desta quinta edição do manual. Como ainda lembra Safatle,
“há de se perguntar o que está por trás dessa tendência de psiquiatrização da vida cotidiana presente na
própria base dos DSMs”. É essa pergunta que move os colaboradores deste dossiê. 
O poder da psiquiatria
VLADIMIR SAFATLE
Quando confrontados a categorias como “saúde”, “doença”, “normal” e “patológico”, a maioria dos
psiquiatras atuais tenderá a aceitar que tais definições são, basicamente, objetos de um “discurso
científico”. Isso significa, grosso modo, que a pretensa objetividade de suas distinções deve estar
assegurada por um discurso que privilegia fenômenos mensuráveis, quantificáveis e claramente
diferenciáveis através de um conjunto finito e operacional de caraterísticas de base. Esta seria a melhor
maneira de impedir que tais metaconceitos fossem tragados por uma interminável discussão ideológica,
com suas querelas sem fim de escolas a respeito da natureza do que orienta nossa atividade na clínica do
sofrimento psíquico.
Foi com essa crença em vista que a psiquiatria dos últimos quarenta anos desenvolveu um dos mais
impressionantes esforços de classificação de doenças e homogeneização de diagnósticos que se tem
notícia. Desde o advento do DSM-3, a psiquiatria teria, enfim, encontrado o caminho em direção a sua
segurança ontológica, deixando para trás décadas de imprecisão. Uma imprecisão que seria fruto do uso
de vocabulários extremamente valorativos, em vez de meramente descritivos, assim como da fascinação
por etiologias fantasistas. Pois, ao invés de se preocupar com a definição de causas dificilmente
observáveis (como, por exemplo, afirmar que certa fobia de animal é resultado de conflitos inconscientes
com a figura paterna), melhor seria privilegiar um pensamento categorial que organiza distinções a partir
de uma certa lógica de conjuntos no qual o esforço clínico fundamental consiste em definir sintomas e
condições que, se colocados em relação, podem individualizar um comportamento patológico. Desta
forma, nasceria o milagre de um saber, para além de disputas teóricas, observável, imune aos juízos
subjetivos do médico-observador e, acima de tudo, eficaz.
Esta história da marcha irresistível da psiquiatria em direção à ciência é normalmente contada em
tons edificantes. A partir do início dos anos 1970, vários psiquiatras começaram a fazer testes,
demonstrando a incrível variação de diagnósticos entre os profissionais. Por outro lado, a própria
psiquiatria era bombardeada de todos os lados por aqueles irresponsáveis que tentavam demonstrar que
categorias clínicas eram mitos ou, no mais das vezes, mecanismos de exclusão e controle social. Neste
ambiente hostil, psiquiatras como Robert Spitzer e John Feighner teriam sido capazes de tirar a
psiquiatria da defensiva por meio de uma profunda reforma metodológica que, em um curto espaço de
tempo, modificou radicalmente o que entendíamos até então por “clínica”.
Pois tal reforma metodológica teria sido acompanhada pelo desenvolvimento exponencial do saber
neurológico, assim como do desenvolvimento de medicamentos capazes de combater com eficácia
aquilo que, erroneamente, entendíamos fluidamente por “impasses existenciais” capazes de afetar nossa
performance no trabalho, nossos papéis sociais e nossa autonomia do desejo. A clínica aparecerá, então,
cada vez mais submetida a uma farmacologia em vias irresistíveis de aprimoramento. Neste sentido, não
haveria razão alguma para se inquietar do fato de que por volta de 70% dos experts que trabalharam para
o DSM-5 terem, em sua carreira recente, vínculos financeiros com a indústria farmacêutica. A
comunidade entre indústria farmacêutica e comunidade psiquiátrica seria exclusivamente fundada nas
promessas abertas pelo progresso da ciência.
Também não haveria razão alguma para se perguntar se não haveria uma articulação perversa entre o
fechamento dos asilos, a redução dos gastos públicos em saúde mental e um triplo processo de reforço da
posição da psiquiatria. Processo triplomarcado pela medicalização, pela institucionalização crescente
das discussões através da hegemonia da American Psychiatry Association (APA) e pela tecnicização
crescente dos diagnósticos.
DOENÇA E POLÍTICA
Tudo isso poderia interessar apenas à uma comunidade limitada, composta por todos aqueles
profissionais designados para tratar de problemas de saúde mental (psicólogos, psiquiatras, psicanalistas,
entre outros). Mas talvez seja o caso de colocar algumas questões. Pois, e se categorias como “saúde”,
“doença”, “normal” e “patológico”, principalmente quando aplicadas ao sofrimento psíquico, não forem
meros conceitos de um discurso científico, mas definições carregadas de forte potência política? Por um
lado, uma sociedade organiza seus modos de intervenção nas populações, nos corpos e nos afetos por
meio da definição do campo das doenças e das patologias. No interior desses modos de intervenção, não
é apenas a experiência subjetiva do sofrimento do paciente que orienta a clínica, mas também padrões
esperados de conduta social de forte conotação moral (ou mesmo estética e política). Por exemplo,
quando o DSM-4 descrevia o transtorno de personalidade narcísica, ele não temia descrever tal
transtorno, apelando, entre outras coisas, para quadros morais do tipo: “Eles esperam ser adulados e
ficam desconcertados ou furiosos quando isto não ocorre. Eles podem, por exemplo, pensar que não
precisam esperar na fila, que suas prioridades são tão importantes que os outros lhes deveriam mostrar
deferência e ficam irritados quando os outros deixam de auxiliar em ‘seu trabalho muito importante’”. O
mínimo que se pode dizer é que tal quadro nada diz sobre o sofrimento psíquico, mas diz muito a
respeito dos padrões disciplinares e morais que nossa sociedade tenta elevar à condição de normalidade
médica.
Exemplo ainda mais caricato são os oito critérios fornecidos para definir o transtorno de
personalidade histriônica: 1) desconforto em situações nas quais não se é o centro das atenções; 2)
comportamento inadequado, sexualmente provocante ou sedutor; 3) superficialidade na expressão das
emoções; 4) constante utilização da aparência física para chamar a atenção sobre si próprio; 5) discurso
excessivamente impressionista; 6) teatralidade e expressão emocional exagerada; 7) ser facilmente
sugestionável; 8) considerar os relacionamentos mais íntimos do que realmente são. Em um manual que
se vangloriava pela clareza de seus “critérios específicos”, impressiona exatamente a falta de
especificidade de um quadro clínico tão amplo que poderia englobar praticamente qualquer pessoa com
o mínimo de senso de autocrítica. Há de se perguntar se estamos diante de uma falha ou da exposição
sintomática de uma lógica que perpassa, em maior ou menor grau, todo o poder psiquiátrico atual com
sua tendência muda, como vemos no texto de Gilson Ianinni e Antonio Teixeira, de “psiquiatrização da
vida cotidiana”.
Se nos perguntarmos sobre a natureza de tal lógica, valeria a pena lembrar como a experiência da
doença, ou seja, a experiência de se compreender como doente, não é apenas o resultado da descrição de
variações em marcadores biológicos específicos. Nem é a doença a mera definição de situações de
sofrimento. Há várias experiências de sofrimento que não vivenciamos como doença, mas como
conflitos relativamente naturais em processos globais de transformação e de desenvolvimento. Na
verdade, há uma dimensão na qual estar doente, no que diz respeito à saúde mental, aparece como o
sofrimento advindo da limitação na capacidade de ação e da fixidez em certos comportamentos. O que
não poderia ser diferente se aceitarmos que estar doente é, a princípio, assumir uma identidade com forte
força performativa. Ao compreender-se como “neurótico”, “depressivo” ou portador de “transtorno de
personalidade borderline”, o sujeito nomeia a si através de um ato de fala capaz de produzir
performativamente efeitos novos, de ampliar impossibilidades e restrições. Uma patologia mental não
descreve uma espécie natural (natural kind), como talvez seja o caso de uma doença orgânica, como
câncer ou mal de Parkinson. Como nos lembra Ian Hacking, ela cria performativamente uma nova
situação na qual os sujeitos se veem inseridos.
Neste sentido, há de se perguntar o que está por trás dessa tendência de psiquiatrização da vida
cotidiana levada a cabo pelo DSM-5. Tendência que realiza uma progressão presente na própria base dos
DSMs. A partir de agora, o número de patologias mentais se eleva a 450 categorias diagnósticas. Elas
eram 265 no DSM-3, lançado em 1980, e 182 no DSM-2, de 1968.
De fato, com modificações, como as que diminuem o luto patológico de dois meses para 15 dias ou
que cria categorias bisonhas como o transtorno disruptivo de desregulação de humor, o vício
comportamental (behavioral addiction) ou o transtorno generalizado de ansiedade, dificilmente alguém
que passa por conflitos psíquicos e períodos de incerteza entrará em um consultório psiquiátrico sem um
diagnóstico e uma receita médica.
Por trás desta estratégia clínica, com sua negação de perspectivas etiológicas, há a tentativa
equivocada de transformar toda experiência de sofrimento em uma patologia a ser tratada. Mas uma vida
na qual todo sofrimento é sintoma a ser extirpado é uma vida dependente de maneira compulsiva da voz
segura do especialista, restrita a um padrão de normalidade que não é outra coisa que a internalização
desesperada de uma normatividade disciplinar decidida em laboratório. Ou seja, uma vida cada vez mais
enfraquecida e incapaz de lidar com conflitos, contradições e reconfigurações necessárias. Há de se
perguntar se tal enfraquecimento não será, ao final, o resultado social dessas modificações no campo da
saúde mental patrocinadas pelo DSM. Há de se perguntar também a quem tal situação interessa. 
O futuro de uma classificação
GILSON IANNINI E ANTONIO TEIXEIRA
Num futuro não muito distante...
A ciência progride a passos largos. Quem, há vinte anos, poderia prever a abrangência do DSM-11,
lançado ontem? É preciso lembrar que, desde a conturbada recepção do DSM-5, há quase vinte anos, a
arbitrariedade de suas classificações e a ausência de fundamentação científica foi percebida tanto pela
comunidade neurocientífica quanto pela comunidade dos trabalhadores em saúde mental. Portanto, não é
exagero dizer que o dia 13 de dezembro de 2031 entrará para a história. As inovações do volume lançado
na noite de ontem prometem um grande avanço científico no tratamento dos transtornos mentais.
Entre as novas síndromes descritas, destacam-se a padronização do tempo de luto normal para até três
dias (decorrido esse prazo, o luto deve ser tratado como depressão patológica excessivamente intensa),
além da tão sonhada descrição objetiva de 27 síndromes que acometem bebês e recém-nascidos e as tão
esperadas síndromes ligadas ao trabalho, à religião, às artes e à política. Além da descrição de mais 374
novas síndromes, somadas aos 1.417 transtornos descritos na última versão, o DSM-11 traz ainda um
aplicativo capaz de diagnosticar quaisquer transtornos em pouco mais de três segundos, interligado a um
sistema de delivery de medicamentos. Entre as novidades mais esperadas, destacam-se a “síndrome do
choro sem causa aparente detectável”, o “transtorno anoréxico infantil” e a “síndrome da insônia
precoce”. A “síndrome do choro sem causa aparente detectável” é conhecida de pais e educadores. Antes
da última versão do DSM, era erroneamente considerada como condição normal do lactente. Agora, a
recomendação é que sejam tratados com psicofármacos bebês que, a partir do terceiro mês de vida, ainda
apresentem choro sem causa aparente, diariamente ou, pelo menos, três vezes por semana. Já o
“transtorno anoréxico infantil” acomete bebês com mais de seis meses que se recusam a serem
alimentados com alimentos sólidos ou pastosos, o que acarretaria grave prejuízo ao desenvolvimento
nutricional infantil. Também foi incluída a “síndrome da insônia precoce”, que é uma grave doença,
provavelmente genética,que acomete uma parcela significativa dos bebês entre 9 e 18 meses de idade e
que se caracteriza pela dificuldade em dormir um sono ininterrupto por, no mínimo, nove horas seguidas.
Ainda na infância, foi descrito o “transtorno egossintônico da personalidade narcísica”, que acomete
crianças que se identificam ou fantasiam ser princesas ou super-heróis. No capítulo sobre adolescência,
foram introduzidas a “síndrome do diário de memórias”, caracterizada por uma compulsão em escrever
experiências imaginárias em linguagem cifrada nos diários íntimos e desenhar coraçõezinhos inúteis, que
acomete principalmente as meninas, e a “síndrome de formação de bandas sem futuro promissor pelo
menos provável”, que descreve patologias ligadas à necessidade compulsiva de se formar bandas com o
gênero musical em voga. Grande avanço foi observado também com a descrição da “síndrome da
indefinição profissional”, que acomete tantos adolescentes em idade de definição profissional.
No capítulo sobre os transtornos relativos ao trabalho, foi introduzido o “transtorno do déficit de
produção”, o “distúrbio monomaníaco cafeíno-induzido”, conhecido também como “síndrome do
cafezinho”, que acomete principalmente funcionários públicos, e o “atraso matinal monomaníaco”, que
se caracteriza por chegar atrasado ao trabalho, pelo menos uma vez por mês, por até 15 minutos. No
capítulo sobre religião, foi introduzido o “transtorno de crença em entidades não-verificáveis
experimentalmente”, com diferentes graus de fanatismo. Esse diagnóstico, corretamente realizado, é
capaz de detectar propensão a atos de terrorismo já a partir da pré-adolescência. A “síndrome do
invencionismo crônico” agrupa sintomas ligados à necessidade que pessoas antes consideradas como
“artistas” têm de inventar “novas maneiras” disso ou daquilo. Ficou provado que gênios, antes tidos
como “artistas”, sofreram de graves transtornos psiquiátricos, facilmente solucionáveis com tratamento
adequado. São sintomas dessa doença: empregar palavras fora de seu contexto descritivo ou
comunicacional, desenhar pessoas com quatro braços ou tartarugas cor-de-rosa, empregar notas musicais
desnecessariamente dissonantes, utilizar objetos comuns de maneira inusitada, apropriar-se do espaço de
maneira não-convencional.
No campo da política, foi ampliada a “esquerdopatia crônica”, grave sintoma que acomete parte da
população, que apresenta sintomas como: produção de teorias conspiratórias acerca dos interesses do
capital, inconformismo com a ordem vigente, postura crítica diante da mídia, leitura regular ou irregular
de livros de filosofia e outras ciências humanas, além de outros graves acometimentos. Quanto às
síndromes econômicas, foi descrita a “síndrome da incapacidade de produzir riqueza”. Entre os sintomas
dessa condição psicopatológica estão: pobreza crônica, endividamento, boemia, leitura recorrente de
livros de poesia. Está frequentemente associada a episódios de esquerdopatia aguda.
Na categoria patologias da vida conjugal, o grave acometimento que antes respondia pelo nome de
amor, foi incluído como “transtorno monoerótico imaginário”. O tratamento requer internação
compulsória por um período de seis semanas e separação total da pessoa “amada”. Outra coisa que
chama a atenção positivamente é a exclusão de todas as condições ligadas ao que antes se denominava
“vida subjetiva”, desde a implementação da obrigatoriedade da vacina antipulsional. O que demonstra o
sucesso do programa de erradicação da sexualidade humana para fins não-reprodutivos.
A VERDADE TEM ESTRUTURA DE FICÇÃO
O caráter hiperbólico do texto acima pretende apenas exibir aquilo que a versão atual do DSM-5 não
consegue mais ocultar: o caráter normativo de suas classificações, fundadas num movimento vertiginoso
de psiquiatrização da vida cotidiana e numa psicopatologização do mal-estar subjetivo. Pois, por mais
que essa paródia nos mostre o aspecto risível desse esforço de catalogação, é preciso aceitar que, do
ponto de vista puramente formal, não há nada de propriamente exorbitante numa prática classificatória,
seja ela qual for. Podemos constituir classes ou grupos, bastando, para tanto, atribuir um predicado
comum a determinado número de indivíduos. O problema é que as classes normalmente se compõem em
torno de uma representação atributiva que um discurso destaca, como é o caso da presença de mamas na
formação da classe dos mamíferos, ou de incisivos superiores pronunciados, no caso dos roedores. Mas
quando se trata de classificar sujeitos, mesmo que se busque imprimir uma marca de pertencimento
sobre o corpo, como no caso da circuncisão para os judeus, as classes assim constituídas não se
encontram fundadas sobre nenhuma propriedade representável. Uma classe de sujeitos depende,
estritamente falando, do efeito de uma nomeação, de sorte que quando dizemos que alguém é judeu,
brasileiro, proletário, burguês etc., a classificação assim produzida resulta somente do proferimento do
nome. Diante, portanto, da ausência de uma propriedade representável consistentemente definida para
classificar os seres falantes, os idealizadores do DSM se veem livres para criar novas classes
diagnósticas, a seu bel prazer, ou, o que é pior, em conformidade com os lançamentos da indústria
farmacêutica ou com as exigências dos gestores de saúde.
Tudo pode ser classificado do ponto de vista de uma prática discursiva, inclusive condutas, posições
políticas e mesmo o amor. Que seja. Nada impede, todavia, que tomemos, então, para nós, essa mesma
liberdade classificatória e avancemos ficcionalmente até o nível virtual de um último DSM em que o
catálogo se capilariza. Este último DSM deveria, portanto, descrever um transtorno que acomete,
preferencialmente, gestores obcecados com a rentabilidade dos planos de saúde, frequentemente
vinculados a laboratórios farmacêuticos, assim como docentes universitários financiados por
laboratórios, até pouco tempo restritos às universidades norte-americanas, porém com tendência a se
propagarem para outros territórios. Chamemo-la de “transtorno de compulsão classificatória avaliativa
maniforme” (TCCAM), ou doença de Simão Bacamarte, em homenagem ao alienista descrito por
Machado de Assis, no final do século 19, que em nosso tempo se manifesta como uma necessidade
incontrolável de classificar e avaliar todo comportamento observável, assim como preencher
compulsivamente espaços de “sim”, “não” e “mais ou menos” em planilhas de avaliação. Alguns desvios
caracteriais evidentes dessa síndrome incluem: a incapacidade sistemática de questionar a sua própria
função e a necessidade obsessiva de eliminar todo e qualquer sofrimento subjetivo. Observa-se ainda,
como sinal patognomônico desse quadro, uma importante alteração do juízo de realidade, manifesta no
sentimento delirante de estar no direito de classificar e avaliar os demais sem permitir que seja avaliado
ou classificado o próprio exercício de avaliação. A classe dos classificadores, assim constituída, não
tolera que ela própria seja classificada. Em seu delírio, os pacientes acometidos pela TCCAM, ou pela
doença de Bacamarte, chegam a se arrogar o direito de definir o que é científico ou não, sem, contudo,
expor critérios que possam definir a cientificidade de sua prática classificatório-avaliativa.
Essa última versão paródica do DSM tem o interesse de nos apresentar, em seu limite, o caráter
autofágico de uma prática desenfreada de avaliação classificatória. É bem verdade que, até o atual
momento, os classificadores do DSM não fazem parte do conjunto dos objetos classificados, tal como os
catálogos do paradoxo de Russell, que não contêm a si mesmo. Mas quando criamos, com a Casa Verde
virtual do DSM-11, a classe dos classificadores compulsivos que não classificam a eles próprios, o
paradoxo é inevitável: essa classe contém ou não contém os classificadores? Ela os contém porque não
os contém, não os contém porque os contém e daí por diante... Teríamos, então, chegado a esse feliz
momento de ironia suprema, em que o classificador enlouquece edecide, tal como o alienista de
Machado de Assis, internar-se e deixar-nos finalmente em paz?
Mas as coisas não são tão simples assim. Sabemos que o DSM – a despeito de sua absoluta
indigência epistemológica – não será tão cedo classificado como um caso patológico de compulsão
classificatória, pois existe uma estrutura exterior sobre a qual ele se sustenta. O DSM permanece coeso, a
despeito de todas as modificações que possa sofrer, em razão da tríplice aliança de catálogo, pílulas e
discursos que o mantêm. Em primeiro lugar, o catálogo, enquanto operador da gestão, confere ao DSM
sua forma de listagem provisória, que pode ser mudada conforme se modificam os arranjos institucionais
do poder ao qual ele presta serviços. Em segundo lugar, cada classe catalogada será o máximo possível
vinculada à pílula terapêutica, que é a promessa de bem-estar mental em sua forma-mercadoria,
sustentada pelas estratégias de marketing dos laboratórios. Associações tais como TDH-Ritalina ou
Distimia crônica-Venlafaxina são emblemáticas nesse sentido. Em terceiro lugar, o discurso da
tecnociência, submetido à lógica do capital, organiza a crença mercantil que associa demanda e produto
– no caso, doença mental e arsenal terapêutico – numa relação de evidência supostamente controlável.
Sua função é dar à associação do catálogo com a pílula a roupagem do discurso da ciência.
Mas em que pese o caráter manifestamente ideológico que aqui se faz do discurso científico, é inútil
protestar contra o DSM. Podemos, aliás, dizer que é do protesto que o DSM se nutre e extrai sua
permanência. Sendo o protesto uma variável do discurso da demanda, na forma trivial da queixa, nada
mais fácil ao DSM do que prover meios para responder às reclamações contra seus supostos excessos,
mediante renovações periódicas de suas listagens. Se Lacan tem razão ao dizer que ao protestar contra
uma situação, entramos no discurso que a condiciona, é porque, assim fazendo, indicamos as correções
que tornam essa situação mais suportável. A prova disso é a supressão, em 1980, do diagnóstico de
histeria no DSM-3, em resposta ao protesto das feministas contra o caráter sexista dessa denominação,
assim como a eliminação, a partir de 1987, da categorização patológica da homossexualidade
egodistônica para satisfazer ao lobby dos homossexuais americanos.
Estamos, aliás, às voltas com um protesto recente, de grande esplendor midiático, anunciado tanto no
Le Monde quanto no NYT, relativo à decisão anunciada por Thomas Insel, diretor do prestigioso Instituto
Nacional de Saúde Mental dos EUA (NIHM), de não mais se guiar pelo DSM. O DSM não mais nos
serve, diz ele, em razão da falta de cientificidade de sua classificação. Se ao menos essa atitude fosse o
prenúncio de um novo esforço de se pensar o mental fora dos enquadres disciplinares usuais... Que nada!
Há mais alarde do que propriamente novidade nessa informação. O caráter ateorético do DSM é, há mais
de trinta anos, conhecido de todos, e Thomas Insel, diretor da NIMH, não seria certamente o último a
saber disso. Do ponto de vista prático, o DSM será ainda mantido, não apesar, mas graças aos ataques
que vem recebendo. Ele encontrará meios de renovar, com outros adornos, sua roupagem
pseudocientífica e comporá novas listas que agradem mais aos poderes que o subvencionam.
Até mesmo porque o projeto atualmente lançado pelo Instituto Nacional de Saúde Mental,
coordenado por Thomas Insel, que deu origem ao Research Domain Criteria (RDoC), não produz grande
diferença do ponto de vista do que se tem conhecimento na área da psiquiatria. Sua proposta de
biologizar a realidade mental, de tratar o psiquismo nos termos de uma neurobiologia, nada mais é do
que o velho naturalismo do antes-de-ontem de volta à cena como novidade reluzente do depois-de-
amanhã, num palco arrimado pela crença de que a racionalidade tecnocientífica detém a derradeira
palavra sobre a natureza e sobre o homem. A razão é mais ideológica do que epistêmica: eles bem sabem
que quem hoje se vale do discurso da ciência passa a gozar de uma autoridade inquestionável, posto que
não existe nenhuma instância extra-científica que nos autorize a questionar o seu veredicto.
Desse ponto de vista, se o mental será o neurobiológico, ou o físico-químico, ou o genético ou
mesmo, quem sabe, o molecular, isso importa pouco. O que importa é que o nome, assim escolhido,
pareça não ser apenas uma nomeação, pois esse é o atual erro do DSM: mostrar o mecanismo por detrás
da mágica, revelar a impostura da qual ele é feito. O que interessa é organizar a convicção de que se
pode estabelecer uma classificação da realidade mental que não seja uma pura nomeação, a partir de uma
propriedade representável cientificamente, conforme a ideia que o senso comum faz da ciência neste ou
naquele momento.
Não deixa, contudo, de ser interessante notar a ausência de um verdadeiro programa clínico no
campo das neurociências. Isso não é casual, pois basta dar a palavra ao sujeito para se ver cair por terra
esse ideal de representação científica da doença mental num código sem ambiguidades. O exemplo
maior disso continua sendo o de Freud, que cedo percebeu a categoria irredutível do sujeito em sua
experiência clínica. Mesmo partindo das concepções naturalistas da ciência de seu tempo, Freud se viu
levado, malgrado ele próprio, a reintroduzir a subjetividade no campo metapsicológico pelo simples e
fundamental gesto de escutar o que tem a dizer seu paciente. Freud, ali, encontrou um sujeito irredutível
às classes que o englobam, ali onde o neurocientista visa calar o sujeito numa classe universal que o
apreende sem resto.
O que caracteriza uma clínica que possa realmente sustentar esse nome é o esforço de pensar o
sujeito em sua singularidade irredutível. Uma classificação diagnóstica deve ser suficientemente precisa
e bem fundamentada para permitir uma estratégia de condução do tratamento, mas suficientemente
aberta para pensar a maneira que cada sujeito encontra de ser inagrupável, i.e., de permanecer
dessemelhante dos demais membros de sua própria classe. Toda verdadeira clínica nunca é mera técnica,
mas é também uma aposta ética e política. É por esse conjunto de razões que, no atual momento,
precisamos não de mais classes diagnósticas, mas de menos. 
Uma alma não se fatia como se fatia um corpo
ARIANE BAZAN
A palavra psychologia aparece pela primeira vez no século 16. Esse século de barbárie religiosa, quando
os corpos, frequentemente abertos, cobriam a cena pública, conhece grandes progressos na anatomia.
Pela primeira vez na história da humanidade, Vésale propõe, com seus desenhos de anatomia, uma
imagem dos sistemas humanos internos, em particular do sistema muscular e os nervos que o inervam.
As imagens são fenomenais: essa fábrica do corpo se revela como uma maquinaria logicamente
agenciada cujo movimento, por exemplo, seria compreendido mecanicamente. Pela primeira vez, em
vinte séculos, a medicina aristotélica, com sua prerrogativa de alma – o anima – que dá vida, isto é, o
movimento do corpo, desestabiliza-se. Em 1540, o reformista religioso alemão Melanchthon comenta o
Da alma, de Aristóteles. Ele enriquece o texto aristotélico com um longo tratado de anatomia. Mas a
simples adição não é suficiente, as imagens anatômicas do corpo desfocaram fundamentalmente as
definições aristotélicas: já que o corpo é capaz de retomar uma série de funções reservadas, até então, à
alma, é preciso que esta seja redefinida. Enquanto para Aristóteles todo ser vivo, seja vegetal, animal ou
humano, possui, em níveis diferentes, uma alma que organiza o corpo, Melanchthon opõe uma
antropologia dualista que divide o homem em um corpo estendido no espaço e uma alma pensante. O
homo duplex de Melanchton, a anthropologia, é dividido em duas partes: a anatomia, ciência do corpo, e
a psychologia, ciência da alma.
O uso do termo psychologia por Melanchthon é a primeira utilização intencional do termo e funda
um novo campo de conhecimento. Seguindo seu rastro, o reformista holandês Snellius (1594)determina,
então, as propriedades essenciais que distinguem corpo e alma: “As coisas físicas, mais próximas dos
corpos naturais que se movem naturalmente, possuem uma extensão e por causa disso ocupam um lugar”
e “A faculdade da alma racional é o pensamento ou a vontade. O pensamento é a capacidade da alma de
discorrer e de pensar a respeito das coisas que são e que não são”. A alma se vê então redefinida por
novidades exclusivas, em especial o pensamento (a imaginação) e a vontade. O estudo da psicologia tem
como objetivo descrever essas faculdades, assim como a anatomia divide o corpo em suas partes. Por
isso, o modelo dessa psychologia é emprestado dela: a ciência procede através de recortes, partindo do
mais simples e recompondo-se, em seguida, do mais simples ao mais complexo.
Notemos, então, que são os progressos do conhecimento do corpo que tornaram indispensável a
atribuição de um nome próprio – este da psicologia – ao campo da alma. Desde as origens da história,
foram os filósofos que pensaram a humanidade e a sua condição, no entanto, aqui está o berço da
psicologia, essa disciplina que, por conta de conteúdos, nasce pela ciência do corpo e que, por suas
formas, deu-se à luz mediante recortes – da dissecção à desintricação. Esse paradoxo se repete no século
19, no momento em que a psicologia, e aí compreendida a neurofisiologia, conhece importantes
progressos. Bell e Magendie descobrem, de maneira independente, a distinção entre os nervos sensoriais
e os motores em nível da medula espinhal; du Bois-Reymond mapeia a natureza elétrica da contração
muscular; Broca e Wernicke identificam as áreas do cérebro que intervêm nos diferentes aspectos da
linguagem e Fritsch, Hitzig e Ferrier localizam as áreas sensoriais e motoras do cérebro. Esses campos
da fisiologia profissionalizam-se, e é a partir deles que Wundt redige, em 1874, o primeiro manual de
psicologia e estabelece, em 1879, o primeiro laboratório de psicologia experimental. Com os progressos
da neurofisiologia, a psicologia se afirma como disciplina científica autônoma.
CIÊNCIA DA ALMA
Desde o efervescente século 19, Freud e a psicanálise abalaram essa epistemologia “resolutiva-
recompositiva”, propondo uma ciência da alma cujos principais organizadores se libertam tanto da
psicologia quanto da filosofia. Mas o advento dos psicotrópicos junto aos impressionantes avanços em
imagem cerebral dos últimos vinte anos deu um novo fôlego ao paradigma médico e parcial de outrora.
Enquanto que o pensamento já tinha visto cair seu estatuto exclusivo de alma do século 19, a
imagiologia cerebral – esse desnudamento do cérebro – é totalizante: nada do que se quis atribuir ao
íntimo da alma, nem a paixão, o amor, a amizade, as aspirações ou mesmo a fé, a moral, o desejo ou o
prazer orgástico, nada escapa à visualização. Por isso, não nos surpreendemos ao deduzir que o psíquico
não seria outra coisa senão uma forma de fenomenologia ou expressão direta dos processos cerebrais e
que, portanto, trata-se de lidar com a alma segundo os mesmos princípios que aqueles em vigor para o
tratamento do corpo, isto é, os princípios médicos. Entre eles, fixemos (1) o recorte do problema, em
paralelo à especialização clínica para as diferentes composições, e (2) o diagnóstico e, em paralelo, o
screening e a prevenção, direcionados sobre esses componentes recortados.
O instrumento que, por excelência, concretiza essa aproximação é o Manual diagnóstico e estatístico
de transtornos mentais, o DSM, manual que retoma, como o catálogo de uma flora, os diferentes
transtornos mentais, propondo um recorte daquilo que foi vivido pelo sujeito com base somente em suas
manifestações fenomenológicas.
Ora, suponho que o que foi sucesso para a medicina pode levar estruturalmente a saúde mental à
falência. Peguemos, por exemplo, a situação familiar problemática: os pais brigam (violentamente), ou
há problemas de depressão ou de vício. Essas diferentes situações podem induzir grandes angústias nas
crianças, bem como um investimento maciço de energia física nos mecanismos de defesa, para que a
atenção não seja continuamente pega por essa ameaça de drama. Associados, essas angústias e seus
mecanismos de defesa podem, portanto, levar a problemas – de sono, alimentação, de comportamento na
escola etc. –, quer dizer, uma série de sintomas que poderiam se qualificar como transtornos ou fobias.
No quadro parcialmente descrito, a tendência médica atual, prescrita pelo DSM, é, então, a de recortar e
isolar esses transtornos do resto do vivido. Ora, tratar o transtorno ou a fobia sem levar em consideração
seu contexto etiológico faz com que se perca o sentido de sintoma. Não resta, senão, ao profissional uma
aproximação essencialista: privado de uma reflexão sobre o sentido, ele se reduz a explicar o problema
por uma predisposição (de personalidade, de genética, neural...) da criança. Isso fixa o problema para a
criança, identificando-a a ele sem, no entanto, propor pistas reais, para além da medicação, de como se
encarregar dele. Além disso, essa aproximação essencialista leva, por sua vez, à aspiração de determinar
o perfil distintivo de crianças com o “mesmo” problema. Baseadas em questionários, às vezes mesmo em
amostragens biológicas, as diferenças estatísticas são levantadas e os “transtornos de personalidade”
emergem no DSM.
Esse catálogo, que floresce de transtornos, tem efeitos próprios que se mostram alarmantes. De fato,
não se atribui impunemente um nome a um estado mental – a fortiori uma qualificação a um sujeito –
como se colasse uma etiqueta numa lata de conserva: ali onde a lata, feita de átomos de ferro, ficará
perfeitamente inerte à sua etiqueta, o sujeito humano, feito de linguagem, é tocado naquilo mesmo que o
constitui. O impulso de novos significantes, tais como depressão, “transtorno de déficit de atenção”, com
ou sem hiperatividade (TDAH), “transtorno do espectro autista” etc., contaminam os espíritos: os
sujeitos, comprometidos por seus desamparos e desordens, ou àquelas de seus próximos, buscam se
agarrar a esses males e se encontram (temporariamente) aliviados de poder colocar um rótulo. A
proposta de um novo diagnóstico cria, assim, a epidemia: desde que a descrição esteja em voga,
suficientemente vaga ou geral (por exemplo, borderline ou burn-out), os sujeitos atribuem-na a si ou a
seus próximos (seus filhos). Isso aumenta consideravelmente a probabilidade de um diagnóstico oficial,
visto que os sujeitos irão ver seu médico de maneira pré-estabelecida, responderão aos questionários
diagnósticos de maneira enviesada, e mesmo o médico, o pai ou o instrutor terão um olhar e uma audição
pré-orientada para detectar certos transtornos da moda. Na mesma lógica, as campanhas de screening e
de prevenção no setor da saúde mental têm efeito inverso ao esperado: enquanto estes provaram a sua
importância para a medicina somática, o rastreamento ativo de transtornos mentais induz a uma
identificação maciça com os problemas do público e provoca ondas de epidemias psicopatológicas.
FABRICAÇÃO DE PROBLEMAS
Vemos, portanto, como esse “simples erro de lógica” – recortamos os problemas da alma como
aprendemos a fazer com os problemas do corpo – leva a uma engenharia de fabricação de problemas: o
isolamento do transtorno conduz à caracterização (frequentemente “científica”) de um perfil de
personalidade, que leva à injeção de novos significantes ao público, que, por sua vez, provoca uma
lufada de ar através da qual as epidemias psicopatológicas abundam. Isso só pode conduzir à falência do
setor. Enfim, é o próprio modo de tratamento, quer dizer, o recorte, que leva, no final dessa cadeia, à
psicopatologização. Paradoxalmente, quanto mais meios forem investidos no tratamento e na pesquisa de
perfis e transtornos de personalidade, mais haverá um problema público de saúde mental. Isso é tão mais
verdade, aliás, se considerarmos que, com mais frequência, o elemento constitutivo da oferta clínica
desta abordagem médica é o medicamento psicotrópico. É preciso ousar e colocar a questão:

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