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IMPRESSÕES SOBRE A HISTÓRIA NÃO CONTADA DA BOATE KISS Larissa Magalhães Miranda1 Todo Dia a Mesma Noite me emocionou em todos os capítulos, a riqueza de detalhes nas histórias contadas por pais, sobreviventes, profissionais da saúde e bombeiros nos coloca dentro da narrativa quase como se estivéssemos participando dela. Vivenciando com um aperto no coração a procura nos hospitais em busca do familiar com vida, sentindo um pouco da dor da perda dos filhos de Santa Maria. A sensação eminente que de uma hora para a outra, você pode dar o último abraço em alguém e o “se cuida, vai com Deus” poderá ser suas últimas palavras para aquele ente querido me quebrou em pedaços, me levando a aproveitar ainda mais momentos especiais em família. A cidade de Santa Maria, muito ocupada por jovens universitários, jamais imaginou que uma boate poderia ser local de uma das maiores tragédias do Brasil. Esses jovens que assim como nós, nunca reparou se o estabelecimento havia saídas de segurança, extintores de incêndio em funcionamento ou isolamento acústico de material adequado, a única preocupação era se divertir com amigos, esquecer os problemas da faculdade, beber e dançar ao som da Gurizada Fandangueira. A noite se encerrou mais cedo que o esperado, da pior maneira possível, intoxicados pelo cianeto, assim como as câmaras de gás nazistas, asfixiados pela fumaça, queimados pela espuma do teto, alguns pisoteados em busca de uma saída, de uma janela no banheiro, vivenciaram o pior momento de suas vidas em uma noite que era para ser de festa, ou trabalho para alguns. Uma das histórias narradas no livro que mais me emocionou foi a dos pais de Augusto, que além de sofrer o luto ainda tiveram que lidar com a ignorância cruel de conhecidos religiosos, que os culpavam por terem deixado o jovem ir na boate kiss, como se fosse um castigo divino por frequentar a boate para se divertir com amigos. Relacionando ao conteúdo de homicídio, é possível afirmar que houve um equívoco na imputação do Ministério Público por homicídio doloso qualificado por motivo torpe e pela crueldade (art. 121, § 2º, I e III, do CP) em 241 vezes e homicídio doloso qualificado tentado por motivo torpe e crueldade (art. 121, § 2º, I, c/c art. 14, II, do CP) em 636 vezes pelo Ministério Público, baseado no dolo eventual. De acordo com o Parquet, os acusados eram indiferentes e desprezavam a vida e a segurança dos frequentadores do local, assim assumindo o risco de matar. Logo depois, houve o acórdão do TJRS – Embargos Infringentes 70075120428, em que se reconheceu a culpa consciente, porém ao final foi dada a sentença de pronúncia, em Recurso em Sentido Estrito os desembargadores decidiram pela exclusão das qualificadoras, tornando a imputação de homicídio simples. 1 Acadêmica do 3º ano de Direito da Universidade Federal do Mato Grosso. E-mail: larissamags7@gmail.com Ocorre que, o dolo eventual consiste em prever e aceitar o risco do resultado, o que não se verifica no caso Boate Kiss, os réus por mais que pudessem prever o resultado, acreditavam que jamais se concretizaria e em hipótese alguma aceitaram ou foram indiferentes quanto ao resultado, visto que isso significaria arriscar as próprias vidas, de familiares (assim como a esposa grávida de Elissandro, que estava no local), de amigos, matar sem motivo 242 jovens, destruir seu patrimônio e investimento de anos na boate, além de ocuparem a cadeira de réu em um dos processos mais midiáticos do país. É indiscutível que os réus poderiam prever o resultado, tendo em vista as negligências quanto a instalação das espumas altamente inflamáveis, a ausência de saídas de emergência no local e quanto ao réu Marcelo, a utilização de artifício pirotécnico em local fechado. Isto posto, dado a previsibilidade do resultado ocasionado por negligência, assim como o não aceite do resultado, a única tese possível é a da culpa consciente, quando há a previsão e não aceitação do resultado perigoso e indesejável, que acaba sendo causado por imprudência, negligência ou imperícia (art. 18, II, do CP). De acordo com a fórmula hipotética da previsibilidade de Frank, a diferenciação entre o dolo eventual e a culpa consciente ocorre a partir da resposta à pergunta: o autor teria praticado a conduta se soubesse, com certeza, que o resultado ocorreria? O dolo eventual deveria ser afirmado se o autor respondesse positivamente que teria praticado a conduta independentemente do resultado. A culpa consciente deveria ser afirmada quando a resposta do autor fosse negativa, de que não praticaria a conduta ao saber da certeza do resultado2, o que encaixa perfeitamente no caso Kiss, pois ninguém em pleno uso de suas faculdades mentais praticaria os atos de negligência se soubesse que um dia poderia matar centenas de pessoas sem motivo algum para isso. Dessa forma, considerar a tragédia como se fosse homicídio doloso e levar o caso ao Tribunal do Júri é um “erro jurídico” estratégico, motivado pela repercussão midiática nacional do caso, assim como a busca pela vingança ocasionada na perda de centenas de vidas tão jovens. Mesmo com o desaforamento do júri para a cidade de Porto Alegre, é nítido que os jurados não estão totalmente desprovidos de sentimentos por esse crime, não sendo um júri imparcial. Além disso, as teses de dolo eventual e culpa consciente é um assunto técnico demais para ser julgado por pessoas leigas, visto que o tema é complexo até mesmo no âmbito jurídico. Ainda, esse estratégico “erro jurídico” do Ministério Público, é justamente enquadrar esse crime em uma imputação mais gravosa, para impor a pena de homicídio doloso que é muito maior do que a do culposo. Acontece que a sociedade do Código Penal de 1940 e 1984 (reforma do CP) era completamente diferente da nossa sociedade hoje em questão de riscos, pois na época não haviam 2 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal. Parte geral. Questões fundamentais da doutrina do crime. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. t. I. p. 369. n. 39 tantos eventos com milhares de pessoas no mesmo local, sendo necessário rever a estrutura do dolo, de forma a adequar as penas de crimes de perigo, que é muito baixa, ou então, adicionar um novo tipo penal prevendo uma pena maior em casos de homicídio culposo que resulte em muitas mortes. O que não pode acontecer é enquadrar no doloso quando se busca vingança, justamente para a punição ser maior, os fins não devem justificar os meios. Em relação as tentativas de homicídio doloso, tendo em vista a ausência de dolo, como já abordado anteriormente, e a não existência do crime de tentativa de homicídio culposo, a imputação mais adequada seria a de lesões corporais, graves ou gravíssimas dependendo do resultado para cada vítima. Entendo que a punição na área penal não é suficiente para o grande estrago que aquela noite causou, é necessário acionar a área civil para que os responsáveis possam reparar o dano com indenizações aos familiares. Além disso, tem se demonstrado no júri que os sobreviventes necessitam de medicação contínua, seja para problemas pulmonares ou para queimaduras. Ocorre que os réus do processo não possuem um patrimônio capaz de indenizar todas essas vítimas, Elissandro não tem mais a boate que era seu trabalho, assim como o cantor Marcelo, que depois da tragédia não exerce mais a profissão e tem dificuldades de encontrar emprego por ser considerado assassino. Aí que a responsabilidade do município de Santa Maria e o órgão do Ministério Público deveria entrar, já que não ocupam a posição de réus, o mínimo que poderiam oferecer é a reparação monetária e o auxílio com medicamentos necessários. Não há como se medir a dor dos familiares e amigos que perderam esses jovens na tragédia, até quem sobreviveu morreu um pouco aquela noite, nossos instintos mais selvagens clamam para que os responsáveis sofram na mesma medida que as vítimassofreram, nem se os réus fossem condenados a todos os possíveis crimes do Código Penal seria suficiente, pois nada, infelizmente, irá trazer os 242 filhos de Santa Maria de volta.
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