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João Ricardo F. Tognini (2020 - AMRIGS-PSU) Puérpera, 32 anos, procura a emergência 3 semanas após parto normal, com quadro de icterícia e dor abdominal. Apresenta-se sonolenta, TA: 80/50 mmHg, FC: 135 bpm, FR: 29 rpm. Exames mostram Hb: 12,1 g/dL, Ht: 35,8%, leucócitos totais: 19.650, bastões: 4%, sódio: 142 mEq/L, potássio: 4,8 mEq/L, glicose: 232 mg/dL, amilase: 3.850 (até 200), lipase: 980 (até 140), TGO: 360 (até 40), TGP: 290 (até 45). Qual das alternativas a seguir NÃO faz parte dos critérios de gravidade da pancreatite? a) TGO b) amilase c) leucócitos d) glicose 9.1 DEFINIÇÕES Diversas classificações são adotadas para o agrupamento das diversas causas de abdome agudo. Didaticamente, o termo “abdome agudo inflamatório” envolve as afecções intra-abdominais que geram um quadro de peritonite secundária a um processo infeccioso ou inflamatório. De modo geral, o quadro caracteriza-se por dor de início lento, insidioso e progressivo, com defesa localizada ou generalizada à palpação abdominal. As causas mais comuns de abdome agudo inflamatório são apendicite, colecistite, pancreatite e diverticulite agudas (Quadro 9.1). 9 ABDOME AGUDO INFLAMATÓRIO — APENDICITE E PANCREATITE Quadro 9.1 - Causas mais comuns de abdome agudo inflamatório 9.2 APENDICITE AGUDA A apendicite aguda é a afecção cirúrgica mais comumente atendida nos serviços de urgência, além de ser a principal causa de abdome agudo em crianças, adolescentes e adultos jovens. A evolução da doença baseia-se em sua fisiopatologia (Figura 9.1), e pode ser dividida nas fases edematosa, fibrinosa, flegmonosa e perfurativa. Figura 9.1 - Fisiopatologia Fonte: elaborado pelo autor. O diagnóstico é eminentemente clínico. Na maioria das vezes, o paciente relata uma dor abdominal de moderada intensidade e mal localizada, normalmente periumbilical, que tende a migrar para a Fossa Ilíaca Direita (FID), onde, ‐ progressivamente, torna-se de maior intensidade. Sintomas como vômitos, anorexia e febre baixa são comuns. Ao exame físico, o paciente pode apresentar sinais de toxemia, dependendo da evolução da doença. À palpação abdominal, observa-se a contração voluntária da parede abdominal como um todo, com dor principalmente à palpação da FID, acompanhada de descompressão brusca dolorosa. Essa manobra propedêutica recebe o nome de sinal de Blumberg. Outros sinais propedêuticos que podem ser encontrados na apendicite aguda estão listados no Quadro 9.2. Quadro 9.2 - Sinais propedêuticos de apendicite aguda Os exames laboratoriais são inespecíficos, e os de imagem devem ser indicados apenas na dúvida diagnóstica, principalmente a mulheres, para diagnóstico diferencial com patologias ginecológicas, como piossalpinge e moléstia inflamatória pélvica aguda, sendo a ultrassonografia (USG) abdominal e a Tomografia Computadorizada (TC) os mais utilizados. O tratamento é cirúrgico. A apendicectomia pode ser realizada pela maneira convencional, por incisão oblíqua (McBurney) ou transversal (Davis) na FID, ou por laparoscopia. A cirurgia por videolaparoscopia estará especialmente indicada em casos de dúvida diagnóstica ou em pacientes obesos. 9.3 COLECISTITE AGUDA A colecistite aguda representa a terceira causa de internação nos serviços de emergência, estando associada aos cálculos em mais de 95% dos casos, e resulta da obstrução do ducto cístico por cálculo impactado no infundíbulo, tornando a vesícula inflamada e distendida. A colecistite aguda alitiásica pode ocorrer em 5 a 10% das vezes, sobretudo em pacientes críticos em terapia intensiva, diabéticos e aqueles que receberam nutrição parenteral recentemente. O quadro clínico caracteriza-se por dor no andar superior direito do abdome há mais de 6 horas, com sinais ultrassônicos de colecistite, ou dor persistente no hipocôndrio direito, associada a náuseas e a vômitos. A febre não é comum na fase inicial. Episódios no passado, com resolução espontânea ou o uso de antiespasmódicos, são comuns. Ao exame físico, nota-se defesa à palpação do hipocôndrio direito. O chamado sinal de Murphy consiste em comprimir o hipocôndrio direito e solicitar ao paciente uma inspiração profunda. Na vigência de colecistite, a irritação peritoneal o fará cessar a respiração. A avaliação laboratorial deve contar com bilirrubinas e enzimas canaliculares para a avaliação de cálculos na via biliar. A USG abdominal é o método de eleição para o diagnóstico, revelando espessamento da parede da vesícula, líquido e/ou ar perivesicular, além de indicar a presença e a localização dos cálculos. O tratamento da colecistite aguda é cirúrgico, mas o momento de indicação operatória pode variar. De modo geral, preconiza-se a indicação precoce, e a operação só não é realizada de imediato quando a doença se apresenta na forma não complicada ou em paciente de alto risco operatório. A colecistectomia videolaparoscópica é considerada padrão-ouro, e a antibioticoterapia é de curta duração, exceto quando há infecção grave associada. Deve-se levar em consideração também a necessidade de drenar a via biliar por colangiopancreatografia endoscópica retrógrada, antes ou depois da colecistectomia em casos de colangite aguda por cálculos obstruindo a via biliar. Outra opção nesses casos é a colangiografia intraoperatória, associada à exploração cirúrgica das vias biliares quando houver necessidade. 9.4 PANCREATITE AGUDA A pancreatite aguda é um processo inflamatório do pâncreas, geralmente de natureza química, provocado por enzimas digestivas produzidas por ele próprio e ativadas dentro do parênquima pancreático, e que tem como resultado uma autodigestão da glândula. A etiologia mais comum é a litíase biliar (70%), seguida de etilismo e hipertrigliceridemia. Algumas casuísticas relatam de 5 a 10% de casos de pancreatite aguda idiopática. A dor abdominal é o elemento mais importante no quadro clínico, normalmente associado a vômitos. A dor em faixa do abdome superior e do dorso está presente em aproximadamente 50% dos casos. Sinais de toxemia, como febre e alterações circulatórias, denotam quadros avançados. #importante Alguns sinais propedêuticos, como as manchas equimóticas periumbilicais (sinal de Cullen) ou no flanco esquerdo (sinal de Grey Turner), são secundários a hemorragia peritoneal ou retroperitoneal. Os principais exames para a confirmação diagnóstica são as dosagens de amilase e lipase séricas. Essas medidas são qualitativas, não quantitativas, de modo que não se relacionam à gravidade do quadro. A avaliação da gravidade é feita por dados clínicos e laboratoriais, e os critérios de Ranson (Quadro 9.3) são avaliados na admissão e após 48 horas. A presença de três ou mais parâmetros indica pancreatite aguda grave. Quadro 9.3 - Critérios de Ranson Legenda: Glóbulos Brancos (GB); desidrogenase láctica (LDH); aspartato aminotransferase (AST); ureia sérica (BUN); pressão parcial de oxigênio no sangue arterial (pO2). A USG abdominal pode confirmar a etiologia biliar. A indicação de TC de abdome está reservada aos quadros complexos, para avaliação de complicações, como coleções e necrose. Preconiza-se a TC entre 48 e 72 horas do início dos sintomas àqueles com elementos sugestivos de gravidade. Formas leves podem ser tratadas com jejum, hidratação vigorosa e controle da dor. Se a etiologia é biliar, realiza-se a colecistectomia videolaparoscópica na mesma internação para evitar novos episódios. Quadros graves, por sua vez, exigem internação em terapia intensiva. Além das medidas iniciais, a necessidade de sonda nasogástrica e a correção hidroeletrolítica devem ser avaliadas. Antibióticos de largo espectro são indicados às complicações infecciosas, geralmente quando se observa ar em retroperitônio pela TC. A indicação de cirurgia é uma conduta de exceção. As necrosectomias devem ser realizadas em necroses extensas que não responderão a medidas clínicas. Frequentemente, esses pacientes necessitarão de novas laparotomiaspara a limpeza da cavidade. 9.5 DIVERTICULITE AGUDA A diverticulite aguda é causada pela inflamação e infecção do divertículo, geralmente decorrente da oclusão do seu óstio por fezes ou resíduos alimentares, podendo acontecer perfuração de um divertículo, levando ao quadro de peritonite. A classificação proposta por Hinchey em 1978 (Quadro 9.4) leva em conta a localização dos abscessos e a extensão do processo infeccioso. O quadro clínico da diverticulite aguda não complicada já foi descrito como “apendicite do lado esquerdo”. O paciente apresenta dor na fossa ilíaca esquerda e febre persistentes. Ao exame físico, há defesa e peritonite no quadrante inferior esquerdo. Podem ocorrer fístulas, das quais a colovesical é a mais comum. Nesses casos, são observadas pneumatúria e infecção urinária, que não respondem ao tratamento clínico. O exame considerado padrão-ouro para avaliar a doença é a TC de abdome e pelve, que confirma a presença do processo infeccioso e afasta outras hipóteses diagnósticas. A colonoscopia e o enema opaco são contraindicados na fase aguda, pelo risco de desbloqueio de uma possível perfuração e contaminação da cavidade. O tratamento deve ser orientado, conforme a apresentação da doença, pela classificação de Hinchey. Quadro 9.4 - Classificação de Hinchey Figura 9.2 - Classificação de Hinchey Fonte: Claudio Van Erven Ripinskas. Deve-se ressaltar que casos tratados clinicamente, ou unicamente com drenagem do abscesso, devem ser operados de forma eletiva. Outros critérios de indicação cirúrgica são duas ou mais crises bem documentadas em pacientes com mais de 50 anos, ou um quadro agudo em pacientes com menos de 50 anos, além de presença de complicações (fístulas, estenose segmentar, perfuração e hemorragia), imunodepressão e impossibilidade de excluir câncer. 9.6 CONCLUSÃO A apendicite aguda é o exemplo mais comum de abdome agudo inflamatório e é o exemplo clássico da evolução de dor visceral a dor parietal, levando desde sintomas autonômicos viscerais, como náuseas e dor mal definida, até a sinais de irritação do peritônio parietal como dor localizada e sinais de irritação peritoneal na fossa ilíaca direita. O diagnóstico é clínico e o escore de Alvarado, onde atribui-se uma pontuação em relação a sinais, sintomas e avaliação do hemograma ajuda a definir o diagnóstico. Atribui-se 1 ponto para cada um dos seguintes sintomas: migração da dor, anorexia e náusea ou vômito; em relação aos sinais, atribui-se 2 pontos a defesa no quadrante inferior direito, 1 ponto a dor a palpação e 1 ponto para febre acima de 38 °C e em relação ao leucograma, 2 pontos a leucocitose (maior que 10.000) e 1 ponto a desvio a esquerda. É atribuído baixo risco de apendicite 2 ou menos pontos no somatório, risco intermediário entre 3 e 6 pontos e alto risco se for 7 pontos ou mais. O tratamento da apendicite aguda é cirúrgico imediato ao diagnóstico, tanto por abordagem convencional ou laparoscópica, com exceção da forma hiperplásica da doença, que acontece em 7% dos casos, com evolução mais arrastada e formação de uma massa pseudotumoral. Pode ser feito o tratamento inicial com analgésicos e antibióticos, eventualmente a punção percutânea de alívio caso exista abscessos bloqueados e após seis semanas a apendicectomia. A essa apendicectomia tardia, se dá o nome de apendicectomia de intervalo. #importante A colecistite aguda é causada na maioria das vezes por impactação de um cálculo no ducto cístico com infecção secundária principalmente por Escherichia coli, Klebsiella, Proteus e Enterococcus faecalis. O sinal clínico ao exame físico é o sinal de Murphy, que pode ser concomitante a sensação de plastrão inflamatório em hipocôndrio direito e clinicamente pode ser classificada de acordo com as diretrizes de Tóquio em grave (repercussão sistêmica importante), moderada (inflamação bem definida) e leve (demais casos). As complicações compreendem empiema, abscesso perivesicular, perfuração com peritonite, fistulização para duodeno ou cólon que inclusive pode levara obstrução intestinal por cálculo impactado na válvula íleo cecal (íleo biliar). O diagnóstico clínico pode ser confirmado pela ultrassonografia e o tratamento cirúrgico é o de eleição, sendo a colecistectomia laparoscópica o padrão-ouro. Eventualmente, pacientes sem condições cirúrgicas e com empiema ou abscessos perivesiculares podem se beneficiar de drenagens percutâneas ou mesmo colecistostomia percutânea. Outra situação de exceção que merece ser lembrada é a colecistite aguda alitiásica (10% dos casos) relacionados a pacientes gravemente enfermos como sepse, grandes queimados, suporte ventilatório, nutrição parenteral em pacientes hipotensos e traumas entre outras causas. O curso clínico costuma ser fulminante e com frequência são relacionadas a gangrena ou perfuração do órgão. A pancreatite aguda é uma doença onde há a ativação enzimática pancreática dentro da glândula com consequências inflamatórias locais e sistêmicas.As causas mais frequentes são a litíase biliar (70%), o alcoolismo e a hipertrigliceridemia. O quadro clínico é classicamente de dor abdominal em faixa, acompanhado de vômitos e distensão abdominal, com comprometimento sistêmico e hemodinâmico relacionado a gravidade da doença. O diagnóstico é clínico e laboratorial — a amilasemia elevada transitória e não específica e a lipasemia (específica) são suficientes —, porém são importantes outros exames laboratoriais para poder classificar a gravidade da doença. Os exames radiológicos simples são importantes na admissão: a radiografia de tórax pode mostrar derrame pleural principalmente esquerdo, e a radiografia de abdome, sinais como alça sentinela (distensão jejunal em L2) e sinal de Gobiet (distensão do cólon transverso pode ser notado). A tomografia é o exame ideal para estadiar a destruição glandular e os chamados critérios de Balthazar evidenciam desde forma edematosa a necrose da glândula com formação de gás (infecção). O tratamento é de suporte: nas formas leves, jejum, hidratação e analgesia costumam ser suficientes, e nas formas mais graves, o apoio ventilatório e hemodinâmico costuma ser necessário. O tratamento cirúrgico é indicado apenas em casos de necrose pancreática infectada e tem melhor prognóstico após duas semanas de evolução da doença. O tratamento da causa se for de origem biliar, merece colecistectomia, também mais bem tolerada após 14 dias segundo a maioria dos autores, sendo que se especula que em formas muito leves possam ser realizadas em sete dias. Complicações como pseudocisto de pâncreas merecem tratamento precoce com drenagem externa se infectados, ou então após seis a oito semanas derivação cirúrgica interna como cistogastroanastomose ou jejunocistoanastomose em Y de Roux. A diverticulite aguda é outra forma de abdome agudo inflamatório na qual há o processo inflamatório e infeccioso de divertículos colônicos, na maioria das vezes do cólon sigmoide. O diagnóstico clínico laboratorial deve ser complementado por tomografia computadorizada, de preferência contrastada, que estabelece o nível e grau de processo inflamatório da alça intestinal e a presença de complicações extracólicas. Esses são os conhecidos critérios de Hinchey e classifica a doença em grau I (abscesso pericólico — tratamento com antibióticos), grau II (abscesso pélvico — antibióticos e drenagem local), grau III (peritonite purulenta — antibióticos e ressecção com provável anastomose primária) e grau IV (peritonite fecal — antibióticos e cirurgia de Hartmann). Com relação a complicações, devem ser lembradas as fístulas de colo vesical, que eventualmente levam a infecção urinária de repetição. Gabarito da questão Resposta: b
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