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RESENHA: VERNANT, JEAN PIERRE. AS ORIGENS DO PENSAMENTO GREGO, 1965. Natally Sato Segundo o autor, as origens do pensamento grego, ou helênico, remontam a um período anterior ao que muitos pesquisadores acreditavam, tendo se constituído ainda na antiga civilização micênica. Através da descoberta de novos textos arqueológicos foi possível perceber as semelhanças entre os reinos do Oriente próximo e a península da Grécia. Em seu livro “As Origens do Pensamento Grego”, o filósofo e historiador Jean Pierre Vernant analisa a constituição do pensamento na civilização micênica em comparação com concepção de democracia da Ateniense que viria a sucedê-la. No primeiro capítulo – O quadro histórico – o autor demonstra como as sociedades precursoras dos gregos, os micênicos e os minoicos, compartilhavam uma vasta corrente de intercâmbios e contatos com as outras civilizações próximas, durante os séculos XIX a.C. ao XII a.C. De cerâmicas até o uso comum de cavalos e carros de batalhas, os diferentes povos do Mediterrâneo Oriental também partilhavam um modo de pensar com os gregos micênicos, perpassando principalmente sua religião e mitologia. Com a descoberta de novas fontes – as tábuas micênicas e a escrita do linear B – foi possível descobrir a forma de organização da sociedade micênica, ordenada em um sistema monárquico centralizado ao redor de um Palácio. Nele, o controle era exercido pelo rei (ánax) que, através de seus funcionários, escribas, fiscais e dignitários, exercia o controle religioso, econômico, político e militar sobre a vasta região da península grega, estabelecendo relações de dominação com as diversas aldeias (demos) que cercavam o palácio e as demais dependências através de chefes tribais, formando assim uma aristocracia guerreira. Deste modo, o rei exercia o controle centralizador, mas mantinha uma relativa autonomia das organizações aldeãs. Porém, com a invasão Dória na península grega, a Realeza Micênica, com seu sistema centralizador e palaciano, se dissolveu. Não foi somente a figura do rei soberano (ánax) que desapareceu, mas, a própria concepção de comando (arché) que se separou da figura real, apesar dos chefes locais terem se mantido por um longo período junto com a organização tribal. Posteriormente, na Atenas democrática, os arcontes – comandantes – passaram a ser designados por eleição, e a função de comando militar do basileus, que remetia à figura do rei divino, limitou-se ao exercício de certas funções sacerdotais. O desaparecimento da figura central do ánax, o rei, abriu espaço para a fragmentação do poder entre os diversos soberanos locais (gene). O poder passou a ser exercido de modo múltiplo, e não mais de modo uno, entre esta nova aristocracia guerreira na Grécia. O combate passou a se dar entre iguais, na forma de disputa oratória na ágora e o Estado – a arché – deixou de ser uma propriedade exclusiva e privada de um senhor, passando a estar ao alcance dos gene e dos demais cidadãos da comunidade. A emergência dessa nova sociedade marcou uma transformação profunda na concepção de poder do homem grego. O estabelecimento da Polis como centro de poder na Grécia, em substituição ao palácio, ressignificou a vida social e o conjunto de relações entre os homens. A palavra tomou centralidade como meio de comando, disputa e domínio sobre outrem. Enquanto que em outrora, a palavra do rei era a única que tinha poder de regular, na polis, as decisões deveriam se resolver na conclusão de debates e através do confronto de discursos com argumentações opostas. Outra característica marcante da Polis foi a publicidade de todos os atos da vida social. Anteriormente, na realeza micênica, os saberes exclusivos dos baseileus com seus ritos religiosos detidos no espaço privado do palácio, eram o que conferiam a eles e ao rei o poder decisório. Contudo, em Atenas, a vida pública dos homens e suas condutas não eram mais conservadas em espaços reservados, como garantia de poder através de práticas misteriosas e mágicas. As ações dos homens passaram a ser expostas e ficaram sujeitas ao debate em espaço público, à desconfiança, às acusações e ao contraditório. Mais uma característica que vale ressaltar foi a expansão da escrita, o novo alfabeto grego, inspirado no alfabeto fenício deixou de ser somente uma técnica exclusiva dos sacerdotes e escribas, utilizada para o controle religioso e econômico da sociedade. A escrita passou a ter amplo uso para divulgação. Consequentemente, este acontecimento permitiu a publicação e fixação de Leis, que antes eram de posse exclusiva do soberano. A ele caberia guardá-las e proferi-las, podendo alterá-las quando quisesse. Deste modo, a lei – o direito – tornou-se bem comum e passou a ser aplicada a todos. Da mesma maneira, o culto religioso que antes era de posse exclusiva dos sacerdotes e seitas passou a ser exposto em plena luz do dia sob a forma escrita, sendo julgado por todos e sujeito ao debate político. Com isso, o poder que antes estava reservado aos sacerdotes foi absorvido pela polis. Os cultos passaram a ser públicos e os símbolos – que conferem proteção divina – deixaram o recesso dos palácios e das residências sacerdotais, passando a ficar na morada do Templo em um espaço público e aberto. Com isso, o próprio conceito de verdade se alterou. Os segredos mágicos e verdadeiros dos sacerdotes, que conferiam ou retiravam a benção dos deuses, passaram a ser expostos aos demais cidadãos. As fórmulas ocultas se despojaram de seu poder religioso e os mistérios mágicos tornaram-se “verdades” que os sábios podiam debater. Neste contexto, os sábios desempenharam um importante papel no desenvolvimento do pensamento grego. Eles se associavam a seitas e ritos na cidade grega, que lhes conferiam uma distinção entre os demais, um acesso ao divino e uma palavra de influência. Neste momento, o nascimento das filosofias ficou marcado pelo limite dos conhecimentos e das incitações entre o privado e o público, entre a distinção que caracterizava poder secreto e divino das seitas e a noção de igualdade, racional e pública da polis. Neste período pós-micênico, o final do século VII a.C. e início e do VI a.C. foi marcado por uma crise de ordem econômica, as relações entre a Grécia e o Oriente só foram reestabelecidas no século VIII a.C. através dos fenícios, e foi a partir do final do século VII a.C. que a economia das cidades da Europa e Ásia voltaram-se para o comércio exterior marítimo. Isso ocorreu devido a necessidade de mais cereais e metais, ocasionada pela expansão demográfica na península grega. Com o tráfico comercial veio o gosto pelo luxo por parte da aristocracia grega (gene) e o desenvolvimento de uma aristocracia artesã do comércio marítimo. Acentuou-se a oposição entre o mundo urbano (en asty), onde residia a nobreza, e rural, das aldeias periféricas (demoi) onde residiam os cidadãos agricultores. É neste contexto que o autor descreve uma nova transformação na mentalidade grega, o estabelecimento da lei (Dike) como norma reguladora de todos e de modo igual (isonomia). Para exemplificar, Vernant explica a mudança na regulação do assassinato após as Reformas de Sólon (sec. VII e VI a.C), na qual, o assassinato deixou de ser ordenado pelo direito hereditário de vingança, concedido à família daquele que foi assassinado, para ser regulado pelo Estado, que ficaria responsável pelo dever de punir (adikia). Desta maneira, o ato do assassino deixaria de ser considerado uma agressão somente a família da vítima, mas, um atentado à coletividade (koinomia). Neste quadro, o autor demonstra como o direito na Grécia nasceu a partir de uma origem mística-religiosa. Os primeiros legisladores eram ao mesmo tempo adivinhos e xamãs, sábios urbanos que realizavam ritos purificadores e ritos de proteção, conselheiros políticos, estrategistas militares e até mesmo embaixadores. Como exemplo, o autor comenta o processo de julgamentos de homicidas, no qual o praticanteera considerado como possesso, um furioso enlouquecido por um mau (daimon) e, para tanto, o legislador realizava uma encantação através da música, como um encantamento mágico que trazia a saúde de volta ao criminoso antes da promulgação das penas opressivas. Desta forma, política e religião se misturavam. Contudo, o nascimento do direito legislativo grego se deu em um movimento de laicização, em um movimento de separação do religioso em direção ao secular, no qual, as aspirações coletivas em contraponto ao espírito particularista dos gene, inseriram-se na realidade social, em um esforço de legislação que remodelou a vida pública e encarnou a instituição judiciária. Assim, o juiz eleito para seu cargo pela ágora em seu papel de árbitro, limitava-se a proferir a vitória diante a prova, através da reconstituição dos acontecimentos, dos testemunhos e da contradição, contribuindo para construção de um conceito de verdade objetiva. Este processo marcou não somente uma profunda transformação no conceito de verdade, mas, pela primeira vez na história, uma separação acentuada entre religião e aquilo que viria a se chamar Estado. Sendo assim, é possível afirmar que o direito jurídico se desenvolveu a partir de uma efervescência religiosa. De modo simultâneo, este período propiciou um conjunto de reflexões morais entre vários grupos sectários na Grécia Antiga. Seitas, ordens e cultos também contribuíram para uma mudança concepção de virtude do grego antigo em contraponto a grandeza e luxúria dos aristocratas. Disseminaram-se pensamentos de repúdio a ostentação e a indiferença dos ricos, e apreço a austeridade na forma de ascetismo, autodisciplina e inibição aos impulsos da carne. Desta forma o homem grego passou a enxergar na riqueza um mau que conduzia a loucura, a ganância e a arrogância. E virtude (areté) se despojou do caráter guerreiro junto com a opulência. A virtude passou a ser vista como o justo meio das coisas, como equilíbrio entre os excessos e a carência. Sintetizada no conceito de sophrosyne. No desenvolvimento desta noção o autor aponta que a “classe média” teve um papel determinante na Grécia antiga. Os mesoi estavam dispostos no conflito entre pobres e aristocratas. Como exemplo, Solón, buscou estabelecer a ordem e as leis e através da distribuição equilibrada (eunomia), uma concepção de igualdade que tomou forma na lei, a dike, uma norma superior que controlava os ambiciosos e estabelecia justiça entre ambas as partes. Desta maneira, a cidade grega formava um conjunto organizado, um cosmos que se tornava harmonioso (homónoia) quando cada um de seus componentes estava em seu lugar e possuía a porção de poder que lhe cabia em função da sua virtude. Um cosmos feito de diversas partes, mantido pela lei numa ordem hierárquica. As relações sociais assimilaram um vínculo contratual e não mais um estatuto de domínio e submissão. A ordem entre pobres e ricos, sobretudo nas trocas e no comércio, passou a ser regida pelo princípio de distribuição igual, exprimindo o teor de reciprocidade. Isso foi possível por uma transformação psicológica das elites, uma conversão moral, na qual os ricos em vez de procurarem poder e riqueza seriam formados por uma educação filosófica (paideia) para não desejarem ter mais, mas ao contrário, por espírito de generoso liberalismo seriam inclinados a dar aos pobres. Assim, as classes baixas seriam mantidas na posição inferior que lhes convinha sem sofrer nenhuma injustiça. Mas como este pensamento racional pode se desenvolver? Vernant explica que as origens do pensamento grego podem ser observadas já no período da Mileto jônica. Os milésios – Tales, Anaximandro, Anaxímenes – foram os primeiros pensadores que desenvolveram uma investigação sistêmica e desinteressada do mundo, sem as cosmogonias e agentes sobrenaturais comuns aos mitos da religião grega. A compreensão do mundo não dependia das histórias dos grandes deuses e suas batalhas, para estes observadores nada existia além da natureza (physis). A origem desta física jônica, que separou mito da razão (logos) é quase inexplicável do ponto de vista da causalidade histórica, por isso é chamada de Milagre grego. A filosofia dos milésios pode ser considerada como uma das origens do pensamento científico, mas, foi muito diferente da ciência moderna, pois, não considerava a necessidade da experimentação. Embora a física jônica tenha se despojado dos mitos de gêneses e dos deuses individualizados, a cosmologia dos jônicos retomou e prolongou temas essenciais dos mitos cosmogônicos dos gregos. As forças ativas da natureza permaneceram como divinas, quando a natureza operava, estava impregnada de sabedoria e justiça, que, por sua vez, eram as mesmas características de Zeus. Desta maneira, o pensamento jônico era dessacralizado na medida em que se afastava da explicação do mundo através de mitos religiosos, através de deuses e heróis, e não se vinculava mais às funções que os mitos desempenharam nos cultos e rituais da sociedade grega. Por isso, é possível perceber que essa filosofia se relaciona diretamente com o universo espiritual da cidade e da polis, caracterizada por uma laicização e uma racionalização da vida social. Os milésios se serviram da concepção do direito grego e projetavam sobre a natureza as concepções de geometria, ordem e lei, da mesma maneira que tinham se servido do mito das forças primordiais para projetar suas cosmologias. Neste sentido, Vernant afirma que as teogonias e as cosmogonias (mito), bem como as cosmologias (física) que as sucederam, comportavam relatos de gêneses e de emergência progressiva de um mundo ordenado – “mitos de soberania”. Esses mitos primordiais, assim como os mitos orientais do Egito e da antiga Babilônia, narravam discursos sobre um “caos” originário e a vitória progressiva da “ordem” sobre o mundo. Histórias sobre a fundação de um poder soberano e estabelecimento de uma monarchia reguladora. Assim, as teogonias gregas criaram relações de hierarquia entre os agentes constituidores do mundo e descreviam como esta ordem foi instituída dramaticamente por um único agente, um deus soberano. Elas também explicaram como o mundo dominado pelo agente permaneceu em equilíbrio através do seu poder, estabelecendo a sua dynastia. Considerando o mito de soberania como modelo de explicação para o mundo na Grécia micênica, é possível afirmar que o desaparecimento da realeza palaciana e da figura centralizadora do rei permitiu o surgimento de novas formas mais autônomas de explicações do cosmos. De certa maneira, este novo cenário preparou o terreno para o surgimento da filosofia e do direito grego, proporcionando a explicação da origem do cosmos através de forças naturais. Dentre os físicos milésios foi Anaximandro quem apresentou melhor um novo esquema cosmológico que marcou a concepção grega do universo. Ele introduziu um novo vocabulário e, partindo da astrologia babilônica, voltou-se para uma astronomia geométrica grega, consagrando uma forma de observação do cosmos sem analogias com mitos. Em sua concepção, a terra foi colocada no centro do universo e, por isso, não precisava estar submetida a nenhuma força que justificasse a sua sustentação. A terra se mantinha fixa em perfeito equilíbrio e simetria com os demais agentes do cosmos, a ordem não estava mais hierarquizada; consistia em um equilíbrio entre potências doravante iguais, nenhuma delas deveria obter domínio definitivo sobre as outras, o que provocaria a ruína do cosmos. Apesar de estarem em equilíbrio, a relação entre as potências não era estática; era recoberta de oposições e conflitos que constituíam sucessões de poder entre os agentes do cosmos, hora dominando, hora cedendo o poder. Em conclusão, a relação entre o advento da Polis e o nascimento da filosofia, em meio a efervescência religiosa do período, resguarda um vínculo estreito uma com a outra. A origem deste “pensamento racional” interliga as estruturas sociaise mentais dos sujeitos que conviviam na cidade grega e expressam como a “jovem ciência” dos jônicos foi precursora da filosofia grega. Desta maneira, Vernant demonstra como suposto o caráter milagroso do surgimento “Razão” grega na verdade esteve conectado ao processo de desenvolvimento da cidade. Foi o surgimento do pensamento político que separou a racionalidade da mitologia religiosa. As concepções de dike, isonomia e isegoria estabeleceram relações recíprocas entre os homens no contexto da polis e orientaram os processos dos seus espíritos. Sendo assim, a filosofia grega pode ser considerada “filha da cidade”.
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