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TRANSTORNOS ALIMENTARES SUMÁRIO 1. Definição ....................................................................... 3 2. Etiopatogenia .............................................................. 4 3. Transtorno da compulsão alimentar periódica (TCAP) ......................................... 5 4. Anorexia nervosa (AN) ............................................ 8 5. Bulimia nervosa (BN)..............................................14 6. Diagnósticos diferenciais ......................................20 7. Tratamento .................................................................20 8. Caso clínico ................................................................28 Referências bibliográficas .........................................29 3TRANSTORNOS ALIMENTARES1. DEFINIÇÃO Os transtornos da conduta alimen- tar (TCA) compreendem um amplo grupo de distúrbios, desde as formas parciais ou subclínicas no trans- torno alimentar sem outra especi- ficação (TASOE) até anorexia ner- vosa (AN), bulimia nervosa (BN) e transtorno da compulsão alimentar periódica (TCAP). Esses transtornos consistem em um grupo de doenças de origem psiquiátrica, sem causa orgânica etiopatologicamente esta- belecida caracterizadas por uma per- turbação persistente na alimentação ou no comportamento relacionado à alimentação que resulta no consumo ou na absorção alterada de alimentos e que compromete significativamen- te a saúde física ou o funcionamento psicossocial. FIGURA 1: TRANSTORNOS DA CONDUTA ALIMENTAR (TCA) TRANSTORNO ALIMENTAR SEM OUTRA ESPECIFICAÇÃO (TASOE) TRANSTORNO DA COMPULSÃO ALIMENTAR PERIÓDICA (TCAP) ANOREXIA NERVOSA (AN) BULIMIA NERVOSA (BN) Fonte: Aula Sanarflix. Os TCA são acompanhados por com- plicações médicas importantes, mor- bidade e altas taxas de mortalidade. São caracterizados por alterações graves do comportamento alimentar, com recaídas frequentes, e podem, em sua evolução, levar a um quadro de “má-nutrição” de grau variável. Muitos dos pacientes apresentam um contexto de preocupação ex- cessiva com a imagem corporal, o que pode acabar sendo um desen- cadeador do desenvolvimento de um hábito alimentar culturalmente não aceito e não explicado por doenças orgânicas. Os critérios diagnósticos dos transtornos alimentares seguem um esquema de classificação que é mutuamente excludente, de manei- ra que, durante um único episódio, apenas um desses diagnósticos pode ser atribuído. A justificativa para tal 4TRANSTORNOS ALIMENTARES conduta é que, apesar de uma série de aspectos psicológicos e compor- tamentais comuns, os transtornos diferem substancialmente em termos de curso clínico, desfecho e necessi- dade de tratamento. SAIBA MAIS! Alguns indivíduos com os transtornos que serão descritos relatam sintomas alimentares se- melhantes aos geralmente apresentados por indivíduos com transtornos por uso de subs- tâncias, como fissura e padrões de uso compulsivo. Essa semelhança pode refletir o envolvi- mento dos mesmos sistemas neurais, incluindo os implicados no autocontrole regulatório e de recompensa, em ambos os grupos de transtornos. Entretanto, as contribuições relativas de fatores compartilhados e distintos no desenvolvimento e na perpetuação de transtornos alimentares e por uso de substância permanecem insuficientemente compreendidos. Os critérios diagnósticos dos trans- tornos alimentares atualmente vigen- tes estão presentes nos principais sistemas classificatórios da Associa- ção de Psiquiatria Americana (APA), o manual diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais, na quarta edição (DSM-IV-TR), e da Organização Mun- dial da Saúde (OMS), na classificação internacional de doenças, na décima revisão (CID-10). 2. ETIOPATOGENIA A etiopatogenia dos TCA é comple- xa e o estabelecimento, bem como a persistência do transtorno, depende da ocorrência de circunstâncias que ativam a vulnerabilidade do indivíduo a fatores de risco e da atuação de fa- tores de proteção. O modelo multifa- torial baseia-se na hipótese de que vários fatores estejam associados na origem, no desenvolvimento e na per- petuação do transtorno. • Fatores predisponentes: fatores genéticos (parentes de primeiro grau); biológicos (anormalidades de neuromoduladores e neuro- transmissores); físicos (obesidade); psicológicos (baixa autoestima, personalidade histriônica, border- line, insatisfação corporal); expe- riências traumáticas na infância; e socioculturais (as chamadas “sín- dromes associadas à cultura” (cul- ture bound syndromes), em que a “magreza” é valorizada); • Fatores precipitantes: dietas; e eventos estressantes (nascimento de um irmão, mudança de esco- la ou cidade, puberdade, eventos que ameaçam o indivíduo); • Fatores mantenedores: distor- ções cognitivas (distorção imagem 5TRANSTORNOS ALIMENTARES corporal); eventos interpessoais, em especial, a dinâmica familiar; e fisiológicos. 3. TRANSTORNO DA COMPULSÃO ALIMENTAR PERIÓDICA (TCAP) A prevalência do TCAP, também cha- mado de transtorno do comer com- pulsivo, é estimada em 2% da popu- lação geral. Pesquisas demonstram que ocorre em cerca de 30% das pes- soas que fazem regimes alimentares com supervisão médica. O transtorno é mais frequente em mulheres (em uma proporção de 1,5 vez maior que nos homens), porém, nos últimos es- tudos, os sexos parecem ter se igua- lado. Em grupos de autoajuda, como dos Comedores Compulsivos Anôni- mos, a prevalência chegou a 71,2%. Os homens com TCAP representam entre 25 e 40 % do total de pacientes. O distúrbio caracteriza-se por episó- dios de ingestão exagerada e com- pulsiva de alimentos pelo menos 2 X/ semana durante 6 meses. No entanto, as pessoas afetadas não produzem a eliminação forçada dos alimentos in- geridos (ou condutas compensatórias inapropriadas, como vômitos e laxan- tes). Pessoas com esse transtorno sentem que perdem o controle quan- do comem. Ingerem grandes quan- tidades de alimentos e não param enquanto não se sentem desconfor- tavelmente cheias ou empanturradas. Figura 2. Transtorno da compulsão alimentar periódica (TCAP). Fonte: Aula Sanarflix. Quadro clínico O quadro clínico do paciente com TCAP é diverso. Pessoas com TCAP, em geral, têm excesso de peso, sen- do propensas a vários problemas mé- dicos graves associados à obesidade, como aumento de colesterol, hiper- tensão arterial e diabete. Indivíduos obesos também têm maior risco de doenças da vesícula biliar, doenças cardíacas e alguns tipos de câncer. Pacientes com esse transtorno têm elevada incidência de outras doenças psiquiátricas concomitantes como transtornos depressivos, ansiedade e fobia social, assim como abuso de álcool e substâncias são observados com frequência nesses pacientes. Critério diagnóstico O paciente com TCAP apresenta al- guns critérios que configuram seu diagnóstico: 6TRANSTORNOS ALIMENTARES • Episódios recorrentes de com- pulsão alimentar. Um episódio de compulsão alimentar é caracteri- zado pelos seguintes aspectos: in- gestão, em um período de tempo determinado (dentro de cada perí- odo de duas horas), de uma quan- tidade de alimento definitivamente maior do que a maioria dos indiví- duos consumiria no mesmo perío- do sob circunstâncias semelhan- tes; sensação de falta de controle sobre a ingestão durante o episó- dio (sentimento de não conseguir parar de comer ou controlar o que e o quanto se está ingerindo); • Os episódios de compulsão ali- mentar estão associados a três (ou mais) dos seguintes aspec- tos: comer mais rapidamente do que o normal; comer até se sentir desconfortavelmente cheio; comer grandes quantidades de alimento na ausência da sensação física de fome; comer sozinho por vergo- nha do quanto se está comendo; sentir-se desgostoso de si mesmo, deprimido ou muito culpado em seguida; • Sofrimento marcante em virtude da compulsão alimentar; • Os episódios de compulsão ali- mentar ocorrem, em média, ao me- nos uma vez por semana durante três meses; • A compulsão alimentarnão está associada ao uso recorrente de comportamento compensatório inapropriado como na bulimia ner- vosa e não ocorre exclusivamente durante o curso de bulimia nervo- sa ou anorexia nervosa. Desenvolvimento e curso Pouco se sabe a respeito do desen- volvimento do transtorno de com- pulsão alimentar. Tanto a compulsão alimentar quanto a perda de controle da ingestão sem consumo objetiva- mente excessivo ocorrem em crian- ças e estão associadas a maior gor- dura corporal, ganho de peso e mais sintomas psicológicos. A compulsão alimentar é comum em amostras de adolescentes e de universitários. A ingestão fora de controle ou a com- pulsão alimentar episódica podem representar uma fase prodrômica dos transtornos alimentares para alguns indivíduos. A prática de fazer dieta segue o desenvolvimento de compul- são alimentar em muitos indivíduos com o transtorno. O transtorno começa, em geral, na adolescência ou na idade adulta jo- vem, mas pode ter início posterior- mente, na idade adulta. Indivíduos com transtorno de compulsão ali- mentar que buscam tratamento cos- tumam ser mais velhos do que aque- les com bulimia nervosa ou anorexia nervosa que buscam tratamento. 7TRANSTORNOS ALIMENTARES As taxas de remissão tanto em estu- dos do curso natural quanto nos de tratamento do transtorno são maio- res para o transtorno de compulsão alimentar do que para bulimia ou anorexia nervosas. O transtorno de compulsão alimentar parece ser re- lativamente persistente, e seu curso é comparável ao da bulimia nervosa em termos de gravidade e duração. A mudança diagnóstica de transtorno de compulsão alimentar para outros transtornos alimentares é incomum. Comorbidades O transtorno de compulsão alimentar está associado a comorbidade psi- quiátrica significativa comparável à da BN e da AN. Os transtornos co- mórbidos mais comuns são transtor- nos bipolares, transtornos depressi- vos, transtornos de ansiedade e, em um grau menor, transtornos por uso de substância. Vale ressaltar que a comorbidade psiquiátrica está ligada à gravidade da compulsão alimentar, não ao grau de obesidade. MAPA: TRANSTORNO DA COMPULSÃO ALIMENTAR PERIÓDICA (TCAP) 1,5x mais comum em mulheres do que nos homens Quadro clínico diverso Episódios de ingestão exagerada pelo menos 1x/ semana durante 6 meses Critério diagnóstico Propensão a vários problemas graves associados à obesidade DM Hipercolesterolemia HAS Doen ças da vesícula biliar Transtornos depressivos Abuso de álcool e substâncias Ansiedade Compulsão alimentar. Sofrimento Ausência de uso recorrente de comportamento compensatório inapropriado 8TRANSTORNOS ALIMENTARES 4. ANOREXIA NERVOSA (AN) A AN se caracteriza pela perda de peso intensa e intencional de forma anormal (pelo menos 15% do peso corporal original) decorrente de uma intensa recusa em manter o peso cor- poral acima do mínimo normal para a idade e distorção da percepção cor- poral. Por isso, costuma vir acom- panhada de comportamentos que envolvem a restrição persistente da ingestão calórica e do ganho de peso. Seu curso é potencialmente crônico, possuindo graves manifestações clí- nicas e psíquicas. A prevalência de AN entre jovens do sexo feminino é de aproximadamen- te 0,4%. Pouco se sabe a respeito da prevalência entre indivíduos do sexo masculino, mas o transtorno é bem menos comum no sexo mascu- lino do que no feminino, com popula- ções clínicas em geral refletindo uma proporção feminino-masculino de aproximadamente 10:1. A AN começa geralmente durante a adolescência ou na idade adulta jo- vem. Raramente se inicia antes da puberdade ou depois dos 40 anos, porém casos de início precoce e tar- dio já foram descritos. O início desse transtorno costuma estar associado a um evento de vida estressante, como deixar a casa dos pais para ingressar na universidade. O curso e o desfecho da anorexia nervosa são altamente variáveis. Indivíduos mais jovens po- dem manifestar aspectos atípicos, in- cluindo a negação do “medo de gor- dura”. Indivíduos mais velhos tendem a ter duração mais prolongada da doença, e sua apresentação clínica pode incluir mais sinais e sintomas de transtorno de longa data. Os clínicos não devem excluir anorexia nervosa do diagnóstico diferencial com base apenas em idade mais avançada. Muitos indivíduos apresentam um pe- ríodo de mudança no comportamen- to alimentar antes de preencherem todos os critérios para o transtorno. Alguns se recuperam inteiramente depois de um único episódio, alguns exibem um padrão flutuante de ganho de peso seguido por recaída, e outros ainda experienciam um curso crônico ao longo de muitos anos. A hospita- lização pode ser necessária para re- cuperar o peso e tratar complicações clínicas. A maioria dos indivíduos com AN sofre remissão dentro de cinco anos depois da manifestação inicial do transtorno. Entre os admitidos ao hospital, as taxas de remissão podem ser menores. A taxa bruta de morta- lidade para AN é de cerca de 5% por década, sendo que a morte resulta mais comumente de complicações clínicas associadas ao próprio trans- torno ou de suicídio. 9TRANSTORNOS ALIMENTARES O risco de suicídio é elevado na ano- rexia nervosa, com taxas de 12 por 100.000 por ano. A avaliação abran- gente de indivíduos com anorexia nervosa deve incluir a determinação de ideação e comportamentos suici- das, bem como de outros fatores de risco para suicídio, incluindo história de tentativa(s) de suicídio. DICA DE FILME: Lançado pela platafor- ma Netflix em março de 2017, o filme “O Mínimo para Viver” (ou To The Bone, em inglês) dirigido por Marti Noxon, que levanta discussões sobre os transtor- nos alimentares e seu impacto para na saúde e nas relações sociais. O longa mostra as dificuldades e consequências que a bulimia e anorexia podem trazer à vida de alguém pelos olhos de Ellen (Lilly Collins), personagem principal, apresen- tando o espectador aos diversos confli- tos mentais e às inúmeras idas e vindas de clínicas de reabilitação. Quadro clínico Os principais sintomas envolvem as mudanças no comportamento ali- mentar, como persistente restrição de consumo energético, importan- te medo de ganhar peso ou de ficar gordo, comportamento que evite o ganho de peso, percepção distorcida da imagem corporal (de todo o corpo ou de áreas específicas, como quadril ou abdome). Tais sintomas costumam vir acompanhados de uma incansável perseguição pela magreza, preocu- pação obsessiva com comida, medo de certos alimentos, cardápio restri- to, preferência por alimentos pouco calóricos, superestimar o número de calorias consumidas, rituais associa- dos à alimentação (ex.: separar os alimentos por cores), medo de comer em público, isolamento social, rituais FLUXOGRAMA: MECANISMO MULTIFATORIAL NA GÊNESE DA ANOREXIA NERVOSA Sexo feminino Hereditariedade Baixa autoestima Dificuldade em expressar emoções Restrição alimentar Separação e perda Alterações na dinâmica familiar Partida da casa da família Proximidade da menarca Alterações neuroendócrinas Distorção da imagem corporal Purgação Alta emoção expressa Fatores precipitantes Fatores mantenedores Fatores predisponentes Fatores de vulnerabilidade à anorexia nervosa Anorexia nervosa Fonte: Neto, MRL. et al. Psiquiatria básica. Porto Alegre: Artmed. 2 ed., 2007. 10TRANSTORNOS ALIMENTARES envolvendo atividades físicas, inquie- tude ou hiperatividade e dificuldade para aderir ao tratamento (e ganho de peso). Figura 3. Anorexia nervosa (AN). Fonte: Aula Sanarflix. Conforme o comportamento alimen- tar se modifica e a preocupação com o peso se torna mais intensa, também cresce o grau de comprometimento social, profissional, acadêmico etc. Havendo melhora do quadro, tanto as complicações clínicas como funcionais tendem a reduzir progressivamente. Muitos pacientes com AN acabam de- senvolvendo uma supressão do eixo hipotálamo-hipófise-gonadal (HHG), que pode ser refletido através de sin- tomascomo amenorreia e azoospe- mia. Se presente, a amenorreia cos- tuma ser consequência da perda de peso, porém, em uma minoria dos in- divíduos, ela pode, na verdade, pre- ceder a perda de peso. Além disso o paciente pode desenvolver quadros de hipoglicemia, hipercolesterolemia, bradicardia, arritmia, constipação, dor abdominal, hipotireoidismo crônico com relato de intolerância ao frio e fa- diga, alopecia, anemia, leucopenia e osteopenia. Critérios diagnósticos O paciente com AN apresenta al- guns critérios que configuram seu diagnóstico: • Restrição da ingesta calórica em relação às necessidades, levando a um peso corporal significativa- mente baixo (inferior ao peso míni- mo normal/minimamente espera- do) no contexto de idade, gênero, trajetória do desenvolvimento e saúde física; • Medo intenso de ganhar peso ou de engordar, ou comportamento persistente que interfere no ga- nho de peso, mesmo estando com peso significativamente baixo; • Perturbação no modo como o pró- prio peso ou a forma corporal são vivenciados, influência indevida do peso ou da forma corporal na auto- avaliação ou ausência persistente de reconhecimento da gravidade do baixo peso corporal atual. Subtipos A AN pode apresentar dois tipos: a sua forma restritiva, ou seja, em que o paciente deixa de comer (perda de peso conseguida essencialmente por meio de dieta, jejum e/ou exercício 11TRANSTORNOS ALIMENTARES excessivo); e a sua forma purgativa, que corresponde a maioria dos casos e consiste em comportamentos pur- gativo por meio de vômitos auto in- duzidos ou uso indevido de laxantes, diuréticos ou enemas. A alternância entre os subtipos ao longo do curso do transtorno não é incomum; por- tanto, a descrição do subtipo deverá ser usada para indicar os sintomas atuais, e não o curso longitudinal. Gravidade atual O nível mínimo de gravidade baseia- -se, em adultos, no índice de massa corporal (IMC) atual ou, para crianças e adolescentes, no percentil do IMC. Os intervalos abaixo são derivados das categorias da Organização Mun- dial da Saúde (OMS) para baixo peso em adultos; para crianças e adoles- centes, os percentis do IMC corres- pondentes devem ser usados. O nível de gravidade pode ser aumentado de maneira a refletir sintomas clínicos, o grau de incapacidade funcional e a necessidade de supervisão. • Leve: IMC ≥ 17 kg/m2; • Moderada: IMC 16-16,99 kg/m2; • Grave: IMC 15-15,99 kg/m2; • Extrema: IMC < 15 kg/m2. Marcadores diagnósticos As seguintes anormalidades labo- ratoriais podem ser observadas na anorexia nervosa; sua presença pode servir para aumentar a confiabilidade diagnóstica. • Hematologia: é comum haver leu- copenia, com a perda de todos os tipos de células, mas habitualmen- te com linfocitose aparente. Pode haver anemia leve, bem como trombocitopenia e, raramente, pro- blemas de sangramento. • Bioquímica: a desidratação pode refletir-se por um nível sanguíneo elevado de ureia. A hipercoles- terolemia é comum. Os níveis de enzimas hepáticas podem estar elevados. Hipomagnesemia, hipo- zincemia, hipofosfatemia e hipera- milasemia são ocasionalmente ob- servadas. Vômitos autoinduzidos podem levar a alcalose metabólica (nível sérico elevado de bicarbo- nato), hipocloremia e hipocalemia; o uso indevido de laxantes pode causar acidose metabólica leve. • Endocrinologia: os níveis séri- cos de tiroxina (T4) geralmente se encontram na faixa entre normal e abaixo do normal; os níveis de tri-iodotironina (T3) estão dimi- nuídos, enquanto os níveis de T3 reverso estão elevados. Os níveis séricos de estrogênio são baixos no sexo feminino; já no masculino, os níveis séricos de testosterona são baixos. 12TRANSTORNOS ALIMENTARES • Eletrocardiografia (ECG): é co- mum a presença de bradicardia sinusal, e, raramente, arritmias são observadas. O prolongamento sig- nificativo do intervalo QTc é obser- vado em alguns indivíduos. • Massa óssea: com frequência se observa densidade mineral óssea baixa, com áreas específicas de osteopenia ou osteoporose. O ris- co de fratura é significativamente maior. • Eletrencefalografia: anormalida- des difusas, refletindo encefalopa- tia metabólica, podem resultar de desequilíbrios hídrico e eletrolítico significativos. Comorbidade Transtornos bipolares, depressivos e de ansiedade em geral ocorrem con- comitantemente com anorexia ner- vosa. Muitos indivíduos com anorexia nervosa relatam a presença de um transtorno de ansiedade ou de sin- tomas previamente ao aparecimento de seu transtorno alimentar. O TOC é descrito em alguns indivíduos com anorexia nervosa, especialmente na- queles com o tipo restritivo. O trans- torno por uso de álcool e outras subs- tâncias pode também ser comórbido à anorexia nervosa, sobretudo entre aqueles com o tipo compulsão ali- mentar purgativa. 13TRANSTORNOS ALIMENTARES MAPA: ANOREXIA NERVOSA (AN) Incansável perseguição pela magreza Superestimar calorias consumidas Rituais envolvendo atividades físicas Inquietude ou hiperatividade Hipoglicemia Azoospemia Amenorreia Dor abdominal Bradicardia/Arritmia Intolerância ao frio/ Fadiga Hipercolesterolemia Alopecia Osteopenia Restritivo Purgativo Restrição da ingesta calórica em relação às necessidades Medo intenso de ganhar peso ou de engordar Perturbação no modo como o próprio peso ou a forma corporal Leve: IMC ≥ 17 kg/m2 Moderada: IMC 16-16,99 kg/m2 Grave: IMC 15-15,99 kg/m2 Extrema: IMC < 15 kg/m2 Quadro clínico Subtipos Critério diagnóstico Gravidade Perda de peso intensa e intencional de forma anormal (pelo menos 15% do peso corporal original) Início associado a um evento de vida estressante Proporção mulher-homem (10:1) Começa geralmente durante a adolescência ou na idade adulta jovem Risco elevado de suicídio 14TRANSTORNOS ALIMENTARES 5. BULIMIA NERVOSA (BN) Na BN observamos períodos de grande ingestão alimentar (episódios bulímicos), ou seja, consumo de gran- de quantidade de alimentos em um curto período de tempo. Esse período é seguido de episódios compensató- rios de descontrole sobre o compor- tamento alimentar (vômitos, diarreia, exercício excessivo) A bulimia guarda semelhanças com a anorexia, como o medo de ganhar peso e o nível de insatisfação com o próprio corpo. Por isso, devemos ex- cluir a anorexia para fazermos o diag- nóstico de bulimia. A incidência de BN é de 13 para 100 mil habitantes por ano, com prevalência entre 0,5- 4% da população, sendo maior no sexo feminino (3:1). A prevalência é maior entre adultos, já que o transtor- no atinge seu pico no fim da adoles- cência e início da idade adulta (cer- ca de 18-20 anos). FIGURA 4: CICLO VICIOSO DO PACIENTE BULÍMICO RESTRIÇÃO CALÓRICA SENTIMENTO DE CULPA E PURGAÇÃO CONSUMO COMPULSIVO DE ALIMENTOS Fonte: Aula Sanarflix. Quadro clínico Indivíduos com bulimia nervosa es- tão geralmente dentro da faixa nor- mal de peso ou com sobrepeso. Pos- suem grande medo de engordar, não havendo necessariamente o desejo de emagrecer. Costumam ser muito preocupados com a aparência, com a imagem corporal ou com o quanto são sexualmente atraentes. Para que o diagnóstico seja estabelecido, a com- pulsão alimentar e os comportamen- tos compensatórios inapropriados devem ocorrer no mínimo 1x/semana, por 3 meses. Também cabe avaliar se o paciente apresentou episódio de AN anteriormente, pois essa situação pode ser observada em até 50% dos pacientes bulímicos. É comum que esses pacientes tam- bém sofram com uma desregulação emocional, dificuldades para a toma- da de decisões e que se submetam a auto injúrias, assim como, desenvol- va uma dificuldade de socialização e respostas impulsivas. Complicações 15TRANSTORNOS ALIMENTARES clínicas costumam ocorrer em de- corrência do quadro, sendo algumas delas: • Pele e anexos: calosidade no dor- so da mão por escoriação dentária (sinal de Russell); retração gengi- val; erosão do esmalte dentário; cáries; hipertrofia de glândulaspa- rótidas em decorrência de vômitos, podendo ter aumento da fração salivar da amilase; • Sistema gastrointestinal: dor ab- dominal; dispepsia; gastrite; esofa- gite; erosões gastroesofágicas/sín- drome de Mallory-Weiss; doença do refluxo gastroesofágico (DRGE); hérnia de hiato; metaplasia de Bar- ret; sangramentos; ruptura do esô- fago; obstipação; síndrome de có- lon irritável; prolapso retal; • Sistema metabólico: desidrata- ção; alterações hidroeletrolíticas (hipocalemia); • Sistema reprodutivo: risco de aborto espontâneo; irregularida- de menstrual; parto cesáreo; de- pressão pós-parto; baixo peso em recém-nascido; • Sistema cardiovascular: altera- ções no ECG e arritmias cardíacas; • Outros: hipertrofia de parotídea, hipotensão e desmaios. Figura 5. Bulimia nervosa (BN). Fonte: Aula Sanarflix. Figura 6. Erosão dentária. Fonte: Aula Sanarflix. Figura 7: Sinal de Russel. Fonte: Aula Sanarflix. 16TRANSTORNOS ALIMENTARES Figura 8: Hipertrofia parotídea. Fonte: Aula Sanarflix. Critérios diagnósticos Deve ser realizada uma boa anamne- se, além de exames físico e psíquico. Por terem vergonha de seus compor- tamentos, os pacientes podem omitir informações na consulta, sendo ne- cessárias várias entrevistas para uma boa avaliação. Familiares ou acompa- nhantes podem dar informações adi- cionais que auxiliam no diagnóstico. Para se estabelecer o diagnóstico, al- guns critérios devem estar presentes: • Episódios recorrentes de compul- são alimentar; • Comportamentos compensatórios inapropriados recorrentes a fim de impedir o ganho de peso, como vô- mitos auto induzidos; uso indevido de laxantes, diuréticos ou outros medicamentos; jejum; ou exercício em excesso; • A compulsão alimentar e os com- portamentos compensatórios inapropriados ocorrem, em média, no mínimo uma vez por semana durante três meses; • A autoavaliação é indevidamen- te influenciada pela forma e pelo peso corporais; • A perturbação não ocorre exclu- sivamente durante episódios de anorexia nervosa. Gravidade atual O nível mínimo de gravidade baseia- -se na frequência dos comportamen- tos compensatórios inapropriados. O nível de gravidade pode ser elevado de maneira a refletir outros sintomas e o grau de incapacidade funcional. • Leve: média de 1 a 3 episódios de comportamentos compensatórios inapropriados por semana. • Moderada: média de 4 a 7 episó- dios de comportamentos compen- satórios inapropriados por semana. • Grave: média de 8 a 13 episódios de comportamentos compensató- rios inapropriados por semana. • Extrema: média de 14 ou mais comportamentos compensatórios inapropriados por semana. Marcadores diagnósticos Não existe, atualmente, teste diagnós- tico específico para BN. Entretanto, 17TRANSTORNOS ALIMENTARES diversas anormalidades laboratoriais podem ocorrer em consequência da purgação e aumentar a certeza diag- nóstica, incluindo anormalidades eletrolíticas, como hipocalemia (que pode provocar arritmias cardíacas), hipocloremia e hiponatremia. A per- da de ácido gástrico pelo vômito pode produzir alcalose metabólica (nível sérico de bicarbonato elevado), e a in- dução frequente de diarreia ou desi- dratação devido a abuso de laxantes e diuréticos pode causar acidose me- tabólica. Alguns indivíduos com BN exibem níveis ligeiramente elevados de amilase sérica, provavelmente re- fletindo aumento na isoenzima salivar. O exame físico geralmente não revela achados físicos. Entretanto, a inspe- ção da boca pode revelar perda sig- nificativa e permanente do esmalte dentário, em especial das superfícies linguais dos dentes da frente devido aos vômitos recorrentes. Esses den- tes podem lascar ou parecer desgas- tados, corroídos e esburacados. A frequência de cáries dentárias tam- bém pode ser maior. Em alguns indivíduos, as glândulas salivares, sobretudo as glândulas pa- rótidas, podem ficar hipertrofiadas. Indivíduos que induzem vômitos es- timulando manualmente o reflexo de vômito podem desenvolver calos ou cicatrizes na superfície dorsal da mão pelo contato repetido com os dentes. Comorbidade A comorbidade com transtornos mentais é comum em indivíduos com BN. Existe uma frequência maior de sintomas depressivos (sentimentos de desvalia) e transtornos bipolares e depressivos (sobretudo transtornos depressivos) nesses indivíduos. Em muitos, a perturbação do humor co- meça concomitantemente ou em se- guida ao desenvolvimento de BN, e os indivíduos afetados muitas vezes atribuem suas perturbações do hu- mor a esse transtorno. Entretanto, em algumas pessoas, a perturbação do humor claramente precede o desen- volvimento de BN. Pode haver tam- bém frequência maior de sintomas de ansiedade (medo de situações sociais) ou transtornos de ansiedade. Essas perturbações do humor e an- siedade com frequência cedem de- pois do tratamento efetivo para BN. A prevalência ao longo da vida de uso de substâncias, particularmente álco- ol ou estimulantes, é de pelo menos 30% entre indivíduos com bulimia nervosa. O uso de estimulantes co- meça com frequência como uma ten- tativa de controlar o apetite e o peso. Uma porcentagem substancial de indivíduos com bulimia nervosa tam- bém apresenta aspectos da persona- lidade que satisfazem os critérios de um ou mais transtornos da personali- dade, com mais frequência transtorno da personalidade borderline. 18TRANSTORNOS ALIMENTARES DIFERENÇAS CLÍNICAS ENTRE ANOREXIA NERVOSA E BULIMIA NERVOSA ANOREXIA NERVOSA BULIMIA NERVOSA Menor frequência de vômitos Vômitos auto induzidos Perda de peso grave Menor perda de peso, peso normal ou acima do normal Distorção da imagem corporal grave Distorção da imagem, quando existe, é menos acentuada Mais jovens Um pouco mais velhos Negam fome Referem fomo Mais introvertidos Mais extrovertidos Comportamento alimentar considerado normal pelo paciente, e o desejo de controle de peso, justo e adequado O comportamento é motivo de vergonha, culpa e há desejo de ocultá-lo Sexualmente inativos Mais ativos sexualmente Amenorreia Menstruação varia de irregular à normalidade Traços obsessivos de personalidade podem estar presentes Traços histriônicos e boderline podem estar presentes Comorbidades com doenças afetivas e transtornos de ansiedade Comorbidades com doenças afetivas e abuso de substâncias Impulsividade no subtipo purgativo Impulsividade Tabela 1. Diferenças clínicas entre anorexia nervosa e bulimia nervosa. Fonte: Neto, MRL. et al. Psiquiatria básica. Porto Alegre: Artmed. 2 ed., 2007. 19TRANSTORNOS ALIMENTARES MAPA: BULIMIA NERVOSA (BN) Períodos de grande ingestão alimentar seguido de episódios compensatórios no mínimo 1x/semana durante 3 meses Pico no fim da adolescência e início da idade adulta (18-20 anos) Quadro clínico Gravidade Critério diagnóstico Episódios recorrentes de compulsão alimentar Comportamentos compensatórios inapropriados recorrentes Autoavaliação indevidamente influenciada pela forma e pelo peso corporais A perturbação não ocorre exclusivamente durante episódios de anorexia nervosa Extrema: média de 14 ou mais comportamentos compensatórios inapropriados por semana Grave: média de 8 a 13 episódios de comportamentos compensatórios inapropriados por semana Moderada: média de 4 a 7 episódios de comportamentos compensatórios inapropriados por semana Leve: média de 1 a 3 episódios de comportamentos compensatórios inapropriados por semana Arritmia Hipertrofia de parotídea Irregularidade menstrual Hipotensão/Desmaio Erosão dentária Desidratação Dor abdominal Hipocalemia Sinal de Russell 20TRANSTORNOS ALIMENTARES 6. DIAGNÓSTICOS DIFERENCIAIS Na AN, o diagnóstico diferencial é fei- to com outras enfermidades que le- vam a perdas de peso importantes, como doenças caquetizantes (câncer, Aids), tumores do sistema nervoso central (SNC), infecções agudas ou crônicas, síndrome de má-absorção intestinal, diabete, hipertireoidismo e patologias psiquiátricas como de- pressãoe esquizofrenia. Na BN, é fei- to com a anorexia do tipo compulsivo/ purgação, assim como com pacientes que apresentam vômitos psicogêni- cos, doenças do trato digestivo alto, diabete, hipertireoidismo, tumores hi- potalâmicos e epilepsia. No TCAP, o diagnóstico diferencial deve ser feito com doenças como BN, hipotireoidis- mo, síndrome do comer noturno e pa- tologias psiquiátricas (transtorno de- pressivo maior, transtorno obsessivo compulsivo e transtorno de ansieda- de generalizada), entre outras. 7. TRATAMENTO A complexa etiopatogenia multifato- rial dos distúrbios alimentares leva à necessidade de uma abordagem in- tegral de tratamento com enfoque interdisciplinar. O acompanhamento terapêutico com médico, nutrólogo, endocrinologista, psiquiatra, gastro- enterologista, nutricionista e psicólo- go integram-se a todo momento e as avaliações nessas áreas devem ser feitas periodicamente, já que confi- guram doenças evolutivas e de curso crônico. Considera-se imprescindível que o paciente forme um bom víncu- lo terapêutico com o profissional, de modo que ele possa aceitar as orien- tações em relação a estado clínico e complicações, bem como aprender a lidar com as expectativas referentes ao tratamento. Em alguns casos, o paciente pode carecer de uma abordagem mais in- cisiva e de caráter hospitalar. Dentro das indicações de hospitalização para AN, podem ser considerados pacien- tes com perda de peso rápida e con- tínua do peso corporal (mais de 30% em 3 meses); IMC abaixo de 13,5 kg/ m2, hipopotassemia (K+ inferior ou igual a 2,5 mEq/L), crianças ou ado- lescentes com instabilidade metabó- lica (hipoglicemia, hipotensão arterial, bradicardia), rede de suporte social instável e emergências psiquiátricas. Algumas das indicações para inter- nação na BN são as consequências dos distúrbios hidroeletrolíticos pro- vocados pelos sintomas purgativos (arritmia, convulsões etc.) e as tenta- tivas de suicídio, entre outras. Psicoterapia A desnutrição persistente do paciente com AN pode gerar sintomas psicoló- gicos de natureza orgânica, de modo que muitos transtornos psicológicos podem ser consequência de uma 21TRANSTORNOS ALIMENTARES manifestação de fome. Assim, até que a boa nutrição seja restabelecida, o paciente pode encontrar dificuldade para assimilar e processar novas in- formações da psicoterapia. Propõe-se que a abordagem psicoterápica seja individual e/ou em grupo, com parti- cipação ativa da família desde o início do tratamento, incluindo uma com- binação de abordagens – técnicas cognitivo-comportamentais (TCC), psicoeducacionais e psicodinâmi- cas. Recomenda-se trabalhar com a temática da distorção da imagem cor- poral, a fim de se buscar desenvolver uma nova forma de aceitação em re- lação ao próprio corpo sem necessi- dade de descontrole e restrição. A TCC constitui a primeira linha de psicoterapia, sendo a intervenção que tem sido mais estudada e com maiores evidências de eficácia na BN. Ela age no conjunto de crenças distorcidas e disfuncionais determinantes para o desenvolvimento e a manutenção dos transtornos alimentares. Apesar da boa aceitação da TCC, a remissão dos episódios compulsivos alimentares e de purgação no final do tratamento acontece em 30 a 40% dos casos. A TCC modificada, interpessoal e, mais recentemente, a terapia compor- tamental dialética foram associadas à redução da frequência dos episódios de compulsão alimentar e abstinência durante o tratamento ativo. No entan- to, durante o período de seguimento, os resultados decaem. De modo geral, as intervenções psicológicas não de- monstram resultados clinicamente re- levantes na perda do peso. Terapia nutrológica As estratégias que devem ser utili- zadas na terapia nutrológica são a educação alimentar, com a alimen- toterapia correspondente, e a reabi- litação do estado nutricional. A edu- cação alimentar deve ser uma das primeiras estratégias propostas, pois pode regularizar ou atenuar o dese- quilíbrio hormonal e psicológico que a alimentação caótica produz sobre os sintomas homeostáticos. A ali- mentação normal e adequada leva à recuperação da função essencial do hipotálamo como transdutor dos es- tímulos sensoriais e metabólicos, co- ordenando a resposta em forma de uma conduta alimentar normal. A alimentoterapia deve ser individual, pessoal e adequada a cada paciente. O plano de alimentação depende do tipo de transtorno alimentar, do grau, do momento evolutivo e das complica- ções ou comorbidades e auxilia na cria- ção de hábitos alimentares novos que favoreçam a conservação da saúde. Anorexia nervosa Na AN, sempre existe baixo peso e a avaliação do estado clínico permite de- cidir se é possível realizar o tratamen- to ambulatorial que frequentemente 22TRANSTORNOS ALIMENTARES está indicado quando o peso atual do paciente está até 20% abaixo do es- perado. Primeiro é necessário deter o emagrecimento para, depois, ir au- mentando gradativamente o peso até um peso saudável e, por último, man- ter um padrão de alimentação normal. A educação alimentar compreende: os conceitos de alimentação saudá- vel, grupos, funções e fontes de ali- mentos; hábitos alimentares corretos; as recomendações nutricionais; o lo- cal, as situações e os acompanhantes; os erros conceituais e mitos popu- lares relacionados aos alimentos; as consequências da restrição alimentar, purgações e episódios compulsivos alimentares. Para facilitar a educação alimentar, utiliza-se a pirâmide alimentar, que auxilia na decisão da escolha dos ali- mentos (privilegiando os grupos que o paciente precisa incorporar). Os di- ários alimentares, instrumentos de autoavaliação, auxiliam ao iniciar a alimentoterapia e são solicitados para avaliar também o progresso e o prog- nóstico dos pacientes. Quando as metas de ganho de peso não são atingidas, ou os pacientes não conseguem se alimentar por via oral, discute-se sobre a alimentação por sonda, que deve ser reservada a casos mais graves e refratários ao tratamento. Nesses casos, os obje- tivos se mantêm e os cuidados para não se promover ganho excessivo de peso devem estar presentes. Já a nutrição parenteral total é restrita aos casos em que o paciente está em es- tado nutricional grave, com potencial risco de vida. Uma realimentação rápida por sonda nasogástrica (nutrição enteral) leva à retenção aguda de fluidos e hipofos- fatemia com depleção dos depósitos corporais de fósforo associado a au- mento da demanda metabólica, po- dendo aparecer situações de maior risco, como arritmia cardíaca e falha cardíaca. A síndrome de realimentação tam- bém acontece quando a terapia nutri- cional é introduzida em pacientes que ficaram muito tempo em jejum, prin- cipalmente em pacientes gravemente desnutridos. Caracteriza-se por de- sidratação hidroeletrolítica, disfunção hepática, hiperglicemia e insuficiência respiratória, entre outros. Bulimia nervosa Na BN, os objetivos da terapia nutro- lógica devem diminuir os episódios de compulsão alimentar através de educação alimentar, com um padrão regular de refeições e alimentação adequada. Qualquer alteração de peso deve ocorrer como resultado da normalização da alimentação e da eli- minação das compulsões. A alimentoterapia deve ser individu- al, personalizada e adequada a cada 23TRANSTORNOS ALIMENTARES paciente. As recomendações de ma- cronutrientes, carboidratos, proteínas e gorduras devem ser semelhantes às da população geral e a reposição de micronutrientes deve ser feita considerando os desequilíbrios hidro- eletrolíticos provocados pelos meca- nismos de purgação utilizados como conduta compensatória dos episó- dios de compulsão alimentar. Os pa- cientes podem apresentar também baixas concentrações de zinco e ferro pelo inadequado consumo de alimen- tos. Os sintomas de desidratação e do desequilíbrio eletrolítico são tratados por meio de realimentação e hidrata- ção. Suplementos alimentares podem ser utilizados em alguns casos.Os caracteres físicos da alimentação dependem do momento evolutivo do transtorno e do peso apresentado pelo paciente. O fracionamento da alimentação em seis refeições diárias proporciona saciedade ao pacien- te e auxilia na parada da compulsão alimentar periódica. Em relação aos resíduos, é importante aumentar as fibras insolúveis em água para evitar a constipação intestinal. Os produtos light ou dietéticos são desaconselha- dos, sendo importante obter um novo padrão alimentar e sem restrição ca- lórica. Para favorecer a saciedade, são utilizados vegetais crus, que também contêm vitaminas e minerais (Na, K), assim como frutas, que, se consumi- das cruas e inteiras, possuem fibras, vitaminas e minerais, além de água. Aconselha-se o paciente a realizar as refeições em companhia de amigos ou familiares para aprender a comer respeitando horários e evitar as res- trições de alimentos. Os diários ali- mentares são utilizados para autoa- valiação das comidas, dos excessos alimentares periódicos e das condu- tas compensatórias, assim como do estado emocional. É interessante combinar com o pa- ciente e sua família que, nessa pri- meira etapa, se trabalhará na ree- ducação das condutas alimentares, aumentando o consumo de uma va- riedade de alimentos e minimizando a restrição de comidas. Nessa etapa, o paciente também deve aprender a fazer uma alimentação equilibrada e a praticar exercícios de forma saudá- vel e não excessiva Transtorno da compulsão alimentar periódica Obesos com TCAP são frequente- mente encontrados em programas para perda de peso e lá recebem tra- tamento igual ao de um obeso sem compulsão alimentar. Nesses pacien- tes, as dietas de muito baixas calorias empregadas junto à terapia de con- duta são efetivas em reduzir o episó- dio de compulsão alimentar durante o período de jejum, porém são menos efetivas durante a realimentação. Nos últimos anos, apareceram novas alternativas de tratamento para os 24TRANSTORNOS ALIMENTARES pacientes com TCAP, que não se ba- seiam na perda de peso como único objetivo, mas em melhores nutrição e saúde, aumento do movimento físico, auto aceitação e melhora da imagem corporal. Pacientes com histórias de perda de peso e ganho posterior (“efeito iô-iô”), assim como pacientes cujo quadro de episódios de excessos alimentares começou cedo em suas vidas, podem se beneficiar mais, se- guindo um programa que focalize a diminuição dos episódios compulsi- vos e não a perda de peso. A orientação é parecida com a da BN (que apresenta peso elevado) e deve centrar-se, inicialmente, na di- minuição da frequência de compul- são alimentar e, posteriormente, no emagrecimento. É importante tomar cuidado ao oferecer planos alimenta- res com restrições calóricas, porque podem aumentar mais o descontrole. A base da orientação nutricional deve ordenar e distribuir regularmente as refeições ao longo do dia. No come- ço, devem-se evitar os alimentos que desencadeiam o ataque ou binge (fe- nômeno de gatilho). Existe um risco elevado de que obesos com esse dis- túrbio alimentar interrompam o trata- mento e ganhem peso quando sub- metidos a dieta alimentar rigorosa. Terapia farmacológica A terapia farmacológica, em geral, tem sido utilizada como coadjuvante do tratamento multidisciplinar. Os fár- macos também são utilizados com o objetivo de tratamento das complica- ções e comorbidades observadas. Na AN, muitos sintomas tendem a desaparecer quando o paciente vol- ta a ter um peso normal. Os medi- camentos psicotrópicos não devem ser utilizados como primeiro ou úni- co tratamento. Os antidepressivos usados na AN mostram resultados controversos e desanimadores. Os tricíclicos e a fluoxetina, um inibidor seletivo da recaptação de serotoni- na (ISRS), podem beneficiar alguns pacientes, como na AN do tipo com- pulsão periódica/purgação. Todavia, deve-se tomar cuidado ao prescrever medicamentos como antipsicóticos e antidepressivos tricíclicos, pois existe a possibilidade de efeitos colaterais e toxicidade em função da mudança da composição corporal pela desnutri- ção presente nesse tipo de paciente. A terapêutica farmacológica é utili- zada para o tratamento dos quadros associados, como transtorno de per- sonalidade obsessivo-compulsiva, depressão e transtornos de ansieda- de. No passado, a fluoxetina foi asso- ciada a melhor manutenção do peso, assim como de menores sintomas de depressão. Recentemente, porém, as expectativas em relação à sua utiliza- ção após a recuperação do peso do paciente, na prevenção das recaídas e durante o ano seguinte à recupera- ção do peso foram diminuídas a partir 25TRANSTORNOS ALIMENTARES de um amplo e completo estudo que observou resultados negativos. Contudo, existem evidências, segun- do a APA (2006), de que a olanzapi- na 2,5 mg/dia VO (dose máxima: 10 mg/dia), um antipsicótico de segunda geração, pode promover o ganho de peso em adultos, assim como a me- lhora de outros sintomas associados. A ideia é que, ao se diminuírem as distorções cognitivas e os sintomas de ansiedade, a resistência ao ganho de peso também diminua. No entan- to, são necessários novos e melhores estudos para avaliar também os efei- tos colaterais, como um potencial au- mento do intervalo QT com risco de arritmia cardíaca. Outros medicamen- tos úteis na sintomatologia digestiva são os que estimulam o esvaziamen- to gástrico, como a metoclopramida e a domperidona. Na BN, os antidepressivos são efe- tivos como parte do programa inicial de tratamento para a maioria dos pacientes. Várias classes de antide- pressivos (tricíclicos, ISRS, inibidores da MAO e trazodona) mostraram-se efetivas em reduzir os sintomas de compulsão alimentar e purgações, assim como em ajudar na prevenção das recaídas. Entretanto, os ISRS são mais seguros, podendo ser especial- mente úteis quando existem sinto- mas de depressão, ansiedade, obses- sões e certos sintomas de desordem impulsiva. A única medicação para BN aprovada pelo Food and Drug Administration (FDA) é a fluoxetina 20 mg/dia VO (dose máxima: 80 mg/ dia), sendo a mais estudada até hoje e com dose efetiva maior que para depressão (60 mg/dia). A fluoxetina age nos sintomas da BN, como epi- sódios de compulsão alimentar e nos comportamentos compensatórios, e na diminuição da ansiedade e da de- pressão. Recomenda-se continuar o tratamento antidepressivo por um mínimo de 9 meses e provavelmen- te por 1 ano na maioria dos pacientes com BN. Outros antidepressivos (ISRS), prin- cipalmente a sertralina 25 ou 50 mg/ dia VO (dose máxima: 200 mg/dia), também são usados quando a fluoxe- tina não é eficaz ou bem tolerada. Na fase de manutenção, alguns estudos indicam que a fluoxetina reduz o ris- co de recaída. O topiramato também pode ser efetivo na redução de sin- tomas bulímicos e purgação, porém a segurança dessa medicação ainda necessita ser bem estabelecida nes- sa doença. Nos pacientes com TCAP, são utili- zados os antidepressivos ISRS, como fluoxetina, fluvoxamina 50 mg/dia VO (dose máxima: 300 mg/dia) e sertra- lina, embora os resultados dos estu- dos, até hoje, demonstrem eficácia apenas nas primeiras semanas de tratamento. Eles promovem uma re- dução na frequência de compulsão alimentar sem ocorrer perda de peso significativa. É importante destacar 26TRANSTORNOS ALIMENTARES também que nos estudos envolvendo fármacos no tratamento do TCAP foi achada uma resposta muito alta para o placebo (ao redor de 70%). O anticonvulsivante topiramato é uma boa opção se estiver sendo to- lerado, já que apresenta vários efei- tos colaterais, motivo pelo qual mui- tas vezes é necessário descontinuar o tratamento. É proposta a adminis- tração do medicamento à noite, para diminuir os efeitos colaterais, sendo a dose utilizada de 25 mg/dia, a ser au- mentada aos poucos cada semana, até chegar a 200 mg ou mais, confor- me a resposta. A sibutramina pode ser usada no TCAP em pacientes que não respon- dem aos ISRS ou ao topiramato.Pode ser utilizada em dose única de 10 a 15 mg/dia, igual à administrada a pa- cientes obesos sem TCAP, sempre se observando o aumento da frequência cardíaca e a pressão arterial no trata- mento prolongado, já que a partir do terceiro mês o aumento da pressão arterial se acentua. Embora em alguns estudos a coad- ministração de medicação (orlistat ou topiramato) com psicoterapia tenha sido associada a maior perda signifi- cativa de peso do que somente com psicoterapia, o curto tempo de dura- ção dos estudos (12 a 24 semanas), o alto abandono e a alta resposta ao placebo que se dá nesse transtorno restringem as conclusões para sua utilização. Em relação às novas formas de trata- mento para transtornos alimentares, uma recente revisão sistemática das intervenções de autoajuda (manuais e computadorizadas) observou bene- fícios em BN e TCAP, embora algu- mas dúvidas ainda permaneçam. 27TRANSTORNOS ALIMENTARES MAPA: TRANSTORNOS DA CONDUTA ALIMENTAR (TCA) Perda de peso intensa e intencional de forma anormal (pelo menos 15% do peso corporal original) Bulimia nervosa (BN) Anorexia nervosa (AN) Quadro clínico Inquietude ou hiperatividade Rituais envolvendo atividades físicas Superestimar calorias consumidas Incansável perse- guição pela magreza Hipoglicemia Azoospemia Dor abdominal Intolerância ao frio/ Fadiga Bradicardia/ Arritmia Diagnóstico diferencialTratamento Psicoterapia Terapia farmacológica Multidisciplinar Terapia nutrológica TCC Inibidor seletivo da recaptação de serotonina (ISRS) Tumores malignos Abuso de substâncias TOC Transtorno depressivo maior Síndrome de Prader-Willi Critério diagnóstico Episódios recorrentes de compulsão alimentar Comportamentos compensatórios inapropriados recorrentes Autoavaliação indevidamente influenciada pela forma e pelo peso corporais A perturbação não ocorre exclusivamente durante episódios de anorexia nervosa Quadro clínico Dor abdominal Desidratação Erosão dentária Sinal de Russell Hipocalemia Hipertrofia de parotídea Irregularidade menstrual Hipotensão/ Desmaio Arritmia Períodos de grande ingestão alimentar seguido de episódios compensatórios no mínimo 1x/ semana durante 3 meses Hipercoles- terolemia HAS Hipercolesterolemia DM Doen ças da vesícula biliar Transtornos depressivos Ansiedade Abuso de álcool e substâncias Câncer Compulsão alimentar. Sofrimento Ausência de uso recorrente de comportamento compensatório inapropriado Transtorno da compulsão alimentar periódica (TCAP) Propensão a vários problemas graves associados à obesidade Critério diagnóstico Episódios de ingestão exa gerada pelo menos 1x/semana durante 6 meses Quadro clínico diverso Critério diagnóstico Restrição da ingesta calórica em relação às necessidades Medo intenso de ganhar peso ou de engordar Perturbação no modo como o próprio peso ou a forma corporal Subtipos Restritivo Purgativo Alopecia Osteopenia Amenorreia 28TRANSTORNOS ALIMENTARES 8. CASO CLÍNICO Uma jovem de 19 anos tem consumi- do compulsivamente grandes quanti- dades de comida, muito mais do que a maioria das pessoas em circuns- tâncias semelhantes. Envergonha-se disso e teme ficar obesa. Por esse motivo, induz vômitos 3 a 4 vezes por semana. Esse comportamento se in- tensifica quando está sob estresse, e a paciente sente que não tem controle sobre ele. Os resultados de seu exame físico são normais, incluindo o peso. 1. Diagnóstico mais provável? Bulimia nervosa (BN). 2. Quais as modalidades de trata- mento mais adequadas? Reabilitação nutricional, psicoterapia cognitivo-comportamental e trata- mento com um antidepressivo (inibi- dor seletivo da recaptação de seroto- nina [ISRS]). 3. Quais os possíveis achados em testes de laboratório e exame físico? Avaliação das glândulas parótidas, boca, dentes (cáries), exame abdo- minal para lesão esofágica ou gástri- ca, desidratação decorrente do uso de laxante, hipotensão associada a fármaco emético (ipeca), taquicardia, arritmias. É preciso checar também os níveis séricos de eletrólitos, mag- nésio e amilase. Anormalidades laboratoriais en- contradas em pessoas com bulimia nervosa demonstram alcalose hipo- clorêmica-hipocalêmica resultante da êmese excessiva. Hiperamilasemia e hipomagnesemia também não são raras nessas pacientes. Vários dese- quilíbrios eletrolíticos podem ocorrer como resultado do abuso frequente de laxantes. Anormalidades na tireoi- de não são comuns em indivíduos com bulimia nervosa. 5. De que modo a bulimia nervosa se distingue de anorexia nervosa? Nos dois transtornos os pacientes tendem a apresentar desempenho acadêmico elevado, mas pacientes com bulimia em geral são menos re- sistentes para obter ajuda, abusam mais de álcool e têm maior labilidade emocional que pacientes com ano- rexia, que tendem a ser mais constri- tas emocionalmente. A bulimia costu- ma apresentar início mais tardio que a anorexia, sendo comum pacientes com bulimia não apresentarem sin- tomas até o início da vida adulta, en- quanto a anorexia normalmente co- meça no início da adolescência. 29TRANSTORNOS ALIMENTARES REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Abreu CN, Cangelli Filho R. Anorexia nervosa e bulimia nervosa – abordagem cognitivo- -construtivista de psicoterapia. Rev Psiquiatr Clin 2004;31(4):177-83. 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