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Ana Cristina césar

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ANA HELENA LEOPOLSKI MENDES 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A 'POESIA-EM-VOZES' DE ANA CRISTINA CESAR: 
O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE POÉTICA EM A TEUS PÉS 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
CURITIBA 
2008 
Monografia apresentada como requisito 
parcial à obtenção do grau de Bacharel em 
Letras, Curso de Graduação em Letras, Setor 
de Ciências Humanas, Letras e Artes, 
Universidade Federal do Paraná. 
 
Orientadora: Prof. Ms. Sandra Mara 
Stroparo 
 2 
SUMÁRIO 
 
RESUMO................................................................................................................................... 3 
ABSTRACT............................................................................................................................... 4 
INTRODUÇÃO......................................................................................................................... 5 
1 AUTORIDADE POÉTICA E IDENTIDADE FEMININA............................................... 8 
2 FRAGMENTAÇÃO, IRONIA E CONFESSIONALISMO............................................ 13 
2.1 INTIMIDADE E DIÁLOGOS........................................................................................... 15 
3 AS NUANÇAS DA VOZ CONVERSACIONAL.............................................................. 20 
3.1 DIÁLOGOS ENTRE CONVERSAÇÕES........................................................................ 25 
4 A RELAÇÃO COM O LEITOR NAS OUTRAS SEÇÕES DE A TEUS PÉS.............. 33 
4.1 PRECISÃO E METALITERATURA................................................................................ 36 
CONCLUSÃO......................................................................................................................... 42 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................. 44 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 3 
RESUMO 
 
Análise dos poemas de A teus pés, publicado pela poeta carioca Ana Cristina Cesar em 1982, 
através da identificação de diversas vozes presentes nos poemas e da maneira como 
interagem, com o propósito de explorar o processo de criação da identidade poética na poesia 
mais madura de Ana C. Baseia-se parcialmente no estudo de Flora Süssekind desenvolvido 
em Até segunda ordem não me risque nada: Os cadernos, rascunhos e a poesia-em-vozes de 
Ana Cristina Cesar, que identifica algumas das mesmas vozes em Inéditos e Dispersos, 
coletânea publicada após a morte da poeta. Demonstra o caráter conversacional da poesia de 
Ana C. evidenciado pela insistente presença do elemento da conversa nos poemas, bem como 
pela interação com o leitor, e aponta a importância do reflexo do outro na criação da 
identidade, salientada através da exploração do tema da conversa ou do elemento do espelho 
presente como imagem nos poemas. 
 
Palavras-chave: Literatura brasileira; Poesia marginal; Poesia confessional 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 4 
ABSTRACT 
 
This paper aims to explore the creation of a poetic identity in Brazilian poet Ana Cristina 
Cesar's 1982 book A teus pés, by identifying and analysing several voices present in the 
poems and how their interaction and development results in the construction of a self-image 
within the poems. The analysis is partly based on Flora Süssekind's Até segunda ordem não 
me risque nada:Os cadernos, rascunhos e a poesia-em-vozes de Ana Cristina Cesar, which 
identifies some of the same voices analysed here in Inéditos e Dispersos, published after the 
poet's death. The paper demonstrates the conversational quality of Ana C.'s work, evidenced 
by the presence of the element of conversation in the poems, as well as by the amount of 
interaction with the reader; it also points out the importance of the reflection of the other in 
the creation of a poetic identity, which can be witnessed in the extensive use of the image of 
the mirror or of conversation as a theme throughout the poems. 
 
Key words: Brazilian poetry; Confessional poetry; Female poets 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 5 
INTRODUÇÃO 
 
 Nascida em 1952, no Rio de Janeiro, Ana Cristina Cesar produziu a maior parte de 
seus textos na década de 1970 e no início da década de 1980. Apesar da convivência com 
outros poetas do movimento batizado por Heloísa Buarque de Hollanda de 'poesia marginal', 
como Chacal, Charles, Waly Salomão, Leila Micolis, Torquato Neto, etc., a dicção de Ana C. 
apresentou, desde o início, uma distinção e sofisticação notáveis, bem como algumas 
diferenças de cunho mais ideológico: enquanto aqueles praticavam uma total rejeição da 
tradição literária que persistia até então, Ana C. evidencia em sua produção literária um 
processo de digestão desses textos e formação da própria voz poética. No entanto, alguns 
elementos chegam a aproximá-la dessa geração de 1970, também chamada de “geração 
mimeógrafo” devido à técnica de impressão que utilizavam para publicação independente de 
seus textos; entre eles está justamente o uso dessa técnica, através da qual publicou seus 
primeiros livros, Cenas de abril e Correspondência completa, bem como a inclusão da 
linguagem coloquial nos poemas e o empenho para criar na própria dicção poética uma 
naturalidade que lembrasse a linguagem cotidiana sem, entretanto, perder a literariedade. 
 Em 1982, Ana C. publica A teus pés, seu primeiro livro em uma editora de grande 
porte, que, além do conteúdo novo que compunha a seção homônima do livro, incluiu 
também os textos de Cenas de abril, Correspondência completa e Luvas de pelica, 
previamente publicados independentemente. No ano seguinte, sua carreira chega ao fim 
quando a poeta comete suicídio; em 1985 é publicado o volume Inéditos e dispersos, 
organizado por Armando Freitas Filho e constituído de uma seleção dos textos não publicados 
de Ana Cristina. 
 Na segunda metade da década de 1980, Flora Süssekind escreve um ensaio “que 
serviria de introdução a um volume que devia incluir toda a poesia traduzida por Ana Cristina 
Cesar” (SÜSSEKIND, 2007, p. 7), entre outros textos da poeta; embora o projeto não tenha 
sido completado, Süssekind publicou seu ensaio isoladamente com o título Até segunda 
ordem não me risque nada: Os cadernos, rascunhos e poesia-em-vozes de Ana Cristina 
Cesar. Além de explorar a importância da tradução no desenvolvimento de Ana C. como 
poeta, Süssekind faz uma análise de Inéditos e dispersos que descreve vozes distintas e 
relativamente nítidas encontráveis nos poemas desse livro. Tendo em mente essa identificação 
das vozes específicas surgidas na poesia de Ana Cristina, o objetivo deste trabalho é realizar 
uma análise análoga à de Süssekind, concentrada em A teus pés, explorando, assim, o 
processo da criação de uma identidade poética na produção mais madura de Ana C.. 
 6 
 As principais vozes percorridas ao longo desta análise são: a voz irônica, a voz íntima 
ou confessional, a voz do diálogo literário ou cultural, e a voz da conversação. A primeira 
consiste no papel da ironia no distanciamento e observação de si mesmo por parte do eu 
poético; a voz confessional foi batizada dessa forma devido à semelhança de tom com textos 
dos poetas americanos chamados “confessionais” ou “confessionalistas” – Sylvia Plath, Anne 
Sexton, Robert Lowell, etc. A questão da intimidade com o leitor é explorada nessa segunda 
voz, e inclui a abordagem de temas considerados “tabus”, livre trânsito por assuntos 
especificamente femininos e uma falta de pudor ao lidar tanto com temas sexuais quanto 
sentimentais. O diálogo literário ou cultural aparece na forma de referências mais ou menos 
explícitas a textos externos, bem como a elementos da cultura popular, e representa, em parte, 
a idéia da “digestão” da tradição literária e a participação dela na construção de uma 
identidade própria. A voz da conversação é, talvez, a mais extensamentetrabalhada nos textos 
de Ana Cristina e um dos aspectos mais enfatizados por Süssekind: a literatura de Ana C. 
constrói-se a partir da idéia de interação verbal ou diálogo, que se apresenta de diversas 
maneiras – como confissão entre o eu poético e o leitor, como conversa entre dois 
personagens (que podem ou não ser identificados com o eu poético dentro do poema), ou 
mesmo como o diálogo intertextual já mencionado. De fato, esse elemento parece ser a base 
da maioria dos poemas de A teus pés, de maneira que a interação com as outras vozes é o que 
forma a dicção única de Ana Cristina Cesar. 
 Três outras vozes1
 O processo de identificação dessas vozes e de estabelecimento de relações entre elas, 
bem como o questionamento do seu papel na construção da identidade poética nos textos de 
Ana C. chegam a demandar uma abordagem contínua e fluida ao texto, de maneira que a 
 recorrentes na poesia (e prosa poética) de A teus pés, embora menos 
centrais que as quatro mencionadas acima, são a voz puramente observadora, que trabalha 
com o jogo de imagens seco e reticente, sem necessariamente relacionar as imagens umas às 
outras ou com o restante dos versos; a voz da precisão, que aparece para, talvez, 
contrabalancear a imprecisão inerente da criação das vozes nos textos de Ana C. – poemas em 
forma de verbetes de enciclopédia, textos técnicos, etc.; e a voz do exercício literário, que se 
ocupa com elementos mais formais como rimas, aliterações, trocadilhos, metatexto, e também 
dá conta do aspecto que tende ao ideológico, referente a idéias sobre o fazer literário ou 
questões representativas da geração literária da poeta. 
 
1 Süssekind trabalha também com a idéia de uma voz “pictográfica”, referente aos aspectos visuais dos 
poemas; em A teus pés a presença dessa voz é mínima e chega a ser questionável. Decidimos, portanto, não 
abordá-la no trabalho. 
 7 
segmentação foi feita da seguinte maneira: no capítulo I, discutiremos idéias teóricas gerais de 
literatura feminina e autoridade poética, baseados nos textos de Virginia Woolf e Cristovão 
Tezza. Em seguida, no capítulo II, exploraremos principalmente a presença da ironia e da 
idéia de “confessional” nos poemas; o capítulo III é dedicado à exposição da voz 
conversacional e as dimensões que pode tomar no texto de Ana Cristina. O capítulo IV aborda 
as questões da relação com o leitor nos três outros livros que compõem A teus pés, bem como 
a idéia da precisão e a reflexão sobre o próprio texto. Na conclusão, discutiremos a relevância 
da aplicação desse ponto de vista de análise das vozes sobre o processo criativo evidente nos 
poemas de Ana Cristina Cesar. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 8 
1 AUTORIDADE POÉTICA E IDENTIDADE FEMININA 
 
 Se for possível uma classificação da poesia de Ana Cristina César, e de A teus pés, 
especificamente, em diferentes vozes que ressurgem ao longo do livro com maior ou menor 
freqüência, ela se dá somente na medida em que se aceita a inevitável interpolação e a 
intercomunicação entre essas vozes. Süssekind afirma que das duas “possibilidades” surge 
“uma terceira dicção – necessariamente imprecisa” (SÜSSEKIND, 2007, p. 28), o que sugere 
a noção de que a identidade do eu poético se molda não através das próprias vozes, somente, 
mas necessariamente da mistura delas. A poeta constrói esse eu poético de modo 
multifacetado, mas simultaneamente homogêneo, e sem fazer questão de esconder os 
andaimes: o leitor observa, desnudas, tanto as vozes individuais como a sinfonia que 
produzem juntas. O efeito é de exposição; tanto inocente quanto exibicionista. 
 Tendo em mente essa perspectiva de análise, é inevitável que se note ao longo dos 
textos de Ana C. a afirmação de uma presença essencial e explicitamente feminina. Essa 
feminilidade permeia todas as outras vozes e surge em um nível mais básico: a marca de 
feminino parece mais sutil e inerente à maioria dos poemas e textos de prosa, de maneira que 
o uso de pronomes, artigos e mesmo nomes próprios femininos é feito com naturalidade e 
com uma aparente falta de pretensão. A questão da busca da identidade associada à noção de 
feminino é abordada por Virginia Woolf em Um teto todo seu, texto de 1929, em que a autora 
cria uma personagem com o objetivo de refletir sobre as relações entre a mulher e a literatura. 
Ao ter em mãos o livro de uma autora fictícia, Mary Carmichael, a personagem criada por 
Woolf imagina uma interação com essa autora: 
 
(...) 
Todas essas vidas obscuras [da maioria das mulheres] permanecem por registrar, disse eu, dirigindo-me 
a Mary Carmichael como se ela estivesse presente; e prossegui em pensamento pelas ruas de Londres[.] 
(...) “Tudo isso você terá que explorar”, disse eu a Mary Carmichael, segurando a tocha firmemente em 
suas mãos. “Acima de tudo, você deve iluminar a própria alma, com suas profundezas e 
superficialidades, e suas vaidades e generosidades, e dizer o que sua beleza significa para você, ou sua 
feiúra, e qual é a sua relação com o mundo permanentemente mudando[.] (...) 
 
(WOOLF, 1985, p. 118-119) 
 
 Woolf propõe que, não apenas a autora mulher tem uma obrigação (talvez moral) de 
explorar literariamente a vida das mulheres comuns, “a maioria das mulheres [que] não é nem 
de meretrizes nem de cortesãs” (WOOLF, 1985, p. 117), mas tem, “acima de tudo”, que 
explorar a própria identidade e explicitá-la, conhecer-se. Ana Cristina Cesar torna público o 
processo da busca pela identidade no sentido de que convida o leitor a participar dele, ainda 
 9 
que de maneira passiva. O texto torna-se, então, não apenas o resultado dessa busca, a 
produção intelectual realizada e bem desenvolvida, mas a própria busca; a afirmação da poeta 
pode ser a de que há relevância sob um ponto de vista artístico e intelectual na própria 
construção da identidade. 
 Em outro momento do texto, a personagem de Woolf, ao refletir sobre as grandes 
romancistas da língua inglesa do século XIX, comenta a idéia de presença feminina ou marca 
de feminino no texto narrativo: 
 
(...) E pensei em todos os romances de mulheres espalhados (...) pelos sebos de Londres. O defeito no 
centro é que os havia estragado. A mulher havia alterado seus próprios valores em respeito à opinião 
alheia. (...) Que talento, que integridade deve ter sido necessária diante de toda aquela crítica, em meio 
àquela sociedade puramente patriarcal, para que elas se ativessem à coisa tal como a viam, sem se 
acovardarem. Apenas Jane Austen conseguiu, e Emily Brontë. (...) Elas escreveram como as mulheres 
escrevem, e não como os homens. Dentre todos os milhares de mulheres que escreveram romances na 
época, somente elas ignoraram por completo as admoestações perpétuas do eterno pedagogo – escreva 
isto, pense aquilo. (...) 
 
(WOOLF, 1985, p. 98) 
 
 A questão da dicção reconhecivelmente feminina no texto narrativo é de grande 
importância, segundo Woolf, e representa certa individualidade e independência intelectual 
essenciais para a afirmação da mulher como produtora de literatura – no caso, como 
romancista. Vários dos poemas de Ana C., bem como boa parte de sua prosa, realizam o 
processo de tornar óbvio o feminino dentro do texto; entretanto, na poesia isso se dá através 
da identificação explícita do eu poético como feminino, em vez de uma idéia mais vaga ou 
imprecisa de 'estilo', como ocorre na narrativa. Alguns exemplos desse eu poético que se 
assume como feminino são “Cabeceira”, “Anônimo”, e “Noite de Natal.”, de A teus pés, 
respectivamente reproduzidos a seguir: 
 
Intratável. 
Não quero mais pôr poemas no papel 
nem dar a conhecer minha ternura. 
Faço ar de dura, 
muito sóbria e dura, 
não pergunto 
“da sombra daquele beijo 
que farei?” 
(...) 
(CESAR, 1999, p. 65) 
 
Sou linda, gostosa; quando no cinema você roça o ombro em 
mim aquece, escorre, já não sei mais quem desejo, queme assa 
viva[.] (...) 
A portadora deste sabe onde me encontro até de olhos 
 10 
fechados; falo pouco; encontre; esquina de Concentração com 
Difusão, lado esquerdo de quem vem, jornal na mão, discreta. 
(CESAR, 1999, p. 98) 
 
Noite de Natal. 
Estou bonita que é um desperdício. 
Não sinto nada 
Não sinto nada, mamãe 
Esqueci 
(...) 
Entretanto sou moça 
estreando um bico fino que anda feio, 
pisa mais que deve, 
me leva indesejável pra perto das 
botas pretas 
pudera 
(CESAR, 1999, p. 92) 
 
 Cada um dos poemas pode ser interpretado tendo em mente a idéia de feminino e 
como o restante dos versos caracteriza essa figura, ou como ela se vê refletida neles; no 
entanto, o que têm em comum e, talvez, como característica mais marcante, é a própria referência 
ao gênero ou sexo do eu poético que fala – ele próprio se assume como uma entidade 
feminina, principalmente através de adjetivos (“dura”, “linda, gostosa”, “discreta”, “bonita”), 
cuja presença pode ser vista como casual e, até certo ponto, sutil: a afirmação da feminilidade 
do eu poético não toma conta dos poemas, apenas existe. É interessante estabelecer um 
contraste com a obra de outras poetas, como a paulista Hilda Hilst, cujas primeiras 
publicações datam de 1950. Embora a maioria dos poemas de Hilst apresente alguma 
indicação de identidade feminina por parte do eu poético, há instâncias em que ele assume 
uma identidade masculina através do uso de adjetivos; por mais que a idéia possa ser mais 
direcionada a uma neutralidade do eu poético do que a uma afirmação do masculino, é, ainda 
assim, a não-afirmação do feminino: 
 
Honra-me com teus nadas. 
Traduz meu passo 
De maneira que eu nunca me perceba. 
(...) 
Dá-me tristes joelhos. 
Para que eu possa fincá-los num mínimo de terra 
E ali permanecer o teu mais esquecido prisioneiro. 
Dá-me mudez. E andar desordenado. Nenhum cão. 
Tu sabes que amo os animais 
Por isso me sentiria aliviado. (...) 
Talvez assim me ames: desnudo até o osso 
Igual a um morto. 
(HILST, 2003, p. 111) 
 
 11 
 Apesar da sutileza do elemento feminino nos poemas de Ana C., a própria auto-
caracterização do eu poético como feminino acaba por destacar-se; aqui, entretanto, a 
masculinidade ou neutralidade do eu poético (e a própria identificação do neutro com o que é, 
gramaticalmente, masculino, talvez explique a razão para o estranhamento – o feminino é o 
não default) pode até passar despercebida pelo leitor. 
 Um outro aspecto sob o qual se pode ler a poesia de Ana Cristina Cesar como esse 
jogo de vozes é o da idéia bakhtiniana de autoridade poética: dentro do universo do poema, as 
palavras passam a pertencer ao poeta – mesmo uma outra voz que não seja claramente a do 
seu eu poético, por exemplo. Cristovão TEZZA, no ensaio “Mikhail Bakhtin e a autoridade 
poética”, comenta esse ponto da seguinte forma: 
 
(...) 
 
E quanto à autoridade poética? Bakhtin dirá que, ao contrário do que acontece na prosa, na poesia, no 
discurso poético em sentido estrito (no máximo do espectro poético, lembrando a relação quantitativa 
dessas forças), o autor coloca todo o peso de sua autoridade sobre cada uma de suas palavras. É 
evidente que no mundo dialógico da linguagem também o poeta vive imerso no plurilingüismo, nas mil 
linguagens sociais que nos rodeiam e que estão presentes em toda enunciação. Mas a palavra alheia, 
quando entra no discurso poético estrito, perde a sua autonomia vital, perde os traços capazes de fazer 
dela uma voz outra que se contraponha à voz do poeta. 
 
Quando o poeta fala, só o poeta fala – é exatamente dessa autoridade primeira que a poesia conquista o 
seu terreno. Todos os recursos técnicos do discurso poético reforçam essa centralização absoluta do 
discurso, descolam a palavra da sua vida cotidiana, promovem um corte radical entre a palavra do poeta 
e a palavra dos outros, isolam a linguagem num casulo único. O metro, a rima, a música, o ritmo, a 
quebra visual da leitura padronizada, o uso do espaço em branco, a fragmentação, a negação da 
linguagem prosaica em cada um de seus estratos, o cruzamento de códigos, a singularização máxima 
dos sentidos e dos significados, da sintaxe e do léxico, todo esse arsenal é usado a serviço da absoluta 
centralização da linguagem. 
 
O poeta tira a linguagem do mundo corrente e congela-a num objeto verbal que concentra em si um 
máximo de autoridade. Todo poema é a atualização de uma espécie de púlpito da linguagem. No próprio 
impacto visual que ele celebra, (...) em toda parte em tudo o poema se faz púlpito, expressão de uma 
autoridade poética que chama a si a responsabilidade total de cada uma de suas palavras. 
 
O poeta pode fazer o que quiser da linguagem; ele é proprietário absoluto dela; ele coloca todo o mundo 
da linguagem a serviço de sua voz. O poeta é alguém que outorga a si mesmo o direito de falar com toda 
a autoridade possível de sua voz. 
 
(...) 
(TEZZA, 2008) 
 
 Tezza menciona “o máximo do espectro poético”, referindo-se à “não-contaminação” 
do texto poético por parte da prosa; a idéia é que as noções de autoridade poética propostas 
por Bakhtin seriam aplicáveis a esses textos, em específico – no ensaio, Tezza posteriormente 
fala em uma “crise da autoridade” associada com a contaminação da poesia pela prosa. Os 
textos de Ana Cristina Cesar, por fazerem parte da produção poética brasileira recente, 
 12 
certamente são exemplos dessa não-pureza do texto poético; tanto sua poesia quanto sua prosa 
são freqüentemente “contaminadas” uma pela outra. Entretanto, a aplicabilidade da autoridade 
poética na questão das vozes criadas por Ana C. torna-se mais plausível à medida que se 
considera a construção da identidade – poética e, talvez, pessoal – como objetivo principal da 
fragmentação no estilo de composição da poeta. A identidade representa a centralização, a 
unificação; a multiplicidade de vozes submete-se a esse eixo central – assim como “a palavra 
alheia” submete-se à voz do poeta. Se existe a criação de um leque de vozes a partir do eu 
poético de Ana C., ele vai sempre em direção a um ponto único: o de auto-definição. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 13 
2 FRAGMENTAÇÃO, IRONIA E CONFESSIONALISMO 
 
 Um dos elementos mais notáveis na poesia de Ana Cristina é a ironia, e a maneira 
como o eu poético se apropria dela sem reservas. O uso dessa voz irônica caracteriza-se pelo 
distanciamento por parte do eu poético, que então observa a si mesmo como se de um ponto 
de vista externo, fazendo comentários e, eventualmente, críticas. É possível a associação da 
ironia com a questão do confessional; de fato, uma vez que essa voz se propõe à observação 
própria e até mesmo à ridicularização do eu poético (e/ou das situações descritas ou vividas 
por ele), até certo ponto, é inevitável que cause certa quantidade de espanto ao leitor. Através 
do prisma da ironia, a auto-exposição do eu lírico rompe com um “tabu” dos mais sutis – o da 
auto-preservação. À medida que a voz irônica aponta aspectos relativamente negativos no 
próprio “eu” do poema, vai minando a credibilidade desse “eu” com o leitor, e, ao fazer isso, 
acaba por reconstruí-la sob um outro aspecto, que é o da “promessa” implícita e 
cuidadosamente colocada de que o eu poético vai sempre revelar a verdade sobre si mesmo, 
independentemente de outros fatores. Este é, talvez, o próprio apelo do estilo confessional. 
 A própria Ana Cristina, em artigo publicado em 27 de fevereiro de 1976, ao referir-se 
a Monsenhor, de Antonio Carlos Villaça, acusa o texto de ser “muito pouco ‘literatura’ e 
muito ‘confissão’”, o que exige do leitor uma atitude “tolerante d[e] padre, amigo ou 
analista.” (CESAR, apud CAMARGO, 2003, p. 55) Essa impressão distinta da noção de que o 
leitor estaria, em última instância, interessadonas informações íntimas que o eu poético tem a 
oferecer está intimamente ligada à idéia de arte como “elaboração estética”, em oposição à 
idéia da “inflação do artista”, noções abordadas pela poeta no mesmo artigo. Ela defende a 
posição de que a “arte não é um amontoado gratuito de obsessões [...], mas trabalho dotado de 
um projeto e de uma coerência” (CESAR, apud CAMARGO, 2003, p. 55). Maria Lucia de 
Barros Camargo, em Atrás dos olhos pardos: Uma leitura da poesia de Ana Cristina Cesar, 
aponta os textos críticos de Ana C. como sendo tentativas de definir seu próprio fazer poético, 
além do alheio (e possivelmente acima do alheio): “[...] a ensaísta é também a poeta. Falar 
dessa poesia no exercício da resenha crítica é [...] falar de si, fingindo objetividade e 
distanciamento crítico. Falar de si, falando do outro e pelo outro.” Tendo isso em mente, é 
possível concluir daí que o tom de cada uma das vozes encontráveis na poesia de Ana, bem 
como a própria fragmentação, representam a dedicação à arte defendida pela poeta. 
 No terceiro poema da seção que Camargo chama de “da gatografia”, não em A teus 
pés, mas na produção anterior de Inéditos e Dispersos, a questão da fragmentação é 
explicitada através da imagem de cacos de um espelho: 
 14 
 
Estão caindo sobre mim cacos sem peso 
porque retorno em quedas sobre os braços 
volto ao espaço circunscrito, mas me teme 
meu corpo lento e bioquímico no escuro, e 
lentamente sei que me dissolvo aos 
quinze miligramas, seca 
em queda de paralisia quantificável. 
 
Silêncio 
retornando sobre quedas 
paralisia em caixa, crédito e cheque onde 
risco assinatura de meu nome; hipnótico aconchego dos 
números menores, em firmas menores que ainda registram 
arabescamente seus lucros; eu queria: 
 
Silêncio de resposta e sangue ainda 
os vidros soltos sobre a cara 
mesmo sem saber que retornamos 
saibamos que o espelho que desaba 
fere e contunde nossa cara 
 (CESAR, 1985, p. 65) 
 
 A última estrofe não apenas coloca a imagem do espelho, que em si representa a auto-
imagem do eu poético, em cacos, mas insiste na noção de que “não se deve ter ignorância do 
ferimento” (CAMARGO, 2003, p. 129); “saibamos” qual é o processo por que passamos. O 
ferimento, representado pelo corte dos cacos “que desaba[m]”, é o da própria fragmentação e 
desconstrução, necessária ao processo de auto-conhecimento e descoberta da identidade. 
Como crítica (e, conseqüentemente, como poeta – ou vice-versa), Ana C. procura investigar o 
fazer poético seu e de seu tempo em relação à tradição assimilada, ligação que CAMARGO 
(2003, p. 53) coloca como a questão central da poesia de Ana, e à noção de feminino como 
identidade pessoal e literária: 
“(...) Ana Cristina dá a [seus ensaios] a mesma forma de distribuição e circulação alternativas que vinha 
acontecendo na poesia. Aponta, também através de um elemento marginal ao texto, para a aproximação 
entre esses dois gêneros, tradicionalmente muito distintos, e ainda para uma tensão que marca 
profundamente sua obra poética: a tensão entre o apreço pela tradição literária e os vínculos com a 
poesia 'antiintelectual' e 'espontânea' de sua geração. Outro modo de expressar a tensão entre passado e 
presente, entre a tradição de modernidade e o seu próprio tempo aparentemente sem tradições.” 
 
 Essa investigação é, talvez, a força por trás da fragmentação voluntária do “eu” que já 
existe, refletido no espelho, e da absorção dos cacos através da pele – um processo que, apesar 
de machucar, em última instância formará uma amálgama originária de uma nova (no sentido 
de recentemente descoberta) identidade. A amálgama, e a identidade, são o que surge nos vãos 
homogeneizados das vozes nos poemas, e na produção mais madura de A teus pés o processo 
é mais claro e plenamente desenvolvido. 
 15 
 A imagem do espelho é explorada em alguns poemas de A teus pés; em “Pour 
mémoire”, por exemplo: 
(...) 
E mais não quer saber 
a outra, que sou eu, 
do espelho em frente. 
Ela instrui: 
deixa a saudade em repouso 
(em estação de águas) 
tomando conta 
desse objeto claro 
e sem nome. 
 (CESAR, 1999, 69) 
 
 Nesses últimos versos, o eu poético explicita a idéia de “outr[o]” como sendo a própria 
imagem no espelho, e um outro que “instrui”, ensina a viver, interage. Neste outro poema, 
sem título, a idéia é muito menos explícita, mas ainda assim presente: 
 
Queria falar da morte 
e sua juventude me afagava. 
Uma estabanada, alvíssima, 
um palito. Entre dentes 
não maldizia a distração 
elétrica, beleza ossuda 
al mare. Afogava-me. 
 (CESAR, 1999, p. 77) 
 
Novamente, a hipotética imagem no espelho se apresenta distante de uma 
representação de narcisismo, de auto-aceitação, ou de encorajamento: é, na verdade, fonte de 
aflição para o eu poético. Ela o contradiz e o frustra, fornecendo sempre um desafio, um 
incômodo que leva o eu lírico à frente – sem violência, com “afag[os]”; sem “maldiz[er]” 
“[e]ntre dentes”. Ainda assim, afogando. 
 
2.1 INTIMIDADE E DIÁLOGOS 
 
Uma outra dessas vozes identificáveis nos poemas é a mais claramente relacionável 
com a idéia de ‘confessional’, cujo tom, na resenha “Tédio Machadiano”, a poeta identifica 
como “invejado” (CESAR, apud CAMARGO, 2003, p. 63). Trata-se de uma voz que se 
apresenta íntima, sem muitos escrúpulos, expondo-se e centrada em si mesma, que é 
freqüentemente desenvolvida no texto através do texto “diarístico” e da correspondência, 
embora não exclusivamente através dessas formas. De acordo com CAMARGO (2003, p. 60), 
os artigos de Ana Cristina publicados na segunda metade de 1976 tratam da questão dos 
limites da ficção, das relações entre literatura e biografia, história, documento, da própria 
 16 
idéia de confissão contida em um universo literário – “pensadas a partir das formas literárias, 
dos gêneros”. Camargo aponta as formas do diário e da correspondência como “formas que 
permitem a elaboração dessas questões a partir do texto”. Esse desenvolvimento parte de uma 
reflexão profunda sobre a arte e, especificamente, sobre as questões mencionadas. A título de 
comparação, os poetas responsáveis pela propagação do estilo confessional nos Estados 
Unidos, mais de dez anos antes, mantinham-se, de maneira geral, contidos ao máximo dentro 
dos limites do poema, com raras participações de outros gêneros2
O primeiro verso é ambíguo; superficialmente, pode ser outra menção a um elemento 
real – a noção do tempo fechando é inerentemente cotidiana – mas pode, também, ser uma 
analogia ao estado emocional do eu poético. No sexto verso, declara estar “sentida e 
portuguesa”, o que traz claramente a idéia de melancolia ou tristeza, tão tematizadas na 
. 
No segundo poema de A teus pés: 
O tempo fecha. 
Sou fiel aos acontecimentos biográficos. 
Mais do que fiel, oh, tão presa! Esses mosquitos que não 
largam! Minhas saudades ensurdecidas por cigarras! O que faço 
aqui no campo declamando aos metros versos longos e sentidos? 
Ah que estou sentida e portuguesa, e agora não sou mais, veja, 
não sou mais severa e ríspida: agora sou profissional. 
 
 (CESAR, 1999, p. 38) 
 
A questão do autobiográfico é explicitamente levantada no segundo verso – o eu 
poético declara fidelidade ao biográfico. No verso seguinte, a ironia aparece: o uso da 
interjeição “oh” concede um tom afetado ao texto que vem logo em seguida; o eu poético faz, 
então, menção a elementos cotidianos e reais como insetos, para em seguida notar a 
discrepância entre os “versos longos e sentidos” que declama “no campo”, à presença de 
“mosquitos” e “cigarras”. O próprio reconhecimento da diferença entre a realidade e o poético 
acaba por ser tanto confissão quanto elemento irônico – ao mesmo tempo em que desmonta a 
atmosfera poética, o eu lírico traz a poesia à realidade, sua e, conseqüentemente, do leitor. A 
solidez presente no poema através da menção desses elementos, e a verossimilhança do 
estranhamento do próprioeu poético é convincente para o leitor, faz com que este aceite mais 
facilmente a idéia da poesia real ou, ao menos, possível. 
 
2 Robert Lowell, em Life Studies, mistura seções de prosa e poesia sem, no entanto, recorrer a estilos 
alternativos claros, como é o caso de Ana C. 
 17 
cultura lusitana; isto sustenta a metáfora de “[o] tempo fecha.” A própria exposição do estado 
emocional, que, por sua vez, conduz o tom do poema inteiro, vem sutilmente inserir o 
ambiente literário da confissão na mente do leitor. Nos dois últimos versos, a ironia surge 
novamente, embora sutil: “e agora não sou mais, veja, / não sou mais severa e ríspida: agora 
sou profissional.” O eu poético pode estar descrevendo uma diferença na maneira de ver a si 
mesmo, mais neutra, ou até mesmo mais adulta, sem o julgamento tão prontamente 
emocional; pode, também, estar se referindo à maneira como é visto pelos outros. O tom dos 
dois versos sugere um leve deboche, como se, em última instância, a qualidade que lhe foi 
designada – por si próprio ou por outros – não fosse importante. 
 Em textos que seguem o estilo confessional, existe, freqüentemente, um distinto tom 
de auto-indulgência permeando cada frase ou verso. É esse tom que Ana C. critica em “Tédio 
Machadiano”; entretanto, mesmo dentro da noção de construção proposital da voz 
confessional, acaba sendo um de seus elementos essenciais. A busca pelo equilíbrio entre o 
tom que parece espontâneo, mas é forjado e o tom que pode ser, de fato, espontâneo, mas é 
indesejado se dá, por sua vez, também na área intermediária entre as inúmeras vozes possíveis 
na poesia de Ana C. O tempero da ironia relativiza e desmistifica assuntos muito particulares, 
mas a presença de outras vozes, como a que se propõe a estabelecer diálogos literários e 
culturais com outros textos, reafirma a intenção de auto-conhecimento e auto-descoberta do 
eu poético. À medida que essa intenção fica clara no texto, a idéia de auto-indulgência vai se 
retraindo e acaba por virar uma marca de estilo, e nada mais. O eu poético não espera do leitor 
que este faça papel de “padre, amigo ou analista”; na realidade, desfaz-se e se monta 
novamente na frente dele, e convida-o para testemunhar o processo. 
Da mesma forma que a ironia intensifica o efeito da confissão, os elementos 
apropriados de outros textos literários – “ladroagens” – servem como evidência da própria 
desconstrução. Em A teus pés, produção mais madura, as referências são mais discretas e 
sofisticadas, mais assimiladas e homogêneas em relação ao texto original da própria poeta – 
que, por sua vez, é quase indiscernível do texto que é resultado dessa mescla. Do poema 
mencionado acima, é possível extrair um exemplo sutil dessa voz própria do diálogo 
intelectual ou cultural: o início do penúltimo verso, “[a]h que estou sentida e portuguesa”. 
Não apenas há a referência explícita à cultura lusitana, mas a sintaxe do verso sugere a 
referência em um nível mais subconsciente; o uso da interjeição “ah” seguida da conjunção 
“que” é um tipo de construção de frase mais próprio do português europeu e, 
 18 
conseqüentemente, da literatura lusitana. A referência é vaga – não menciona nenhum texto 
em específico, e o tom é perfeitamente misturado à dicção pré-existente no poema. 
Na primeira parte de “Duas antigas”, temos: 
 Vamos fazer uma coisa: 
 escreva cartas doces e azedas 
 Abre a boca, deusa 
 Aquela solenidade destransando leve 
 Linhas cruzando: as mulheres gostam 
 de provocação 
 Saboreando o privilégio 
 seu livro solta as folhas 
 Aí então ela percebeu que seu olho corria veloz pelo 
 museu e só parava em três, desprezando como uma ignorante 
 os outros grandes. E ficou feliz e muito certa com a volúpia da 
 sua ignorância. Só e sempre procura essas frases soltas no seu 
 livro que conta história que não pode ser contada. 
 Só tem caprichos 
 É mais e mais diária 
 – e não se perde no meio de tanta e tamanha 
 companhia. 
 (CESAR, 1999, p. 56) 
 
 A partir do nono verso, a linguagem e disposição dos versos previamente presentes 
alcançam um ritmo mais prosaico e contínuo; a dicção do eu poético lembra muito a prosa de 
Clarice Lispector. A quebra relativamente visível entre o estilo dos oito primeiros versos e os 
cinco seguintes sutilmente chama a atenção do leitor para a diferença no texto, embora a 
referência seja muito vaga e imprecisa. Os textos de Lispector são de um profundo conteúdo 
psicológico e de exploração da própria identidade; lidam, também, com a questão da voz 
feminina na literatura – ao assimilar a busca de outro autor, a poeta aceita qualquer progresso 
que já tenha sido feito anteriormente e o adiciona ao que já fez ou procura fazer. Ao dizer, “as 
mulheres gostam / de provocação”, o eu lírico novamente introduz a ironia, e esta é ecoada no 
trecho “lispectoriano” quando este diz, “[e] ficou feliz e muito certa com a volúpia da / sua 
ignorância”. 
 Nos primeiros versos, surge um outro elemento importantíssimo na poesia de Ana C.: 
o da conversação. O primeiro verso já sugere a presença de um outro alguém, além do eu 
poético: este usa o verbo na primeira pessoa do plural. O segundo verso traz um imperativo, 
que define, ao menos parcialmente, o tom da relação entre o eu poético e essa outra pessoa; no 
terceiro verso, vê-se um vocativo, enfim: “deusa”. As referências diretas a interações com 
essa interlocutora acabam, mas esses primeiros versos podem sugerir inicialmente que o 
poema inteiro seria uma conversa (embora a porção narrativa do texto, a partir de “Aí então 
 19 
ela percebeu”, introduza o discurso indireto e quebre essa seqüência conversacional 
estabelecida): sem reciprocidade de uma das partes, aparentemente, uma vez que não aparece 
resposta por parte da interlocutora, mas ainda assim uma conversa. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 20 
3 AS NUANÇAS DA VOZ CONVERSACIONAL 
 
 A conversa, o registro oral, a interação verbal aparecem de duas maneiras gerais na 
poesia de A teus pés: manifestados pelo próprio eu poético, como é o caso do poema incluído 
acima, em que o eu poético inicia, responde ou de alguma forma participa da conversa, ou 
testemunhados por ele, que age como um observador da vida cotidiana alheia e de situações 
que não o incluem. Qualquer uma das duas maneiras mostra a essencialidade do diálogo e da 
interação na criação dessas vozes poéticas e, conseqüentemente, a identidade (poética ou não) 
dos “eus” que nascem nos vãos dos poemas e manifestam-se dentro deles. Süssekind, em Até 
segunda ordem não me risque nada, define a poesia de Ana Cristina como “arte da 
conversação”, colocando: 
Numa espécie de tensão constante entre poesia-da-experiência e auto-reflexão, entre dicção 
aparentemente “muito pessoal” e postura quase sempre “em guarda” - estrategicamente velada por uma 
sucessão de outras falas, aspas, citações -, sobretudo quando se trata de esboçar, nos seus textos, um 
sujeito. 
É, pois, em meio a um burburinho, e como burburinho que se apresenta esse “eu” - num primeiro olhar 
com traços aparentemente tão marcados, tão pessoal, tão confessional - que fala, e se deixa invadir por 
outras falas, nos seus poemas e nas formas breves de sua prosa. 
(...) 
A escrita como conversação, como fala: este é um dos traços mais característicos da escrita de Ana 
Cristina Cesar, cujo eco, insistente, se repete, com variações, de um livro a outro. Às vezes o texto até 
começa como recado ou relato à primeira vista coeso, mas, de repente, surgem aspas, interrogações, 
sugestões de interlocução. 
 (SÜSSEKIND, 2007, p. 10; 13) 
 Assim como os espelhos que se quebram no poema de Inéditos e dispersos, o 
“burburinho” mencionado por Süssekind nada mais é do que o outro, o não-eu. A partir da 
observação desse outro, o eu poético procura formar a si mesmo – através da interação com 
ele, ou mesmoda observação discreta (ou secreta). E como o outro no espelho, o outro na 
conversa pode ser o “eu”: através da reflexão e do feedback, quando há interação, ou através 
do exemplo pela própria existência, quando não há. Dentro do texto, o diálogo literário ou 
cultural também é uma forma de conversa, e, tanto em um nível psicológico quanto no do 
fazer literário (que se fundem nos versos), é através do não-eu que o eu poético consegue 
fazer progresso na sua auto-descoberta: a autobiografia, o confessional, o íntimo, o interno 
não existem sem a interação com o que há de externo ao eu poético de cada um dos poemas. 
 Um outro exemplo desse diálogo implícito com uma forma narrativa mais 
desorganizada é “Segunda história...”: 
 21 
Segunda história rápida sobre a felicidade – descendo a colina 
ao escurecer – meu amor ficou longe, com seu ar de não ter 
dúvida, e dizia: meus pais... – não posso mais duvidar dos 
meus passinhos, neste sítio – você agora fala até mais baixo, 
delicada que eu reparo mais que os outros depois de um tempo 
fora – é como voltar e achar as crianças crescidas, e sentar na 
varanda para trocar pensamentos e memórias de um tempo que 
passou – mas quando eu fui (aquele dia no aeroporto) ainda 
havia ares de mistério – agora, é agora, descendo esta colina, 
sem nenhum, que eu conto então do amor distante, e não imito 
a minha nostalgia, mas a delicadeza, a sua, assim feliz. 
 (CESAR, 1999, p. 39) 
 
 A porção inicial do primeiro verso já introduz a possibilidade de interação de algum 
tipo por parte do eu poético para com alguém: ele conta uma história. Essa idéia também 
separa semanticamente, de certa forma, o começo do verso da parte seguinte; a separação é 
representada pelo travessão, e pode remeter a um elemento da oralidade, como a mudança de 
tom de voz. No segundo verso, surge “meu amor”, uma outra presença no poema que tem 
voz, como fica evidente no verso seguinte: “e dizia: meus pais...”. A partir do terceiro 
travessão do poema, não fica mais claro quem é que conversa com quem, mas a idéia de 
conversação é óbvia. A confusão nas vozes, bem como a ausência de marcas tradicionais de 
discurso no texto escrito sugerem, sutil mas insistentemente, o fluxo de consciência: “você 
agora fala até mais baixo, / delicada que eu reparo mais que os outros depois de um tempo / 
fora”. Quem “fala até mais baixo”, e quem “repar[a]”? A voz inicial que começou a “história 
rápida sobre a felicidade”, o “meu amor”, ou uma terceira presença, ainda? Esses fragmentos 
de conversa presentes no meio do texto sugerem, também, que o interlocutor da primeira parte 
do primeiro verso era outro, que não os presentes no restante do texto – quem ouve a história? 
O leitor? 
 A comparação oferecida pelo eu poético no sexto verso para ilustrar o que havia 
descrito anteriormente tem um tom melancólico muito sutil: “é como voltar e achar as 
crianças crescidas, e sentar na / varanda para trocar pensamentos e memórias de um tempo 
que / passou”. A sutileza, em si, invoca a idéia de confessional, uma vez que o eu poético 
explicita o que sente, procura explicar ao seu interlocutor real – o leitor – com detalhes como 
é que a situação afetou-lhe. O apelo emocional representado pelo trecho contém em si, talvez, 
todo o sentimento que inspirou o poema sobre “amor distante”; a imagem da colina, descida 
pelo eu poético tanto no início quanto no final do verso, formando uma circularidade, também 
remete à melancolia (ou “nostalgia”, como coloca o próprio eu lírico). A idéia do eu poético 
como contador de histórias – aqui, em específico, histórias íntimas e pessoais – é explicitada 
 22 
no penúltimo verso. A forma do texto, muito próxima da prosa, é comparável aos versos 9-13 
da primeira parte de “Duas antigas”, que, por sua vez, remete ao estilo de Clarice Lispector e, 
novamente, pode representar uma assimilação da voz literária de outra como parte do 
progresso da sua. 
 No poema “Sete chaves”, temos o seguinte: 
Vamos tomar chá das cinco e eu te conto minha grande história 
passional, que guardei a sete chaves, e meu coração bate 
incompassado entre gaufrettes. Conta mais essa história, me 
aconselhas como um marechal do ar fazendo alegoria. Estou 
tocada pelo fogo. Mais um roman à clé? 
Eu nem respondo. Não sou dama nem mulher moderna. 
Nem te conheço. 
Então: 
É daqui que eu tiro versos, desta festa – com arbítrio 
silencioso e origem que não confesso – como quem apaga 
seus pecados de seda, seus três monumentos pátrios, e passa o 
ponto e as luvas. 
 (CESAR, 1999, p. 40) 
 Já no primeiro verso, a indicação da interação verbal: a presença do interlocutor, através 
de “te”, e, novamente, o anúncio de uma “grande história” que será contada pelo eu poético ao 
interlocutor. A princípio, não é claro quem é ele – um personagem imaginário? O leitor? 
Independentemente de ser o leitor esse interlocutor idealizado pelo eu poético, ele acaba por fazer 
parte da conversa, ter acesso às informações contidas nela. A história é “passional” e guardada “a 
sete chaves”, mas será contada a alguém; logo, surge, novamente, a questão do tom confessional e 
da voz que cria uma ligação íntima com o leitor. Ao confessar que o “coração bate incompassado 
entre gaufrettes”, a idéia de proibido, de tabu é oferecida ao leitor – e ao interlocutor no poema, 
que em seguida é interpretado pelo próprio eu poético: no terceiro verso, o tom dramático de 
confissão transforma-se repentinamente em tom de conspiração, receptivo às informações 
ofertadas anteriormente. São duas vozes enunciadas pelo mesmo “eu”, dentro do mesmo poema, 
mas que acabam por montar uma conversa entre si. 
 É um outro indivíduo que aparece, ou é o eu poético inicial que cria sua própria 
resposta (talvez a mais desejável), como quem conversa com o próprio reflexo no espelho? A 
segunda voz (ou será a primeira?) admite estar “tocada pelo fogo” - o fogo do segredo, da 
rebeldia, da cumplicidade, talvez – e, em seguida, oferece “[m]ais um roman à clé”, usando, 
pela segunda vez, a língua francesa e definindo, dessa forma, o tom mais e elevado e talvez 
até blasé do poema. O tratamento casual do “roman à clé” como se fosse uma xícara de chá 
ou algo que pode ser consumido mais de uma vez durante uma conversa introduz sem 
cerimônias a literatura no cotidiano tal como é descrito pelo eu poético, e introduz, também, o 
 23 
elemento da metaliteratura. A referência à cultura britânica no primeiro verso, com a 
expressão “chá das cinco”, tem a mesma função de diálogo cultural e elemento de 
sofisticação. 
 O verso seguinte dá apoio à idéia de que a segunda voz seria a do interlocutor; o eu 
poético menciona o verbo “responder” em relação à oferta de roman à clé, e mostra-se 
ambíguo. O tom de “[e]u nem respondo” sugere um desprezo, mas a frase seguinte pode, por 
sua vez, sugerir confusão ou dúvida: esse “eu” ou voz afirma não ser “dama nem mulher 
moderna”. Não é claro se ela sabe o que é, uma vez que revela apenas o que não é: a 
descoberta da própria identidade através da eliminação do que não faz parte dela. Esse verso 
pode sugerir que a resposta negativa ou positiva definiria a voz que respondeu como “dama” 
ou “mulher moderna”, embora não seja claro qual resposta é associada com qual identidade. 
O romance com a chave biográfica é digno de uma dama, ou é característica da mulher 
moderna? O fingimento sobre os fatos reais é irreal demais para a mulher moderna, ou 
insuficiente para uma dama? 
 O verso que segue é solitário e definitivo: “[n]em te conheço.” Se esta é a mesma voz 
que, no início do poema, ofereceu informações particulares e guardadas “a sete chaves”, a 
repentina despersonalização do interlocutor pode simbolizar a liberdade do anonimato, da 
revelação de informações a quem é desconhecido. Por outro lado, pode referir-se à hesitação 
de definir-se, prontamente, diante do interlocutor, embora este se mostre cúmplice: comoquem diz, “não te conheço, não tenho obrigação de definir a minha identidade para você”. O 
processo de auto-descoberta pode se dar em público, mas é, em última instância, pessoal e 
particular. 
 A segunda parte do poema é explicitamente metapoética: surge um eu poético, talvez 
uma outra voz ainda – o que pode sugerir que as outras duas fossem uma criação desta –, que 
explica ser “desta festa” que “tir[a] versos”, da conversa, talvez, do chá das cinco: uma 
comemoração íntima, sofisticada e classuda, noção sustentada pela menção de “pecados de 
seda” e “luvas”. A definição da própria atitude como “com arbítrio / silencioso e origem que 
não confesso” lembra a imagem do eu poético como observador de conversas, de exemplos, 
invisível e misterioso. Os “pecados de seda” podem ser delicados, ou apenas ter aparência 
delicada, o que pode torná-los ainda mais perigosos. A fineza da “festa” pode ser vista como 
uma superficialidade que encobre os “pecados de seda”, o que o eu poético “não confess[a]”, 
assim como a ficção encobre a realidade no “roman à clé”. 
 24 
 Em “Conversa de senhoras”: 
Não preciso nem casar 
Tiro dele tudo o que preciso 
Não saio mais daqui 
Duvido muito 
Esse assunto de mulher já terminou 
O gato comeu e regalou-se 
Ele dança que nem um realejo 
Escritor não existe mais 
Mas também não precisa virar deus 
Tem alguém na casa 
Você acha que ele agüenta? 
Sr. ternura está batendo 
Eu não estava nem aí 
Conchavando: eu faço a tréplica 
Armadilha: louca pra saber 
Ela é esquisita 
Também você mente demais 
Ele está me patrulhando 
Para quem você vendeu seu tempo? 
Não sei dizer: fiquei com o gauche 
Não tem a menor lógica 
Mas e o trampo? 
Ele está bonzinho 
Acho que é mentira 
Não começa 
 (CESAR, 1999, p. 48) 
 
 Os versos curtos já sugerem a agilidade e o dinamismo da oralidade; o título do 
poema, ao usar o termo “senhoras”, traz a idéia de certa tradicionalidade, uma imagem 
distinta da que projetaria a palavra relativamente neutra “mulheres”, por exemplo. Os dois ou 
três primeiros versos, que parecem ser falas de uma mesma voz, criam uma imagem 
estereotipada e um tanto mesquinha do sexo feminino: a mulher que explora emocional e 
financeiramente o homem. A inclusão, em geral, desses elementos no poema pode apontar 
uma necessidade do eu lírico de invocar essas imagens, passar por tal impressão negativa do 
feminino por parte do subconsciente coletivo (e, portanto, do seu subconsciente) na sua 
jornada de auto-descoberta – nem que, em última instância, essa faceta seja descartada. O 
quinto verso, “[e]sse assunto de mulher já terminou”, pode referir-se a essa libertação da 
imagem superficial, para procurar o que há de mais profundo na identidade da mulher. Os 
versos seguintes são exemplos de uma outra voz recorrente em Ana C. - a observadora, não 
somente de conversas e interações, mas de imagens, em geral. Como ocorre, até certo ponto, 
aqui, o eu poético joga imagens nos versos sem necessariamente relacioná-las entre si ou com 
o restante dos versos: a relação é bem mais obscura ou sutil. 
 25 
 Depois de invocar a imagem do gato, que remete aos poemas que Camargo chama de 
“da gatografia”, em Inéditos e dispersos, o eu poético decide que “[e]scritor não existe mais”, 
a que uma outra voz (ou a mesma) responde, “[m]as também não precisa virar deus”. A 
menção ao escritor pode constituir uma referência metaliterária de algum tipo – é possível que 
uma das vozes seja uma projeção da própria poeta. O pessimismo do primeiro dos dois versos 
é contrabalanceado com a associação da imagem do escritor à de deus – com 'd' minúsculo, ou 
seja, uma divindade, simplesmente, sem a referência específica ao Deus cristão. “Você acha 
que ele agüenta?” pode referir-se ao verso anterior (“[t]em alguém na casa”), ou aos 
primeiros, lembrando, novamente, o dinamismo da oralidade, em que não há uma seqüência 
perfeita de enunciações e suas respectivas respostas. 
 Em seguida, “[s]r. ternura” traz uma referência um pouco mais vaga à cultura 
anglófona; a expressão está em português, mas é típica à língua inglesa; o diálogo com outra 
cultura e o fato de estar tão bem absorvida invocam uma sensação de modernidade e 
flexibilidade verbal e literária. Os últimos versos mostram, novamente, a dinâmica da 
conversa/discussão, inspirando uma necessidade de agilidade por parte do leitor para que este 
seja capaz de acompanhar; o último verso, com “[n]ão começa”, reforça o tom de 
familiaridade entre as duas (ou mais?) vozes que discutem ao longo do poema. A 
espontaneidade da interação familiar pode inspirar insights no eu poético que procura se 
conhecer; por outro lado, se as vozes forem criadas pelo mesmo eu poético, a familiaridade, 
além de óbvia e natural, lembra, novamente, a imagem no espelho: o eu, no outro. 
 
3.1 DIÁLOGOS ENTRE CONVERSAÇÕES 
 
 Em “Encontro de assombrar na catedral”, o testemunho da conversa toma uma 
dimensão mais pessoal: 
Frente a frente, derramando enfim todas as palavras, dizemos, 
com os olhos, do silêncio que não é mudez. 
E não toma medo desta alta compadecida passional, desta 
crueldade intensa de santa que te toma as duas mãos. 
 (CESAR, 1999, p. 54) 
 
 Ao descrever uma interação entre si mesmo e um outro indivíduo, o eu poético cria 
uma mescla entre os dois “tipos” de vozes de conversação: ele participa, mas observa-se 
mesmo assim. O eu lírico brinca com antíteses: as palavras derramadas são silêncio (mas não 
são mudez), a santa é cruel. O uso da segunda pessoa do plural (“dizemos”) refere-se ao eu 
 26 
poético e a esse indivíduo com quem ele se encontra “[f]rente a frente”; nos dois últimos 
versos, o eu lírico dirige-se diretamente a ele, pedindo que “não tom[e] medo desta alta 
compadecida passional”. A sutileza do papel de observador do eu poético é, talvez, 
responsável por introduzir delicadamente o próprio leitor a essa posição; colocando-se na 
própria cena que descreve, ele passa seus “binóculos” de observador para o seu leitor, mas 
sem abandoná-lo completamente. O tema sustentado pelos elementos religiosos (“catedral”, 
“alta compadecida”, “santa”) cria uma atmosfera de gravidade e intensidade que 
possivelmente espelha a intensidade do encontro retratado. 
 Em “Aventura na casa atarracada”: 
Movido contraditoriamente 
por desejo e ironia 
não disse mas soltou, 
numa noite fria, 
aparentemente desalmado; 
- Te pego lá na esquina, 
na palpitação da jugular, 
com soro de verdade e meia, 
bem na veia, e cimento armado 
para o primeiro a andar. 
 
Ao que ela teria contestado, não, 
desconversado, na beira do andaime 
ainda a descoberto: - Eu também, 
preciso de alguém que só me ame. 
Pura preguiça, não se movia nem um passo. 
Bem se sabe que ali ela não presta. 
E ficaram assim, por mais de hora, 
a tomar chá, quase na borda, 
olhos nos olhos, e quase testa a testa. 
 (CESAR, 1999, p. 66) 
 
 O “eu” some completamente: a observação é total por parte do eu poético, de maneira 
que o poema lembra uma narrativa. Na primeira estrofe, a partir do sexto verso, e na segunda, 
a partir do terceiro, há uma clara representação de discurso, destacado pelo uso do travessão. 
Novamente, os protagonistas são dois indivíduos – um homem e uma mulher, assim como, 
talvez, os de “Encontro de assombrar na catedral” – e o eu poético reserva uma estrofe para 
cada um. Não é evidente se são representações do próprio eu poético, de arquétipos descritos 
por ele, ou afim; a maneira como a ironia é usada ao falar da mulher (“[p]ura preguiça, não se 
movia nem um passo. / Bem se sabe que ali ela não presta.”), entretanto, lembra a maneira 
com que o eu poético trata a si mesmo em outros poemas, o que pode sugerir uma projeção 
dele sobre a personagem feminina deste; a abordagem da personagem masculina é, 
comparativamente, menos íntima. O verso final (“olhos nos olhos, e quase testa a testa”) 
 27 
reforça a relação entre “Aventura na casaatarracada” e “Encontro de assombrar na catedral”; 
considerando o posicionamento do eu poético em termos de observação em cada um dos 
poemas, talvez seja possível estabelecer entre eles uma escala de intensidade: o eu poético 
posiciona-se externamente, fora das personagens em “Encontro de assombrar na catedral”
 As referências a “bitter” e “pub” invocam a cultura britânica, trazendo para o texto 
uma qualidade cosmopolita; podem, também, representar elementos de fuga para o eu 
poético, no texto: não somente contêm a idéia de distância física por pertencerem a outra 
, e é, de certa 
forma, absorvido por eles em “Aventura na casa atarracada”. 
 Outro poema sem título que representa a relação entre a voz da conversação e outras 
vozes: 
 
EXTERIOR. DIA. Trocando minha pura indiscrição pela tua 
história bem datada. Meus arroubos pela tua conjuntura. 
MAR, AZUL, CAVERNAS, CAMPOS E TROVÕES. Me encosto 
contra a mureta do bondinho e choro. Pego um táxi que 
atravessa vários túneis da cidade. Canto o motorista. Driblo a 
minha fé. Os jornais não convocam para a guerra. Torça, filho, 
torça, mesmo longe, na distância de quem ama e se sabe um 
traidor. Tome bitter no velho pub da esquina, mas pensando em 
mim entre um flash e outro de felicidade. Te amo estranha, 
esquiva, com outras cenas mixadas ao sabor do teu amor. 
 (CESAR, 1999, p. 45) 
 
 O início do poema já marca o diálogo com outro gênero textual: o dramático; a 
referência pode ser relacionada ao estado de espírito do eu poético, quem sabe até com certa 
dose de ironia. O interlocutor é um “tu” que aparece indiretamente, também logo no primeiro 
verso. A autocrítica é mesclada com um orgulho sutil: o eu poético fala de sua “pura 
indiscrição”, e depois confessa ter “cant[ado] o motorista” do táxi; não fica clara sua própria 
opinião, se é que existe, em relação a tais padrões de comportamento. A própria presença 
desses elementos no poema, entretanto, é o que marca o estilo confessional, e o mistério 
contido na aparente indiferença do eu poético é o que deixa esse estilo mais polido: ninguém 
sabe qual é o objetivo das revelações. Como quem não valoriza a informação mais íntima, o 
eu poético expõe-se com atitude blasé, despe-se naturalmente, mas sem descuidar da reação 
de quem assiste – o leitor. “[N]a distância de quem ama e se sabe um / traidor” mostra uma 
pontinha de ironia, mas sem direcioná-la especificamente ao eu poético. Em “[m]e encosto / 
contra a mureta do bondinho e choro”, o eu lírico invoca novamente a voz da revelação 
íntima, presente de maneira mais sutil em todo o poema, mas que se manifesta com mais 
intensidade em versos como este. 
 28 
cultura, mas a relação com o álcool (“bitter” é um termo usado para designar um tipo de 
cerveja inglesa, e “pub” é um bar, também específico à cultura inglesa) garante, também, o 
sentido de fuga mental. Quem toma “bitter” no “pub” não é o eu poético, mas seu interlocutor, 
e a idéia de tensão na relação entre eles é explorada nos três últimos versos: “pensando em / 
mim entre um flash e outro de felicidade” sugerem que a imagem mental do eu poético difere 
da de felicidade (que, por sua vez, pode estar relacionada com o próprio consumo de álcool). 
O último verso fala de “sabor do teu amor”, que pode criar uma relação sinestésica com 
“bitter”, e introduz uma outra interpretação do eu poético por parte de si mesmo: confessa que 
ama “estranha, / esquiva” – mais uma vez, não oferece julgamento sobre si mesmo, mas 
descreve-se como é sem esperar pela aceitação alheia. 
 Poemas como “Atrás dos olhos das meninas sérias” (I) demonstram como a idéia de 
conversação é sutil e, talvez, até tratada como default nos poemas, de maneira que outras 
vozes têm a chance de expressão mais óbvia sobre o pano de fundo do diálogo, explícito ou 
implícito: 
 
Mas poderei dizer-vos que elas ousam? Ou vão, 
por injunções muito mais sérias, lustrar pecados 
que jamais repousam? 
 (CESAR, 1999, p. 52) 
 
 O uso da segunda pessoa do plural cria uma dupla camada dialogal, à medida que 
simultaneamente indica a idéia de interação verbal e proporciona uma elevação no tom do 
poema, lembrando o diálogo entre estilos textuais. A sofisticação do vocabulário presente de 
maneira mais geral no poema também é responsável por tal elevação, embora o uso de “-vos” 
seja definitivo. O título explicita, até certo ponto, o assunto do qual fala o eu poético; 
entretanto, é essencial a idéia de que ele fala a alguém. Na produção de Ana C., como o 
poema acima, embora diminuto, exemplifica de maneira clara, é possível dizer que o diálogo 
faz o papel de justificativa para a pronunciação do eu poético; sem ter a quem contar o que 
conta nos poemas, não há razão para a existência deles. “Atrás dos olhos das meninas sérias” 
sugere um tema de exploração psicológica, talvez do próprio eu poético – entretanto, qual é o 
objetivo disso, se não o de exposição a um interlocutor, de discussão e exploração do tema 
com uma outra voz? 
 No segundo poema chamado “Atrás dos olhos das meninas sérias”: 
 
Aviso que vou virando um avião. Cigana do horário nobre do 
adultério. Separatista protestante. Melindrosa basca com 
 29 
fissura da verdade. Me entenda faz favor: minha franqueza era 
meu fraco, o primeiro side-car anfíbio nos classificados de 
aluguel. No flanco do motor vinha um anjo encouraçado, 
Charlie’s Angel rumando a toda para o Lagos, Seven Year Itch, 
mato sem cachorro. Pulo para fora (mas meu salto engancha no 
pedaço de pedal?), não me afogo mais, não abano o rabo nem 
rebolo sem gás de decolagem. Não olho para trás. Aviso e 
profetizo com minha bola de cristais que vê novela de verdade e 
meu manto azul dourado mais pesado do que o ar. Não olho 
para trás e sai da frente que essa é uma rasante: garras afiadas, 
e pernalta. 
 (CESAR, 1999, p. 53) 
 
 O tom mais elevado já foi eliminado; o eu poético impõe-se sem muitos rodeios: “[m]e 
entenda faz favor”. Novamente, a idéia de diálogo ou conversa do eu poético com um 
interlocutor é a base para o desenvolvimento do poema, introduzindo-se sutil mas firmemente. 
A aliteração do início traz à tona uma outra voz relativamente freqüente nos poemas de Ana 
C., a do exercício literário: rimas, aliterações, trocadilhos, metatexto, etc. Os primeiros versos 
apresentam um jogo de imagens sem relação explícita, que lembra a voz observadora presente 
em “Conversa de senhoras”. Tanto “Charlie's Angel”, que faz referência à a série de televisão 
norte-americana produzida na década de 1970, quanto o filme “Seven Year Itch”, de Marilyn 
Monroe, lançado em 1955, representam referências talvez um tanto icônicas à cultura pop, 
além de referências lingüísticas; é possível que não cheguem a datar o poema, uma vez que 
remetem a pontos relativamente distantes do século XX; juntamente com as outras vozes no 
poema, inclusive a auto-expositiva, presente de maneira sutil em quase todos os versos, cria 
uma imagem um tanto elusiva do eu poético, embora sustentada pelos versos: acima de tudo, 
alguém com a mesma qualidade blasé presente em outros poemas, como “EXTERIOR. 
DIA....” 
 “Samba-canção” tem uma dedicação mais clara à comunicação com um interlocutor: 
 
Tantos poemas que perdi. 
Tantos que ouvi, de graça, 
pelo telefone - taí, 
eu fiz tudo pra você gostar, 
fui mulher vulgar, 
meia-bruxa, meia-fera, 
risinho modernista 
arranhando na garganta, 
malandra, bicha, 
bem viada, vândala, 
talvez maquiavélica, 
e um dia emburrei-me, 
vali-me de mesuras 
(era uma estratégia) 
fiz comércio, avara, 
embora um pouco burra, 
 30 
porque inteligente me punha 
logo rubra, ou ao contrário, cara 
pálida que desconhece 
o próprio cor-de-rosa, 
e tantas fiz, talvez 
querendo a glória, a outra 
cena à luz de spots, 
talvez apenas teu carinho, 
mas tantas, tantas fiz... 
 (CESAR, 1999, p. 72) 
 
 A posição em que se coloca o eu poético aqui é bem distinta; sem vitimizar-se,explora 
a idéia de submissão emocional a um outro indivíduo, que trata, simplesmente, por “você”. O 
título, um trocadilho (invocando, novamente, a voz do exercício literário), remete à linguagem 
e a temas comuns à música popular. No entanto, o eu poético toma essas características e 
veste-as, moldando-as ao próprio contorno e estilo. A partir do quinto verso, ele passa a listar 
diferentes personas que diz ter assumido para fazer “você gostar”, fazendo referência, talvez 
às próprias identidades poéticas que assume ao procurar a sua própria voz; a menção aos 
“poemas que perd[eu]” no primeiro verso pode sustentar essa interpretação. Em última 
instância, olhando sob esta perspectiva, “você” pode representar a entidade ou indivíduo para 
quem escreve (ou, simplesmente, fala) o eu poético: o leitor. Através da metáfora do amor 
romântico para representar a relação entre o eu poético e o seu leitor, o poema revela, de 
maneira inusitada, o tom desse relacionamento sob o ponto de vista do eu poético. Usando a 
referência da música popular para comunicar-se com o leitor, descrevendo o processo de 
criação poética e a busca pela própria identidade contida nele, o eu poético cria um ambiente 
quase divertido, quase brincalhão: um flerte misterioso em que ambas as partes conhecem os 
fatos, mas inventam um jogo mútuo de ignorância proposital. 
 “[R]isinho modernista / arranhando na garganta” faz uma referência explícita à história 
literária; além da interpretação sugerida no parágrafo anterior, estes dois versos podem sugerir 
a metáfora contrária: é possível que o eu poético tenha adaptado uma analogia ou metáfora do 
mundo literário para sua própria história. Assim como a literatura ocidental, de maneira mais 
ampla, passou pelo modernismo, um momento de dolorosa e radical mudança nos conceitos 
considerados importantes até então, talvez da mesma forma o eu poético tenha passado por 
essa mudança bruta em um nível emocional, aceitando completamente o “risinho modernista”, 
muito embora ele saia “arranhando na garganta”. Sob esse ponto de vista, é possível uma 
interpretação deste “você” tanto como sendo o leitor quanto um outro indivíduo qualquer com 
quem o eu poético pode ter tido um envolvimento romântico. 
 31 
 Já “vali-me de mesuras / (era uma estratégia)”, abre novamente a possibilidade para 
uma interpretação centrada na idéia da relação entre o poeta/eu poético e o leitor, bem como o 
próprio fazer poético, como temas principais, tratados através da metáfora do amor romântico. 
Ao admitir, entre parênteses, ter planejado a situação em que “val[e-se] de mesuras”, o eu 
lírico brevemente invoca a voz confessional de maneira mais intensa, e, de certa forma, faz 
referência a todos os momentos em que se despe literariamente em frente ao leitor para 
mostrar a ele o coração de sua busca poética. Ao reconhecer a própria consciência desses 
momentos de exposição, retira, temporariamente, o véu da inocência e mostra-se 
exibicionista. Os versos “querendo a glória, a outra / cena à luz de spots” podem demonstrar 
um desejo pelo reconhecimento, seja do valor literário da voz que domina o poema, seja do 
amor que o eu poético sente por outro indivíduo. Expandindo essa primeira possibilidade, o 
eu poético confessa que o 'tour' feito pelas identidades literárias pode ter sido em busca da 
relevância artística, do novo, da renovação que beneficia não apenas a literatura em si, como 
também o ego do próprio poeta. Ao expor esse aspecto que pode ser considerado mais 
mesquinho, a questão da franqueza 'confessional' ressurge. 
 Alguns dos poemas chegam a expor questões implícitas em outros poemas; “Tudo que 
eu nunca te disse...” é um deles. Aqui, são principalmente as vozes da conversação e da 
confessionalidade a serem exploradas dessa maneira: 
 
Tudo que eu nunca te disse, dentro destas margens. 
A curriola consolava. 
O assunto era sempre outro. 
Os espiões não informavam direito. 
A intimidade era teatro. 
O tom de voz subtraía um número. 
As cartas, quando chegavam, certos silêncios, 
nunca mais. 
Excesso de atenção varrido para baixo do capacho. 
Risco a lápis sobre o débito. Vermelho. 
Agora chega. Hoje, aqui, de repente, de 
propósito, de batom, 
leio: “Contas novas”, em letras plásticas. 
Três variações de assinatura. 
Três dias para o livro de cheques desta agência. 
Demito o agente e o atravessador. 
Felicidade se chama meios de transporte. 
Saída do cinema hipnótico. Ascensão e queda e 
ascensão e queda 
deste império, mas vou abrir um lacre. 
Antes disso, um sus: pousa aqui. Ouve: “Como 
em turvas águas de enchente....” 
É lá fora. Espera. 
 (CESAR, 1999, p. 80) 
 
 32 
 Assim como em “Samba-canção”, talvez seja possível uma dupla interpretação do 
poema: o eu poético compartilha um relacionamento, talvez amoroso, com um outro 
indivíduo, ou conversa com seu leitor sobre o próprio fazer o poético. O primeiro verso 
introduz o elemento do discurso metapoético; o eu poético menciona a qualidade das palavras 
de estarem escritas no papel, ao menos: “dentro destas margens”. A vagueza da referência 
permite que o eu poético fale tanto de um poema quanto de outro texto – como uma carta. A 
carta é, talvez, o tipo de texto em que o tom e o estilo confessional surgem com mais 
naturalidade: ao apresentar a possibilidade da carta no próprio poema, a poeta brinca com 
gêneros textuais e valida o tom confessional simultaneamente. 
 “A intimidade era teatro.” talvez seja o verso-chave para a compreensão do poema e 
possivelmente de boa parte da poesia de Ana Cristina. Assim como o restante do poema, o 
verso é ambíguo, de maneira que sua inserção é casual e, portanto, pode passar despercebida. 
O possível sentido romântico ou que sugere um relacionamento de algum tipo leva o leitor a 
reassumir sua posição de “confidente”, “cúmplice”; o eu poético fala a alguém, um “tu” 
implícito, mas expõe a carta ou mensagem, simplesmente, ao leitor. Ele é o “tu”, e ele é o 
terceiro que escuta pela fresta da porta, deixada propositalmente. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 33 
4 A RELAÇÃO COM O LEITOR NAS OUTRAS SEÇÕES DE A TEUS PÉS 
 
 A prosa que compõe Correspondência completa e boa parte de Luvas de pelica, 
publicações anteriores menores que foram incluídas em A teus pés quando este foi lançado em 
1982, tem a carta como tema (e forma) principal, mas sem submetê-la ao poema. O 
desenvolvimento da prosa através da carta permite o florescimento da metatextualidade sem o 
peso que esta carrega na poesia; na carta, a referência ao próprio texto é natural e até 
esperada, chegando a ser fundamentalmente um procedimento que data o conteúdo, fixando-o 
em determinado momento temporal específico. Correspondência completa consiste em um 
único texto, em prosa, cujo vocabulário e organização lembram muito uma carta tradicional; a 
protagonista assina como “Júlia” e faz referência direta a outros indivíduos com quem 
convive (“Gil”, “Mary”, “Cris”, “Thomas”, etc. - além do próprio destinatário). O ar 
inerentemente confessional da carta, bem como referências soltas a impressões, sentimentos, 
conclusões criam um tipo de prosa poética discreta, que procura deixar as marcas de seu estilo 
através da sutileza e do implícito: 
 
(...) 
 Penso pouco no Thomas. Passou o frio dos primeiros dias. Depois, desgosto: dele, do pau dele, 
da política dele, do violão dele. Mas não tenho mexido no assunto. Entrei de férias. Tenho medo que o 
balanço acabe. O Thomas de hoje é muito mais velho do que eu, não liga mais, estuda, milita e amor na 
sua Martinica de longos peitos e dentes perfilados, tanta perfeição. 
 Atraída pelo português de camiseta que atendeu no Departamento Financeiro.Era jacaré e 
tinha bigode de pontas. Ralhei com tesão que me deu uma dor puxada. 
(...) 
 (CESAR, 1999, p. 117) 
 
 Como o trecho acima demonstra, além da própria voz da conversação que é, talvez, a 
característica primária do texto da carta, é possível a identificação da voz confessional 
permeando cada frase do texto, bem como o diálogo com a forma da carta, da qual o texto se 
apropria sem cerimônias. A digestão do estilo da carta parece ser completada no conteúdo de 
Luvas de pelica, em que a poesia é usada no texto, mas o tom da carta continua evidente. O 
texto é formado por pequenos trechos separados apenas por espaço no papel, em que versos e 
prosa alternam-se. Alguns dos mais longos adotam o tom tradicional da carta presente em 
Correspondência completa; a aparente aleatoriedade das informações apresentadas em cada 
trecho remete à cumplicidade compartilhada por dois indivíduos que trocam cartas: 
explicações não são necessárias quando ambos estão cientes do que as informações contidas 
no texto representam; o leitor, por outro lado, é exposto apenas ao que consta no papel – e 
imagina o restante. A própria literariedade do texto talvez esteja contida no mar de 
possibilidades que este indica. 
 34 
(...) 
Tenho certeza de que você não pintaria as paredes de preto. 
“Querida, 
Hoje foi um dia um pouco instável em Paris. 
Recebeu meu primeiro cartão-postal?” 
(Me dei ao luxo de ser meio tipo hermética, “assim você se 
expõe a um certo deboche”, amoroso sem dúvida, na mesa do 
jantar.) 
Não dá para ver, eu sei, 
mas meu desenho guarda sim 
você 
não fala 
trai 
um desejo pardessus tous les autres, 
mesmo nesse penúltimo pato aqui, está vendo, que eu cobri 
mais um pouco naquele dia em que não gritei de raiva, 
mas não fui eu que pintei a galeria de preto, você sabe que eu 
não sou sinistra. 
O manequim de dentro, reflexo do manequim de fora. Se você 
me olha bem, me vê também no meio do reflexo, de máquina 
na mão. 
(...) 
 (CESAR, 1999, p. 128) 
 
 O uso dos versos pode ser uma maneira de fazer a referência específica ao leitor, 
chamar a atenção deste: se a carta, por não representar tradicionalmente o texto literário, pode 
colocar o leitor em uma posição de intromissão, tirando-o de seu conforto, o poema devolve a 
ele um lugar mais evidente. A presença do outro, do destinatário, do “você” ou “tu” dentro do 
texto não passam de teatro - “[a] intimidade era teatro”. O eu poético que se esconde, 
brincalhão ou tímido, dentro do texto prosaico da carta, aqui acaba por revelar-se dentro da 
própria carta, relembrando ao leitor que este tem permissão de estar ali, exposto aos segredos 
e experimentações do texto. Nos últimos três versos do trecho citado acima, o eu poético 
chama atenção às entrelinhas do texto e aos vãos entre as vozes que se manifestam: “Se você / 
me olha bem, me vê também no meio do reflexo, de máquina / na mão”. Desta vez, o reflexo 
está inteiro, não são cacos perfurando o rosto do eu poético como no poema de Inéditos e 
Dispersos citado anteriormente. Não apenas o eu poético convida seu interlocutor (o “você”, 
talvez inventado, e também o leitor) a ver a sua imagem refletida, como fica diante dela com 
“máquina / na mão”. Se essa “máquina” for uma máquina fotográfica, a posição do eu poético 
diante da sua imagem pode ser interpretada como aceitação, interesse – ou mesmo narcisismo. 
 Em “Fogo do final”, de A teus pés: 
 
Escrevendo no automóvel. 
Pedra sobre pedra: você estava para chegar. 
Numa providência, me desapaixonei, num risco, numa frase: 
Não adiantam nem mesmo os bilhetes profanos pela 
 35 
grande imprensa. 
(...) 
[...] dirijo em círculo pelo maior passeio 
público do mundo, nos perdemos – exclamo num achado –, 
é tardíssimo, um deserto industrial com perigosas 
bocas imperguntáveis. 
Não precisa responder. 
(...) 
Me jogo aos teus pés inteiramente grata. 
Bofetada de estalo – decolagem lancinante – baque de fuzil. 
É só para você, y que letra tán hermosa. 
(...) 
A amizade recente com o carteiro do Brasil, que entra vila 
adentro e bate na janela e me entrega o envelope pelo nome. 
Os grunhidos do ciúme. Minhas escapadas pelo grande mundo, 
suas retiradas para dentro da sólida mansão. Não foi nada disso. 
Então o quê? 
26 de março. 
Preciso começar de novo o caderno terapêutico. Não é como o 
fogo do final. Um caderno terapêutico é outra história. É 
deslavada. Sem luvas. Meio bruta. É um papel que desistiu de 
dar recados. 
(...) 
Nele eu sou eu e você é você mesmo. Todos nós. 
(...) 
O terapêutico não se faz de inocente ou rogado. Responde e 
passa as chaves. Metálico, estala na boca, sem cascata. 
E de novo. 
 (CESAR, 1999, p. 81-83) 
 
 Como em vários outros poemas, a presença de “você” logo nos primeiros versos deixa 
clara a natureza de interação entre o eu poético e um outro alguém; a confissão é mais uma 
conversa franca, verdadeira. Ao assegurar ao seu interlocutor que este “[n]ão precisa 
responder”, o eu poético novamente traz à tona a possibilidade da interação implícita com o 
leitor. Ambos já sabem que a condição para que tal interação exista é que ela seja apenas de 
um lado: o eu poético fala, o leitor absorve, não tem voz explícita. Aqui, o eu lírico aceita 
isso, com naturalidade ou, quem sabe, com um leve tom magoado. A inclusão de um trecho 
em espanhol (“y que letra tán hermosa”) pode consistir em uma referência a um texto externo 
– Borges, talvez? –, uma vez que nada no texto explica ou reforça a presença do trecho. O 
verso “26 de março” lembra o início de uma página de diário (ecoando, talvez, os poemas “16 
de junho” (I), “18 de fevereiro”, “19 de abril”, “16 de junho” (II), “21 de fevereiro” e “Meia-
noite, 16 de junho”, de Cenas de abril, que também integra a edição de A teus pés lançada em 
1982). O eu poético, então, faz referência ao que chama de “caderno terapêutico”, que define 
como “um papel que desistiu de dar recados”. Seria esse “caderno” um diário? Ou, quem 
sabe, mesmo um caderno de poemas? Ou ambos? 
 Um “papel que desistiu de dar recados” pode ser interpretado como algo íntimo, feito 
 36 
com o propósito de auto-conhecimento, sem obrigação para com os outros. Há a idéia de 
desistência, que sugere um empenho na direção de “dar recados” no passado. Agora é “[m]eio 
brut[o]”, e, principalmente, nesse papel “eu sou eu e você é você mesmo”; não há necessidade 
para máscaras ou disfarces quaisquer. A qualidade “terapêutic[a]” do papel é que ele 
“[r]esponde e / passa as chaves”; dá ao eu poético (e até a “você”, que pode ser o próprio 
leitor) as respostas às perguntas que ele faz sobre si mesmo. Será essa a razão primordial para 
o texto literário, em qualquer forma e com quaisquer idealizações ou experimentações – 
liberdade? 
 Cristovão TEZZA (2003, p. 68-70), sobre a utilidade da poesia, coloca: 
Eis um ponto em que, por caminhos tortos e completamente desencontrados, a alta poesia se encontra 
com a intuição popular: a idéia da poesia como linguagem ornamental é forte no imaginário popular. 
(...) Quanto à noção de utilidade, que aqui nos interessa especificamente, o pensamento poético 
moderno parece ter consolidado uma imagem forte da poesia como um inutensílio, repetindo a 
expressão feliz do poeta Paulo Leminski. (...) 
 A idéia moderna da não-utilidade da poesia como um de seus traços essenciais tem pelo menos 
três faces. (...) A segunda face tem uma natureza menos técnica e mais escancaradamente ideológica: a 
poesia – como de resto qualquer arte – não pode estar a serviço de nada, não pode ser “instrumento” de 
nada além de si mesma. Aqui ela não serve para nada porque o poeta não quer que ela sirva para nada. 
(...) [D]e meados do século XVIII em diante (...), a poesia será entendida como o espaço da liberdade 
pessoal, individual, intransferível, a válvula de escape dos grilhões da linguagem e de seu arsenal 
pragmático de funções cotidianas; por extensão, será também a válvula de escape dos grilhões sociais.

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