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HISTÓRIA DA FILOSOFIA ANTIGA PROF. REMO M. FILHO Reitor: Prof. Me. Ricardo Benedito de Oliveira Pró-Reitoria Acadêmica Maria Albertina Ferreira do Nascimento Diretoria EAD: Prof.a Dra. Gisele Caroline Novakowski PRODUÇÃO DE MATERIAIS Diagramação: Edson Dias Vieira Thiago Bruno Peraro Revisão Textual: Camila Cristiane Moreschi Danielly de Oliveira Nascimento Fernando Sachetti Bomfim Luana Luciano de Oliveira Patrícia Garcia Costa Renata Rafaela de Oliveira Produção Audiovisual: Adriano Vieira Marques Márcio Alexandre Júnior Lara Osmar da Conceição Calisto Gestão de Produção: Cristiane Alves © Direitos reservados à UNINGÁ - Reprodução Proibida. - Rodovia PR 317 (Av. Morangueira), n° 6114 Prezado (a) Acadêmico (a), bem-vindo (a) à UNINGÁ – Centro Universitário Ingá. Primeiramente, deixo uma frase de Sócrates para reflexão: “a vida sem desafios não vale a pena ser vivida.” Cada um de nós tem uma grande responsabilidade sobre as escolhas que fazemos, e essas nos guiarão por toda a vida acadêmica e profissional, refletindo diretamente em nossa vida pessoal e em nossas relações com a sociedade. Hoje em dia, essa sociedade é exigente e busca por tecnologia, informação e conhecimento advindos de profissionais que possuam novas habilidades para liderança e sobrevivência no mercado de trabalho. De fato, a tecnologia e a comunicação têm nos aproximado cada vez mais de pessoas, diminuindo distâncias, rompendo fronteiras e nos proporcionando momentos inesquecíveis. Assim, a UNINGÁ se dispõe, através do Ensino a Distância, a proporcionar um ensino de qualidade, capaz de formar cidadãos integrantes de uma sociedade justa, preparados para o mercado de trabalho, como planejadores e líderes atuantes. Que esta nova caminhada lhes traga muita experiência, conhecimento e sucesso. Prof. Me. Ricardo Benedito de Oliveira REITOR 33WWW.UNINGA.BR U N I D A D E 01 SUMÁRIO DA UNIDADE FILOSOFAR É UM HÁBITO NATURAL DA ESPÉCIE? .................................................................................................4 UMA PALAVRA SOBRE OS HUMANOS E A LINGUAGEM .........................................................................................5 UMA ESTRATÉGIA UNIVERSAL .................................................................................................................................5 POR QUE HISTÓRIAS? .................................................................................................................................................6 O SURGIMENTO DA FILOSOFIA NA GRÉCIA E AS ATUAIS CONTROVÉRSIAS SOBRE O ASSUNTO ....................8 UMA COLETÂNEA DE TEXTOS SOBRE O SURGIMENTO DA FILOSOFIA ............................................................... 10 ANAXIMANDRO DE MILETO ...................................................................................................................................... 16 O INFINITO COMO PRINCÍPIO E AS SUAS CARACTERÍSTICAS ............................................................................. 17 GÊNESE DE TODAS AS COISAS DO INFINITO .......................................................................................................... 18 OS INFINITOS COSMOS E A GÊNESE DO NOSSO MUNDO ..................................................................................... 19 DO MITO AO LÓGOS? PROF. REMO M. FILHO ENSINO A DISTÂNCIA DISCIPLINA: HISTÓRIA DA FILOSOFIA ANTIGA 4WWW.UNINGA.BR HI ST ÓR IA D A FI LO SO FI A AN TI GA | U NI DA DE 1 EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA . A natureza e a potência própria do discurso mítico. . O lugar-comum sobre “a passagem do mito ao lógos”. . O surgimento da filosofia na Grécia e as atuais controvérsias sobre o assunto. . As primeiras tendências do pensamento jônico. Filosofar é um hábito natural da espécie? Numa famosa passagem sobre as origens da filosofia, no Livro A da Metafísica, Aristóteles diz: Com efeito, foi pela admiração [thauma] que os homens começaram a filosofar, tanto no princípio como agora [...]. O homem que é tomado de perplexidade e admiração julga-se ignorante (por isso o amigo dos mitos [filómito] é de um certo modo filósofo, pois também o mito é tecido de maravilhas); portanto, como filosofavam para fugir à ignorância, é evidente que buscavam a ciência a fim de saber, e não com uma finalidade utilitária. Podemos tomar essas considerações como ponto de partida e especular: para uma inteligência como a nossa, a experiência de existir no mundo é uma experiência perplexificante. E a reação natural da nossa inteligência a essa perplexidade é produzir discurso – ou seja, tentar pensar e falar a respeito desse espanto, dessa admiração fundamental. Mas, além disso, meio lateralmente, o velho Aristóteles também afirma que há, pelo menos, duas maneiras distintas de dar forma ao discurso que resulta da perplexidade: por um lado, a especulação teórica, ou seja, a filosofia; por outro, a composição de histórias com elementos maravilhosos, ou seja, os mitos. Para falar sobre as origens da filosofia, vamos precisar nos deter, por um instante, a essa poderosa afirmação. Você deve saber que a quase totalidade dos manuais sobre o assunto diz que a filosofia foi um tipo de discurso que surgiu na Grécia, no século VI a.C. Antes de começarmos a contar essa história, eu vou propor uma reflexão em torno dessa simples afirmação. Ela traz como consequência necessária uma outra afirmação bastante carregada: a de que filosofar não é um hábito natural e espontâneo da espécie humana. Fosse o caso, ele não poderia ter sido inventado por um povo em um determinado momento, mas precisaria ser praticado por todos os povos em todos os tempos e lugares. Ao contrário disso, dizemos ter havido não só um povo inaugural, mas, segundo a tradição, um primeiro indivíduo, pioneiro na prática de especular teoricamente sobre o mundo. Todos os demais povos e culturas que, depois disso, passaram a filosofar o teriam feito por contaminação – aprenderam dos gregos ou dos povos que aprenderam com os gregos. O discurso teórico, filosófico ou científico é então, por nós mesmos, concebido como uma raríssima excepcionalidade – muito disseminada nas duas últimas dúzias de séculos. E, no entanto, estamos tão habituados com a sua presença no nosso ambiente cognitivo, que é comum nem mesmo nos atentarmos para o fato de que ele é invenção relativamente recente se considerarmos o tempo da presença humana sobre a Terra. A cognição humana não tende espontaneamente para a teorização e a conceituação, mas, sim, para o simbólico. Vamos esclarecer essas ideias um pouco mais a fundo. Tem havido uma certa tendência nas últimas décadas a questionar essa narrativa canônica que aponta a Grécia como a cultura de origem da filosofia. Trataremos desse assunto mais adiante, mas, desde já, é preciso observar: as teses que apontam lugares alternativos como berço do pensamento filosófico incorrem no mesmo caso de que estamos tratando: na medida em que atribuem pioneirismo a algum povo, como o egípcio ou o hindu, também concebem a prática de filosofar como tendo sido inventada e instaurada em algum momento e, portanto, como um hábito não espontâneo e universal na espécie. 5WWW.UNINGA.BR HI ST ÓR IA D A FI LO SO FI A AN TI GA | U NI DA DE 1 EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA Uma palavra sobre os humanos e a linguagem A experiência humana de realidade está profundamente condicionada pelo uso da linguagem articulada. Tal é a força desse condicionamento, que você não seria nem mesmo capaz de imaginar o que seria da sua experiência de realidade se você fosse desprovido de linguagem. O que seria a experiência que você está tendo agora se você não dispusesse de conceitos com os quais organizá-la? Conceitos, por exemplo, como os de “apostila”, de “universidade”, de “professor”, de “educação”. Ou mesmo as noções de “escritório”, “computador”. O que seria dessa massa hipercomplexa de fenômenos? Note que todos nós já tivemos uma experiênciapré-linguística da realidade, durante os anos da primeira infância – mas não conseguimos ter nem mesmo uma vaga lembrança dela. Só lembramos daquilo que foi decodificado e organizado linguisticamente em nosso aparato cognitivo. Todas essas considerações conduzem a uma mesma conclusão: é um tanto ingênuo achar que você experimenta um mundo em si mesmo e que, depois, você o reveste de linguagem, ou seja, de familiaridade, significação, compreensibilidade. Não: aquilo que você chama de mundo e entende como tal já é um complexo recortado e organizado pela linguagem (e veja que isso é muitíssimo diferente de dizer que o que você chama de mundo se reduz à linguagem). Isso é de tal maneira determinante, que podemos dizer que as noções de “mundo humano”, “mundo da linguagem articulada” e “mundo da cultura” são perfeitamente intercambiáveis e delimitam o mesmo objeto. Só há cultura onde há linguagem articulada, e só há ambas as coisas em ambientes humanos. De fato, podemos nos perguntar por que isso é assim. Podemos retornar à passagem da Metafísica em que Aristóteles associa a perplexidade fundamental da experiência humana à produção de linguagem. É como se pudéssemos, com isso, torná-la mais familiar, mais compreensível, revestida de alguma significação. Há aqui uma questão pertinente: e quanto à linguagem praticada por alguns animais? E quanto aos sofisticados códigos de comunicação usados por diversas espécies, como golfinhos e baleias, e que já foram decifrados por biólogos e etólogos? Em geral, a expressão “linguagem articulada” se refere aos códigos convencionados pela cultura humana. Aqui, a chave é notar que não são os pais da baleia que ensinam o filhote a emitir seus sons. Ele já sabe fazer isso por instinto, e essa linguagem está, por assim dizer, inscrita nos seus genes. Diferentemente de um filhote de golfinho, você não desenvolveria sozinho a língua portuguesa se ninguém lha tivesse ensinado. A linguagem humana é indissociável da noção de cultura, ou seja, daquilo que é artificialmente cultivado e legado de geração em geração – aquilo que precisou ser inventado precisa ser mantido e pode ser perdido. A língua das baleias só se modifica se houver alguma mutação em seus genes. A linguagem humana, ao contrário, está sob nossa responsabilidade. Uma estratégia universal Reflitamos um pouco sobre o que acabou de ser dito: a linguagem desempenha a tarefa de revestir o mundo, o real, de familiaridade, de significação, de cognoscibilidade. Não se trata de uma tarefa trivial. Não nos esqueçamos, nem por um momento, de que as noções de “mundo”, de “real” etc. também são conceitos, aliás, não desprovidos de estranhamento e vertigem. Para desempenhar essa notável função, as culturas humanas sempre recorreram a um mesmo dispositivo, notavelmente universal em sua disseminação: o dispositivo de contar histórias. Todos os povos de que jamais tenhamos tido notícia, remotos que sejam no tempo ou no espaço, resguardam como elemento central da sua cultura um conjunto de narrativas que encerram e transmitem a sabedoria acumulada do povo, aquilo que deve ser legado às próximas gerações. 6WWW.UNINGA.BR HI ST ÓR IA D A FI LO SO FI A AN TI GA | U NI DA DE 1 EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA Essas histórias veiculavam uma certa cosmovisão, uma certa hierarquia de valores, propunham certos modelos de comportamento (tanto positivos quanto negativos), comunicavam sistemas de interdição e prescrição (ou seja, os comportamentos proibidos, os obrigatórios e as gradações entre esses dois extremos) e tudo o mais que for relevante para a vida daquele povo. Em muitos casos, traziam também instruções práticas bastante diretas, que envolviam conhecimentos sobre os ciclos da natureza, a fertilidade da terra, as técnicas de caça e pesca, as instruções para a performance de rituais, e assim por diante. Em geral, essas histórias eram extremamente imaginosas, o que as tornava, aliás, muito memoráveis e falavam de divindades, acontecimentos fantásticos, feitos heroicos, seres fantásticos ou monstruosos. Confiadas primeiramente à transmissão oral, eram transmitidas de geração em geração, com os cuidados que são devidos às coisas sagradas. Histórias, relatos, narrativas – ou aquilo que os gregos chamavam de mythos. Um mito. Uma sequência de eventos narrados de maneira a veicular os elementos importantes para a manutenção de uma cultura. Nele, os personagens, as situações, os conflitos, os elementos narrativos – tudo isso serve como veículo simbólico para a transmissão dos saberes decisivos. Isso já nos mune de uma primeira definição: mitos são formas simbólicas de condensar e legar a cultura de um povo. A palavra mythos, em grego, originalmente significava apenas “fala”, no sentido mais amplo do termo. Foi depois do surgimento de um novo tipo de “fala”, a teorética ou filosófica, que mythos passou a designar especificamente histórias, relatos ou narrativas. Já na Grécia Antiga, operou-se o giro semântico, que fez com que essa noção se aproximasse da de “relato imaginário”, de “ficção”, e, em nova inflexão, passasse a designar simplesmente “mentira” (uma acepção que, aliás, conhecemos também nas línguas modernas). É curioso, mas, dependendo do contexto, na língua grega, a palavra mythos podia se referir às verdades sagradas ou a simples engodos. Se isso nos parecer demasiado estranho, pensemos na envergadura semântica da noção de “história”: um fato “histórico” é aquele documentado, comprovado, pretensamente verdadeiro; mas, quando dizemos uma frase como “fulano disse tal coisa, mas acho que é só história dele”, estamos usando o termo como sinônimo de “invencionice” ou “mentira”. Por que histórias? Na cultura humana, o uso dos mitos é tão universal quanto o da própria linguagem articulada. É o uso fundamental e o mais frequente que fazemos dela. Essa universalidade talvez revele algo importante sobre as estruturas profundas da cognição humana. Por que os mitos são tão universais? Podemos pensar, em primeiro lugar, na sua acessibilidade irrestrita. Compreender uma história não requer qualificações, treino prévio, familiaridade com terminologia técnica etc. O mesmo, note-se, não pode ser dito do discurso teórico, frequentemente reservado a especialistas. Além da acessibilidade irrestrita, outro traço que talvez explique a universalidade do uso dos mitos é a sua notável eficácia. Quando analisamos a maneira como o mito se propaga e age para moldar uma cultura, percebemos que tudo o que ele precisa fazer para cumprir as suas funções é impressionar a imaginação de quem o ouve. Nesse processo, acontece algo comparável a quando lemos um romance ou assistimos a um filme: nós, voluntariamente, emprestamos a nossa atenção a um contador de histórias, que conduz a nossa imaginação por uma série de experiências e, ao fim, no-la devolve. Quer percebamos quer não, a nossa psique resta transformada por esse trajeto. Para que o efeito se desencadeie, não é preciso que o ouvinte concorde com nenhuma “tese” apresentada – mitos, aliás, não estão oferecendo teses, mas, sim, experiências imaginativas. O que é decisivo é o fato de que, como rastro desse processo, ficam alguns sulcos, algumas marcas na nossa imaginação. 7WWW.UNINGA.BR HI ST ÓR IA D A FI LO SO FI A AN TI GA | U NI DA DE 1 EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA Para esclarecer a questão, podemos recorrer a duas breves observações feitas por Aristóteles sobre a phantasía ou imaginação humana. Disse ele: as experiências imaginativas são como as reais, apenas que mais débeis. Fantasiar uma experiência traz algo dela, desencadeia em nós uma versão fraca de sua versão exterior. De fato, se fechamos os olhos e imaginamos o sabor e a textura de um limão, vamos começar a salivar. Se imaginamos uma cena sexual, hormônios diversos começam a ser produzidos e despejados em nosso sistema circulatório. Se imaginamos uma cena perigosa, mesmo a sabendo inteiramente imaginária, teremos descargas de adrenalinae de cortisol no sistema sanguíneo, uma aceleração da frequência cardíaca, e assim por diante. Atos imaginativos desencadeiam efeitos e consequências concretas sobre nossos corpos. Mas, segundo Aristóteles, há mais uma diferença entre a experiência real e a imaginativa: sobre as primeiras, temos precário controle; sobre as últimas, temos total ingerência. Nós só parcialmente escolhemos o que vamos viver, mas podemos plenamente escolher o que imaginar. E podemos tanto imaginar por conta própria como também, conforme já foi dito, ceder a nossa imaginação a um condutor de imaginações – seja ele um contador de mitos, um escritor, um cineasta, um dramaturgo, um poeta ou, mesmo, um coreógrafo ou compositor. Já os gregos chamavam de “psicagogia” esse processo pelo qual o contador de histórias conduz as imaginações de seus ouvintes. A palavra significa literalmente “condução das psiques” ou “condução das almas”. Trata-se de uma metáfora poderosa: nas práticas da feitiçaria grega, “psicagogo” era um sacerdote necromante, que conjurava as almas dos mortos e lhes punha sob seu poder, a serviço das suas ordens. Nessa metáfora, o contador de histórias é comparado ao feiticeiro que submete e conduz as nossas mentes, que guia os nossos universos imaginativos, e nós, seus ouvintes, somos as almas sob seu comando. Agora consideremos o seguinte. Pessoas que passaram pelas mesmas experiências costumam extrair delas valores semelhantes. Tendo enxergado a complexidade do real a partir de um mesmo ângulo, tendem a vislumbrar algumas hierarquias de importância, a forjar algumas disposições diante do mundo. Se é propósito da cultura perpetuar e transmitir certos valores, seria conveniente poder submeter todos os seus membros a algumas mesmas experiências formativas. E os mitos são justamente isso: experiências imaginativas condensadas, oferecidas em larga escala à totalidade de uma população, de maneira a proporcionar a formação de certos mesmos valores. Se, por exemplo, os gregos precisavam preparar seus jovens para a guerra, era preciso não só prepará-los com técnicas de luta e combate, mas também inculcar neles os valores próprios dos povos guerreiros. Para esse fim, seria muito pouco eficiente explicar, de maneira teórica, a importância da coragem e a vileza da covardia. Muito mais eficiente do que isso é contar uma imaginosa história de guerra, que desperte afetos pelos personagens, que faça o ouvinte partilhar dos desejos e medos envolvidos e que, então, mostre atos de coragem e covardia, suas motivações e consequências. Ou seja: que mobilize as emoções para condicionar certas disposições sobre o comportamento humano. Essas histórias de guerra de fato existiam, e a mais célebre delas é, sem dúvida, a veneranda Ilíada, de Homero. É uma chave compreender, portanto, que os mitos são, antes de mais nada, experiências estéticas. Se, de fato, forjam disposições diante do mundo, não é por persuadirem o ouvinte a certas teses, nem por lhe exporem um argumento teórico: é pelo expediente de lhes oferecerem uma experiência. Tenhamos ainda em mente o fato de que, nas mais diversas culturas, alguns elementos recorrentes sempre serviram para potencializar o efeito dos mitos como experiências estéticas. Em primeiro lugar, a sacralização: essas histórias são frequentemente tidas como a fala de profetas ou de figuras divinizadas ou do próprio Deus. Também pelo uso de ritos e de liturgias, que frequentemente são a “encenação” ou “presentificação” da narrativa sagrada, de maneira a torná-la um evento que se testemunha, um acontecimento de que se toma parte e que envolve os participantes pelo estímulo de vários dos sentidos simultaneamente. 8WWW.UNINGA.BR HI ST ÓR IA D A FI LO SO FI A AN TI GA | U NI DA DE 1 EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA Outro fator de potencialização da experiência estética é a enunciação ritualizada: é comum que, nas diversas culturas, certos textos sagrados sejam proclamados em datas específicas por sacerdotes ou xamãs autorizados, conforme um certo calendário litúrgico e desde algum lugar ritualmente especificado. Com o que foi dito, podemos ter um vislumbre do tipo de questão que está em jogo quando se fala em “passagem do mito à filosofia”. Estamos falando de duas formas discursivas que têm propósitos distintos, embora comportem vastas zonas de fronteira e possam ter, entre si, diversas formas de interação. O surgimento da filosofia na Grécia e as atuais controvérsias sobre o assunto Fato é que, segundo relatos antiquíssimos, houve em Mileto um grupo pioneiro de indivíduos que começou a falar sobre a realidade de uma maneira diferente. Mileto era uma cidade da Jônia, região da Anatólia, atual Turquia, onde os gregos haviam estabelecido colônias já havia cinco séculos. Uma região rica, entreposto de rotas comerciais, onde se encontravam navegantes vindos de todos os portos do Mediterrâneo. É de Aristóteles que deriva a tradição de considerar que lá houve um primeiro indivíduo, um pioneiro no ato de filosofar: Tales de Mileto. Figura célebre e venerável, um dos Sete Sábios da Grécia, homem de posses e de linhagem sacerdotal, astrônomo, geômetra, observador da natureza, que talvez tenha viajado pelo Egito. Conta-se, entre seus feitos, que tenha sido capaz de, apenas pela observação dos astros, prever um eclipse do Sol (o do dia 28 de maio de 585 a.C.). Nada há de trivial em instaurar uma nova forma de discurso para dar conta de questões fundamentais. É preciso imaginar a situação de uma figura como a de Tales ou dos pioneiros da filosofia em geral: lidar com questões fundamentais e urgentes, a que a sua própria cultura não é capaz de responder e que não tinha nem mesmo sido capaz de formular. Ser obrigado a enfrentar essas questões fundamentais, munido tão somente do próprio intelecto individual, aquele mesmo cujos equívocos e enganos foram tantas vezes testemunhados por aquele mesmo que pensa – eis a situação. E quais questões exatamente eram essas? Aqui, deparamo-nos com uma dificuldade de base: a escassez de documentos. Talvez Tales de Mileto tenha escrito um manual de navegação, que depois se perdeu. Fora isso, nada deixou escrito, e o que sabemos de seu pensamento é o que foi transmitido posteriormente por outros autores. Também será essa a situação de quase todos os filósofos anteriores a Platão. Exceto pelo caso de Empédocles, tornado exceção por uma recente e extraordinária descoberta arqueológica, perderam-se as obras de todos os ditos “pré- socráticos”, e eles nos são conhecidos apenas por “doxografia” – ou seja, pelo registro em paráfrase de suas opiniões em obras posteriores. É o que às vezes também é chamado de “testemunho” sobre esses primeiros filósofos. Distinguem-se dos “fragmentos”, que são as citações diretas feitas por sucessores, sempre mais raras. Pois bem: o que nos conta a doxografia é que Tales era um sábio empenhado em especular sobre a phýsis – palavra grega que costumamos traduzir como “natureza”, mas que, em sentido da época, era simplesmente uma noção de totalidade do real, que incluía em si mesmo as divindades e o mundo humano. Há intérpretes que entendem que essa phýsis, que era objeto de reflexão de Tales e de seus discípulos, era uma precursora da muito abstrata e ainda inexistente noção de “ser”. 9WWW.UNINGA.BR HI ST ÓR IA D A FI LO SO FI A AN TI GA | U NI DA DE 1 EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA A palavra vem do verbo phyein, que significa “brotar”, “nascer”, “germinar”, “crescer” – daí sua tradução para o termo latino natura, de significado semelhante. Seja como for, segundo os antigos testemunhos, Tales se ocupava tanto dos fenômenos específicos da “natureza” (como o ciclo das estações e o movimento dos astros) como, segundo os testemunhos, com o sentido da sua totalidade, seu princípio, seu fundamento. Como não temos obras em primeira mão, é um pouco inevitável que a nossa compreensão desses primeiros filósofos seja muito condicionada pelo relato de Aristóteles,o primeiro a registrá- los de maneira sistemática e organizada. Eis o que ele diz a esse respeito (Metafísica A 983 b6): Na sua maior parte, os primeiros filósofos pensaram que os primeiros princípios, sob a forma de matéria, foram os únicos princípios de todas as coisas: pois a fonte original de todas as coisas que existem, aquela a partir da qual uma coisa é primeiro originada e na qual é por fim destruída, a substância que persiste, mas se modifica nas suas qualidades, essa, afirmam eles, é o elemento e o primeiro princípio das coisas existentes, e por essa razão consideram que não há geração ou morte absolutas, com base no fato de uma tal natureza ser sempre preservada... pois deve haver alguma substância natural, uma ou mais do que uma, de que provêm as outras coisas, enquanto ela é preservada. A pesquisa contemporânea busca maneiras de contornar esse condicionamento, mas permanece o fato de que é por lentes aristotélicas que enxergamos esse processo. E é Aristóteles, como acabamos de ver, quem estabelece uma forte associação entre os primeiros filósofos e a famosa (e algo enigmática) “busca pela arché”, ou “o princípio” fundamental. A palavra grega arché tem a mesma ambiguidade que o termo “princípio” resguarda em língua portuguesa: por um lado, significa “início” ou “começo”, em sentido temporal; por outro, significa também “fundamento”, em sentido estrutural. O raciocínio que parece estar implícito é o seguinte: se notarmos que todas as coisas que existem têm uma causa; se, ademais, notarmos que essas causas, por sua vez, são entes também causados; e se admitirmos, por fim, que uma regressão infinita de causas é uma ideia naturalmente repelente para a especulação humana, será razoável supor a existência de um princípio último. Uma causa das causas, ela própria incausada. Aquilo de que todo o universo se origina, aquilo que o sustenta a cada instante, aquilo em que ele se dissolve. A unidade de fundo por trás da multiplicidade do real que a nós se manifesta. E o que seria esse princípio último, essa arché? Prossegue Aristóteles, na continuação do trecho anterior: Contudo, sobre o número e a forma desta espécie de princípio nem todos estão de acordo; mas Tales, o fundador deste tipo de filosofia, diz que é a água (e por consequência declarou que a terra está sobre a água), tendo talvez formulado esta suposição por ver que o alimento de todas as coisas é úmido, e que o próprio calor dele provém e vive graças a ele (aquilo de que provêm é o princípio de todas as coisas) – formulou a hipótese não só a partir disto, como ainda do fato de os embriões de todas as coisas terem uma natureza úmida, sendo a água o princípio natural das coisas úmidas. Eis o famoso princípio associado a Tales: “tudo é água”. O sentido exato dessa proposição nos é bastante misterioso, e talvez essa primeira hipótese teórica da história do pensamento (se pudermos convencionar que tal é o caso) ainda tenha muito de símbolo, de recurso metafórico para aludir à plasticidade do real, ao fato de que ele se apresenta em múltiplos estados etc. Também se atribui a ele uma tese hilozoísta, ou seja, de que toda matéria é viva, de que todas as coisas possuem alma ou estão “repletas de deuses” (segundo Aristóteles nos reporta no De Anima). 10WWW.UNINGA.BR HI ST ÓR IA D A FI LO SO FI A AN TI GA | U NI DA DE 1 EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA E, no entanto, talvez a frase mais importante desse parágrafo da Metafísica seja a primeira: “sobre o número e a forma desta espécie de princípio nem todos estão de acordo”. Eis o que se relata: Tales, o primeiro filósofo, divisou a imensa e longeva questão: qual a arché da realidade? Seus discípulos herdaram a questão do mestre, mas chegaram a conclusões diferentes: para Anaximandro, a arché seria o ápeiron, “o ilimitado” ou “indeterminado” ao passo que, para Anaxímenes, outro discípulo, a arché seria o ar. As primeiras linhagens mestre-discípulo da história da filosofia já contêm a marca de uma discordância. O professor fez com que seus alunos fossem contaminados pela interrogação, mas cada um deles chegou a uma hipótese ou teoria (diríamos depois). De fato, na filosofia, as questões são muito mais contagiosas do que as repostas que tentam encaminhá-las. Mas o fundamental é observar que o que se inaugura nesse momento é uma curiosa e algo paradoxal tradição: uma tradição de dissenso e de discordância. Tales podia ser um mestre muito sábio, mas não era exatamente um ser divino, portador de alguma revelação; era apenas um mestre que observava, especulava e concluía. Sua própria prática convidava à reabertura e reexame da questão. Eis onde está o traço divisor que separa essa prática discursiva de todas as demais, como a dos mitos sagrados ou dos saberes sacerdotais. Por que as opiniões de Aristóteles são tão importantes quando falamos das primeiras tendências da filosofia? Ele próprio, um filósofo grego, publicando suas obras cerca de 200 anos depois dos seus antecessores jônios, Aristóteles é autor da mais antiga tentativa conhecida de se empreender uma história da filosofia. Nas primeiras páginas da Metafísica, ele identifica os primeiros filósofos por um critério demarcador (foram os primeiros a pensar em termos de causas e princípios) e, a partir daí, faz um compilado crítico dos filósofos que o antecederam, até seu mestre Platão. Seus relatos são preciosos e indispensáveis. A questão é que ele não apenas reporta as ideias de seus predecessores, como também – nem sempre com distinção clara – especula, infere, supõe raciocínios e motivações. Fazer o trabalho de restauração do original por baixo das pinceladas de Aristóteles (e de outros doxógrafos) está entre as tarefas mais frequentes dos estudiosos dos primeiros filósofos gregos. Talvez seja inevitável que tenhamos uma leitura algo aristotélica de todo o processo. Não há nada de errado em que nossa visão seja condicionada pela de mestres antigos – apenas é preciso lembrarmos que é o caso. Uma coletânea de textos sobre o surgimento da filosofia Iniciamos o texto desta unidade com o seguinte tema: o surgimento da filosofia é questão controversa, ela própria filosófica, por toda uma série de razões. Para que tenhamos em mente o tipo de dissenso de que estamos falando, a diversidade de pressupostos e conclusões, de concepções e recortes, segue adiante uma amostragem exemplar. Trata-se de uma pequena coleção de textos que não pretende ser exaustiva, mas meramente ilustrativa. É uma coletânea bastante heterogênea, que inclui exposições célebres de autores antigos (Aristóteles, Diógenes Laércio), trechos relevantes de pensadores modernos e contemporâneos (Hegel, Russell, Nietzsche, Popper, Deleuze), a opinião de alguns helenistas ou historiadores da filosofia (Châtelet, Vernant, Hadot) e, ainda, passagens de obras de divulgação ou introdução à filosofia (Reale, Danilo Marcondes). O propósito é o de dar uma ideia da complexidade desse fenômeno e da quantidade de opiniões divergentes, ou mutuamente excludentes, que circulam ou circularam a respeito desse episódio fundamental. Na leitura dos trechos a seguir, é interessante notar algumas nuances e sutilezas. A maneira como Aristóteles equipara com naturalidade a poesia dos antigos e a especulação dos filósofos. O fato de Diógenes Laércio registrar a existência de uma controvérsia, já nos tempos antigos, sobre em qual cultura a filosofia se originou. A maneira como Hegel sintetiza o lugar-comum de que a filosofia, pensamento racional, é evolução natural do mito e da religião, veículos do sentimento. 11WWW.UNINGA.BR HI ST ÓR IA D A FI LO SO FI A AN TI GA | U NI DA DE 1 EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA A ideia provocativa de Nietzsche segundo a qual a grande filosofia é sempre sintoma de crise civilizacional. A proposta de Russell de entender a filosofia como uma “terra de ninguém” entre a teologia (de quem herda o tipo de questão) e a ciência (de quem herda o método especulativo não dogmático).O contraste entre as concepções de duas obras didáticas de grande circulação, as de Danilo Marcondes e de Giovanni Reale. A maneira como Deleuze descreve Platão como uma espécie de reacionário que aplicou um contragolpe religioso disfarçado de filosofia no pensamento da pura imanência que os gregos tinham inventado. Claro que, a partir dessas leituras, é possível propor um exercício de reflexão: quais dessas exposições seriam conciliáveis entre si? Quais se excluiriam como modelos descritivos? A quais aspectos do fenômeno cada uma delas se refere? Reflitamos sobre todas essas questões e retornemos a elas em momentos futuros para revisitá-las com uma visão mais clara sobre o que seja o pensamento filosófico. ============================================================ Aristóteles, Metafísica, Livro A. Tradução: Marcelo Perine. [982a] É pois evidente que a sabedoria é um conhecimento sobre certos princípios (archàs) e certas causas (aitías). [983b] Tales, o precursor desse tipo de filosofia, afirma ser a água o princípio (daí afirmar também que a terra flutua sobre a água) (…) Também há quem creia que os muito antigos, os primeiros a fazer discursos sobre os deuses, muito antes da geração de agora, também concebiam a natureza da mesma forma. Apontaram, com efeito, Oceano e Tétis como autores das gerações, e disseram que a água, chamada de Estige, é aquilo sobre o que juram os deuses. (…) Mas não é inteiramente claro que tal opinião sobre a natureza tenha sido tão originária e tão antiga; diz-se ter sido Tales o primeiro a professar essa doutrina da causa primeira. [984b] Poderia se pensar que foi Hesíodo, contudo, o primeiro a buscar esse tipo de causa, ou qualquer outro que pôs Eros e a atração como o princípio de todos os seres, como o fez, por exemplo, Parmênides. Este, de fato, ao reconstituir a origem do cosmos, diz: “Primeiro entre todos os deuses, [a Deusa] fez Eros”; enquanto Hesíodo diz: “Antes de todas as coisas, por primeiro nasceu o Caos, depois a terra de amplos seios, e Eros, que resplandece entre os imortais”, como se ambos reconhecessem que deve haver nos seres uma causa que move e reúne as coisas. ============================================================ Diógenes Laércio, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, Livro I. Tradução: Mário da Gama Kury. Segundo alguns autores o estudo da filosofia começou entre os bárbaros. Esses autores sustentam que os persas tiveram seus Magos, os babilônios ou assírios seus Caldeus, e os indianos seus Gimnosofistas; além disso entre os celtas e gálatas encontram-se os chamados Druidas ou Veneráveis, de acordo com o testemunho de Aristóteles em sua obra O Mago e de Sotíon no Livro XXIII de sua obra Sucessões dos Filósofos. (…) Para os egípcios Héfaistos era filho do Nilo, e com ele começou a filosofia, sendo os sacerdotes e profetas seus principais expoentes. (…) Esses autores ignoram que os feitos por eles atribuídos aos bárbaros pertencem aos helenos, com os quais não somente a filosofia mas a própria raça humana começou. (…) Na realidade a filosofia teve uma origem dupla, começando com Anaximandro e com Pitágoras. O primeiro foi discípulo de Tales, enquanto Pitágoras recebeu lições de Ferecides. ============================================================ 12WWW.UNINGA.BR HI ST ÓR IA D A FI LO SO FI A AN TI GA | U NI DA DE 1 EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA G. W. F. Hegel, Introdução à história da filosofia. Tradução: Euclidy Carneiro da Silva. O conteúdo geral da filosofia existiu antes em forma de religião, na forma de mito, do que em forma de filosofia. (…) O progresso da filosofia é um progresso necessário. Cada filosofia deveria ter aparecido em seu tempo, como apareceu. Toda filosofia apareceu assim no tempo conveniente, nenhuma poderia ter saltado sobre seu próprio tempo, mas todas as filosofias compreenderam conceitualmente o espírito de sua época. Representações religiosas e determinações do pensamento, o conteúdo do direito, o conteúdo da filosofia, tudo isso é um e o mesmo espírito. As filosofias tornaram consciente tudo o que existia em sua época sobre religião, sobre o Estado, etc. (…) Mas, assim como a religião leva a cabo esta reconciliação [entre o Homem e o Absoluto] na prece e no culto, quer dizer, pelo caminho do sentimento, assim também o conseguirá a filosofia por meio de pensamentos, por meio do conhecimento intelectual. A devoção é o sentimento da unidade do divino e do humano, porém, do sentimento intelectual; na expressão “devoção” já está contido o pensamento; é um impulso na direção do pensamento, uma tendência para ele (…) Mas a forma da filosofia é pensar puro, é saber, é conhecer; e é aqui onde começa a diferença com a religião. ============================================================ B. Russell, História da Filosofia Ocidental. Tradução: Brenno Silveira. Filosofia é uma palavra que tem sido empregada de várias maneiras, umas mais simples, outras mais restritas. A Filosofia, conforme entendo a palavra, é algo intermediário entre a Teologia e a Ciência. Como a Teologia, consiste de especulações sobre assuntos a que o conhecimento exato não conseguiu até agora chegar, mas, como a Ciência, apela mais à razão humana do que à autoridade, seja esta a da tradição ou da revelação. Todo conhecimento definido pertence à Ciência; e todo dogma, quanto ao que ultrapassa o conhecimento definido, pertence à Teologia. Mas entre a Teologia e a Ciência existe uma Terra de ninguém: é a Filosofia. Quase todas as questões do máximo interesse para os espíritos especulativos são de tal índole que a Ciência não as pode responder, e as respostas confiantes dos teólogos já não nos parecem tão convincentes como o eram nos séculos passados. Acha-se o mundo dividido em espírito e matéria? E, supondo-se que assim seja, o que é espírito e o que é matéria? Acham-se os espíritos sujeitos à matéria, ou eles são dotados de forças independentes? Possui o universo algum propósito? Está ele evoluindo de alguma maneira rumo a alguma finalidade? Existe realmente alguma Lei da Natureza ou acreditamos nelas devido unicamente ao nosso amor inato pela ordem? É o homem o que ele parece ser ao astrônomo, isto é, um minúsculo conjunto de carbono e água a rastejar, imponentemente, sobre um pequeno planeta sem importância? Ou é ele o que parece ser a Hamlet? Acaso é ele, ao mesmo tempo, ambas as coisas? Existe alguma maneira de viver que seja nobre e outra que seja baixa, ou todas as maneiras de se viver são simplesmente inúteis? Se há um modo de vida nobre, em que consiste ele, e de que maneira praticá-lo? Deve o Bem ser eterno, para merecer o amor que lhe atribuímos, ou vale a pena procurá-lo, mesmo que o universo se mova, inexoravelmente, para a morte? Existe sabedoria, ou o que nos parece tal não passa do último refinamento da loucura? Tais questões não encontram respostas nos laboratórios, e os teólogos têm pretendido dar suas respostas, todas elas demasiado concludentes, mas a sua própria segurança faz com que o espírito moderno as encare com suspeita. O estudo de tais questões, mesmo que não se resolvam esses problemas, constitui o empenho da Filosofia. ============================================================ 13WWW.UNINGA.BR HI ST ÓR IA D A FI LO SO FI A AN TI GA | U NI DA DE 1 EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA F. Nietzsche, frag. X, 112. Tradução: Marco Antonio Casanova. São os tempos de grande perigo em que os filósofos aparecem – então, quando a roda gira sempre mais rapidamente –, eles e a arte assumem o lugar do mito em extinção. Mas eles se projetam muito para frente porque só muito lentamente a atenção dos contemporâneos se volta para eles. Um povo consciente dos seus riscos gera o gênio. ============================================================ Pierre Hadot, O que é filosofia antiga. Tradução: Dion Davi Macedo. Todos esses pensadores [a partir de Tales] propõem uma explicação racional do mundo, e isso é uma reviravolta decisivana história do pensamento. Já existiam cosmogonias antes deles, no Oriente Médio e também na Grécia arcaica, mas elas eram de tipo mítico, isto é, descreviam a história do mundo como uma luta entre entidades personificadas. Eram “gêneses” no sentido bíblico do livro do Gênesis, destinadas a conduzir um povo à memória de seus ancestrais e a uni- los às forças cósmicas e às gerações dos deuses. ============================================================ Danilo Marcondes, Iniciação à história da filosofia. Um dos elementos centrais do pensamento mítico e de sua forma de explicar a realidade é o apelo ao sobrenatural e ao mistério, ao sagrado, à magia. A causa dos fenômenos naturais, aquilo que acontece aos homens, tudo é governado por uma realidade exterior ao mundo humano e natural, superior, misteriosa, divina, a qual só os sacerdotes, os magos, os iniciados, são capazes de interpretar, ainda que apenas parcialmente. (…) É Aristóteles, como dissemos acima, quem afirma ser Tales de Mileto, no séc. VI a.C., o iniciador do pensamento filosófico-científico. Podemos considerar que esse pensamento nasce basicamente de uma insatisfação com o tipo de explicação do real que encontramos no pensamento mítico. (…) É nesse sentido que a tentativa dos primeiros filósofos da escola jônica será buscar uma explicação do mundo natural (a physis, φύσις, daí o nosso termo “física”) baseada inteiramente em causas naturais, o que consistirá no assim chamado naturalismo da escola. A chave da explicação do mundo de nossa experiência estaria então, para esses pensadores, no próprio mundo, e não fora dele, em alguma realidade misteriosa e acessível. ============================================================ Giovanni Reale, História da Filosofia Antiga, Vol. 1. Tradução: Marcelo Perine. Pode-se dizer que, para o homem homérico e para o homem grego filho da tradição homérica, tudo é divino, no sentido de que tudo o que acontece é obra dos deuses. Todos os fenômenos naturais são produzidos por numes: os trovões e os raios são lançados por Zeus do alto do monte Olimpo, as ondas do mar são levantadas pelo tridente de Posseidon, o sol é carregado pelo áureo carro de Apolo, e assim por diante. (…) Mas quem são esses deuses? São – como há tempo se reconheceu acertadamente – forças naturais diluídas em formas humanas idealizadas, são aspectos do homem sublimados, hipostasiados; são forças do homem cristalizadas em belíssimas figuras. Em suma: os deuses da religião natural grega são homens amplificados e idealizados; são, portanto, quantitativamente superiores a nós, mas não qualitativamente diferentes. Por isso a religião pública grega é certamente uma forma de religião naturalista. (…) 14WWW.UNINGA.BR HI ST ÓR IA D A FI LO SO FI A AN TI GA | U NI DA DE 1 EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA Assim como foi naturalista a religião dos gregos, também “a sua mais antiga filosofia foi naturalista; e mesmo quando a ética conquistou a preeminência, a sua divisa continuou sendo a conformidade com a natureza”. (Zeller-Mondolfo, I, 1) Isso é indubitavelmente verdadeiro e bem estabelecido, mas ilumina apenas uma face da verdade. Quando Tales disse que “tudo está cheio de deuses”, mover-se-á, sem dúvida, em análogo horizonte naturalista: os deuses de Tales serão deuses derivados do princípio natural de todas as coisas (água). Mas quando Pitágoras falar em transmigração das almas, Heráclito, de um destino ultraterreno das almas e Empédocles explicar a via da purificação, então o naturalismo será profundamente lesionado. ============================================================ Karl Popper, “Os primórdios do racionalismo”, in: Textos escolhidos (org. David Miller). Tradução: Vera Ribeiro. (…) defendo que o ponto decisivo é a atitude crítica, a qual, como tentarei mostrar, desenvolveu-se originariamente na escola jônica. (…) Em todas ou quase todas as civilizações, encontramos algo como ensinamentos religiosos e cosmológicos, e em muitas sociedades encontramos escolas. (…) Longe de serem locais de debate crítico, assumem a tarefa de transmitir uma doutrina clara e de preservá-la pura e inalterada. Sua tarefa é transmitir a tradição, a doutrina do fundador, do primeiro mestre, à tradição seguinte; para isso, o mais importante é manter a doutrina inviolável. Esse tipo de escola nunca admite uma ideia nova. (…) o caráter da filosofia grega e das escolas filosóficas é muito diferente do tipo dogmático de escola que descrevemos aqui. (…) Novas ideias são propostas como tais e emergem como resultado de uma crítica franca. (…) Uma tradição que permite ou incentiva debates críticos entre várias escolas e, o que é mais surpreendente, dentro de uma mesma escola. (…) Se buscarmos os primeiros sinais dessa nova atitude crítica, dessa liberdade de pensamento, seremos conduzidos à crítica feita a Tales por Anaximandro. Eis um fato notável: Anaximandro critica seu mestre e parente, um dos Sete Sábios, fundador da escola jônica. (…) Isso sugere que Tales fundou uma tradição de liberdade, baseada em uma nova relação entre mestre e discípulo. ============================================================ François Châtelet, “Do mito ao pensamento racional”, in: História da filosofia – A filosofia pagã. Tradução: Maria José de Almeida. A história moderna da filosofia da Antiguidade restabelece uma ordem, intelectualmente satisfatória para aqueles que a elaboram. No princípio, há a religião, o mito, a poesia (…); em seguida uma transição: os “pré-socráticos”. No mesmo “saco” são metidos os “físicos” – Tales, por exemplo –, os atomistas, os médicos, os historiadores, Heráclito, Parmênides, Anaxágoras, Empédocles, os sofistas. Surge então Sócrates: tudo muda, mas de uma maneira que não é ainda radical. Com Platão, com a fundação da Academia, em 387, é instituída finalmente a ordem da racionalidade; precária, inábil, essa ordem, que estará sujeita a múltiplas modificações, determinou já seus princípios. Ao pensamento que obedece à exigência lendária, substitui-se uma nova lógica regulando, graças a uma estrita disciplina do discurso, a questão do direito à palavra verdadeira, isto é, eficaz. (…) A partir daí introduz-se o debate sobre a origem do discurso filosófico. Onde está o corte entre o mito e o pensamento racional? Estará ele presente nesses pensadores físicos que, como Tales, tomam por objeto da interrogação decisiva os fenômenos naturais? Ou será antes preciso esperar por Heráclito ou Parmênides, que são os primeiros a colocarem a questão do ser e, em consequência, inauguram o problema metafísico? 15WWW.UNINGA.BR HI ST ÓR IA D A FI LO SO FI A AN TI GA | U NI DA DE 1 EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA Será conveniente situar mais seriamente o começo da filosofia no escrito platônico, preservado em sua maior parte e que coloca pela primeira vez de maneira explícita o problema da razão: o do discurso integralmente legitimado? E os atomistas? De onde vêm? Em suma, a ideia de uma gênese tranquila que conduziria do imaginário ao real, da magia à prática, da particularidade (social) ao universal (humano), do desejo ao discurso, é comprometida desde que se coloca a questão de sua articulação. Como a análise de J. Bernhardt estabelecerá, a denominação corrente de “pré-socráticos” atribuída aos autores sôfregos de teoria e cronologicamente anteriores ou contemporâneos de Sócrates é característica de uma concepção progressista e simplificadora do devir do pensamento. A questão em todo caso é mais complicada: e é certo que não se pode resolvê-la tomando por referência uma progressão linear que conduziria da pré-razão à razão realizada, da filosofia em potência à filosofia em ato (…). O horizonte de que [a filosofia] pretende se desprender e que almeja ultrapassar e julgar determina-o inteiramente. Assim, o pensamento, por volta do século V antes da nossa era, passa do reinado do mito ao império da lógica filosófica: mas essa passagem significa precisamente quejá havia, de um lado, uma lógica do mito e que, de outro lado, na realidade filosófica ainda está incluído o poder do lendário. Do mito ao pensamento racional? Certamente. Mas aquele não é pura imaginação desordenada e este tende a se impor como um novo mito. ============================================================ G. Deleuze, Nos Grecs et leurs modernes – les stratégies contemporaines de appropriation de l’antiquité. Tradução: Peter Pelbart. Esse problema tem sua fonte na cidade. Porque elas recusam toda transcendência imperial bárbara, as sociedades gregas, as cidades (mesmo no caso das tiranias) formam campos de imanência. Estes são preenchidos, povoados por sociedades de amigos, isto é, de livres rivais, cujas pretensões entram cada vez mais em um agón emulante e se exercem nos domínios mais diversos: amor, atletismo, política, magistraturas. Um tal regime acarreta evidentemente uma importância determinante da opinião. Vemos isso particularmente no caso de Atenas e de sua democracia: autoctonia, philia, doxa são os três traços fundamentais, e as condições sob as quais nasce e se desenvolve a filosofia. A filosofia pode em espírito criticar esses traços, ultrapassá-los, corrigi-los, ela permanece indexada a eles. O filósofo grego reclama de uma ordem imanente ao cosmos, como mostrou Vernant. Ele se apresenta como o amigo da sabedoria (e não como um sábio à maneira oriental). Ele se propõe a “retificar”, a assegurar as opiniões dos homens. São essas as características que sobrevivem nas sociedades ocidentais, mesmo se elas aí recebem um novo sentido, e que explicam a permanência da filosofia na economia do nosso mundo democrático: campo de imanência do “capital”, sociedade dos irmãos ou dos camaradas da qual cada revolução se reclama (e livre concorrência dos irmãos), reino da opinião. ============================================================ J. P. Vernant. “Do mito à razão”, in: Mito e pensamento entre os gregos. Tradução: Haiganuch Sarian. No decurso dos últimos cinquenta anos, a confiança do Ocidente neste monopólio da razão foi todavia abalada. A crise da física e da ciência contemporâneas minou os fundamentos – que se julgavam definitivos – da lógica clássica. O contato com as grandes civilizações espiritualmente diferentes da nossa, como a da Índia e a da China, rompeu os quadros do humanismo tradicional. O Ocidente já não pode hoje considerar o seu pensamento como sendo o pensamento, nem saudar na aurora da filosofia grega o nascer do sol do Espírito. 16WWW.UNINGA.BR HI ST ÓR IA D A FI LO SO FI A AN TI GA | U NI DA DE 1 EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA Em uma época em que se inquieta pelo seu futuro e em que põe em dúvida os seus princípios, o pensamento racional volta-se para as suas origens: interroga o seu passado para se situar, para se compreender historicamente. (…) Indicamos já os dois traços que, no domínio da filosofia, caracterizam o novo pensamento grego. São, por um lado, a rejeição, na explicação dos fenômenos, do sobrenatural e do maravilhoso; por outro, a ruptura com a lógica da ambivalência, a procura, no discurso, de uma coerência interna, por uma definição rigorosa dos conceitos, uma nítida delimitação dos planos do real, uma estrita observância do princípio de identidade. Estas inovações, que introduzem uma primeira forma de racionalidade, não constituem de qualquer forma um milagre. Não existe imaculada concepção da Razão. Como Cornford mostrou, o advento da filosofia é um fato histórico, enraizado no passado, formando-se tanto a partir dele como contra ele. Esta mutação mental aparece solidária das transformações que se produzem, entre os séculos VII e VI, em todos os níveis das sociedades gregas: nas instituições políticas da Cidade, no direito, na vida econômica, na moeda. Mas solidariedade não significa simples reflexo. A filosofia, se ela traduz aspirações gerais, coloca problemas que só a ela pertencem: a natureza do Ser, relações do Ser e do pensamento. Para os resolver, é preciso que ela mesma elabore os seus conceitos, construa a sua própria racionalidade. Nesta tarefa, ela pouco se apoiou no real sensível; não recolheu grande coisa da observação dos fenômenos naturais; não fez experiências. A própria noção de experiência lhe permaneceu estranha. A sua razão não é ainda a nossa razão, esta razão experimental da ciência contemporânea, orientada para os fatos e para a sua sistematização teórica. ============================================================ Anaximandro de Mileto Tendo conversado sobre o surgimento da filosofia e sobre a nossa tentativa de compreender e descrever esse evento, já é hora de nos dedicarmos a um exercício de reflexão, a uma performance da experiência do thauma e do tipo de especulação discursiva que dele deriva. As exposições em vídeo sobre Anaximandro são essa ocasião. Sugiro que esses vídeos sejam acompanhados da leitura do texto sobre esse filósofo, retirado do Volume I da sua História da Filosofia Antiga. O trecho traz uma sucinta reconstituição da leitura que tradicionalmente sempre se fez de Anaximandro (e que, para fins de rigor acadêmico, deve ser contrastada com pesquisas recentes relevantes, como as que Chales Kahn registrou no livro Anaximander and the origins of Greek Cosmology). 17WWW.UNINGA.BR HI ST ÓR IA D A FI LO SO FI A AN TI GA | U NI DA DE 1 EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA O infinito como princípio e as suas características Foi Anaximandro1 (como agora parece filologicamente estabelecido ou, quando menos, muito provável) quem introduziu o termo arché para designar o primum, a realidade primeira e última das coisas, vale dizer, a physis da qual já falamos a propósito de Tales (recordemos que o título da obra de Anaximandro é Peri physeos, “Sobre a Natureza”). Mas, contrariamente a Tales, ele sustenta que tal princípio não era a água, mas o ápeiron, vale dizer, o infinito ou ilimitado. Referem-nos às nossas fontes antigas: Anaximandro de Mileto (...) afirmava que princípio e elemento das coisas é o ápeiron, introduzindo por primeiro o termo ‘princípio’; e dizia que este não era nem água nem outro daqueles que se chamam elementos, mas outra natureza (physis) infinita da qual provêm todos os céus e os universos neles contidos2. E toda a antiga doxografia, sobre este ponto, não deixa dúvida. Mas que é o ápeiron? Digamos logo que ápeiron é só imperfeitamente traduzido por “infinito” e “ilimitado”, porque contém algo mais que os dois termos portugueses não transladam. Á-peiron significa o que é privado de “peras”, isto é, de limites e determinações não só externas, mas também internas. No primeiro sentido, ápeiron indica o infinito espacial, infinito em grandeza, isto é, o infinito quantitativo; no segundo, ao invés, o indefinido quanto à qualidade, portanto, o indeterminado qualitativo. O infinito anaximandriano devia ter, pelo menos implicitamente, essas duas valências: de fato, enquanto gera e abraça infinitos universos, deve ser espacialmente infinito e, enquanto não é determinável como a água, o ar etc., é qualitativamente indeterminado. Nesse pensamento, existe indiscutivelmente uma originalidade e uma profundidade que, no grego - como veremos -, permanecerão um tanto excepcionais: princípio, realidade última das coisas, só pode ser o infinito, justamente porque, enquanto tal, ele não tem princípio nem fim, é ingênito e imperecível e, por isso mesmo, pode ser princípio das outras coisas. Diz Aristóteles, referindo-se a Anaximandro: Todas as coisas são ou princípio ou do princípio: e do infinito não há princípio, porque teria um limite. Ademais, como princípio, é ingênito e imperecível: pois o que é gerado deve ter um fim, e o fim é próprio de toda dissolução. Por isso, dizemos, dele não pode haver princípio, mas ele parece ser o princípio das outras coisas, e parece envolvê-las todas e regê-las, como dizem todos aqueles que não põem outras causas além do infinito .... E o infinito aparececomo o divino, porque é imortal e indestrutível, como dizem Anaximandro e grande parte dos fisiólogos3. 1 Anaximandro foi, muito provavelmente, discípulo de Tales (cf. Diels-Kranz, 12 A 2, A 9, A 11, A 12). Segundo o testemunho de Apolodoro em Diógenes Laércio, II, o filósofo teria 64 anos no segundo ano da 58ª Olimpíada (547- 546 a.C.) e teria morrido logo depois: portanto, teria nascido em 611 a.C. Compôs um tratado que, segundo antigos testemunhos, levava o título “Sobre a Natureza” (do qual nos chegou um fragmento) e que constituía o primeiro escrito filosófico dos gregos e do Ocidente. Também Anaximandro exerceu, ainda mais que Tales, a atividade política. Eliano (Var. hist., Ill, 17 Diels-Kranz, 12 A 3) nos refere: “Anaximandro comandou a colônia migrada de Mileto a Apolônia”; e nas escavações arqueológicas de Mileto foi descoberta uma estátua que os concidadãos lhe dedicaram, certamente pelas suas benemerências políticas. 2 Simplício, III Arist. Phys., 24, 13 (Teofrasto, As opiniões dos físicos, fr. 2 Diels-Kranz, 12 A 9). 3 Aristóteles, Física, T 4, 203 b 6ss. (Diels-Kranz, 12 A 15). 18WWW.UNINGA.BR HI ST ÓR IA D A FI LO SO FI A AN TI GA | U NI DA DE 1 EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA A passagem que lemos, além das razões pelas quais Anaximandro pôs o infinito como princípio, dá ulteriores indicações preciosas: o infinito envolve ou circunda e rege ou governa todas as coisas. Ora, sobre o significado desses termos (que são quase certamente genuínos) não pode haver dúvida: o envolver e o reger indicam e especificam exatamente a função do princípio, que é a de compreender e reger todas as coisas, porque todas se geram do princípio, consistem e são no e pelo princípio. Enfim, a passagem aristotélica sublinha o valor caracteristicamente teológico do princípio. Anaximandro considerou o seu princípio como divino, porque imortal e incorruptível (as palavras exatas de Anaximandro devem ter sido “eterno e sempre jovem”). E isso [vimos antes] Tales já deve ter dito, e posteriormente o reafirmou, diz-nos ainda Aristóteles, ‘a maior parte dos filósofos da natureza’. E é claro que a água de Tales e o infinito de Anaximandro devem ter sido considerados como Deus, ou, mais exatamente, como ‘o divino’: de fato, assumem em si, como princípio, como arché ou physis de tudo, as características que Homero e a tradição consideravam exatamente prerrogativas essenciais dos deuses: a imortalidade, o domínio e governo de tudo. E diz bem Jaeger que Anaximandro (e já implicitamente Tales) vai mais além, afirmando que a imortalidade do princípio deve ser tal que não admita não só um fim, mas nem sequer início. E, se é assim, então fica abalada a própria base sobre a qual foram construídas as teogonias e as genealogias dos vários deuses: assim como o divino não morre, também não nasce; ele é infinito e eterno. ‘Seria um erro - conclui então Jaeger - negar importância religiosa a essa sublime concepção do divino partindo de opiniões e teorias pré-concebidas sobre a natureza da verdadeira religião, afirmando, por exemplo, que não se pode pregar o deus de Anaximandro ou que a especulação física não é religião. Ninguém contestará que para nós não se pode dar nenhuma forma superior de religião sem a idéia do infinito e da eternidade que Anaximandro une ao seu novo conceito do divino.’4 A afirmação é exata, mas só à medida que corrige a antiga concepção dos pré-socráticos como materialistas e ateus ou ateizantes em sentido moderno; todavia, ela deve ser corrigida num ponto central. O que caracteriza a concepção do Divino em Anaximandro e nos pré-socráticos é e permanece sempre o naturalismo, no sentido de que, em lugar de ver no Divino o outro do mundo, eles veem nele a própria essência do mundo, a physis de todas as coisas, e não lhe atribuem nenhuma daquelas características a que, com categorias posteriores, chamaremos espirituais; não lhe atribuem sequer o que há de mais elevado no homem, vale dizer, o pensar. E a melhor prova do que estamos dizendo é que Anaximandro, como nos é especificamente transmitido, “disse que os céus infinitos eram deuses”, isto é, não hesitou em chamar pelo nome de “deuses” os infinitos mundos, que, como logo veremos, nascem do princípio infinito e têm longuíssima duração, mas estão sujeitos à morte. E chamou-os deuses certamente enquanto manifestação infinita do princípio infinito. Assim, também para ele, como para Tales e no mesmo sentido de Tales, pode- se dizer que tudo está cheio de deuses, tudo é divino. Gênese de todas as coisas do infinito Como nascem as coisas do infinito, através de que processo e por que causa? As nossas fontes nos dizem concordemente que isso aconteceria por uma separação ou um destacamento de contrários (quente-frio, seco-úmido etc.) do princípio uno, por causa de um movimento eterno. 4 Jaeger, La teologia dei primi pensatori greci, p. 47. 19WWW.UNINGA.BR HI ST ÓR IA D A FI LO SO FI A AN TI GA | U NI DA DE 1 EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA Essa “separação”, ou esse “destacamento”, em si permaneceria um tanto obscuro se não nos tivesse chegado a respeito disso um fragmento autêntico do nosso filósofo, que soa assim: “De onde as coisas tiram o seu nascimento, aí se cumpre a sua dissolução segundo a necessidade; de fato, reciprocamente pagam a pena e a culpa da injustiça, segundo a ordem do tempo”5. O fragmento (que foi interpretado de diversos modos e deformado pelos estudiosos) liga, longe de qualquer possível contestação, o nascimento e a dissolução com uma culpa e uma injustiça e com a necessidade de uma expiação dessa culpa. Provavelmente, Anaximandro se referia, nesta passagem, aos contrários, que tendem exatamente a impor-se um ao outro. A injustiça é a injustiça própria dessa imposição, e o tempo é visto como o juiz, enquanto assinala um limite a um e a outro dos contrários, pondo termo ao predomínio de um em favor do outro, e vice-versa. Mas é claro que não só a predominância alternada dos contrários é ”injustiça”, mas é injustiça o próprio fato de ter saído dos contrários, para cada um dos quais o surgimento é imediatamente uma contraposição ao outro. E, dado que o mundo nasce pela cisão dos contrários, nisso se vê a primeira injustiça, que será expiada com a própria morte do mundo, segundo determinados ciclos do tempo. Por isso, como alguém notou justamente, há uma dupla injustiça e, portanto, uma dupla necessidade de expiação: de uma parte, o fato de o mundo ter nascido da cisão em opostos da unidade do princípio; de outra, a tentativa, que depois da cisão realiza cada um dos opostos, de usurpar, com ódio ao outro, a condição de único supérstite e dominador, que seria, ao mesmo tempo, uma usurpação do lugar e dos direitos do divino imortal e indestrutível. Parece inegável nesse pensamento (e isso foi notado de diversos modos por vários pensadores) uma profunda infiltração de concepções religiosas, provavelmente órficas, assim como parece inegável certo pessimismo de fundo, que vê ligadas ao nascimento uma “imposição” e uma “culpa”, bem como na morte uma “expiação”, embora temperada pelo pensamento dominante de uma “justiça equilibradora”. Os infinitos cosmos e a gênese do nosso mundo Como o princípio é infinito, também infinitos são os mundos que se geram do princípio. E os mundos são infinitos não só na sucessão temporal, no sentido de que o mundo morrerá e depois renascerá infinitas vezes, mas também na coexistência espacial, vale dizer, no sentido de que existem, juntos, infinitos cosmos, todos eles tendo uma origem e um fim, que se perpetuam ao infinito. É difícil reconstruir com exatidão como o nosso cosmo derivou especificamente do infinito. Os testemunhos que nos chegaram falam de um movimento eterno que produz a separação dos contrários e falam de quente e frio como primeiro par de contrários, mas não especificam como, progressivamente, se constituíram em seguida todas as coisas. O quente se formou como uma esfera de fogo periférico, que,em seguida, se fragmentou em três esferas, originando, assim, o Sol, a Lua e os astros. O frio, ao invés, devia ter originalmente forma líquida; por causa do fogo, ele se transformou em ar, que, talvez por expansão provocada pelo aquecimento, fez romper, como dissemos, a esfera de fogo em três esferas, circundou-a, como que a enfaixou e, depois, lançou-a seca num movimento circular. No ar, restaram, porém, como que aberturas de forma tubular, que são como buracos, dos quais sai o fogo: os corpos celestes que vemos são exatamente a luz que passa por esses buracos (assim como os eclipses ocorrem pelo momentâneo fechamento desses buracos). 5 O fragmento é reportado por Simplício, III Arist. Phys., 24, 13ss. ( DielsKranz, 12 B 1). 20WWW.UNINGA.BR HI ST ÓR IA D A FI LO SO FI A AN TI GA | U NI DA DE 1 EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA Por sua vez, do elemento líquido formaram-se a terra e o mar. Eis como Alexandre nos relata a doutrina de Anaximandro: Alguns físicos sustentam (...) que o mar é um resíduo da umidade originária. O espaço em torno à terra, de fato, teria sido úmido, e em seguida uma parte dessa umidade ter-se-ia evaporado pelo sol e daí teriam derivado os ventos e as rotações do sol e da lua (...). O que teria restado de tal umidade nas zonas côncavas da terra teria constituído o mar, que, exatamente, está em diminuição porque evapora constantemente pelo sol, até que fique tudo seco. A terra está no centro e é de forma cilíndrica e se sustenta por uma espécie de equilíbrio de forças: fica suspensa sem ser sustentada por nada, mas fica fixa por causa da igual distância de todas as partes6. E, como o elemento líquido era o originário, assim do elemento líquido, sob a ação do Sol, nasceram os primeiros seres vivos. Eis um testemunho: Segundo Anaximandro, os primeiros animais nasceram no elemento líquido, cobertos por uma capa espinhosa; tendo crescido em idade, deixaram a água e vieram para o seco, e tendo-se rompido a capa que os cobria, pouco depois mudaram o seu modo de viver7. Assim, de animais mais simples, nasceram animais mais complexos, que foram progressivamente transformando-se e adaptando-se ao ambiente. Talvez um leitor superficial sorriria diante dessas concepções, que lhe parecerão pueris; ao invés, elas são poderosamente antecipadoras e quase vaticinadoras de verdades científicas de extraordinária modernidade, e foi por isso que quisemos relatá-las. Queremos sublinhar duas: em primeiro lugar, a audácia da representação da terra, que não tem necessidade de uma sustentação material (ainda para Tales, a terra flutuava sobre a água) e se sustenta por equilíbrio de forças; e, em segundo lugar, a modernidade da ideia de que a origem da vida ocorreu com animais aquáticos e o vislumbre consequente da ideia da evolução das espécies mediante adaptação ao ambiente. E isso já é, por si, suficiente para mostrar o quanto o logos, com Anaximandro, se distanciou do mito. 6 Alexandre, Meteorol., 67, 3 ( Diels-Kranz, 12 A 27). 7 Aécio, V, 19, 4 ( Diels-Kranz, 12 A 30); cf. também os outros testemunhos em A 30 2121WWW.UNINGA.BR U N I D A D E 02 SUMÁRIO DA UNIDADE HERÁCLITO ..................................................................................................................................................................22 PARMÊNIDES ..............................................................................................................................................................24 OS SOFISTAS ...............................................................................................................................................................27 A RETÓRICA: TÉCNICA DE PERSUASÃO VAZIA DE CONTEÚDO ............................................................................28 O HOMEM É A MEDIDA DE TODAS AS COISAS .......................................................................................................29 É IMPOSSÍVEL APRENDER .......................................................................................................................................30 HERÁCLITO, PARMÊNIDES E OS SOFISTAS PROF. REMO M. FILHO ENSINO A DISTÂNCIA DISCIPLINA: HISTÓRIA DA FILOSOFIA ANTIGA 22WWW.UNINGA.BR HI ST ÓR IA D A FI LO SO FI A AN TI GA | U NI DA DE 2 EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA . O pensamento teórico na direção de especulações mais abstratas e sofisticadas. . Heráclito e a noção de lógos, central na história da cultura ocidental. . No poema de Parmênides, o vislumbre da noção de “ser”. . A radicalidade do pensamento dos sofistas: a linguagem como instauradora da realidade. Heráclito Nesta Unidade 2, vamos nos dedicar ao pensamento de alguns dos mais importantes pioneiros da filosofia: Heráclito de Éfeso, Parmênides de Eleia e alguns dos sofistas da Grécia Clássica. Nos vídeos que acompanham esta unidade, há uma exposição sobre Heráclito de Éfeso. Conforme ali é tratado, interpretar os 131 fragmentos de sua obra de que dispomos é uma tarefa desafiadora: as frases são escritas em estilo oracular, propositalmente arcaico e nebuloso, parecem encerrar enigmas e paradoxos e propõem um obscuro jogo de velamento e desvelamento. A interpretação que é proposta no vídeo deve ser acompanhada da leitura dos fragmentos na ordenação a seguir, que é tematicamente organizada de maneira a deixar transparecer, em profundidade sempre crescente, as diversas camadas em que se organiza essa filosofia multidimensional. Os números à esquerda se referem à ordenação de Diels. A tradução é de Alexandre Costa (Fragmentos contextualizados, editora Odysseus, 2012), ocasionalmente modificada. O original grego transliterado está indicado quando houver alguma relevância. A camada mais exterior (e mais famosa) do pensamento de Heráclito descreve o aspecto fugaz e inconstante do mundo e dos entes que o constituem, sempre em processo de implacável desconfiguração. É a constatação do fluxo universal, do devir incessante, o famoso “pánta rhéi” (tudo flui) atribuído a Heráclito (embora essa formulação literal não se encontre em nenhum dos seus fragmentos). Além disso, há a percepção de que é a guerra entre esses elementos sempre devenientes que é o princípio gerador de todas as coisas – condensadas na metáfora do fogo como “arché”. Vejamos os fragmentos que se reportam a esse aspecto da realidade. Notemos as famosas alusões ao rio, metáfora e antecipação da (ainda inexistente) noção abstrata de tempo. Notemos também as alusões ao fogo, que dificilmente podem ser interpretadas em sentido literal e materialista. XCI. Não é possível entrar duas vezes no mesmo rio. XLIXa. Nos mesmos rios, entramos e não entramos, somos e não somos. XII. Aos que entram nos mesmos rios afluem outras e outras águas; e os vapores exalam o úmido. VI. Sol: novo a cada dia. LII. O sempre (aîon) é uma criança brincando, jogando: reinado da criança. LIII. De todos a guerra é pai, de todos é rei; uns indicam deuses, outros homens; de uns faz escravos, de outros livres. LXIV. Todas as coisas o fogo, sobrevindo, separará e empolgará. XC. Todas as coisas trocam-se a partir do fogo e o fogo a partir de todas as coisas, como do ouro as mercadorias e das mercadorias o ouro. XXX. O cosmo, o mesmo para todos, não o fez nenhum dos deuses nem nenhum dos homens, mas sempre foi, é e será fogo sempre vivo, acendendo-se segundo medidas e segundo medidas apagando-se. CXXV. Mesmo o ciceão, se não agitado, desmancha-se. 23WWW.UNINGA.BR HI ST ÓR IA D A FI LO SO FI A AN TI GA | U NI DA DE 2 EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA E, no entanto, há claramente em outros fragmentos de Heráclito uma constatação que precisa ser conjugada às anteriores: a de que esse fluxo, esse devir incessante, não é caótico, mas, sim, ordenado. Percebemos uma ordenação nos ciclos da natureza, na sucessão das estações do ano, nas regularidades que regem o real. Constatar que o mundo é uma espécie de fluxo ordenado imediatamente insinua umapergunta: o que ou quem impôs essa ordem à realidade? Porque há, certamente, algum princípio ordenador mesmo que, num primeiro momento, tudo ignoremos sobre a sua natureza. Heráclito dá um nome a esse princípio ordenador da realidade: “lógos”. Trata-se de uma metáfora: Heráclito o chama de “fala”, de “discurso”, de “palavra”. É a primeira ocorrência desse termo com essa acepção – que, reconcebida teologicamente, vai parar na primeira frase do Evangelho de João (ali tradicionalmente traduzido como “Verbo” em português). Aqui, em contexto filosófico, trata-se de comparar o mundo a um vasto discurso, que nos cabe escutar, compreender, interpretar. São muitas as metáforas auditivas usadas: são “surdos” ou “adormecidos” os estultos que não ouvem o mundo. Vamos, então, aos fragmentos que aludem a esse aspecto da realidade. VII. Se todas as coisas em fumaça se tornassem, o nariz distingui-las-ia. I. Desse lógos, sendo sempre, são os homens ignorantes tanto antes de ouvir como depois de o ouvirem; todas as coisas vêm a ser segundo esse lógos, e ainda assim parecem inexperientes, embora se experimentem nestas palavras e ações, tais quais eu exponho, distinguindo cada coisa segundo a natureza e enunciando como se comporta. Aos outros homens, encobre-se tanto o que fazem acordados como esquecem o que fazem dormindo. XIX. Não sabendo ouvir, não sabem falar. XXXIV. Ignorantes: ouvindo, parecem surdos; o dito lhes atesta: presentes ausentes. II. Embora sendo o lógos comum, a massa vive como se tivesse um pensamento particular. LXXII. Do lógos com que constantemente lidam, divergem, e as coisas que a cada dia encontram revelam-se-lhes estranhas. LXXV. [Heráclito diz ser] o cosmo, para os acordados, uno e igual, enquanto, dos que estão deitados, cada qual se volta para seu cosmo particular. XLI. Uma, a coisa sábia: ter ciência do conhecimento que dirige tudo através de tudo. CXV. Da alma é um lógos que a si mesmo aumenta. XLV. Não encontrarias os limites da alma, mesmo todo o caminho percorrendo, tão profundo lógos possui. Todo discurso diz algo – tem um conteúdo, um significado. Se o mundo é comparado a uma fala, é razoável perguntar: o que é que ela nos diz, afinal? E, ao que tudo indica, há um conjunto de fragmentos que parecem aludir a isso, a “segredos” da realidade, antes sussurrados aos atentos do que gritados histrionicamente a ouvidos indistintos. O primeiro desses segredos parece ser: as oposições do mundo são mera aparência. Se observarmos desde um nível mais profundo, elas se mostram complementaridades. Essas ideias aparecem de maneira razoavelmente explícita na seguinte série de fragmentos. LIV. Harmonia inaparente mais forte que a aparente. CXXIII. Natureza ama ocultar-se. VIII. O contrário é convergente e dos divergentes a mais bela harmonia. LI. Ignoram como o divergente consigo mesmo concorda: harmonia de contrários, como do arco e da lira. XLII. O mesmo é vivo e morto, acordado e adormecido, novo e velho: pois estes, modificando-se, são aqueles e, novamente, aqueles, modificando-se, são estes. LXVI. Carência e saciedade. CXI. A doença faz da saúde coisa agradável e boa, a fome a saciedade, a fadiga o repouso. CXXVI. As coisas frias esquentam-se, o quente esfria-se, o úmido seca, o seco umidifica-se. 24WWW.UNINGA.BR HI ST ÓR IA D A FI LO SO FI A AN TI GA | U NI DA DE 2 EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA LXXVI. A morte da terra é tornar-se água e a morte da água é tornar-se ar e a do ar, fogo, e vice-versa. XXXVI. Para os vapores, tornar-se água é morte; para a água, tornar-se terra é morte; mas da terra nasce água; da água, vapor. LXXVIIa. Vivemos a morte delas e vivem elas a nossa morte. XCVI. Cadáveres, mais do que excrementos/esterco, devem-se lançar fora. Em um nível ainda mais profundo, essas complementaridades revelam-se mais do que isso: revelam-se uma unidade. Ao sábio, é como se o discurso da realidade dissesse e repetisse incessantemente: “tudo é um; tudo é um”. CXXII. Aproximação. L. Ouvindo não a mim, mas ao lógos, é sábio concordar ser tudo-um (hén pánta eînai). CIII. O comum: princípio e fim na circunferência do círculo. LXXXIV. Transmutando-se, repousa. CVI. A natureza de cada dia é uma e a mesma. LX. Caminho: em cima, embaixo, um e o mesmo. LXVII. Deus: dia-noite, inverno-verão, guerra-paz, saciedade-fome, mas se altera como o fogo quando se confunde à fumaça, recebendo um nome conforme o gosto de cada um. X. Conjunções: completas e não-completas, convergente e divergente, consonante e dissonante, e de todas as coisas um e de um todas as coisas. Tal exposição, é evidente, não esgota os fragmentos e é apenas uma proposta de organização e de leitura daquilo de que dispomos. Além disso, entre os 131 fragmentos, há os que não se reportam diretamente a questões ontológicas e cosmológicas (como os acima), mas os que aludem a questões éticas, religiosas, de costumes etc. Uma parte significativa deles tem caráter crítico, acerbo até (como quando deprecia Homero, Pitágoras etc.). Há muito a explorar ainda no pensamento do Obscuro de Éfeso. Parmênides Conforme foi dito nos vídeos desta Unidade 2, a filosofia de Parmênides conjuga elementos do mito e da filosofia. Ler o seu poema é tanto uma perplexificante experiência intelectual como uma deslumbrante experiência estética. A breve exposição feita sobre os versos deve ser acompanhada da leitura dos oito primeiros fragmentos do poema, a seguir, na tradução do Laboratório Ousía (do Departamento de Filosofia, da UFRJ). POEMA DE PARMÊNIDES (I-VIII) ACERCA DA NATUREZA I Éguas que me levam, a quanto lhes alcança o ímpeto, caval- gavam,quando numes levaram-me a adentrar uma via loquaz, que leva por toda cidade quem sabe à luz; por ela era levado; pois por ela, mui hábeis éguas me levavam puxando o carro, mas eram moças que dirigiam o caminho. 25WWW.UNINGA.BR HI ST ÓR IA D A FI LO SO FI A AN TI GA | U NI DA DE 2 EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA O eixo, porém, nos meões, impelia um toque de flauta incandescendo (pois, de ambos os lados, duas rodas giravam comprimindo-os) porquanto as filhas do sol fustigassem a prosseguir e abandonar os domínios da Noite, para a luz, arrancando da cabeça, com as mãos, os véus. Lá ficam as portas dos caminhos da Noite e do Dia, pórtico e umbral de pedra as mantém de ambos os lados, mas, em grandiosos batentes, moldam-se elas, etéreas, cujas chaves alternantes quem possui é Justiça rigorosa. As moças, seduzindo com suaves palavras, persuadiram-na, atenciosamente, a que lhes retirasse rapidamente o ferrolho trancado das portas; estas, então, fizeram com que o imenso vão dos batentes se escancarasse girando os eixos de bronze alternadamente nos cilindros encaixados com cavilhas e ferrolhos; as moças, então, pela via aberta através das portas, mantém o carro e os cavalos em frente. E a deusa, com boa vontade, acolheu-me, e em sua mão minha mão direita tomou, desta maneira proferiu a palavra e me saudou: Ó jovem acompanhado por aurigas imortais, que, com cavalos, te levam ao alcance de nossa morada, Salve! Porque nenhuma Partida ruim te enviou a trilhar este caminho, à medida que é um caminho apartado dos homens, mas sim Norma e Justiça. Mas é preciso que de tudo te instruas: tanto do intrépido coração da Verdade persuasiva quanto das opiniões de mortais em que não há fé verdadeira. Contudo, também isto aprenderás: como as opiniões precisavam manifestamente ser, elas que atravessam tudo através de tudo. II Pois bem, agora vou eu falar, e tu, prestes atenção ouvindo a palavra acerca das únicas vias de questionamento que são a pensar: uma, para o que é e, como tal, não é para não ser, é o caminho de Persuasão — pois segue pela Verdade —, outra, para o que não é e, como tal, é preciso não ser, esta via afirmo-te que é uma trilha inteiramente insondável; pois nem ao menos se conheceria o não ente, pois não é realizável , nem tampouco se o diria: III ...pois o mesmo é a pensar e também ser. IV Vê como o ausente é, no entanto,
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