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Teoria da História CLAUDIA CORRÊA DANTAS 1ª Edição Brasília/DF - 2018 Autores Claudia Corrêa Dantas Produção Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e Editoração Sumário Organização do Livro Didático....................................................................................................................................... 4 Introdução ............................................................................................................................................................................. 6 Capítulo 1 Introdução crítica à epistemologia da História.................................................................................................. 7 Capítulo 2 A história na Antiguidade: Grécia e Roma ..........................................................................................................16 Capítulo 3 História e historiadores na Idade Média ............................................................................................................26 Capítulo 4 A Idade Moderna e a História: os séculos XVI e XVII .....................................................................................37 Capítulo 5 A Idade Moderna e a História: os séculos XVIII e XIX ....................................................................................45 Capítulo 6 O século XX: novos paradigmas ............................................................................................................................56 Referências ..........................................................................................................................................................................66 Anexo ....................................................................................................................................................................................67 4 Organização do Livro Didático Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em capítulos, de forma didática, objetiva e coerente. Eles serão abordados por meio de textos básicos, com questões para reflexão, entre outros recursos editoriais que visam tornar sua leitura mais agradável. Ao final, serão indicadas, também, fontes de consulta para aprofundar seus estudos com leituras e pesquisas complementares. A seguir, apresentamos uma breve descrição dos ícones utilizados na organização do Livro Didático. Atenção Chamadas para alertar detalhes/tópicos importantes que contribuam para a síntese/conclusão do assunto abordado. Cuidado Importante para diferenciar ideias e/ou conceitos, assim como ressaltar para o aluno noções que usualmente são objeto de dúvida ou entendimento equivocado. Importante Indicado para ressaltar trechos importantes do texto. Observe a Lei Conjunto de normas que dispõem sobre determinada matéria, ou seja, ela é origem, a fonte primária sobre um determinado assunto. Para refletir Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa e reflita sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio. É importante que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus sentimentos. As reflexões são o ponto de partida para a construção de suas conclusões. 5 ORGAnIzAçãO DO LIVRO DIDáTICO Provocação Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor conteudista. Saiba mais Informações complementares para elucidar a construção das sínteses/conclusões sobre o assunto abordado. Sintetizando Trecho que busca resumir informações relevantes do conteúdo, facilitando o entendimento pelo aluno sobre trechos mais complexos. Sugestão de estudo complementar Sugestões de leituras adicionais, filmes e sites para aprofundamento do estudo, discussões em fóruns ou encontros presenciais quando for o caso. Posicionamento do autor Importante para diferenciar ideias e/ou conceitos, assim como ressaltar para o aluno noções que usualmente são objeto de dúvida ou entendimento equivocado. 6 Introdução Ao longo do seu curso de História você irá se deparar com conceitos como tempo, espaço, verdade, saber científico, entre outros. Também verá, por diversas vezes, referências ao Positivismo e à escola dos Annales. Neste Livro Didático você terá contato com estss e outros conceitos fundamentais para se compreender a História como ciência e para pensar nas abordagens para o seu ensino na Educação Básica. No decorrer dos seis capítulos que compõem este material serão apresentados conceitos, pensadores, escolas de pensamento e proposições teóricas do campo da História. Contudo, não se limite a este material, ele é apenas um instrumento norteador para seus estudos. Faça as leituras sugeridas, pesquise sobre o assunto em bases de textos e produções científicas que estão disponíveis online, como o Scielo.com, por exemplo. Leia as revistas de História, como a Dados e a Revista da Anpuh (Associação Nacional de História). Tenha este Livro Didático como um guia para explorar os caminhos da História. Objetivos » Atualizar-se sobre o debate a respeito da definição do conceito de história. » Compreender o debate do fazer História no mundo ocidental, desde a antiguidade clássica até os dias atuais. » Conhecer as principais correntes da teoria da História. 7 Introdução Este primeiro capítulo é destinado a inserir o aluno na reflexão a respeito de definição de História. Pretende também apresentar uma discussão que deixou marcas profundas na historiografia dos séculos XX e XXI, trazendo a discussão sobre a questão da cientificidade e na verdade na História. Posto isso, apresentaremos uma visão atualizada dos conceitos mais importantes para a pesquisa e ensino da história. Apontaremos, sempre, as diferenças pelas quais passaram esses conceitos para que as diferenças fiquem latentes. A partir daí, daremos início à demonstração das principais teorias da história. Objetivos » Atualizar-se sobre o debate a respeito da definição do conceito de história. » Entender o conceito de cientificidade e verdade em história. » Perceber a importância de conceitos utilizados na pesquisa, na escrita e no ensino da história (tempo, sujeito, objeto, passado e presente). 1 CAPÍTULO InTRODUçãO CRÍTICA À EPISTEMOLOGIA DA HISTÓRIA 8 CAPÍTULO 1 • InTRODUçãO CRÍTICA À EPISTEMOLOGIA DA HISTÓRIA A questão da cientificidade e da verdade na história Nosso primeiro capítulo terá início com uma discussão que vem desde o século XIX e que vai balizar o estudo da história pelos séculos seguintes: a questão da cientificidade da história, o método utilizado na pesquisa histórica e a verdade na história. Essas questões vão levar o historiador, nos séculos XX e XXI, a caminhos muito distintos. De qualquer forma, como o início dessas discussões está no século XIX, é por ele que vamos começar. Mas, antes, é importante reiterar, mais uma vez, que o século XIX é apenas o início. A partir dele, mais precisamente nos séculos XX e XXI, será possível trilhar novos caminhos para a pesquisa histórica. E várias novas abordagens vão surgir. Dentre elas podemos citar a negação da história como ciência e o surgimento de novas perspectivas para a pesquisa histórica: o conceito de história, o tempo em história, o sujeito em história, o objeto em história, a microhistória, a macrohistória, o espaço em história, as demais ciências sociais e a história, e a questão do presente e do passado em história. Abordaremos essas questões para afastar, em definitivo, o que o senso comum afirma sobre a história e dar a ela caráter científico. O senso comum, muitas vezes, afirma, por exemplo, que a história se repete e que o historiador tem que ser neutro para que sua pesquisa seja considerada séria. Hoje em dia sabemos que essas duas afirmativas são absolutamente falsas: a história não se repete e o historiador não é neutro, ou seja, não é imparcial em sua pesquisa. Há vários pontosque merecem ser abordados incialmente. O primeiro deles é o conceito de história. A partir de diferentes definições, o caminho da pesquisa também será diferenciado. O tempo em história é outro ponto importante que deve ser abordado em qualquer reflexão acerca da pesquisa histórica; a temporalidade não é mais tratada de forma única: a pequena duração, a média duração e a longa duração aparecerão como propostas inovadoras de pesquisa. A abordagem da questão sujeito e objeto na históriapermite apontar novos caminhos, na medida em que as novas abordagens entendem que o sujeito e o objeto, ou seja, o investigador e o seu objeto de estudo fazem parte do mesmo todo. Ainda sobre a questão do objeto da história, é importante ressaltar que novos temas surgiram na pesquisa histórica: crenças e sentimentos passaram a ser objeto de estudo. A macrohistória e a microhistória, abordagens novas e instigantes na pesquisa histórica, aparecerão em discussões bastante acaloradas, pois há historiadores que acreditam apenas em análises 9 InTRODUçãO CRÍTICA À EPISTEMOLOGIA DA HISTÓRIA • CAPÍTULO 1 globalizantes, enquanto outros entendem que a análise do micro é importante e contribui de forma significativa para o estudo da história. A questão do espaço em história também passou a ter relevância. No que e refere a ela (a questão espacial), elegemos um texto de Ciro Cardoso (2011, p. 8): A preocupação com o espaço, primeiro por meio da tradicional ligação com a geografia humana; depois, através da história, ainda que mais espacialmente pensada, inaugurada com os estudos de mares e oceanos: o Mediterrâneo de Fernand Braudel, o Atlântico de Frédéric Mauro, o Atlântico e o Pacífico de Pierre e Huguette Chanu etc.; (...). No que se refere às Ciências Sociais, hoje, há uma clara tendência à aproximação dos historiadores com os antropólogos, sociólogos, linguistas, filósofos e todos aqueles que trabalham com as demais ciências sociais. E por último, para finalizar, a questão do presente e do passado volta à tona, na medida em que ambos não aprecem mais absolutamente separados, como no século XIX, mas como parte integrante de um todo, e, por isso mesmo, não podem ser estudados, cada um, de forma isolada. Mas, já que afirmamos que o estudo e a pesquisa da história passaram por grandes transformações no século XIX, temos de dizer de que forma a pesquisa histórica era feita naquele século. Vamos, então, pormenorizar as questões mais importantes. A primeira delas é aquela que afirma que a história é uma ciência, e, ligada a ela está a questão do método utilizado pelos historiadores do século XIX, que os levaria, eles acreditavam, à verdade histórica. A questão da cientificidade da história foi uma discussão marcante no século XIX, por isso foi escolhida para a abertura do capítulo a citação do historiador francês Fustel de Coulanges (1830- 1889), que você leu no primeiro box deste capítulo. Aliás, os franceses foram grandes criadores e incentivadores da pesquisa histórica no século XIX sob os princípios que aqui estamos apresentando. Durante o século XIX e parte do XX, houve debates calorosos sobre essa questão. Incialmente, a maioria dos historiadores concordou com a cientificidade da história e com a verdade que ela poderia informar, uma vez que o século XIX foi o momento de afirmação da ciência e dos cientistas. Todo o estudo, nesse século, deveria ter “rigor científico” para que não fosse vulgarmente chamado de metafísico ou religioso. O único saber verdadeiro era ele, o saber científico, e deveria estar submetido a leis. Deveria, o saber, abandonar as paixões e ser racional. E deveria ser demonstrado por meio de experimentos e certezas. Inicialmente, as ciências naturais, graças aos experimentos a que eram submetidas desde séculos anteriores, ocuparam o lugar privilegiado no campo científico. A história almejava esse status. 10 CAPÍTULO 1 • InTRODUçãO CRÍTICA À EPISTEMOLOGIA DA HISTÓRIA Portanto, as ciências naturais eram o seu grande exemplo. A aproximação com as ciências sociais só viria anos mais tarde. A Sociologia e a Antropologia, grandes parceiras da história no mundo atual, somente seriam descobertas pelos historiadores posteriormente. Assim, no século XIX, a História alcançou o degrau desejado: ela deixaria de ser um estudo diletante e seria elevada à categoria de científica. E Fustel de Coulanges, assim como outros historiadores do seu tempo, acreditava que a história era uma ciência. Mas como tornar a história uma ciência? Por meio de um método próprio, diziam os historiadores. E como seria esse método? A partir da leitura dos documentos escritos oficiais, produzidos pelos Estados nacionais. Esse era o método. A leitura deles e apenas deles – dos documentos oficiais escritos – permitiria fazer a pesquisa histórica dar rigor científico à história. Qualquer outro documento ou qualquer relato oral não era utilizado na pesquisa histórica do século XIX, pois somente os documentos tidos como confiáveis eram aqueles produzidos de forma oficial, ou seja, pelo Estado. É importante lembrar que segundo a crença do século XIX, o historiador estava separado do passado, ou seja, do seu objeto de estudo. Sendo assim, era possível fazer uma leitura da documentação com imparcialidade. A submissão do historiador ao documento fazia parte do método científico. Esse método recebeu o nome de Positivista. Figura 1. numa Denis Fustel de Coulanges. Fonte: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/b/be/numa_Fustel_de_Coulanges.jpg/220px-numa_ Fustel_de_Coulanges.jpg> Último acesso: 3/4/2016. Acreditava-se que a História, assim como as ciências naturais, deveria ser estudada a partir de parâmetros científicos. Por isso, o método era importantíssimo. E ele era claro: o documento “fala” por si só. Somente em seu escritório, isolado, separado do passado, debruçado sobre os documentos escritos, o historiador seria capaz de estudar a história de maneira imparcial. E chegaria a resultados imparciais também. Vale a pena aqui falar sobre a imparcialidade, um dos pontos mais importantes para os historiadores do século XIX. http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Numa_Fustel_de_Coulanges.jpg 11 InTRODUçãO CRÍTICA À EPISTEMOLOGIA DA HISTÓRIA • CAPÍTULO 1 A imparcialidade era uma crença no século XIX, ou seja, o historiador leria o documento sem tomar partido ou posição; apenas, leria, e seria capaz de enxergar e/ou entender o que estava nele escrito. Essa perspectiva entendia que o sujeito (o historiador) e o objeto (o fato estudado) estavam absolutamente separados. Ora, lembremos que o ensino, a pesquisa e a escrita da história nos dias atuais não aceitam, sob qualquer hipótese, a crença de que o historiador possa ser imparcial e que esteja afastado do seu objeto de estudo. O resultado da pesquisa histórica, portanto, é fruto da visão de mundo do historiador, que é um homem como todos os outros, com paixões, crenças, tristezas, afetos e dissabores, enfim, uma pessoa inserida no mundo em que vive. Atrelado à questão da imparcialidade está um ponto também de grande importância: o tempo para os historiadores do séculos XIX. A crença entre eles era de que o historiador quando estava em seu gabinete fazendo a leitura de um documento, estava inteiramente afastado do passado. Passado e presente não tinham nenhuma ligação; eram momentos estanques, que não se cruzavam. Obviamente, essa visão da temporalidade também se alterou nas pesquisas históricas atuais: o tempo não se divide entre passado e presente, mas em outras formas de temporalidade: longa duração, média duração e curta duração, que apresentaremos mais à frente. O espaço, outro item importante na pesquisa histórica, no século XIX, era tratado de forma reduzida aos Estados Nacionais. Apenas aquele espaço, o país, a nação, merecia o privilégio de ser pesquisado. Nenhum outro espaço merecia a prerrogativa de ser objeto de estudo. Bem, e finalmente o último tópico a ser abordadoé a questão da micro e da macrohistória. Nos primórdios da pesquisa histórica, sob a égide da ciência, apenas a grande história, que obviamente era a história nacional, merecia ser objeto de estudo do historiador. Todo o restante: a história das minorias, a história das religiões, a história da cultura, enfim, qualquer outra abordagem que não fosse a história política atrelada aos Estados Nacionais era descartada como objeto de estudo. A perspectiva de se ver a história como resultado da pesquisa feita com imparcialidade recebeu o nome de Positivismo: apenas a leitura do documento – esse era o método eleito – era o caminho para se chegar a uma história científica. E de se chegar, também, à verdade dos fatos. Além dos historiadores franceses, os pesquisadores alemães também deram sua contribuição para a questão da cientificidade da história. O maior expoente da historiografia alemã, nesse período, foi Leopold von Ranke (1795-1886), que tem uma famosa frase que ilustra seu pensamento: “A história é aquilo que de fato aconteceu” (CAIRE-JABINET, 2003, p. 105). Obstinado por chegar à verdade dos fatos, como ele afirmava em seus escritos, Ranke criticava as imprecisões de alguns historiadores e entendia que a história era feita apenas pela narrativa dos acontecimentos, dos fatos ocorridos. Isso feito, o historiador atingiria a verdade de forma imparcial. 12 CAPÍTULO 1 • InTRODUçãO CRÍTICA À EPISTEMOLOGIA DA HISTÓRIA Figura 2. Leopoldo von Ranke. Fonte: <https://en.wikipedia.org/wiki/File:Jebens,_Adolf_-_Leopold_von_Ranke_(detail)_-_1875.jpg>. Último acesso: 7/3/2016. Fica claro, portanto, que no século XIX a questão da História pesquisada sob a égide da ciência fazia parte da discussão nos círculos de historiadores em vários países do Ocidente. A pesquisa da história sob a égide do Positivismo, apesar de todas as críticas que fazemos, abriu caminhos para áreas afins com a História. Como a História passou a ser considerada uma ciência, era preciso fornecer a ela suportes para seu melhor desempenho. Nessa via, foi possível ver o crescimento no setor de patrimônio. Como exemplo, podemos citar a criação, em 1834, na França, por meio de uma iniciativa do governo, de três órgãos: o Comitê de Trabalhos Históricos, a Sociedade de História de França e, também, da Comissão dos Monumentos Históricos. Para tal empreitada, o Estado passou a manter funcionários que ficassem à frente dos novos órgãos: inspetores, arquivistas e conservadores. Revistas também foram criadas para veicular a importância do patrimônio: em 1884, a Arquivos Diplomáticos, em 1891, a Arquivos da França, e em 1895 o Catálogo da Biblioteca Nacional. Pelo exposto, é possível afirmar que, no século XIX, o Estado fez da História um caminho importante para resgatar, contar, confirmar e veicular a sua história, já que investiu em áreas importantes no que tange à conservação de documentos. Mas não foi apenas na área de conservação de documentos que o Estado fez seus investimentos. Ele também investiu no ofício de professor e no ensino da história. O professor, a partir de 1894, tinha de obter o Diploma de Estudos Superiores para lecionar; já não bastava mais apenas o interesse pela disciplina. Afinal, seu papel cívico era muito importante: o ensino da História de seu país. Daí a necessidade de aprimoramento. Para isso, o Estado francês criou a Escola Prática de Altos Estudos (1868); a Escola Livre de Ciências Políticas (1872), e a Escola do Louvre (1881), todas elas voltadas para o aprimoramento dos professores. O ensino da História também foi incrementado. Em 1818, na França, a disciplina passou a fazer parte do programa do secundário e, em 1880, já fazia parte do currículo de todas as séries do ensino primário ao secundário. 13 InTRODUçãO CRÍTICA À EPISTEMOLOGIA DA HISTÓRIA • CAPÍTULO 1 Nessa vertente, a citação de Ernest Lavisse, historiador francês e fundador do Positivismo, ilustra muito bem essa situação; em um de seus manuais, o Petit Lavisse, de 1884, mostra-se bastante nacionalista. Eis a citação do autor: “Neste livro, aprenderás a história da França. Deves amar a França porque a natureza a fez bela e porque sua história a fez grande”. (LAVISSE, edição de 2013, p. 141). Os escritos de Lavisse demonstram com clareza união da História com os Estados Nacionais: a História apoia e engradece os Estados europeus. Figura 3. Ernest Lavisse. Fonte: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/f/f7/Ernest_Lavisse_1913.jpg/220px-Ernest_ Lavisse_1913.jpg> Último acesso: 7/4/2016. Bem, pelo exposto, foi possível entender o pensamento dos historiadores do século XIX: a História é uma ciência e deve utilizar um método, a leitura sistemática de documentos oficiais escritos, para chegar à verdade, que será, com certeza, imparcial. Entretanto, tanto a questão da cientificidade da História quanto as questões do método e da verdade em história foram amplamente discutidas ao longo dos séculos seguintes. Muitos historiadores discordaram das propostas do Positivismo e abriram novos caminhos para o estudo da história. Dentre as novas propostas, elegemos a do historiador inglês Edward Carr (1892-1982) que em seu livro O que é História?, faz algumas afirmações importantes: a primeira delas é que “O historiador é necessariamente um selecionador.” (1982, p. 48). Ora, no atual debate sobre a função do historiador, não há dúvida de que ele faz, durante todo o seu trabalho, uma seleção dos fatos que pesquisará e das fontes das quais vai se utilizar. Como afirma, ainda, o historiador inglês: “A convicção num núcleo sólido de fatos históricos que existem objetiva e independentemente da interpretação do historiador é uma falácia absurda (...)” (p. 48). Ora, o que Carr está afirmando é que o historiador seleciona o fato, as fontes para estudar esse fato e, posteriormente, dá a esse fato a sua interpretação. O historiador inglês também define história: a história se “(...) constitui de um processo contínuo de interação entre historiador e seus fatos, um diálogo interminável entre passado e presente” (p. 65). A definição de Carr se afasta completamente da opinião dos historiadores do século XIX que afirmavam a separação entre o historiador e o passado por ele estudado. 14 CAPÍTULO 1 • InTRODUçãO CRÍTICA À EPISTEMOLOGIA DA HISTÓRIA E no que se refere à questão da cientificidade da história, Edward Carr (1982, p. 65) afirma que: 1. a história lida exclusivamente com o que é único, a ciência com o geral; 2. a história não dá lições; 3. a história é incapaz de prever. 4. a história é necessariamente subjetiva, pois é o homem que se observa a si próprio. 5. a história, diferentemente da ciência, envolve problemas de religião e moralidade. Ainda de acordo com Carr, é preciso entender que a história se preocupa com a relação entre o particular e o geral, sendo, portanto, impossível trabalhar um sem o outro; fundamental, também, é entender que cada fato histórico é único, ou seja, não se repete. Também, segundo o historiador inglês, temos de ter cuidado com a necessidade de achar que a história dá lições. Um dos perigos das generalizações em História é que “tentamos aprender a aplicar (...) a lição tirada de um conjunto de eventos a um outro conjunto de eventos” (CARR, 1982, p. 101). Edward Carr afirma que a História não é capaz de prever por que não pode trabalhar com generalizações. Daí não ser possível fazer qualquer previsão para qualquer área: política, social, econômica e cultural. Ainda segundo o historiador inglês, a História, assim como as demais Ciências Sociais, sempre será subjetiva porque, tanto elas como a História “envolvem o homem, tanto como sujeito quanto como objeto, tanto como investigador quanto como coisa investigada” (CARR, 1982, p. 107). Ora, é o próprio homem quem investiga outros homens, daí a história ser, necessariamente, subjetiva. E, finalmente, a História, diferente da ciência, em grande parte das vezes faz uso da religião e damoralidade. Certamente que nos dias atuais não é mais possível crer em alguma força supra- histórica que dê sentido à História. Mas os julgamentos morais, de forma intensa, atingem os historiadores. É inegável a existência de julgamentos morais sobre um ou outro agente histórico ou sobre um fato histórico. Por isso, o historiador tem de ficar atento para minimizar os juízos de valor que faça em seus trabalhos. Isso é o máximo que pode ser feito. Figura 4. Edward Carr. Fonte: <https://en.wikipedia.org/wiki/File:Eh_carr.jpg.> Último acesso: 7/3/2016. 15 InTRODUçãO CRÍTICA À EPISTEMOLOGIA DA HISTÓRIA • CAPÍTULO 1 Bem, posto isso, é importante caminhar para a questão propriamente dita da disciplina Teoria da História: apresentar uma visão panorâmica a respeito das múltiplas correntes historiográficas e de seus principais referenciais teórico-metodológicos. Por isso, iniciaremos apresentando a visão da História e do historiador na Antiguidade, na Grécia e em Roma. Apresentaremos como a História era vista na sociedade grega e na civilização romana. Prosseguiremos passando por toda a Idade Moderna e apontando as modificações que ocorreram. Depois chegaremos aos séculos XX e XXI com as novas abordagens para a pesquisa, o ensino e a escrita da História. Veremos como nas diversas sociedades a História foi tratada, quais as suas especificidades e quais as contribuições para os dias atuais. Evidentemente que as abordagens no que se refere a várias questões – história e historiador; parcialidade/imparcialidade, por exemplo – são absolutamente diferentes desde a Grécia e a Roma Antigas até os dias atuais. É importante entender que, embora por séculos, os gregos tenham vivido apegados às questões e explicações mitológicas, eles deram os primeiros passos no caminho do fazer História. Ao longo dos tempos houve transformações. E é sobre isso que versa a nossa disciplina. Sintetizando Vimos até agora: » A história no século XIX. » A questão da cientificidade das ciências sociais e da história no século XIX. » O método da pesquisa histórica no século XIX. » Como era utilizado o conceito de tempo no século XIX. » Como era utilizado o conceito de espaço no século XIX. » Como era utilizado o conceito de passado e presente no século XIX. » O estágio da atual discussão sobre a questão da história. 16 Introdução Este capítulo é destinada a inserir o aluno na compreensão acerca do início do fazer história. Esse início ocorre na Antiguidade. Verificaremos como os gregos saíram da narrativa lendária e chegaram à narrativa histórica dos fatos. Para isso, é importante entender o que os gregos entendiam por fazer história. Também será abordada a forma como os romanos entendiam a História e como produziam seus textos. Este capítulo é reservada para averiguação do início da pesquisa histórica e as transformações pelas quais ela passou dentro da Idade Antiga. Objetivos » Compreender como era a História no mundo grego da Antiguidade. » Perceber como era a história feita pelos antigos romanos. » Entender as modificações ocorridas de uma civilização para outra no que se refere ao fazer história. 2 CAPÍTULO A HISTÓRIA nA AnTIGUIDADE: GRÉCIA E ROMA 17 A HISTÓRIA nA AnTIGUIDADE: GRÉCIA E ROMA • CAPÍTULO 2 A Grécia Antiga: os primeiros passos Os antigos gregos usaram, inicialmente, como instrumento de explicação para os fatos, a mitologia. A narrativa mitológica era o caminho para explicar a vida, os homens e a natureza, enfim, todas as coisas. A vontade dos deuses era soberana e se sobrepunha à vontade dos homens. Por isso, nesse período, até por volta do século VIII a.C., na Grécia, os fatos ocorridos eram, na maioria das vezes, atribuídos ao desejo dos deuses e não à iniciativa humana. A narrativa mitológica era feita oralmente. A preocupação em guardar os acontecimentos, passava de geração para geração por meio da oralidade. Somente mais tarde os gregos fizeram uso da escrita para fazer registros. Essa realidade perdurou até por volta dos séculos VIII-VI a.C., quando surgiram as polis. A melhor definição para o termo pólis é cidade-estado, pois cada uma delas tinha a sua autonomia; cada uma tinha seu governo, suas leis e sua organização. Os cidadãos que as habitavam é que conduziam o destino da sua cidade. As poIis foram, portanto, uma nova forma de organização social política e econômica. Havia um grande número de polis, mas as mais importantes foram Atenas e Esparta, já que cada uma delas serviu de modelo para a formação de outras polis. Com o surgimento das cidades-estados a realidade grega se transformou. Os gregos perceberam que os homens eram capazes de criar, construir e modificar, ou seja, as polis eram criação humana e não dos deuses. Os homens eram capazes de agir e transformar. Esse foi o contexto propício para o surgimento da narrativa histórica ou racional dos acontecimentos. Na imensa maioria das vezes, quando falamos da Grécia Antiga, somos levados a lembrar de Homero. São atribuídos a ele os livros Ilíada e Odisseia, que narrava a saga do herói Odisseus em sua ida e volta à cidade de Troia para o resgate de Helena. Entretanto, vale lembrar que historicamente não é possível atribuir a Homero a autoria das duas obras, uma vez que elas têm estilos inteiramente diferentes. Sendo assim, não podemos considerá-lo historiador. No dias atuais, a autoria de Ilíada e de Odisseia continua uma interrogação. 18 CAPÍTULO 2 • A HISTÓRIA nA AnTIGUIDADE: GRÉCIA E ROMA Figura 5. Homero. Fonte: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/1/1c/Homer_British_Museum.jpg/240px-Homer_British_ Museum.jpgonte> Ultimo acesso: 3/4/2016. A primeira informação que chegou até nós sobre relatos da Grécia Antiga, no que podemos considerar como o remoto início da atividade de fazer história, dizem respeito aos logógrafos, indivíduos que falavam tão rápido quanto escreviam. Eles foram os primeiros escritores que tentavam explicar os fatos além da questão mítica, e datam do século VI e V a.C. Dentre eles, o mais conhecido é Hecateu de Mileto (540-476 a.C.), que procurou dar a sua narrativa uma visão distanciada do desejo dos deuses, priorizando a realidade que via e as transformações nela ocorridas a partir da ação humana. Além de relatos históricos, Hecateu também desenhou um mapa, pois era viajante. Por isso seus relatos são tão valiosos, pois ele, além da Grécia, conhecia a Pérsia, a Mesopotâmia e o Egito. Deles fez narrativas interessantes, ressaltando o papel dos homens nos acontecimentos ocorridos. Figura 6. Mapa de Hecateu. Fonte: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Hecataeus_world_map-en.svg> Último acesso: 4/4/2016. Saiba mais Ilíada e Odisseia tiveram a sua origem na tradição oral da Grécia Antiga. Ambas são consideradas obras épicas, ou seja, obras que narram a vida de um herói. Diz a lenda que Helena, esposa de Menelau foi raptada por Páris, filho do rei de Tróia; o marido a quis de volta e guerreou com os troianos para resgatá- la. A guerra durou 10 anos até Helena ser finalmente resgata. Historicamente, apesar das divergências entre os historiadores, a conclusão mais comum entre os estudiosos é a de que a guerra de Troia foi um conflito ocorrido por conta da disputa pelo mar Egeu. 19 A HISTÓRIA nA AnTIGUIDADE: GRÉCIA E ROMA • CAPÍTULO 2 É com Heródoto de Halicarnasso (490-425 a. C.), conhecido como “Pai de História”, que é possível ver uma mudança de fato. Em seu livro História, ele prega a necessidade da investigação, da pesquisa e da informação. Para isso, procura não só ler a reduzida documentação de seu tempo, mas de ouvir os relatos orais. Sua obra sobre as Guerras Médicas é um marco importante no estudo da História na Antiguidade. Ao falar da guerra de gregos contra os persas, Heródoto ressalta a importância da memória: com seus escritos pretende que não sejam esquecidos os feitos dos homens, sejam eles gregos ou não. Aqui é importante ressaltar que para essehistoriador grego é muito importante o conhecimento dos fatos que ocorreram. É importante que se saiba desses fatos, sejam eles feitos por gregos ou por não gregos. Então, percebe-se que para Heródoto é importante a questão do conhecimento, que ele atrela à memorização. Figura 7. Heródoto. Fonte: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:AGMA_H%C3%A9rodote.jpg>. Último acesso: 4/4/2016. Além de Heródoto, outro grande historiador da Grécia Antiga foi Tucídides (460-396 a.C.). Seu livro mais famoso abordou o tema da Guerra do Peloponeso, conflito do qual foi contemporâneo. Tucídides “procura a razão mais verdadeira” (TÉTART, 2000, p. 14) para os fatos. O historiador Jean Pierre Vernant (2006, p. 28) elogia o trabalho desse historiador grego da Antiguidade: Preocupação com a verdade no estabelecimento dos fatos, exigência de clareza no enunciado das mudanças que se produzem durante a vida das cidades, conhecimento bastante preciso de “natureza humana” para notar na trama Saiba mais As Guerras Médicas ocorreram na Grécia e opuseram os persas e os gregos no século V. Os gregos conseguiram vencer, mas sofreram grande desgaste com o conflito. Depois de anos de lutas, as cidades gregas ficaram muito enfraquecidas, e cerca de 20 anos após o fim das Guerras Médicas, teve início a Guerra do Peloponeso (431-404) que abriu caminho para o domínio de Alexandre da Macedônia sobre a Grécia. Saiba mais A Guerra do Peloponeso foi um conflito de atenienses contra espartanos, e durou de 431 a 404 a.C. O enfraquecimento da Grécia devido a esse confronto deixou os gregos vulneráveis e possibilitou o domínio da Grécia pelos macedônicos. 20 CAPÍTULO 2 • A HISTÓRIA nA AnTIGUIDADE: GRÉCIA E ROMA dos acontecimentos a ordem que neles dá oportunidade à inteligência – todos esses traços são associados naquele que se tem a tentação de chamar, a despeito de Heródoto, o primeiro verdadeiro historiador grego, a uma recusa altiva do maravilhoso. Políbio (205-120 a.C.), além de historiador, era geógrafo e narrou as conquistas feitas pelos romanos entre os séculos II e II a.C. Seu livro mais famoso foi Histórias. Acreditava que fazer história de forma correta era interpretar o passado fazendo uso da própria memória. Afirmou a importância das forças causais para a explicação dos fatos, e por esse caminho falou de guerras e dos poderes políticos de seu tempo. Além disso, em seus escritos, pregava a importância do conhecimento da história para as mais diferentes esferas da vida: sociedade, política, militar e cultural. Ou seja, pregava de forma absolutamente inovadora a visão da totalidade na história: Até essa época os eventos mundiais tinham por assim dizer dispersos, pois não eram interligados por uma unidade de iniciativa, resultados ou localização; desde essa época, porém, a História passou a ser um todo orgânico, e os eventos na Itália e na Líbia interligaram-se com os da Hélade e da Ásia, todos convergindo para um único fim. Por isso a nossa História pragmática inicia-se nessa época. (POLÍBIO, Histórias, 1,3). Figura 8. Políbio. Fonte: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Stele_des_Polybios.jpg>. Último acesso: 4/4/2016. Bem, para finalizar essa parte, resta ainda fazer algumas considerações. A primeira delas é que não é possível cobrar dos homens da Grécia Antiga uma História feita nos moldes da atual. O rigor teórico, uma metodologia segura, conceitos bem definidos e uma escrita correta não podem ser cobrados daqueles que fizeram história na Grécia Antiga. Em segundo lugar, em contrapartida, não podemos menosprezar o legado que a Grécia Antiga nos deixou no que se refere ao estudo da História, concordemos nós com essa herança ou não: 21 A HISTÓRIA nA AnTIGUIDADE: GRÉCIA E ROMA • CAPÍTULO 2 1. os acontecimentos devem ser explicados pelas ações humanas. 2. a importância do olhar sobre o passado, ou seja, o passado não deve ser descartado. 3. o mundo a ser considerado não era somente o mundo dos gregos, a Grécia: os povos vizinhos também mereciam ser estudados. 4. os fatores causais dos fatos históricos têm relevância na narrativa histórica. 5. a interpretação faz parte do fazer história. 6. é importante ter a visão do todo quando se faz um trabalho de história. Roma e a História O desenvolvimento do estudo da História em Roma foi bastante tardio. Ele começou entre os séculos III e II a.C. Antes disso, os romanos estavam voltados para tudo o que os gregos tinham produzido: sua história, seus deuses, enfim, toda a sua cultura. Somente no século III a.C. isso mudou. Philippe Tétart (2000, p. 22) explica: O método de Cincius Alimentus ou de um Fabius Pictor rompe com a arte grega do relato contínuo e explicativo. Os analistas entregam-se a um trabalho de compilação cronológica esclarecida, fundando-se nos fastos (antigos calendários), nas listas de cônsules, de magistrados, de sacerdotes. Recorrem igualmente às cantilenas (cantos apresentados por ocasião de banquetes), às memórias familiares orais. O rompimento com os gregos pode ser visto em Catão (234-149 a.C.). Ele escreve o livro Origens e prega, além da ruptura com os gregos, a aproximação com a história romana, alegando ter como objetivo o enaltecimento de Roma. Figura 9. Catão. Fonte:<https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Marco_Porcio_Caton_Major.jpg>. Último acesso: 4/4/2016. 22 CAPÍTULO 2 • A HISTÓRIA nA AnTIGUIDADE: GRÉCIA E ROMA A partir de Catão, os historiadores romanos tinham como primeiro objetivo descrever o passado glorioso de Roma e, para isso, deveriam exaltá-la com eloquência. Cícero (106-43 a.C.) foi escritor, político, advogado e filósofo em Roma. Destacava-se por ser grande orador. Deixou em seus escritos a importância da oratória para a História que, para ele, tem como primeiro objetivo a exaltação de Roma. Para Cícero, a História é função do orador, uma vez que acreditava que a forma de se narrar um acontecimento, com eloquência e de forma ornamentada, era mais importante do que o fato propriamente dito. Dentre as suas obras podemos citar Da República, Sobre as Leis, Sobre os Deveres e Sobre as Amizades. Nelas, Cícero deixava bem claro o seu principal objetivo: imortalizar Roma. Figura 10. Cícero. Fonte: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/2/23/CiceroBust.jpg>. Último acesso: 4/4/2016. Vale lembrar uma passagem do autor sobre a oratória utilizada pela História para engrandecer Roma. Cícero disse: (...) a história nos oferece narrações brilhantes, descrições numerosas de países ou combates; além disso, intercalam-se nelas discursos ao povo e exortações aos soldados; mas é preciso um estilo de algum modo trefilado e bem igualado, não como nos nossos discursos, impetuosos e penetrantes (...). O homem verdadeiramente eloquente será aquele que no fórum saberá falar de maneira a convencer, agradar, comover; agradar para encantar; comover para triunfar. (TÉTART, 2000, p. 23). Somente a partir do século I a.C. haverá uma mudança na escrita da História em Roma. Embora não seja abandonada a ideia central, a de louvar Roma, é possível ver algumas mudanças. 23 A HISTÓRIA nA AnTIGUIDADE: GRÉCIA E ROMA • CAPÍTULO 2 O primeiro exemplo que podemos dar é Salústio (86-35 a. C.). Por ser grande admirador de Tucídides, esse romano escreve suas obras apresentando a noção de causa e efeito. Em sua obra Conjuração de Catilina descreve a relação causa-efeito da tentativa do militar e senador Catilina em derrubar a república romana. Figura 11. Conjuração de Catilina. Fonte: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/8/84/Salustio_-_ibarra.jpg/220px-Salustio_-_ibarra.jpg>. Último acesso: 4/4/2016. O segundo exemplo é Tito Lívio (59 a.C.-17 d. C.). O trabalho desse autor tem imputado nele a sua marca: é um trabalho didático e moral, no qual ele afirma que as qualidades éticas de um povo são responsáveis por seu destino. Por isso, exalta em História de Roma, seu livro mais famoso, os grandes feitos de Roma desde asua fundação e as características que seus habitantes devem ter para preservar essa grandiosidade. O próximo a ser citado é Tácito (56-117). Sua contribuição é bastante expressiva. Faz uso dos arquivos públicos e da memória oral para fazer seu trabalho. Embora tivesse como meta narrar a grandiosidade romana, escreveu sobre povos não romanos. Sua obra Germaniae é referência para o estudo do povo germano. Figura 12. Tácito. Fonte: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/8/8e/Gaius_Cornelius_Tacitus.jpg/200px-Gaius_ Cornelius_Tacitus.jpg>. Último acesso: 4/4/2016. 24 CAPÍTULO 2 • A HISTÓRIA nA AnTIGUIDADE: GRÉCIA E ROMA Suetônio (70-122) é o próximo e último historiador romano que vamos apresentar. Seu maior objetivo era escrever biografias. Sendo assim, seu trabalho mais importante foi A vida dos doze césares. Tem como prioridade narrar a vida dos imperadores, expondo cada um deles, desde o nascimento até o governo, sem esconder fatos imorais ou escandalosos. Figura 13. Suetônio. Fonte: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:nuremberg_chronicles_f_111r_1.png>. Último acesso: 4/42016. Posto isso, para finalizar, resta dizer que a História feita pelos romanos, antes de tudo, é uma estratégia política para enaltecer Roma; era, também, uma função moralizadora no sentido de preservar Roma e seus habitantes. A despeito de concordarmos ou não com as propostas dos romanos de como se deve fazer a história, não devemos subestimar a contribuição dada por eles para o estudo da História: o enaltecimento de uma nação, a utilização de arquivos, o uso da história oral e a relação causa e efeito são legados, também, desses historiadores. Vale, ainda, lembrar dos escritos de Suetônio, que expuseram os imperadores sem resguardá-los no que se refere às questões morais e éticas, procurando, dessa forma, aproximar a narrativa da História com a realidade dos fatos. Sintetizando Vimos até agora: » A passagem do pensamento mítico para o pensamento racional na Grécia Antiga. » As contribuições de Hecateu de Mileto, transformações na abordagem da história. » Heródoto e a investigação histórica. » Tucídides e a questão causal. » Políbio e a totalidade. » Roma: a união com a história grega; a separação. 25 A HISTÓRIA nA AnTIGUIDADE: GRÉCIA E ROMA • CAPÍTULO 2 » Catão e o enaltecimento de Roma. » Cícero e a importância da narrativa. » Salústio e as questões de causa e efeito. » Tito Lívio e a grandeza de Roma. » Tácito e a utilização de arquivos públicos. » Suetônio e as biografias. 26 Introdução Este capítulo é destinada a inserir o aluno na reflexão a respeito da escrita da História na Idade Média. Inicialmente, pretende informar a divisão cronológica da Idade Média. A partir daí, perceber o que o mundo medieval entendia por História. Deseja apresentar as diferenças existentes entre as abordagens sobre a História dentro do Medievo. Objetivos » Atualizar-se sobre o debate a respeito da definição do conceito de Idade Média. » Aprender a divisão cronológica existente na Idade Média. » Conhecer os historiadores mais importantes da Idade Média. » Perceber os fatores causadores que culminaram com as transformações na forma de se fazer história no Medievo. » Entender as diferentes abordagens da História dentro do mundo medieval. 3 CAPÍTULO HISTÓRIA E HISTORIADORES nA IDADE MÉDIA 27 HISTÓRIA E HISTORIADORES nA IDADE MÉDIA • CAPÍTULO 3 Existe História na Alta Idade Média? Chama-se Idade Média o período que vai do século V ao século XV no Ocidente Europeu. É sob essa perspectiva que trabalharemos neste capítulo. Entretanto, é importante lembrar que há subdivisões na Idade Média: Alta Idade Média (séculos VI-X), Idade Média Central (séculos XI-XIII) e Baixa Idade Média (séculos XIV-XVI). Alguns historiadores afirmam que não houve o “fazer história” na Idade Média. Ela, a história, teria o papel secundário de construir e fortalecer a ideologia da Igreja Cristã. Outros historiadores, em menor quantidade, é verdade, de forma absurda, chamam esse período, a Idade Média, de Idade das Trevas. Ora, assim como outros períodos da história, a civilização medieval explicou o mundo, a sua organização e os homens, da forma que julgou ideal. É importante ressaltar que nesse período a questão das fontes era problemática. Inicialmente, logo depois da derrocada do Império Romano, por conta da fragmentação do poder político, inexistia um governante que tivesse à frente de um reino em que houvesse o cuidado com arquivos e bibliotecas. Somente a partir do século VIII, na França, com os reis carolíngios, especialmente Carlos Magno, surgiram os primeiros arquivos de governo na Idade Média. O mesmo não se pode dizer dos arquivos eclesiásticos. Esses, desde o início da Idade Média, eram bem cuidados. As obras produzidas pelos sábios cristãos foram bem guardadas. Era preciso zelar pelas obras, uma vez que as cópias eram trabalhosas e, por isso mesmo, muito demoradas, porque a partir dos manuscritos, as obras eram copiadas em pergaminhos, o que exigia tempo e empenho por parte dos copistas, os monges que faziam as cópias. Por fim, resta lembrar que a Idade Média faz uso das fontes orais. Os historiadores do Medievo ouviam os relatos e os registravam; estes (os testemunhos orais), somente mais tarde, foram banidos por parte dos historiadores como fontes históricas confiáveis. Bem, posto isso, é importante frisar que na Idade Média, os historiadores, apesar de toda a sua preocupação com os desígnios da divindade para os homens e para o mundo, deram muita atenção ao sentido de tempo, uma vez que recorrem sempre à busca de uma cronologia precisa. Dentro dessa cronologia eram inseridas as festas cristãs e o próprio tempo cristão: a criação do mundo, a vinda do Messias e o julgamento final. Por isso, a grande preocupação com a contagem do tempo. No que se refere ao método, pode-se dizer que ele pode ser visto nas obras do bispo francês Gregório de Tours (538-594). Sua obra é vasta: História dos Francos, a Hagiografia de São Martinho, a Hagiografia de São Juliano e o Livro da Vida dos Padres são os mais importantes. 28 CAPÍTULO 3 • HISTÓRIA E HISTORIADORES nA IDADE MÉDIA Nelas é possível ver a forma de escrever do autor: ele privilegiou a narração, fez, inúmeras vezes, referências a acontecimentos antigos, fez questão de usar linguagem do cotidiano para que os leitores, que eram em número bastante reduzido, pois a maioria da população era analfabeta, não tivessem dificuldade. Bem, para iniciar, seguiremos a subdivisão das etapas da Idade Média. Sendo assim, iniciaremos com a Alta Idade Média. É importante lembrar a estreita ligação, nesse período, da História com a religião. A Alta Idade Média: História e Igreja Iniciaremos com a História feita a partir da proposta de Eusébio de Cesareia ( 265-341), considerado o pai da História Cristã. Em seu livro mais importante, História da Igreja, o autor enaltece a vitória da Igreja Cristã, antes perseguida e depois aceita. Eusébio descreveu os fatos como resultados da vontade divina; seguiu a cronologia dos acontecimentos, e o fez pelo caminho proposto pela religião: criação, vinda do Messias Salvador e o juízo final. A visão da História é, portanto, linear (criação, vinda do Messias e salvação ou danação) e universalista, pois deve ser seguida por todos. Figura 14. Constantino. Fonte: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/2/20/0_Constantinus_I_-_Palazzo_dei_ Conservatori_%282%29.JPG/250px-0_Constantinus_I_.> Ultimo acesso: 4/42016. Para refletir Constantino (272-337) foi um dos imperadores do Império Romano. Seu governo foi marcado, dentre outros fatos, pela assinatura do Edito de Milão, em 313, documento que permitiu que os cristãos pudessem adorar livremente o seu deus e construir seus templos, as igrejas. Embora tenha assinado o documento, Constantino jamais se afastou do Paganismo. Pelo contrário, frequentava de forma assídua os cultos ao deusSol. Por isso, grande parte dos historiadores acredita que Constantino tenha tentado, pela religião, manter a união de um vasto império que já dava sinais de enfraquecimento. http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:0_Constantinus_I_-_Palazzo_dei_Conservatori_(2).JPG 29 HISTÓRIA E HISTORIADORES nA IDADE MÉDIA • CAPÍTULO 3 Outro grande nome desse período é o africano Aurélio Agostinho (354-430), mais conhecido como Santo Agostinho, maior expoente da Patrística, que fez sua obra sob a mesma perspectiva de Eusébio de Cesareia. Sua obra mais importante no que tange à História é a Cidade de Deus. Nela, Agostinho mostrou que há duas cidades: a terrestre e a divina. Na cidade terrestre os homens vivem de acordo com a carne e devem, portanto, suportar as dores, tristezas e infortúnios; já na cidade celeste, viverão do espírito e da benevolência de seu Deus. O guia que levará o homem da Cidade Terrestre à Cidade de Deus é a Igreja. Sobre isso, o texto a seguir é claro: Na Alta Idade Média, o esquema dominante para pensar a História procede da Cidade de Deus de Santo Agostinho. Lembremos as suas linhas de força: a cidade terrestre, partilhada entre cristãos e pagãos, e reunida sob a forma de Império Romano, está em marcha para a Cidade Celeste. No seio da Cidade Terrestre, para guiar, a Civitas Dei está já presente sob a forma de Igreja. O sentido profundo da história liga-se às conquistas dessa instituição fundada por Deus para associar os homens à sua própria beatitude. Dessa visão resulta um estatuto político e histórico particular dos cristãos: membros da cidade de Deus são peregrinos nesse mundo, usando a paz relativa da Cidade Terrestre para atingir a paz celeste. (BOURDÉ e MARTIN, 1990, p. 18). Na mesma linha, a de Eusébio de Cesareia e Aurélio Agostinho, mas trazendo uma inovação, está Paulo Orósio (385-420). Esse autor português escreveu História contra os pagãos, cerca de 417, em que refutou a responsabilidade do Cristianismo na queda do Império Romano. Em uma perspectiva de história comparativa, apresentou a queda de três impérios anteriores ao Império Romano que chegaram ao fim sem que neles houvesse a presença do Cristianismo, por isso a implantação do Cristianismo como religião oficial de Roma pelo imperador Teodósio, em 385, não teve nenhuma responsabilidade na derrocada do império. Orósio afirmou que um acontecimento não deve ser visto de forma isolada, mas dentro de um conjunto de acontecimentos para que, dessa forma, possa ter seu real significado. Sem dúvida, essa afirmativa é a inovação de Orósio. Outro expoente da história feita na Alta Idade Média é o espanhol Isidoro de Sevilha (562-636). Em seu livro História dos Godos, em que narrou a história do povo godo, uma das subdivisões dos povos germanos, afirmou que pretendia deixar para o futuro o que o passado pode ensinar. Em Etimologias, Isidoro compila a primeira enciclopedia do mundo ocidental. Nela, fala de assuntos mais diversos: gramática, agricultura, medicina, Deus, hereges, judeus, guerras, navios, casas, mobiliário, navios, ferramentas etc., sempre sob a ótica de deixar para o futuro aquilo que o passado pode explicar. A diversidade de assuntos passou a fazer parte da História. Por último, citaremos Beda (673-735), conhecido como o Venerável. Em sua obra História eclesiástica do povo inglês, mostra o surgimento e ascensão da Igreja na Inglaterra. Com essa obra, Beda ganhou o título de “Pai da História Inglesa”. Nos cinco livros que compõem a totalidade dessa obra, o início é a invasão de Júlio César à Inglaterra, e o fim é o fortalecimento do Cristianismo na Inglaterra. 30 CAPÍTULO 3 • HISTÓRIA E HISTORIADORES nA IDADE MÉDIA Ainda na Alta Idade Média, houve obras que foram bastante populares: as hagiografias, que eram narrativas da vida dos santos. “Era um dos mais importantes pontos de encontro da cultura erudita com a cultura vulgar” (FRANCO JUNIOR, 2001, p. 183); entendemos por cultura erudita a cultura dos homens letrados, os clérigos, e a cultura vulgar, toda aquela cultura que não fosse a clerical. Apesar de claramente voltadas para a religião, as obras hagiográficas estavam dentro daquilo que os homens do Medievo concebiam como história. A vida dos santos era narrada de forma meticulosa e permitia um panorama bastante amplo sobre a vida da santa ou do santo escolhido(a). Entretanto, não se pode esquecer que as hagiografias relatam fenômenos maravilhosos, procurando incessantemente provar que todos os fatos narrados são verdadeiros. Não podemos deixar de explicitar que somente a partir dos carolíngios a escrita ficou mais fácil, tendo sido um dos elementos facilitadores para o ato de escrever e, consequentemente, para a História. Sobre isso, o texto aseguir é esclarecedor: Para acelerar essa atividade e minimizar os erros de transcrição, buscava- se já havia algum tempo desenvolver uma caligrafia menos desenhada, que apresentasse maior regularidade. Uma caligrafia mais prática, cursiva que implicasse menor número de movimentos com a mão. Essa grafia, conhecida por minúscula carolíngia, foi finalmente criada no mosteiro de Saint-Martin de Tours. Associando rapidez, clareza e regularidade, ela é utilizada até hoje, nos seus traços essenciais, nos caracteres de imprensa. Sem dúvida, aquele novo tipo de letra foi uma condição importante para que no Ocidente se desenvolvesse futuramente uma civilização baseada na palavra escrita. Naturalmente, o idioma manejado pelos copistas era o latim. Aliás, na sua tarefa de preservação do passado clássico ( ao menos da parte dele que interessava aos carolíngios) os eruditos da época preocupavam-se em devolver ao latim sua pureza. (FRANCO JÚNIOR, 2001, p. 108) Fica claro o sentido da História nesse primeiro período da Idade Média: é o sentido dado pela religião, ou seja, insere-se na lógica providencialista, e, por isso mesmo, tem um enfoque fatalista. Ela, a História, enfoca os triunfos da Igreja e daqueles que a seguem, sendo ela a guia-mestra que tudo faz de acordo com a vontade divina. Mas, apesar de todas as dificuldades, carência de arquivos, carência de bibliotecas, carência de uma escrita menos rebuscada, carência de uma separação definitiva entre história e religião, os homens da Alta Idade Média mostraram a sua concepção de História e trouxeram suas contribuições, sendo as principais: cuidado com a cronologia, uso da narrativa do cotidiano e letra mais fácil para a escrita. A Idade Média Central: a nova abordagem da História A Idade Média Central, compreendida entre os século XI e XIII, trouxe inovações para o fazer História. Sem dúvida, o fato de maior destaque para essa transformação foi o movimento cruzadístico. 31 HISTÓRIA E HISTORIADORES nA IDADE MÉDIA • CAPÍTULO 3 As Cruzadas abriram um imenso campo de pesquisa: o mundo alargou-se, o tempo se transformou e as perspectivas foram alteradas. O Oriente se fazia conhecer: exótico, letrado e luxuoso mostrava-se o oposto do Ocidente. O tempo empregado a essas expedições era de grande importância, já que havia empenho em libertar os locais sagrados. E as perspectivas logo se transformaram: para além da fé, havia, para muitos participantes do movimento, o desejo de comercializar com os orientais; nesse caso, a motivação religiosa era secundária. As narrativas do movimento cruzadístico causaram grande interesse à população medieval. O interesse pelo desconhecido e exótico Oriente, a ambição pela riqueza, as narrativas épicas, as façanhas de algum familiar ou amigo envolvido seduziam os ocidentais. Por isso cada Cruzada tinha um ou mais cronistas que dela participavam e que relatavam os fatos acontecidos. Mas não se deve esquecer que as narrativas são bastante imprecisas. O tumulto pela viagem e as expectativas dos combates faziam, muitas vezes, com que o sentido de “passado” fosse pouco desenvolvido. É comum encontrar os termos há muito tempo, outrora, antes, todos eles demonstrando imprecisão. Há que se ressaltar, também, que anarrativa das cruzadas foram também de cunho religioso, uma vez que a população do Ocidente via, com clareza, a vontade divina nesse movimento. Os cronistas também faziam questão de mostrar que viveram tudo o que narraram. Mas é importante frisar que muitos dos cronistas começaram a mostrar preocupação com as causas do movimento de que participavam. Pode-se perceber isso em Guibert de Nogent, que afirmou sobre a segunda cruzada (1147-1149) “Julguei necessário em primeiro lugar dever expor os motivos e as circunstâncias que tornavam urgente uma tal expedição” (BORDÉ; MARTIN,1990, p. 20). Mas, para além dos relatos das Cruzadas, mais à frente, no século XIII, os relatos, os escritos e a história se separaram pouco a pouco da esfera religiosa e foram para a esfera leiga. Esse fato ocorre e há explicações para ele. Desde meados do século XI assiste-se ao renascimento, ainda que tímido, do mundo urbano. Os burgos surgem em todo o Ocidente. Dentro deles, é possível ver novos atores sociais, aqueles que trabalham nas manufaturas, distantes da tutela feudal; foi possível perceber o ressurgimento do poder monetário; viu-se a criação das universidades; começava ali o ressurgimento do poder dos reis. Nesse processo, surgiram no século XI as escolas urbanas, que se transformariam em universidades no século XIII. Ambas eram produto do crescimento demográfico-econômico-urbano, que tornava a sociedade mais complexa e mais necessitada de atividades intelectuais. De fato, eram necessários sacerdotes em maior número e mais bem preparados para guiar fiéis mais numerosos e com novos problemas; juristas para uma maior quantidade de tribunais e às voltas com questões novas e mais difíceis; burocratas para reis e grandes senhores feudais, cujos rendimentos, despesas e interesses se ampliavam; mercadores 32 CAPÍTULO 3 • HISTÓRIA E HISTORIADORES nA IDADE MÉDIA para atender à crescente demanda, procura de bens e que precisavam elaborar contratos, escrever cartas, controlar lucros e estoques. Contudo, ainda em meados do século XI, as escolas urbanas mantinham-se muito presas às influências eclesiásticas, o que limitava o seu papel. Quando, naquele momento, um incêndio destruiu a escola episcopal de Gund e os burgueses aproveitaram para abrir suas próprias escolas, o clero protestou contra essa “insolência dos leigos” (FRANCO JÚNIOR, 2001, p. 117) O texto acima dá o exemplo de como os burgueses, os habitantes do burgo (somente mais tarde esse nome seria dado à classe social que praticava o comércio), abriram suas escolas em Gund (cidade que se situava na atual Bélgica), mas é importante lembrar que esse processo ocorreu em todo o Ocidente. De uma forma ou de outra, os burgueses, paulatinamente, apoderam-se do ensino, afastando-o, aos poucos, da tutela da Igreja. Dentro das universidades novas ideias floresceram. A criação desses centros de ensino mudaram definitivamente os rumos de tudo que seria escrito, a História, inclusive. A universidade de Bolonha foi criada em 1158; a de Paris em 1200 e a de Cambridge em 1209. Nos cursos ministrados, Direito, Medicina e Artes, a presença dos leigos era cada vez maior. Nesse cenário, o poder dos leigos também vai se firmando e ascendendo. Daí que mais à frente, a partir do século XIII, foi possível assistir ao surgimento de novidades. Novos escritos apareceram: são as crônicas. Elas foram destinadas e subvencionadas por um público aristocrata. Nesse período, escrever crônicas era fazer História. O primeiro grande exemplo de cronista é o francês Jean Froissart (1337-1410). Froissart foi um historiador e viajante que escreveu para agradar aqueles que patrocinavam o seu trabalho. Dentre seus trabalhos mais importantes está a Crônica da França, da Inglaterra e de países circunvizinhos. Nele, o autor faz uso da história oral para “me satisfazer a mim mesmo, para dar autenticidade e bases sólidas ao meu trabalho” (BOURDÉ; MARTIN, 1990, p. 29). Viajou inúmeras vezes pela Inglaterra e pela França para recolher seu material. Algumas vezes, quando não conseguia dar explicações sobre determinados fatos, colocava a responsabilidade na vontade divina. Seu relato é cheio de inexatidões e imprecisões. Sua postura foi, abertamente, se colocar ao lado dos senhores e dos príncipes, fato claro quando fez citações sobre as revoltas servis do século XIV ou quando silenciava sobre os excessos cometidos pelos proprietários de terras sobre os camponeses insurretos. De qualquer forma, é possível ver uma História diferente daquela feita na Alta Idade Média. A partir da Idade Média Central, a Igreja não é a única a ter o conhecimento, que passa a ser não só a leitura, mas, também, a escrita, de domínio dos leigos. Da esfera religiosa, passava à esfera política, mas, sem dúvida, um novo 33 HISTÓRIA E HISTORIADORES nA IDADE MÉDIA • CAPÍTULO 3 campo de especulação surgia. Sobre isso, é interessante ler o relato de Jean Froissart quando ele fez o prólogo de seu livro Crônica da França, da Inglaterra e de países circunvizinhos: A fim de que os grandes e admiráveis feitos durante as grandes guerras entre a França e a Inglaterra e os reinos vizinhos – guerras convocadas pelos reis e seus conselheiros – sejam registradas de maneira cuidadosa no tempo presente e para o tempo vindouro e seus descendentes. É com esta finalidade que quero ordenar e colocar em prosa as verdadeiras informações que obtive de homens corajosos, cavaleiros valorosos e escudeiros, autores desses grandes feitos, e também de outros combatentes (arautos de armas) e seus marechais, que são por direito dignas de testemunhas (...). Coloquei em primeiro lugar no meu proêmio que quero dizer e tratar de grandes maravilhas. (apud CAIRE-JABINET, 2003, p. 45) A Baixa Idade Média: a História e o poder dos príncipes A Baixa Idade Média (séculos XIV-XV) foi marcada pela lenta mas constante afirmação do poder real. Se durante os anos anteriores da Idade Média os príncipes eram senhores feudais como tantos outros, desde o século XII, começam paulatinamente a recuperar o seu lugar de líder de uma nação. Evidentemente que todos os príncipes não ocuparam seus tronos ao mesmo tempo no Ocidente. Mas é indiscutível que nos séculos XIV e XV, no Ocidente europeu, os Estados já estavam delineados e com soberanos à frente para dirigi-los. E esses reis fizeram uso dos cronistas para que a história de seu reino fosse contada e seu poder de soberano fortalecido. Alguns acontecimentos levaram os monarcas à opção pelo uso das crônicas para o fortalecimento do poder dos reis. O mais importante, sem dúvida, foram as revoltas camponesas. Na busca pela repressão aos insurretos, o uso das crônicas foi utilizado para o fortalecimento da autoridade do rei e do reino. E também para a noção de pertencimento àquele reino, ou seja, ser inglês, ser francês, ser português etc. E mais: é a partir daqui que se vê a construção dos heróis nacionais. Vários foram os cronistas que se envolveram diretamente com os reis nos fins da Idade Média, e todos tiveram a trajetória diferente. Inicialmente, citaremos o bispo francês Thomas Basin (1412-1491), que foi considerado historiador do rei e, por isso, recebia uma pensão fixa do Estado. Basin era profundamente admirado pelos que trabalhavam ao lado do rei, mas sua situação mudou quando, em 1465, envolveu-se em uma revolta feudal contra o rei, Luis XI (1423-1483), que obrigou o cronista a se exilar na Holanda. Outro exemplo é o também francês Philippe de Comynnes. Esse cronista (1447-1551) também serviu ao rei Luís XI. Privava da intimidade da casa real. Inicialmente, era camareiro do monarca. Posteriormente, foi convidado para escrever crônicas. Viveu por muito tempo desfrutando do privilégio de ser cronista do reino, até que, depois da morte do rei (Luís XI), demonstrou simpatia pelo parlamentarismo inglês. Caiu em desgraça e foi afastado da intimidade da casa real, tendo sido, inclusive, preso. Ao sair da prisão, aliou-se a Carlos VIII, substitutode Luís XI, e passou a 34 CAPÍTULO 3 • HISTÓRIA E HISTORIADORES nA IDADE MÉDIA desempenhar missões diplomáticas. Por fim, escreveu Memórias, livro em que exaltou as virtudes de Luís XI e seus descendentes. Figura 15. Philippe de Comynnes. Fonte: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/e/e3/Philippe_de_Commynes_Louvre_LP_47.jpg/220px- Philippe_de_Commynes_Louvre_LP_47.jpg>. Último acesso: 4/42016. No século XV, a Borgonha era um importante condado livre da França. A casa real borgonhesa também fez uso de cronistas para fortalecer o poder real. Dentre eles podemos citar Jean Molinet (1435-1507). Assim como outros cronistas contemporâneos a ele, Molinet pretendia exaltar os feitos do monarca e sua dinastia, as características positivas da personalidade real e os fatos históricos mais importantes para o fortalecimento do reino. Em Portugal, o maior expoente de todos os cronistas foi Fernão Lopes, que nasceu entre 1380 e 1390 e morreu em 1460. Inicialmente, era guarda-mor da Torre do Tombo, ou seja, o responsável em guardar e conservar os arquivos do Estado. Posteriormente, foi convidado a ser escrivão do rei e começou a escrever a Crônica dos Sete Primeiros Reis de Portugal. É importante explicitar que o cronista recebia uma tença (salário) para desempenhar seu ofício. Seu escrito mais importante foi a Crônica de D. João I, rei que Lopes apelidou de “o de Boa Memória”. Esse monarca, filho bastardo do rei, iniciou e legitimou uma nova dinastia em Portugal, a dinastia de Avis, a partir de 1385. Para maiores esclarecimentos, leia o box a seguir: As crônicas de Fernão Lopes são exemplos clássicos da tentativa de fortalecer e legitimar uma dinastia. Em 1383, o rei D. Fernando I, da dinastia de Bragança, morreu sem deixar herdeiros do sexo masculino. Sua única filha havia sido prometida ao rei de Castela, com quem se casou. O rei castelhano declarou-se rei de Portugal. Temerosos de que Portugal perdesse a independência, dois herdeiros apareceram para ocupar o trono: João, filho do rei com uma camareira, e João, mestre http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Philippe_de_Commynes_Louvre_LP_47.jpg 35 HISTÓRIA E HISTORIADORES nA IDADE MÉDIA • CAPÍTULO 3 de Avis (ordem religiosa e militar), filho de uma aia do reino. Como o João, filha da camareira, foi logo preso em Castela, restou ao Mestre de Avis a tarefa de fazer-se rei de Portugal. E, depois de lutar e vencer os castelhanos, o mestre de Avis se transformou em D. João I, o primeiro monarca da Dinastia de Avis. Ficou a cargo de Fernão Lopes demonstrar, por meio de suas crônicas que os monarcas de Avis eram legítimos, verdadeiros e eleitos por Deus. A Bretanha também teve seus cronistas. Um dos exemplos mais conhecidos foi Guillaume Gruel (nascido cerca de 1410 e morto em torno de 1470). Autor da Crônica de Arthur de Richmond, que é um discurso em louvor do rei, Gruel se encaixa perfeitamente nesse momento de fins da Idade Média, em que os cronistas estão a serviço dos reis. Alain Bouchard, cronista bretão do século XVI, afirmou: Para mais facilmente atingir a altura da honra, é coisa muito conveniente a qualquer pessoa que do precioso dom de sapiência deseje fazer o seu tesouro e a sua riqueza, reduzir muitas vezes à memória os fatos dos precedentes homens notáveis que disseram ou fizeram coisas dignas de recordação e retê-las bem; porque assim fazendo e lendo as histórias que escritas foram, podemos ver a que fim uns e outros por bem ou mal fazer chegarem... Ora é que, ao ler e examinar várias crônicas e histórias onde em tempo algum quis estar desocupado para evitar ociosidade que é madrasta da virtude, depois de ter estado vago ao estudo de minha vocação nos tempos e estações dispostas para repouso, vi e li várias crônicas, histórias e outros livros tratando dos fatos e gestos de muito grande número de imperadores, reis e outros príncipes dos lugares de que são oriundos, das origens e primeiras criações dos seus impérios, reinos e principados, da sua longa e breve duração. (...) Por esta causa (...) eu, que sou bretão, nativo da Bretanha, quis bem examinar antes as antigas histórias e crônicas e os velhos volumes e registro envolver, que procurei nos lugares onde é costume guardar cartas de perpétua memória; e o que pude encontrar e extrair, escrevi e redigi sucintamente e em breve. (...) E em relação ao reino e dos príncipes, acrescentarei, para recreação espiritual dos leitores e ouvintes, alguns fatos dignos de memória verificados em outras regiões, e algumas sentenças e decisões aferentes aos propósitos de que será tratado, tal como os encontrei, sem lhes por nem acrescentar coisa que não vi e li por escrito. ” (apud BOURDÉ; MARTIN, 1990, p. 42 e 43). A História no período medieval teve características próprias. Inicialmente estava a serviço da Igreja, e por isso tentava provar os desejos da divindade; depois, paulatinamente, foi apoderada também pelos leigos, na Idade Média Central, principalmente graças ao movimento cruzadísitico e o surgimento dos burgos. E, por último, no fim da Idade Média, passou a servir os soberanos recém empossados em seus tronos, auxiliando na legitimação e fortalecimento dos jovens Estados europeus. 36 CAPÍTULO 3 • HISTÓRIA E HISTORIADORES nA IDADE MÉDIA Sintetizando Vimos até agora: » A Idade Média e suas divisões. » A História e a religião da Alta Idade Média. » As transformações ocorridas na Idade Média Central. » A Baixa Idade Média e a História. » A História na Idade Média: da tutela da Igreja ao domínio dos reis. » A Idade Média e sua contribuição para a escrita da História. 37 Introdução Este quarto capítulo é destinado a inserir o aluno na reflexão a respeito da escrita da História na Idade Moderna. Inicialmente serão apresentados os principais representantes da forma de pensar a História dentro da Modernidade, nos séculos XVI e XVII, pontuando as transformações e as características mais importantes deste período. Objetivos » Atualizar-se sobre o debate a respeito da definição do conceito de Idade Moderna. » Conhecer os historiadores mais importantes dos séculos XVI e XVII. » Entender as diferentes abordagens da História dentro da sociedade moderna. » Perceber as continuidades e rupturas da História na Modernidade. 4 CAPÍTULO A IDADE MODERnA E A HISTÓRIA: OS SÉCULOS XVI E XVII 38 CAPÍTULO 4 • A IDADE MODERnA E A HISTÓRIA: OS SÉCULOS XVI E XVII Os séculos XVI E XVII: novas perspectivas na pesquisa histórica A chegada da Modernidade, na Europa Ocidental, trouxe inúmeras transformações nas esferas social, política, econômica e cultural. E, com isso, houve inovações, também, na História. Para refletir Compreende-se como Idade Moderna o período que vai do século XV até o século XVIII. Nesse período houve inúmeras transformações na Europa Ocidental. A título de ilustração, citaremos algumas delas. Na espera política vemos a afirmação e o crescimento dos Estados Nacionais. Os soberanos pouco a pouco ocuparam seus tronos, formaram seu corpo administrativo e seus exércitos, passando a exercer, de fato, o seu poder. Na esfera econômica, a economia europeia foi completamente transformada com a expansão marítima e a chegada de especiarias e ouro no continente europeu. A economia também se transformou com a implantação do mercantilismo, a prática econômica dos Estados Nacionais, que tinha como característica mais marcante a indicação de que cada país deveria entesourar a maior quantidade possível de ouro e prata. Em nível social foi possível perceber o surgimento de um novo grupo social que jamais sairia de cena: a burguesia. Tendo como principal atividade o comércio, os burgueses tornaram-se as figuras mais importantes na esfera econômica, e passaram a desejar ocupar lugar de destaque na área política. No âmbito da cultura floresceram o Humanismo e o Renascimento, movimentos culturais que colocavam o homem e não mais Deus no centro da vida. Além disso, a EuropaOcidental foi palco de intensas disputas na esfera religiosa. Após séculos de críticas à Igreja Católica Romana, Martinho Lutero, monge alemão, rompeu com Roma e deu início ao Protestantismo. Além da religião criada por Lutero, outras surgiram: o Calvinismo, na França e o Anglicanismo na Inglaterra, por exemplo. Houve, a partir de agora, um rompimento efetivo na Igreja Cristã do Ocidente. Ainda dentro da esfera política, foi possível ver, no século XVIII, um movimento intelectual de grande porte: a Ilustração. Esse movimento surgiu na França e alastrou-se por toda a Europa Ocidental. Tinha como objetivo mais importante o uso da razão. A racionalidade deveria ser empregada para a compreensão dos homens, da natureza, enfim, do mundo. Com o Iluminismo, a razão se sobrepôs à fé definitivamente. E, finalmente, resta citar o século XIX: nele, a ciência passa a ser a única forma respeitada e verdadeira de explicar todos os fatos. Os principais expoentes da escrita da História em fins do século XVI e do século XVII foram os franceses. Bem, vamos à exposição dos historiadores e de suas propostas nessa primeira fase da Modernidade. O francês François Hotman (1524-1590), professor de Direito romano e historiador, entendia que a História era o principal caminho para se determinar a natureza do poder dos reis; para Hotman, o poder do soberano deveria estar subordinado ao consentimento popular. A História, segundo ele, era o instrumento mais importante para legitimar o poder real. Preocupou-se, por isso, em sua obra Gaule française (Franco-Gália) em valorizar a França desde as suas origens, mas sem enaltecer a presença de outros povos; buscou valorizar a língua e os hábitos franceses como elementos aglutinadores da população. 39 A IDADE MODERnA E A HISTÓRIA: OS SÉCULOS XVI E XVII • CAPÍTULO 4 O trabalho de Hotman não deixa dúvidas sobre a união da história e do poder real, permanência da Idade Média, a partir do momento em que os cronistas estavam ligados às recém-formadas monarquias medievais. Figura 16. Hotman. Fonte:https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/c/c9/Fran%C3%A7ois_Hotman.jpg. Último acesso: 4/4/2016. Em uma clara ligação entre o rei e a história dos reinos, Hotman procurou mostrar, em suas obras, que a importância da História está em estudar o passado para responder às questões do presente. E era esse o seu método: conhecer o passado para entender o presente. E, assim, legitimar o poder real. O também francês Étienne Pasquier (1529-1615), católico fervoroso, procurou estudar os temas mais variados sobre a França: canções, provérbios, folclore, instituições, língua etc. Dizia, com ênfase, que, em História, só se pode fazer afirmações se houver comprovação com os documentos existentes. Sua contribuição, portanto, está no fato de ele valorizar as fontes documentais. Em seu livro Recherches de la France afirmou a importância de se valorizar os documentos disponíveis e os utilizou para a elaboração do livro. Pasquier afirmou, ainda, que embora Deus esteja presente na história da humanidade, Ele está em segundo plano. Em primeiro plano vêm os fatos franceses, isto é, aqueles inerentes à história da França, sem a participação de elementos externos, ainda que seja Deus. Figura 17. Étienne Pasquier. Fonte: <https://fr.wikipedia.org/wiki/%C3%89tienne_Pasquier_(po%C3%A8te)>. Último acesso: 4/4/2016. https://commons.wikimedia.org/wiki/File:%C3%89tienne_Pasquier_by_Thomas_de_Leu.jpg?uselang=fr 40 CAPÍTULO 4 • A IDADE MODERnA E A HISTÓRIA: OS SÉCULOS XVI E XVII Figura 18. Fonte: <https://en.wikipedia.org/wiki/%C3%89tienne_Pasquier>. Último acesso: 4/4/2016. Jean Bodin (1530-1596) era francês, advogado e cristão fervoroso. Combatia ferozmente todos aqueles que, segundo ele, contrariavam os princípios cristãos. Participava da política, e chegou a ser procurador do rei da França. Bodin também acreditava firmemente que apenas o Estado era capaz de manter a ordem. Fora isso, a anarquia reinaria. Por isso, foi considerado o precursor do conceito moderno de soberania, já que a Idade Média e sua descentralização política davam sinais de esgotamento. Figura 19. Bodin. Fonte: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Jean_Bodin>. Bodin, assim como tantos outros a ele contemporâneos, contribuiu para fazer História. Entendia que para se escrever a História era preciso, antes de tudo, ter-se um método: esse método era a elaboração de uma cronologia e, a partir daí, ir do geral para o particular. Dessa forma era https://en.wikipedia.org/wiki/File:Lombards_Library_020.jpg https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Jean_Bodin.jpg 41 A IDADE MODERnA E A HISTÓRIA: OS SÉCULOS XVI E XVII • CAPÍTULO 4 possível isolar leis que esclareceriam a organização da sociedade. Bodin acreditava que apenas dessa forma era possível estabelecer leis para o funcionamento da sociedade. Mas afirmou a necessidade de prudência para o historiador, uma vez que há grande relatividade no que se refere a qualquer estudo sobre a história da humanidade. É possível compreender que o autor atrelava seu compromisso com a monarquia e à ordem, com as leis que regem a sociedade. Henri Voisin Lancelot de la Popelinière (1541-1608), francês e protestante, afirmava que a História deve ser geral, ou seja, ela deveria englobar todos os aspectos da existência dos homens. Para isso, pregava que os países deveriam preservar tudo que contribuísse para a sua História: canções, poemas, provérbios etc. Acusava os eclesiásticos da debilidade da História até aquele período, pois, segundo Popelinière, a Igreja dava à História um sentido providencial, e todos os aspectos deveriam ser igualmente pesquisados. Popelinière afirmava que o passado deveria ser compreendido em sua totalidade e não em partes. Esse autor teve a sua obra marcada pela expansão marítima: ele afirmava que se deveria levar em consideração a grande extensão da terra, do mundo e de pessoas e a importância de se compreender essa realidade. O jesuíta Daniel van Papenbroeck, nascido na Antuérpia (1628-1714), dedicou-se a fazer uma crítica dos documentos antigos, e disse claramente ter dúvida da autenticidade dos diplomas reais merovíngios (dinastia francesa que existiu do século V ao VIII na França). Segundo o autor, o fato de o documento ser produzido pelo poder político, não dá a ele a veracidade absoluta. Figura 20. Daniel van Papenbroeck. Fonte: <https://fr.wikipedia.org/wiki/Daniel_van_Papenbroeck.> Último acesso: 4/4/2016. Nessa mesma linha estava Richard Simon (1638-1712), filósofo e historiador francês. Ele foi convidado para classificar os manuscritos sagrados oriundos do Oriente que se encontravam em um mosteiro. Depois de pesquisar, concluiu que há um número bastante grande de incoerências https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Daniel_Papebroch_2.jpg?uselang=fr 42 CAPÍTULO 4 • A IDADE MODERnA E A HISTÓRIA: OS SÉCULOS XVI E XVII nesses textos. Ele deve ser considerado um dos primeiros críticos das escrituras religiosas, já que seu senso crítico se sobrepôs à fé. No que se refere à pesquisa histórica, Simon alertou sobre a importância da relativização das Sagradas Escrituras como fonte do estudo da História. Figura 21. Fonte: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ricardo_Simon>. Último acesso: 4/4/2016. Na mesma linha de Richard Simon está o também francês Dom Mabillon (1632-1701), monge e historiador. Ele declarou guerra aos documentos falsificados. Criou a exigência de que os documentos fossem classificados de forma séria, ou científica, como ele próprio afirmava. Pretendia não deixar espaços para falsificações. Para tal, propôs um grande rigor para a análise da escrita e da língua. Segundo Mabillon, todos os documentos que não passassem por esse crivo seriam taxados de falsificados. Para ele, não era possível nenhuma afirmação sem prévia confirmação. Também afirmou categoricamente que a escrita da História não pode ser feita sem os fatos previamente comprovados. Figura 22. Dom Mabillon. Fonte: