Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
RESENHA CRÍTICA DO DOCUMENTÁRIO “CAPITALISMO: UMA HISTÓRIA DE AMOR”, DE MICHAEL MOORE No documentário Capitalismo: Uma História de Amor, de Michael Moore, são abordados diversos aspectos do capitalismo e de como ele tende a excluir a existência da classe média, fazendo com que existam apenas duas classes, a dos ricos e a dos pobres, deteriorando os ideais de liberdade. Nas palavras de Moore (2009): "Isso é o capitalismo, um sistema que toma e dá. Ele toma mais do que dá, a única coisa que não sabíamos era quando a revolta ia começar". O documentário começa contrastando a grandiosidade de Roma, ressaltando a beleza e riqueza dos grandes fóruns, com a economia dependente de escravos, com o abismo entre ricos e pobres e com as dificuldades de obter um emprego, principalmente para os inexperientes. Depois disso, mostra algumas famílias perdendo e sendo obrigadas a saírem de suas casas, sem terem para onde ir, pois não conseguiram pagar as hipotecas. A revolta do homem que está sendo despejado fica evidente em sua fala: "Nós tentamos de tudo, menos assaltar um banco, estou pensando em fazer isso, é uma forma de alguém ter seu dinheiro de volta. Eles fizeram isso comigo, não sei por que não posso fazer isso com eles?” (MOORE, 2009). Na maioria das vezes isso é feito por imobiliárias e bancos, instituições ricas, que posteriormente vendem essas propriedades com mais lucro. Nesse momento, o espectador começa a perceber que as necessidades pessoais estão em segundo plano, não se dá importância à quem não possui dinheiro, mostra-se como as pessoas são enxergadas como cifras, e os que não as possuem são apenas objetos invisíveis que após serem usados podem ser descartados, deixando como pagamento seus bens. Como diz Octavio Ianni (2001), “O capitalismo é um processo simultaneamente social, econômico, político e cultural de amplas proporções, complexo e contraditório, mais ou menos inexorável, avassalador.” Mudando um pouco o foco, Moore nos mostra o conceito de livre empresa e de obtenção de lucro. Fica claro que os Estados Unidos são competitivos em grande parte graças a outros países, como os da Europa e o Japão, estarem detonados devido à Segunda Grande Guerra. No momento de pós-guerra, Ronald Reagan foi eleito e ao seu lado estava Donald Reagan, executivo da Merril Lynch, os quais passaram a privilegiar os mais ricos, diminuindo a alíquota de imposto deles em mais da metade, ao passo que os mais pobres tiveram salários congelados e não conseguiam sequer arcar com os custos básicos de sobrevivência, tendo que recorrer a empréstimos, por exemplo. Moore afirma que Reagan estava guiando os Estados Unidos da América rumo ao desmantelamento da infraestrutura industrial, não bastasse isso os sindicatos e relações de trabalho também estavam se desarranjando. Isso fica evidente quando ele entrevista pilotos e contrasta o salário que recebiam quando iniciaram a carreira com os da época em que o documentário foi gravado. Atrelado a isso, mostra o tratamento de herói recebido pelo piloto Chesley Sullenberger e a forma como ele expôs as condições precárias de sua profissão, nada valorizada naquele cenário. Outra face do capitalismo mostrada aparece na questão de um centro de detenção juvenil na Pensilvânia, o qual foi privatizado e a partir disso condenações longas para ocorrências banais eram dadas, pois quanto mais tempo e quanto mais jovens ficavam detidos nesses locais maior seria a margem de lucro da empresa responsável pelo centro. Mais uma vez, Moore está mostrando o quanto a vida de quem tem pouco não é importante. Fazer pessoas passarem anos privadas de liberdade soa como uma barbaridade para nós, mas não parece nada demais aos olhos dos que faturam com isso. Adiante no documentário, o diretor mostra casos de pessoas que, após a morte de seus entes, descobriram que as empresas para as quais eles trabalhavam haviam feito seguros de vida no nome de seus funcionários, sendo os beneficiários as próprias empresas. No ambiente empresarial esses seguros recebiam o nome de “seguro dos caipiras mortos” e Moore deixa claro que havia uma expectativa de morte a ser alcançada. Nesse momento o documentário cumpre ao que anuncia em seu início: “Este filme [...] contém cenas que sob nenhuma circunstância devem ser vistas por alguém com problemas cardíacos ou alguém que se abale com facilidade” (MOORE, 2009). Na verdade, o difícil é não ficar abalado com a passagem. Mostra-se uma família com dívidas, sofrendo a dor da perda de um ente, passando por necessidades e tendo que assistir a empresa para a qual seu familiar dedicou a vida faturando sob a morte dele. A questão religiosa é apresentada na obra quando o autor busca padres e um bispo para questionar se o capitalismo era um pecado. Todos tiveram visões semelhantes de que ele é errado e deveria ser eliminado. Atrelado a isso, o documentário utiliza a ironia para sustentar a frase dita em uma propaganda de que o capitalismo estaria de acordo com as leis de Deus e os ensinamentos da bíblia. Depois disso, mostra-se o escândalo envolvendo o Citibank, causado pela publicação de comunicações do banco com os seus maiores acionistas, nelas introduziu-se o conceito de plutonomia, basicamente uma nova aristocracia, evidenciando que 1% das famílias mais ricas dos EUA possui a mesma quantidade de dinheiro e de bens que 95% das famílias mais pobres. No documento, destacava-se a preocupação de que apesar da hegemonia financeira de pequena parcela da população, cada pessoa tinha direito ao voto e se essas pessoas se revoltassem elas poderiam quebrar a sistemática. Porém, boa parte da população acreditava que um dia viveria o “sonho americano” e conseguiria se juntar a esse 1% mais rico, isso abrandava uma revolta iminente. Outra temática discutida no documentário e por Octávio Ianni, em sua obra Teorias da Globalização, é sobre destinar os melhores alunos para grandes empresas com o intuito de obter lucros cada vez maiores. Segundo Ianni, o conhecimento e seus benefícios não são sinônimos de um mundo menos desigual, pelo contrário, apenas aprofundam as desigualdades sociais. Ele afirma ainda que a ciência pode “intensificar a reprodução do capital e, simultaneamente, contribuir para a concentração e a centralização do capital” (IANNI, 2001). Para ele, todo esse processo ocorre sob os olhos atentos de grandes instituições como aquelas que são comandadas pelo governo, por exemplo. Vemos uma abordagem semelhante no filme. Até então focado em mostrar o quanto as grandes empresas se preocupavam apenas em lucrar às custas de seus funcionários, Moore fala sobre o médico Jonas Salk (responsável por encontrar a vacina para a pólio), que não se interessou em enriquecer através dessa descoberta. Retornando para as análises financeiras, o diretor fala sobre alunos brilhantes que não se envolvem com ciência, mas sim com os grandes bancos de Wall Street, contrariando o posicionamento heróico do Dr. Salk. No fim, esses estudantes eram usados para fomentar os resultados financeiros e acabaram desenvolvendo os chamados derivativos, que seriam “esquemas complicados de apostas”, segundo o próprio Moore. Esses esquemas complexos de apostas poderiam possuir como variável inclusive a casa das pessoas. Nessa parte do documentário, explora-se o ponto de vista de Allan Greenspan, por meio das palavras de Elizabeth Warren, professora da Universidade de Harvard. Ela fala que Greenspan indicava aos americanos que deveriam usufruir do home equity, basicamente era um jeito bonito de dizer, nas palavras de Warren: “façam empréstimos usando sua casa como garantia, e se não puder pagar, você perde sua casa” (MOORE, 2009). Enquanto o conceito de home equity é explicado, o diretor usa da ironia nas imagens do documentário, mostrando pessoas felizes carregando barras de ouro. Também fica explícito o porquê dos derivativos serem tão complicados, eles são feitos para que as pessoas realmente não os entenda, émais fácil de enganá-las dessa forma. Para que a casa pudesse ser levada como garantia deveriam haver mudanças nas normas, Moore chama isso de desregulamentação e ironiza novamente ao mostrar uma foto de lobistas e do chefe da agência de supervisão de instituições de poupança “cortando” os antigos regulamentos. Nesse trecho, volta-se para a questão dos despejos, com uma das cenas mais impactantes de toda a obra. Consiste em uma família tendo que limpar sua própria casa antes de sair, para deixá-la apresentável para futuros compradores. Sem ter para onde ir, e ainda tendo que organizar tudo, eles receberam um cheque de míseros U$1.000,00. Em tom de deboche um dos membros da família diz: Sabe? Mil dólares para sair da minha própria casa e limpá-la. Isso eu realmente quero agradecê-los, isso foi realmente demais. Minha mulher trabalhou uma semana para limpar a casa, para garantir que ela estivesse apresentável para outra pessoa, eu fico feliz que fizeram isso. Eu tenho que agradecer a eles, eles foram muito gentis. Então, eu quero agradecer a eles, sim. (MOORE, 2009) Após esse momento, Moore contrasta o tratamento que os bancos fornecem às pessoas que realmente precisam de ajuda financeira com o das pessoas que possuem melhores condições. Ele entrevista Bob Feinberg, ex-funcionário da Countrywide, sobre o tratamento VIP fornecido aos friends of Angelo (FOA), que ao invés de juros exorbitantes, recebiam descontos em seus empréstimos. Figurava entre os amigos de Angelo - diretor geral da Countrywide - o senador Christopher Dodd - presidente do comitê de bancos - que deveria comandar a fiscalização da indústria hipotecária. A situação mostrada é vergonhosa, pois as pessoas envolvidas deveriam defender o povo e não o fizeram, revelando um conflito de interesses gigantesco. Em seguida, abordou-se sobre a crise financeira de 2008, causada pela explosão da bolha imobiliária. Devido a ela foram realizadas reuniões com diretores de Wall Street para descobrir quanto de dinheiro era necessário para cobrir todas as apostas ruins que os investidores fizeram. A grande questão é que muitos deles estavam ligados a instituições financeiras privadas. No fim, foi desenvolvido um plano de resgate no valor de setecentos bilhões de dólares buscando atendê-las. Entretanto, Moore leva o público a imaginar e a desconfiar das intenções de Bush ao propor esse pacote, basicamente expõe que ele foi criado para, ao invés de impedir a quebra dos grandes bancos e corretoras imobiliárias do país, ser distribuído para usufruto deles. Corroborando ainda mais com a criticidade da situação, os bancos não informaram a vinculação desse dinheiro, então, o povo não saberia o seu real destino. A proposta foi recebida com maus olhos pela população e houve um processo de despertar em relação a dificuldade de atingir o sonho americano, as pessoas foram para as ruas e começaram a pressionar o congresso para que tal proposta fosse indeferida. Em uma derrocada inédita de Wall Street, ela não foi aceita e por alguns instantes a população pareceu usufruir de seu poder. Porém, nas palavras de Moore (2009): "em dias o congresso mudou de opinião e deu aos bancos os 700 bilhões que eles queriam. O povo que se lixasse". A impotência da população se escancara nessa cena. O povo, em tese detentor do poder, foi tratado como a audiência de um espetáculo, assistiu o andamento de todo o show, mas não esperava pelo plot twist que os aguardava ao fim. No meio disso tudo ainda estavam acontecendo as eleições presidenciais e Barack Obama era o candidato com discurso de mudança, de renovação, de apoio ao povo, de igualdade e de distribuição de riqueza. Os opositores passaram a atacá-lo com o discurso de que o país caminharia para o socialismo, objetivando que ele perdesse votos. Entretanto, essa estratégia acabou impulsionando-o e fazendo com que os jovens se interessassem a respeito da ideia. Uma situação apresentada foi um jornalista dizendo que queria a torta dele inteira referindo-se ao discurso de Michelle Obama: "alguém vai ter que dar uma fatia de sua torta para que o outro possa ter mais". Toda a questão da população se mobilizar em relação à concessão do plano de resgate e da aposta em Obama como um candidato diferente evidencia aspectos do capitalismo também comentados por Octavio Ianni. De acordo com ele, esse modelo: “(...) abre novas possibilidades de emancipação individual e coletiva, permitindo outras formas de criação também individuais e coletivas. (...) Se criam distintas condições sociais de individualização, mobilidade social, organização de movimentos sociais e correntes de opinião pública. (...) A multiplicação dos meios de comunicação e as possibilidades de circulação das coisas, pessoas e idéias, em âmbitos nacional, regional e mundial, abrem outros horizontes para indivíduos e coletividades.” (IANNI, 2001) Entretanto, junto “às formas de sociabilidade inovadoras, liberadoras ou mesmo deslumbrantes, desenvolvem-se também as que limitam, inibem ou propriamente alienam.” (IANNI, 2001) O documentário então caminha para um desfecho mais positivo mostrando as pessoas comemorando a eleição de Barack Obama, famílias retornando para as casas das quais elas foram expulsas (incentivadas até mesmo por membros do congresso) e operários conquistando os direitos que lhes eram devidos, como o mostrado na vitória dos funcionários do Bank of America. Moore exalta esse momento lembrando também da greve de sindicatos ocorrida na General Motors, anos atrás em Flint, Michigan. Ao final, a obra mostra um discurso do presidente Roosevelt em que ele propõe uma nova declaração dos direitos humanos, afirmando que: “uma nova fase de segurança e prosperidade pode ser estabelecida para todos independente de posição social, raça ou renda”. A intenção era promover mais qualidade de vida aos cidadãos, liberdade aos grandes e pequenos empresários em decidir os seus preços e fazer suas próprias negociações, além de assegurar direitos que implicariam em mais segurança para a população. O presidente morreu pouco tempo depois e, apesar de todos os benefícios, nenhuma de suas propostas chegou a ser promulgada. Em contrapartida, a Europa e o Japão tiveram esses direitos garantidos através de novas declarações dos direitos humanos que foram idealizadas com a ajuda de ex-integrantes do governo Roosevelt, que viajaram até esses locais depois da guerra. Depois de assistir o documentário inteiro é possível verificar que o capitalismo não é o sistema ideal. Ele é um sistema bastante cruel e que beneficia apenas poucas pessoas ao custo de penalizar muitas outras. É necessário ressaltar que em momento algum Michael Moore se posiciona a favor do socialismo, ele apenas expõe as mazelas causadas pelo capitalismo. Pode-se inferir também que a democracia deveria fazer com que a vontade do povo fosse soberana, mas não foi isso que ocorreu na votação da aprovação do pacote de resgate em 2008, por exemplo. Tudo soa como um teatro, um “pão e circo” moderno. Fazendo analogia à situação atual, e ao Brasil, é quase palpável a diferença da percepção da pandemia para as diferentes classes sociais, o corona-vírus não escolhe as pessoas mais pobres como alvo, essa escolha advém do próprio sistema capitalista, que expõe aqueles que mais precisam de dinheiro e entrega o lucro para os proprietários dos meios de produção. Estes se encontram resguardados do perigo, ou pelo menos, possuem o benefício dessa escolha. Baseando-se nessa reflexão surgem alguns questionamentos que podem servir de inspiração para provocar debates e fazer com que vejamos como o capitalismo está intrínseco às nossas relações atuais. Dentre eles gostaríamos de destacar dois, são eles: - Por que as vacinas de covid-19 possuem patentes? Ganhar dinheiro nessa situação pandêmica é mais importante que salvar vidas? - A oferta e a demanda movem o capitalismo, mas aumentar o preço porque as vacinas estão escassas é justo ou apenas fazparte da lógica capitalista? REFERÊNCIAS IANNI, Octavio. Teorias da Globalização. 9º edição, P. 195 - 196. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. Capitalismo: uma história de amor. Diretor: Michael Moore. Estados Unidos: Paramount Pictures, 2009. Filme (127 minutos). Título original: Capitalism: a love story.
Compartilhar