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História e Princípios da Gastronomia Professor Esp. Cláudio da Silva Júnior Professora Me. Flávia Helena Franco de Moura Reitor Prof. Ms. Gilmar de Oliveira Diretor de Ensino Prof. Ms. Daniel de Lima Diretor Financeiro Prof. Eduardo Luiz Campano Santini Diretor Administrativo Prof. Ms. Renato Valença Correia Secretário Acadêmico Tiago Pereira da Silva Coord. de Ensino, Pesquisa e Extensão - CONPEX Prof. Dr. Hudson Sérgio de Souza Coordenação Adjunta de Ensino Profa. Dra. Nelma Sgarbosa Roman de Araújo Coordenação Adjunta de Pesquisa Prof. Dr. Flávio Ricardo Guilherme Coordenação Adjunta de Extensão Prof. Esp. Heider Jeferson Gonçalves Coordenador NEAD - Núcleo de Educação à Distância Prof. Me. Jorge Luiz Garcia Van Dal Web Designer Thiago Azenha Revisão Textual Kauê Berto Projeto Gráfico, Design e Diagramação André Dudatt 2021 by Editora Edufatecie Copyright do Texto C 2021 Os autores Copyright C Edição 2021 Editora Edufatecie O conteúdo dos artigos e seus dados em sua forma, correçao e confiabilidade são de responsabilidade exclusiva dos autores e não representam necessariamente a posição oficial da Editora Edufatecie. Permi- tidoo download da obra e o compartilhamento desde que sejam atribuídos créditos aos autores, mas sem a possibilidade de alterá-la de nenhuma forma ou utilizá-la para fins comerciais. UNIFATECIE Unidade 1 Rua Getúlio Vargas, 333 Centro, Paranavaí, PR (44) 3045-9898 UNIFATECIE Unidade 2 Rua Cândido Bertier Fortes, 2178, Centro, Paranavaí, PR (44) 3045-9898 UNIFATECIE Unidade 3 Rodovia BR - 376, KM 102, nº 1000 - Chácara Jaraguá , Paranavaí, PR (44) 3045-9898 www.unifatecie.edu.br/site As imagens utilizadas neste livro foram obtidas a partir dos sites Google, Pinterest, Dreamstime, Wikipédia,Shutterstock Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP S586h Silva Junior, Claudio da História e princípios da gastronomia / Claudio da Silva Junior, Flávia Helena Franco de Moura. Paranavaí: EduFatecie, 2021. 213 p. : il. Color. 1. Hábitos alimentares - História. 2. Gastronomia. 3. Culinária. 4. Alimentos. I. Moura, Flávia Helena Franco de. II. Centro Universitário UniFatecie. III. Núcleo de Educação a Distância. IV. Título. CDD : 23 ed. 641.09 Catalogação na publicação: Zineide Pereira dos Santos – CRB 9/1577 AUTORES Professor Esp. Cláudio da Silva Júnior ● Mestrando em Agroecologia (UEM) ● MBA em Gestão Empresarial (UniFatecie) ● Especialização em Didática e Tecnologia do Ensino Básico e Superior (UniFatecie) ● MBA em Gestão e Estratégia de Pessoas (UniFatecie). ● Especialista em Gastronomia e Cozinha Autoral pela PUCRS (Pontifícia Univer- sidade Católica do Rio Grande do Sul). ● Gastrónomo (Curso Superior em Tecnologia em Gastronomia) (UniCesumar). ● Docente do Curso Técnico de Gastronomia e Alta Cozinha – IGA (Instituto Gas- tronômico das Américas). ● Professor Formador EAD – UniFatecie. ● Docente do Curso Superior de Tecnologia em Gastronomia – UniFatecie. ● Coordenador do Curso Superior em Tecnologia em Gastronomia (nas modalida- des: Presencial, Híbrido e EAD) – UniFatecie. ● Coordenador do Curso Superior de Tecnologia em Hotelaria – UniFatecie ● Coordenador do Eixo de Hospitalidade, Turismo e Lazer – UniFatecie No mercado desde 2010, traz consigo uma longa bagagem e diversas parcerias de sucesso, nos mais diversos segmentos. Chef de Cozinha, Personal Chef, Consultor A&B, Pesquisador, ministra vários cursos compartilhando sobre valorização da produção local, KM 0, produtos orgânicos em feiras gastronômicas e cursos de Pós-graduação pelo Brasil. Estuda a ligação da cozinha empírica com a cozinha técnica, e resgata a culinária do seu estado Paraná, mostrando ingredientes de origem, assim como seus preparos. Conside- rado um cozinheiro regional urbano, traz aquela cozinha de conforto demonstrada através de técnicas da alta gastronomia. Um defensor ao usar 100% dos alimentos que trabalha, usa-se a expressão “De cabo a rabo” – ao usar o alimento por completo. Sua influência é a mistura étnica ocorrida na região Sul que resultou em uma culi- nária completamente diferente do resto do país, e ainda, conta com a presença da culinária indígena, sobretudo, as técnicas, raízes e grãos. Inovar. Essa é a palavra que caminha junto com Chef Cláudio Jr., trazer as caracte- rísticas do interior do estado do Paraná, para o mundo. Mostrar que sua culinária e cultura andam de mãos dadas. LINK CURRICULO LATTES: http://lattes.cnpq.br/1305124107737825 http://lattes.cnpq.br/1305124107737825 Professor Me. Flavia Helena Franco de Moura ● Mestre em Ciência, Tecnologia e Segurança Alimentar (UniCesumar). ● MBA em Gastronomia (UniCesumar) ● Tecnóloga em Gastronomia (UniCesumar) ● Farmaceutica-bioquímica (UEM) ● Docente de Gastronomia - UniCesumar. ● Docente de Gastronomia - UniFatecie ● Docente de Farmácia - UniFatecie ● Professora conteudista de Pós Graduação EAD - VG Educacional Ampla experiência como docente em diversas áreas da gastronomia, produtora de conteúdos para pós graduação EAD, com diversas pesquisas na área de segurança alimentar e saúde. LINK CURRICULO LATTES: http://lattes.cnpq.br/4202699722257454 APRESENTAÇÃO DO MATERIAL Seja muito bem-vindo(a)! Prezado(a) aluno(a), Iniciaremos nossos estudos diferenciando gastronomia e culi- nária, esclarecendo mitos e verdades, continuaremos os estudos tratando de uma temática bastante muito importante para o futuro profissional em gastronomia: o ato de receber e a ligação da hospitalidade com a gastronomia. Veremos, a seguir, que se faz indispensável um profundo conhecimento de um setor extremamente subjetivo, dinâmico e que exige de quem nele atua conhecimentos e competências que transcendem um bom tempero ou uma boa execução de técnicas de cozinha. Conhecer as pessoas que fizeram e fazem parte do contexto histórico da gastronomia. O profissional de cozinha, terá um perfil que irá mesclar o cozinheiro, o artista, o gestor e, sobretudo, um apaixonado pelo ofício de cozinhar e a importância de compreender as divisões dentro da cozinha até chegar no topo de sua formação, ou seja, ser um “Chef”. Dentro desse contexto, iremos estudar também as tendências e o mercado da gastronomia, além do perfil ético desse profissional que atualmente vem sendo tratado pela mídia com muito glamour e, na maioria das vezes, de uma forma deturpada e fora da realidade que encontramos nas cozinhas profissionais. Veremos a quais habilidades e competências, aprimoramento e ferramentas esse profissional precisará se atentar para que possa lograr um caminho de sucesso e realização na profissão. Aproveito para reforçar o convite a você, para junto comigo percorrer esta jornada de conhecimento e multiplicar os conhecimentos sobre tantos assuntos abordados em nosso material. Espero contribuir para seu crescimento pessoal e profissional. Muito obrigado e bom estudo! SUMÁRIO UNIDADE I ...................................................................................................... 3 O Início da História da Alimentação UNIDADE II ................................................................................................... 43 Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais UNIDADE III .................................................................................................. 98 Da Mandioca à Feijoada UNIDADE IV ................................................................................................ 140 A Geografia dos Sabores 3 Plano de Estudo: ● Pré-História; ● Mundo Antigo; ● China Japão e Índia; ● Civilizações Americanas. Objetivos da Aprendizagem: ● Conceituar e contextualizar a alimentação e cultura o proto-homem na pré-história;● Compreender o mundo antigo; ● Compreender a influência asiática na alimentação ocidental; ● Estabelecer a importância das primeiras civilizações americanas ] no contexto da alimentação do mundo. UNIDADE I O Início da História da Alimentação Professor Esp. Cláudio da Silva Junior Professora Me. Flávia Helena Franco de Moura 4UNIDADE I O Início da História da Alimentação INTRODUÇÃO A alimentação é um fator primordial na rotina diária da humanidade, não somente por ser necessidade básica, e através da evolução histórica da alimentação percebe-se que gastronomia e hábitos são aspectos importantes que nos auxiliam a refletir sobre os méritos da culinária e sua evolução ao longo do tempo. Analisando que a difusão do uso de diferentes tipos de alimentos entre os continen- tes se deve muito ao comércio e à introdução de plantas e animais domésticos em novas áreas, e como durante os séculos XV e XVI, Portugal, Espanha e Veneza competiram no financiamento de viagens marítimas visando descobrir centros produtores de especiarias e apoderar-se deles, conclui-se que essas viagens foram de grande importância para a descoberta de novos alimentos e especiarias, além de expressar o domínio econômico dos países que a realizavam. Durante a história, o poder econômico e o monopólio do comércio passaram por vários povos e nessas conquistas e descobertas houve um intercâmbio de cultura, hábitos, culinária e conhecimentos. Movidos por costumes e hábitos tão variados, os diferentes povos primitivos previam estoques de comidas e bebidas para as estações climáticas mais rigorosas, engendrando hábitos alimentares bem diferentes dos de hoje. Já havia prazer em comer, mas esse ato também fazia parte da religiosidade dos povos, expressando uma saudação à natureza, para mantê-la produtiva, ou aos deuses, para que mantivessem a abundância. Nesta unidade faremos um passeio a partir da Pré-história quando o homem desco- briu que poderia dominar o fogo, passando pela antiguidade grega, romana e egípcia, que muito contribuíram para o desenvolvimento da alimentação humana. Faremos um pit stop na Ásia, onde a China foi dominante por muitos séculos, influenciando fortemente os povos vizinhos, além de desenvolver um potente comércio com o Ocidente. Depois, faremos uma viagem pelas Américas, conhecendo a origem e os hábitos culturais e alimentares dos povos da Mesoamérica, Andes e América do Sul, que foram os responsáveis pelos alimentos até então desconhecidos como o tomate e a batata terem invadido a Europa após o período das grandes navegações. Convido você para iniciarmos essa viagem num mundo de cores, aromas, sabores e cheio de histórias fantásticas. Bons Estudos!! 5UNIDADE I O Início da História da Alimentação 1. ALIMENTAÇÃO NA PRÉ-HISTÓRIA Comida congelada, suco de caixinha, pipoca de micro-ondas, sopa instantânea, nuggets, enlatados….produtos alimentícios como esses, ícones da vida moderna e que enchem nossos carrinhos de supermercados, não fazem jus ao caminho percorrido por nossos antepassados ao longo da história para manter a barriga cheia, o corpo nutrido e a saúde em dia. A alimentação sempre foi uma ação fisiológica essencial aos animais, e quando o homem aprendeu a cozinhar os alimentos, surgiu uma grande diferença entre ele e os outros animais. Desde que o início da vida na Terra o alimento se fez presente na vida dos seres humanos, fato que não se difere dos demais seres que nascem, crescem, se repro- duzem e por último morrem, sendo que durante esse período necessitam de alguma fonte de energia para se manterem vivos, e essa energia é obtida através do alimento adequado. É o caso de todos os animais: desde o homem até as plantas, os fungos, as algas, os protozoários e até mesmo as bactérias. Cada ser vivo se alimenta diante da sua necessidade de transformação, sendo que os homens se alimentam basicamente de outros animais e de vegetais que têm ao alcance e que possam ser consumidos. O ser humano, como o animal mais desenvolvido, também mostrou esse diferencial por meio da sua alimentação. De acordo com Franco (2010, p. 17): Quando o homem aprendeu a cozinhar os alimentos, surgiu uma profunda diferença entre ele e os demais animais. Cozinhando, descobriu que podia restaurar o calor natural da caça, acrescentar-lhe sabores e deixá-la mais digerível. Verificou também que as temperaturas elevadas liberam sabores e odores, ao contrário do frio, que os sintetiza ou anula. Percebeu ainda que a cocção retardava a decomposição dos alimentos, prolongando o tempo em que podiam ser consumidos. Identificava, assim, a primeira técnica de conservação. 6UNIDADE I O Início da História da Alimentação 1.1 A Descoberta do fogo Segundo Franco (2010), nossos ancestrais, antes mesmo de descobrir o fogo, já utilizavam as fontes termais e os gêiseres, abundantes na Grande Falha Tectônica da África, como fonte de calor para cozer suas presas. Entretanto, a capacidade de gerar e controlar o fogo foi um importante salto cultural para o proto-home. A primeira energia natural utilizada pelo homem de forma intencional foi o fogo. Quando um raio, que anunciava uma tempestade, incendiava uma árvore, o homem pré- -histórico não conseguia ainda ter controle sobre ele. Se o fogo adquirido a partir desse episódio se apagasse, era necessário aguardar por outros incêndios para que se pudesse obter fogo novamente. Mas este fogo já o ajudou bastante a cozinhar seu alimento, a ilu- minar algum lugar na hora desejada, em seu aquecimento e também para se proteger de animais que não se aproximavam do fogo. Entre 1,8 milhões e 300 mil anos atrás, o Homo Erectus, um ser com o raciocínio mais evoluído, descobriu que se fizesse fricção entre duas pedras, esfregando uma na outra, ele conseguia produzir uma faísca, que se colocada em algum lugar de fácil combustão, pegaria fogo normalmente. Assim ele não precisava mais esperar que o raio caísse em alguma árvore para obter fogo (MUSITANO, 2019). O fogo se tornou um elemento sagrado, provavelmente, a primeira divindade. Aliás, são raras as religiões que não utilizam ou utilizaram o fogo em seus rituais, desde o zoroas- trismo até o cristianismo, onde o fogo é sinônimo de salvação e vida eterna (FRANCO, 2010). FIGURA 1: DOMÍNIO DO FOGO Fonte: disponível em: https://nelson-banza.blogspot.com/ acesso em: 26 jul. 2021 7UNIDADE I O Início da História da Alimentação Há cerca de 500 mil anos, bastante anterior à agricultura, o fogo foi fator relevante para a modificação definitiva do ser humano, introduzindo-o a práticas que se associam à criação das cozinhas e receitas. Foi também elemento essencial para a agregação social levando o homem à comensalidade através do cozimento da carne, que era consumida crua até então, assim como estabelecendo uma função social para o alimento através de sua preparação em fogueiras coletivas, favorecendo o consumo em comum. O desenvolvimento da preferência pelo cozido, dessa maneira, foi responsável pela significativa mudança do regime alimentar humano (Flandrin & Montanari, 1998). Até hoje o fogo é sinônimo de hospitalidade e faz parte dos nossos rituais à mesa, exercendo fascínio sobre a humanidade. Segundo Franco (2010) o início da era culinária está associado à invenção dos utensílios de pedra e de barro, que proporcionaram diferentes processos de cozimento e permitiram uma maior variedade na dieta humana, assim como a cocção em água fervente sobre o fogo. No entanto, apesar da descoberta, por vários séculos os grupos ainda preferiam realizar os cozimentos de forma direta, isto é, através de placas aquecidas ou abafadas em uma cova com pedras esquentadas, assado sobre a fogueira, etc. Simultaneamente, foram renovadas e melhoradas estruturas de combustão mais complexas, tais quais fornalhas suspensas e fornos em câmaras fechadas (semelhante aos fornos atuais de pães). 1.2 Períodos Paleolítico e Neolítico Desde a pré-história o ser humano é onívoro,sendo inclinado a comer animais e vegetais de acordo com as épocas e regiões em que viviam. No entanto, essa a caracte- rística já existia em primatas. A dieta essencial para fornecimento de calorias necessárias aos homens primitivos era constituída por frutas, folhas ou grãos durante milhões de anos. A pesca e a carne também foram elementos importantes de sua alimentação, esta última sofrendo significativo aumento através da ampliação e especialização a partir do período paleolítico (aproximadamente 2.500.000 – 10.000 a. C.), havendo a caçada de animais de grande porte (mamutes, manadas de renas, cavalos, bisões, auroques) através da utilização de instrumentos, tais como lanças e venábulos de madeira e pedra lascada e armadilhas naturais, atividade que requeria esforço coletivo, motivando a sociabilidade. As caças de grandes manadas demandavam ainda maior integração social, pois somente era possível na junção de vários grupos familiares, o que ocorria periodicamen- te, necessitando de mecanismos de informação e organização para abranger um maior número de indivíduos além do grupo doméstico, assim como exigia técnicas complexas de conservação e fases prévias de preparação, para armadilhas e utensílios, rendendo estoques de longa duração, reduzindo os ciclos de mobilidade. 8UNIDADE I O Início da História da Alimentação No paleolítico superior estruturou-se uma organização sócio-econômica, que reunia várias famílias, para tocar rebanhos inteiros de grandes animais em direção a armadilhas. Isso necessariamente implicava uma partilha da carne entre as famílias que tinham contribuído para a caça, tarefa, sem dúvida, co- letiva; em alguns momentos ao menos, depois da caça, por exemplo, é pro- vável que grandes festas reunissem essas famílias para consumirem juntas uma parte da caça abatida. (FLANDRIN & MONTANARI, 1998, p. 34) Seguendo Perlès (1998), uma maior estruturação e organização nas caçadas já havia sido necessária há cerca de quatro milhões de anos, na passagem para um clima mais seco que acarretou a diminuição das florestas e ampliação das savanas abertas na África Oriental, privando variados recursos vegetais. Na adaptação ao maior consumo de carne crua foi necessária a melhora das estratégias de caça, levando ao desenvolvimento da comunicação, das faculdades intelectuais, da divisão das atividades por sexo e das técnicas de cooperação. A caça, desse modo, originou os primeiros vestígios da organização social e familiar. Franco (2010) afirma que com a evolução da caça desde o período Paleolítico, o ho- mem pôde sobreviver às épocas glaciais. Assim, o homem deixou de ser um simples coletor e passou a usufruir da carne das caças para se alimentar, e das peles, para proteção contra o frio. O resfriamento do clima ocorrida entre 12.000 e 9.000 a.C. influenciou o ser humano a voltar-se para a caça de animais menores, existentes na fauna recente (cervos, lebres, pássaros, javalis), assim como a dedicar-se mais à pesca e à coleta de cereais e frutas. O homem ampliou sua atividade de caçador ao iniciar o cultivo da terra, há cerca de dez mil anos atrás, quando ele deixou de consumir parte dos grãos colhidos e os enterrou, descobrindo que os mesmos germinavam e se multiplicavam. Na mesma época, começou a domesticar alguns dos animais que antes caçava (FRANCO, 2010). Com o surgimento da agricultura e da criação de animais, a organização da socie- dade humana primitiva foi modificada, pois ao se obter certa garantia contra os fenômenos naturais, especialmente climáticos, foi possível a agregação da população e o aumento demográfico, pois seria mais favorável fixar-se em um território, abandonando o comporta- mento nômade, que visava obtenção de alimento. Outro fator relevante para a socialização humana é que, ao fixar-se em um território, o homem se deparou com a variedade de alimentos locais, podendo exercer melhor as vontades que nos períodos anteriores de instabilidades geográficas e climáticas. Desse modo, na revolução neolítica (até 4.000 a. C.) a caça foi reduzida em prol da criação de animais e do desenvolvimento da agricultura. Assim, a humanidade deixou de ser um elemento mais ou menos inofensivo da cadeia ecológica, na medida que evoluiu do simples ritmo biológico para o ritmo econômico (FRANCO, 2010). 9UNIDADE I O Início da História da Alimentação Assim, foi possível iniciar uma maior diversificação de alimentos, influenciando es- colhas e orientando estratégias econômicas. É provável que desde essa época as preferên- cias culturais tenham se manifestado e passado de geração em geração. Dessa maneira, é possível concluir que desde a pré-história a alimentação já não é um fator exclusivamente biológico, que responde às necessidades nutricionais, tornando-se, progressivamente, uma expressão de opções e valores culturais e sociais, associando-se, também, a relações de poder, como mencionado no relato abaixo: É significativa a importância progressiva que a caça volta a ter no final do neolítico, na Europa: ela visa, principalmente, uma espécie muito valorizada no plano simbólico – o cervo – e coincide com os primeiros indícios de desi- gualdades sociais e da emergência das elites. Ora, a não domesticação do cervo constitui uma verdadeira opção sócio-cultural, e sua transplantação, em estado selvagem, para fora de seus territórios de origem, confirma a im- portância ideológica do “mundo selvagem’’. (PERLÈS, 1998, p. 52) No período Neolítico apareceram as primeiras ferramentas cortantes, que contribuí- ram com na fabricação de utensílios de cerâmica, o que acabou por estabelecer as primeiras aldeias, e o aumento gradual da produtividade agrícola, permitindo que se armazenasse uma parte das colheitas e que um grande número de pessoas pudesse se dedicar a outras atividades. Esse tempo livre propiciou um rudimentar desenvolvimento de tecnologias e outros aspectos da cultura, como o apego a um determinado território. (FRANCO, 2010). O clima ameno e as condições propícias para o cultivo da terra, ao longo do Crescen- te Fertil, região que hoje compreende o Irã, Iraque, Turquia, Síria, Líbano, Israel e Jordânia, permitiram a produção de alimentos em quantidade bem maior do que necessitavam para consumir, dando origem às primeiras aldeias, entre 7000-6000 a.C. As cidades, entretanto, só apareceram por volta de 3500 a.C., onde o escambo começou a ser gradativamente substituído por relações comerciais mais complexas (FRANCO, 2010). Na região da Mesopotâmia Meridional as mais antigas receitas de cozimento em argila foram encontradas talhadas em argila, datadas de aproximadamente 1500 a.C. e segundo o arqueólogo francês J. Bottero, revelam o quanto a região do Fertil Crescente se tornou rica e organizada, atraindo e influenciando as populações vizinhas, até se converter em uma civilização brilhante (FRANCO, 2010). Por volta de 800 a.C. a produção agrícola permitiu um substancial crescimento demográfico que pode se dedicar a atividades não relacionadas com a produção de alimen- tos, como artesãos, guerreiros, sacerdotes e comerciantes, com grandes consequências econômicas, culturais e políticas, favorecendo o aparecimento de aglomerados humanos cada vez mais densos (FRANCO, 2010). 10UNIDADE I O Início da História da Alimentação Ainda segundo Franco (2010) é impossível precisar quando o alimento se transfor- mou em prazer à mesa, mas provavelmente a refeição começou a existir quando o homem desenvolveu a capacidade de matar grandes presas; já que a preparação e a partilha das carnes exigiam a reunião do grupo e da família. Como ainda não conheciam métodos de conservação, eram obrigados a consumir a presa rapidamente, dividindo-a com outros caçadores e família, e esperando, evidentemente, reciprocidade. Assim, teria nascido a hospitalidade à mesa, ou a “ritualização da repartição dos alimentos”. Franco (2010) descreve claramente, a fome é a carênciabiológica de alimento que se manifesta em ciclos regulares; já o apetite é fundamentalmente um estado mental, uma sensação que tem muito mais de psicológico do que de fisiológico. Devido a essa necessidade de se alimentar, os grupos formados por nossos ances- trais se uniram com a finalidade de conseguir alimento de modo mais eficaz, desta forma deu-se origem a um sistema complexo de sinais que mais tarde tornou-se a linguagem vocal (FRANCO, 2010). Concluímos então que nossos antepassados nos deixaram por meio do alimento mais do que somente técnicas de preparação e utensílios, pois também foram precursores de meios de comunicação como a língua escrita e falada. Nesse período, após a “invenção” do ritual básico da refeição, iniciaram-se os festins, realizados para ganhar a proteção e o favor dos deuses, além da busca de prazer e divertimento Freedman (2009) afirma que os povos pré-históricos possuíam apetite para alimen- tos que atualmente não comeríamos, a dieta dos nossos antepassados era composta por alimentos semi-apodrecidos e provavelmente apreciavam o sabor desses alimentos que hoje consideraríamos estragados. Com o passar do tempo, foi surgindo a preferência por certos alimentos, despertan- do o prazer de comer. Muitas vezes essa preferência estava ligada aos costumes de cada civilização e até mesmo aos rituais que eram praticados, uma questão sociocultural, além de fatores territoriais e climáticos. 11UNIDADE I O Início da História da Alimentação 2. IDADE ANTIGA A Idade Antiga foi a era da história que se estendeu desde a invenção da escrita – 4000 a.C. a 3500 a.C. até a queda do Império Romano do Ocidente, por volta de 476 d.C., quando teve início a Idade Média no século V. Esta época foi marcada pelo surgimento da escrita, assim como pelo convívio social de modo a gerar crescentes civilizações, já bastante vinculadas às cidades, onde o campo é um anexo estrutural da polis para provimento de alimentos. Nesse processo, o ser huma- no interessa-se por demonstrar o comportamento civil, oposto a barbárie, utilizando-se de várias práticas, sendo a forma de se alimentar essencial para a determinação deste modelo de vida civilizado, pautadas em três aspectos fundamentais: a comensalidade, a cozinha e a dietética e os tipos de alimentos consumidos. Definitivamente o homem come não somente pela fome, mas sobretudo para trans- formar este momento em uma oportunidade de sociabilidade, criando um conteúdo social de enorme poder de comunicação. Diferencia-se, assim, dos já existentes momentos de comensalidade primitivos através das definições claras de regras e normas de etiqueta, objetivas à coesão da comunidade. As “boas maneiras no banquete” servem, na sociedade grega, para distinguir os homens civilizados – os citadinos – dos selvagens que não as praticam e dos semi-selvagens que as praticam apenas ocasionalmente. Como quer que seja, a comensalidade é percebida como um elemento “fundador” da ci- vilização humana em seu processo de criação. (FLANDRIN & MONTANARI, 1998, p. 109). 12UNIDADE I O Início da História da Alimentação Se desde a pré-história já era possível evidenciar a comensalidade, assim como sua utilização para fins rituais, contratuais e comemorativos, na Idade Antiga, diante das primeiras civilizações essas festividades alimentares ganham uma faceta definida: o banquete. Os acordos, são comemorados e concretizados através da refeição em comum, já que a partilha da bebida e comida simboliza o compartilhamento em âmbitos negociados, principalmente em relação aos direitos de propriedades e casamentos, selando contratos e criando laços sociais. Seguindo essa lógica, a recusa do compartilhamento de alimentos é tomada como hostil, assim como a aceitação é considerada uma espécie de fraternidade. Portanto, nessas ocasiões, a partilha do alimento significa mais do que a comida em si, pois representa uma expressão de cumplicidade e solidariedade essencial à comunidade (JOANNÈS, 1998). Os banquetes também sustentam as crenças rituais de um povo, havendo oferen- das alimentares em nome dos deuses e ocorriam em templos mantidos por sacerdotes ou sacerdotisas, que frequentemente seguiam dietas específicas motivadas pela ideia de moralidade e pureza representadas em tais alimentos, segundo lógicas inerentes à religião. A exemplo, o consumo da carne antes do período de cristianização, tanto na Grécia quanto em Roma, só poderia ser feito, mesmo por animais de criação, após o sacrifício ritual aos deuses (DUPONT, 1998). Havia também os banquetes reais, com a celebração de grandes acontecimentos pela nobreza, onde o governante sustenta e recompensa aqueles que trabalharam em seu nome, nas ações militares e atividades de prestígio, como também recebe representantes de soberanos estrangeiros. Esses banquetes eram uma demonstração de suas riquezas, hospitalidade e poder, onde os convidados recebiam alimentos correspondentes ao seu estatuto, estabelecendo-se uma hierarquia social e espacial. Tal atividade, dessa maneira, beneficia nas relações com seu povo e civilizações exteriores. Reunindo os deuses, a corte real ou particulares, os comensais, sentados no chão ou em cadeiras, são, geralmente, separados em grupos distintos, o que revela a hierarquia onipresente, e a comida e a bebida circulam entre eles, originando uma troca de cortesias. (JOANNÈS, 1998, p. 66). Os banquetes denotavam a hierarquia, através tanto dos lugares ocupados à mesa, quanto pela qualidade dos alimentos consumidos. É bastante comum na literatura satírica evidenciar o fato de alimentos caros não serem servidos aos convidados de baixo status, assim como também não eram direcionados a posições privilegiadas e não eram servidos dos melhores vinhos (CORBIER, 1998). Para a execução dos suntuosos banquetes, desde a Idade Antiga já é possível visualizar a criação de uma categoria de empregados voltados especificamente para ali- 13UNIDADE I O Início da História da Alimentação mentação, especializados na preparação de comidas como cervejas, pães, queijos, pas- téis, etc. Eram designados para o trabalho real e religioso, oferecendo serviços à nobreza e aos templos, sendo os primeiros traços oficiais de profissões, sendo inclusive nomeados (padeiros, cervejeiros, açougueiros, etc). Esses profissionais eram de extrema importância para os valores de civilização do mundo antigo, pois a civilidade distinguia-se da selvageria à medida que o homem era capaz de produzir seus próprios alimentos através do processo de domesticação e da superação da natureza, valorizando imensamente alimentos como o pão e o vinho. Desta maneira, a alimentação do mundo antigo foi caracterizada pela própria produção alimentar, com a vivência próxima à produção, concentrando nos centros urbanos a classe política, econômica e administrativa. A diversificação alimentar, também era atributo do estatuto do homem civil, isto é, quanto mais tipos de alimento disponíveis para escolha de consumo, mais “humano” era (FLANDRIN & MONTANARI, 1998). Além dos banquetes domésticos, religiosos e reais, começaram a buscar companhia externa para beber e comer, surgindo as “tabernas” que eram frequentadas popularmente por habitantes locais e viajantes, sendo consideradas os primeiros e mais antigos vestígios dos restaurantes futuros, mantendo, no entanto, um valor altamente doméstico ao serem frequentemente gerenciadas por mulheres, as taberneiras, para o público predominante- mente masculino. Os grandes banquetes surgiram na Idade Antiga no Egito, na Grécia e em Roma. Nesse mesmo período, no Vale do Nilo, foram criados os primeiros pães com processo de fermentação da massa. Na Grécia surgem as primeiras obras literárias destacando experiências e descobertas culinárias. Em Roma surgiam os melhores cozinheiros, princi- palmente depois do intercâmbio cultural com os gregos ao final da Guerra Púnica (264-241 a. C.),em que os romanos conquistaram a Sicília. 2.1 Egípicios A comensalidade no plano doméstico cotidiano evoluiu nos hábitos e maneiras de se portar à mesa. Os egípcios faziam ao menos três refeições ao dia (desjejum, almoço e jantar), comendo com os dedos (ou seja, sem talheres). Durante o Alto Império (1580 A.C. – 715 A.C.), as classes superiores passaram a sentar-se sobre esteiras ou almofadas diante de uma mesa baixa, posteriormente, no entanto, surgiu a preferência pelas mesas altas, sentando-se em cadeiras, sendo servidos por criados, que também eram responsáveis pela lavagem das mãos através do derramamento de água no final da refeição (Bresciani, 1998). 14UNIDADE I O Início da História da Alimentação Entre as classes altas, todas as casas possuíam no pátio interno um forno em terracota. A cocção geralmente era feita sobre escalfadores baixos instalados sob esteiras nos fundos da casa. Residências maiores comportavam um cômodo inteiro dedicado ao preparo do alimento, possuindo a mesma finalidade que as cozinhas atuais. [...] ela possuía um canûn, três fornos com um plano para apoiar as panelas e um lugar para a ânfora de água – um orifício escavado no solo de pedra, com um canal de escoamento. Os vasos de cerâmica colocados no solo, com o gargalo muito próximo da terra, permitiam conservar legumes, cereais, especiarias e condimentos. (BRESCIANI, 1998, p. 77) Além dos egípcios, diversas civilizações antigas pareciam possuir uma cozinha nas casas tanto populares quanto da nobreza, com variação nos utensílios de cada um, baseados em suas dietéticas específicas, assim como nos ingredientes e alimentos valori- zados, tanto de modo generalizado quanto para ocasiões determinadas. Os romanos, por exemplo, possuíam suas próprias cozinhas domésticas, mas nem sempre tinham fogões, e as refeições eram frequentemente preparadas em braseiros móveis, instalados perto de ja- nelas. Outra característica comum no universo romano era a generalização de cozinheiros, até mesmo para as classes populares, devido ao fato de serem uma sociedade fortemente escravagista (CORBIER, 1998). Os egípcios eram privilegiados por terem o Nilo a sua disposição. De lá vinha a maioria da alimentação e os principais recursos para isso. As inúmeras fazendas às mar- gens do rio proporcionavam ao povo uma comida rica e bem variada. O trigo era plantado em grande quantidade e era o ingrediente base do principal alimento egípcio: o pão. No antigo Egito este pão pagava os salários dos camponeses que ganhavam três pães e dois jarros de cerveja por dia de trabalho. FIGURA 2: TRABALHADORES FAZENDO PÃO NO EGITO ANTIGO Fonte: disponível em: http://multiploscaminhos.blogspot.com/. Acesso em: 26. 2021 http://multiploscaminhos.blogspot.com/ 15UNIDADE I O Início da História da Alimentação O pão e a cerveja constituíam elementos básicos da alimentação egípcia. Para fazer o pão, a dona-de-casa ia buscar trigo no celeiro e moía-o entre duas pedras para o transformar em farinha. Era um trabalho muito duro. De- pois, misturava farinha com água e fazia pães de muitos formatos e tama- nhos. Algumas vezes, adicionava-lhes um tempero, como o alho. Se a dona- -de-casa desejava fazer cerveja, cozia os seus pães muito levemente. Depois esmigalhava-os, misturava-os com água e deixava fermentar a mistura que se transformava em cerveja. A mistura tinha de ser coada, antes de poder ser bebida.” (MILLARD, 1975, p. 16 e 17). As vinhas eram organizadas para crescerem sobre suportes de madeira que facili- tavam a sua colheita, da mesma maneira que ocorre ainda hoje. Quando as uvas estavam prontas para a colheita, eram recolhidas e colocadas em um recipiente, geralmente feito de pedra, onde se pisava sobre elas para obter o caldo, que escorria para um reservatório secundário. Os trabalhadores recolhiam o suco obtido e o colocavam em potes para o processo de fermentação. Além da cerveja e do vinho, os egípcios tomavam leite e água. Os egípcios fabricavam queijos, criavam gado, carneiros e cabras. Os vegetais também tinham um papel importante, e as pessoas costumavam consumir alface, pepino e feijão. O açúcar era obtido do mel e servia para adoçar alguns alimentos e bebidas. Por acreditarem que depois da morte iriam ter as mesmas necessidades da vida, depositavam comida nas tumbas a fim de garantir o sustento eterno. Uma vez cortada as espigas, elas eram recolhidas em cestos que, transporta- dos a pé ou no lombo de asnos, eram levados a eiras. A debulha era feita com bois, ovelhas ou cabras que pisoteavam as espigas, esmigalhando-as. As cascas eram trabalhosamente separadas por meio de ventilação ou peneira- ção. Os grãos eram depositados em celeiros. Há representações frequentes de cenas onde parreiras são regadas, e seus cachos colhidos e pisados […] Rótulos hieráticos em jarras de vinho, encontrado nas escavações permitiram que conhecêssemos nomes de muitos vinhedos[…]. (BAINES; MALIK, 2008, p.191) Como o Nilo transbordava de peixes, os egípcios consumiam-nos em uma grande quantidade, frescos, secos ou salgados. A população de classe baixa às vezes pagava por algumas espécies de aves e gado. Devido ao seu alto valor, a carne era mais comum nas mesas dos ricos. A classe baixa geralmente só comia carne durante alguma festa (MILLARD, 1975). Os óleos e gorduras utilizados para preparar a carne eram extraídos de cabras, raízes, plantas e sementes, e utilizados para fritar ou cozinhar alimentos como legumes e carnes. As pessoas mais pobres cozinhavam no chão de suas casas (MALIK, 2008). 16UNIDADE I O Início da História da Alimentação 2.2 Gregos Conta a tradição que Cécrope, foi o fundador de Atenas e o iniciador dos gregos na agricultura, levando do Egito a oliveira e a arte de preparar azeite. A Grécia clássica teve inúmeros escritores que se dedicaram à gastronomia, entre eles, o poeta e viajante Archestratus, contemporâneo de Aristóteles (384-322 a.C.) que escreveu Hedypatheia, também chamado de gastronomia, pela junção das palavras gaster (estômago) e nomo (lei), onde descreveu de maneira metódica suas experiências e desco- bertas culinárias (FRANCO, 2010). A vida era amena para os aristocratas e difícil para os camponeses e escravos, que se alimentavam principalmente de maza, um tipo de mingau feito de cevada. A geografia da Grécia, repleta de regiões rochosas e montanhosas influenciou muito os hábitos alimentares dos gregos. As oliveiras e as parreiras se adaptaram perfeita- mente ao solo pobre e difícil para a agricultura, produzindo excelentes azeitonas e uvas, dando origem à cultura dos vinhos e do azeite. A topografia grega, também contribuiu para a adaptação de ovinos e caprinos. Criavam também cavalos e bois, mas somente os ricos podiam cultivar as oliveiras porque a espera era de 15 anos para sua primeira colheita das azeitonas, e cerca de 40 anos para atingir o auge da sua produção (FRANCO, 2010). Além das uvas e azeitonas, cultivavam cevada e trigo; entretanto, por conta das técnicas agrícolas rudimentares, não produziam o suficiente para o sustento de toda a população. Entretanto, o vinho, o azeite e a lã, além das cerâmicas, esculturas e jóias per- mitiram uma atividade comercial intensa em todo o Mediterrâneo, garantindo o suprimento de cereais, queijo, carne de porco, vidro, tapetes, perfumes e marfim (FRANCO, 2010). De acordo com a Ilíada e da Odisséia, na Grécia antiga as escravas moíam os grãos e preparavam a comida. Além disso, mesmo os anfitriões mais ricos preparavam a própria refeição com ajuda dos convidados. Só mais tarde apareceram os mageiros (padeiros), que com o tempo, passaram a cozinhar, assumindo a posição de chef de cozinha. No século V a.C., a maioria deles eram escravos, mas com o crescimento do apreço pela boa mesa, acabaram ganhando importância e ascendência sobre os demais escravos da casa (FRANCO, 2010). Com os gregos, o pão passou a ser acrescido de ervas, sementes aromáticas como o cominho,sementes de papoula, erva-doce, coentro, anis, passas, alecrim, alcaparras, sálvia, alho e cebola; além de óleos vegetais e frutas. Com isso, os padeiros gregos torna- ram-se tão famosos que, mais tarde, durante o Império Romano, a maior parte dos padeiros de Roma, seriam gregos. A confeitaria grega se assemelhava ao que encontramos hoje na 17UNIDADE I O Início da História da Alimentação África do Norte e nos países balcânicos, à base de trigo, mel, azeite e aromatizantes como pinhões, nozes, tâmara, amêndoas e sementes de papoula (FRANCO, 2009). Segundo Franco (2010), faziam três refeições ao dia: akratismon (desjejum), ariston (refeição do meio dia) e deipnon (refeição do fim do dia). Os utensílios primitivos de cozinha foram sendo aperfeiçoados, com a troca da cerâmica por bonze ou metais preciosos e incluíam caçarolas, caldeirões, vasilha para transportar e guardar água,a amphora para guardar os víveres e diversos outros utensílios com tamanhos e utilidades variadas. Os banquetes traziam mesas fartas e perduravam em média quatro dias. Franco (2010, p. 44) afirma que “em Atenas, as mulheres e as crianças comiam em sala separada”, na sua maioria essas reuniões eram exclusivamente para homens, em que tratavam de as- suntos como política, militarismo e vida social. Os alimentos servidos nos banquetes seguiam ritual que se modificava segundo a região em que eram oferecidos e os banquetes ainda podiam ser complementados por apresentações de dança, música e recitação de poesias. Os principais pratos servidos eram à base de ingredientes como: gados, carneiros, cabras e porcos; frangos, patos, gansos, galinhas d’angola e pavões; pássaros silvestres como codornas, perdizes, gralhas, avestruzes, flamingos, garças e papagaios; peixes, rãs, mexilhões, ouriços e ostras; frutas como cereja, abricó, limão, tâmaras e melão; derivados do leite; centeio, arroz, aveia e trigo; leguminosas; mel; azeitonas e azeite; pinhões, amên- doas e sementes de papoula. Como bebidas eram servidos vinho, água e algumas vezes leite (LEAL, 1998, p. 26). Segundo Franco (2010), quase sempre se adicionava água ao vinho para evitar a embriaguez , exceto na akrastismon (primeira refeição), que deriva do adjetivo akratos, que significa sem mistura ou puro. Apenas a colher era utilizada para levar os alimentos à boca, por esse motivo as carnes eram comidas em pequenos pedaços com o auxílio dos dedos, para limpar as mãos e a boca os convidados traziam consigo o próprio guardanapo. Os convidados eram pon- tuais e não aguardavam quem se atrasasse. Durante o banquete, a posição adotada era a reclinada, vestiam trajes próprios para a ocasião, chamados de synthesis, ainda colocavam guirlandas de flores ou folhas sobre a cabeça, por crer que resguardavam a mente do consumo excessivo de álcool (FRANCO, 2006). 18UNIDADE I O Início da História da Alimentação FIGURA 3: BANQUETE NA GRÉCIA ANTIGA Fonte: disponível em: https://historiaprimeiroanoblasallesp.wordpress.com/2016/04/27/ a-gastronomia-na-grecia/ Acesso em: 08 ago 2021. Os gregos nunca foram tão imaginativos como os romanos em termos de gastrono- mia, e a cozinha grega jamais atingiu o nível das outras artes. 2.3 Romanos Os primeiros habitantes de roma se dedicavam à atividade pastoril. Como Roma ficava a aproximadamente 30 quilômetros das salinas que forneciam sal para a alimentação dos rebanhos, tornou-se um ponto de comércio, para troca de sal por outros países ao longo do rio Tibre. Os utensílios domésticos dos romanos eram feitos em argila local, e muito mais simples que os utilizados pelos gregos, entretanto, o saleiro costumava ser de prata, pois um pouco de sal, sempre era oferecido aos deuses domésticos como oferenda antes das refeições. As guerras entre os romanos e os gregos contribuíram para o desenvolvimento da gastronomia romana, que passou a evoluir após a primeira Guerra Púnica (264 - 241 a.C.). Após as conquistas romanas, pintores, escultores, arquitetos e cozinheiros gregos foram para Roma, onde encontraram uma atitude favorável à assimilação do refinamento de todas as artes cultivadas pela civilização helênica. E essa influência perdurou até o século I. Contudo, a criação de uma cozinha romana rica e variada, só foi possível pelos imensos recursos do Império. Com os banquetes cada vez mais frequentes, os cozinheiros que os organizavam se tornaram figuras importantes nas casas patrícias, com salários elevados; e ter um cozi- nheiro em casa, era um símbolo de ascensão social (FRANCO, 2010). https://historiaprimeiroanoblasallesp.wordpress.com/2016/04/27/a-gastronomia-na-grecia/ https://historiaprimeiroanoblasallesp.wordpress.com/2016/04/27/a-gastronomia-na-grecia/ 19UNIDADE I O Início da História da Alimentação Os grandes banquetes eram compostos por três etapas. • Gustatio, que atualmente equivale às nossas entradas ou antepastos. • Mensae primae, que atualmente equivale aos nossos pratos principais. • Mensae secundae, que atualmente equivale às nossas sobremesas Para o satirista, Décimo Júnio Juvenal, apesar de o Império Romano ter suplantado em muito a gastronomia grega, seus hábitos à mesa eram muito semelhantes. O luxo da mesa, as extravagâncias e a quebra da etiqueta somente era permitido aos ricos, aos pobres não cabia imitar a mesma gula que aqueles, pois ao invés de serem respeitados eram sinônimos de sarcasmo e ironia. Para os ricos o gosto dos alimentos não era o mesmo se não tivesse o tom do requinte, a prataria, a mesa e a decoração deveriam ornamentar a mesa que deveria estar associada ao prazer do cardápio nos jantares (SÁTIRA XI, v 171 - 183). Apesar de o Império Romano ter ultrapassado os gregos em matéria de culinária, muitos dos hábitos à mesa continuaram semelhantes. O triclínio era a sala importante de uma casa romana, decorada com muito cuidado com mosaicos e afrescos nas paredes - era o espaço reservado para os banquetes, com três leitos dispostos à volta de uma mesa, e em cada leito cabiam três pessoas. Apesar de ser uma sala para homens, ocasionalmente as mulheres eram admitidas, pois apesar de excluídas da vida pública, às mães eram atribuídas prerrogativas religiosas dentro da família e por vezes, exerciam grande poder e influência na carreira política de seus maridos e filhos (FRANCO, 2010). O convite do patrono para que o cliente sentasse a sua mesa nem sempre se dava por consideração, mas apenas para compor o triclínio. O cliente sentava-se longe do patrono, no terceiro colchão, isto é, estavam juntos por estarem debaixo do mesmo teto, mas distante do alcance e dos olhares do seu senhor. Dessa forma, para os romanos o jantar era um ritual, que durava até a madrugada. No decorrer dos banquetes era comum ter danças e canções para o entretenimento dos convidados. Na casa dos mais ricos era comum ter mais de um triclinium, na qual poderia escolher o lugar para se jantar (GRAÇA, 2000). A precedência na colocação dos convidados no triclínio seguia regras rigorosas. Muito semelhantes às que seguimos ainda hoje - o anfitrião reclinava-se no leito central, o lectus medius e, à sua direita, o convidado de honra; à sua esquerda, o convidado com segundo grau de importância, com os demais convidados distribuídos no leito da direita - lectus sumus, e no da esquerda - lectus imus. Usavam apenas a colher, assim, as carnes eram servidas em pequenos pedaços e levadas à boca com os dedos, sendo que cada convidado trazia seu próprio guardanapo (FRANCO, 2010). Paul Veyne cita ainda que nas refeições mais comuns, nas casas mais simples, a mãe ficava de pé e servia o pai à mesa. A carne era fervida antes de cozinhar ou assar, 20UNIDADE I O Início da História da Alimentação tanto que perdia o sangue e adoçava, pois os sabores favoritos eram agridoce. Para beber, podia-se escolher entre um vinho com gosto de marsala e um resinado. A melhor parte do jantar, a mais longa, é aquela em que se bebe,durante a primeira metade do jantar nada se fazia senão comer sem beber, na segunda parte, bebia sem comer, este ritual constituía o banquete propriamente dito, a comissatio. Segundo Alfoldy (1989), o de. Vestir e alimentar-se bem eram prioridades de todos, apesar de serem fatores fundamentais, muitos romanos não desfrutavam dessas necessi- dades básicas. A aparência era o cartão de visita de muitos dos patrícios e dos que haviam adquirido a ascensão social, fato raro no mundo antigo. Esta aparência era demonstrada e mantida através de vários meios, como a prática de oferecer banquetes e festas com a participação popular. Marcus Gavius Apicius, contemporâneo do imperador Tibério (42 a.C – 37 d.C) foi um excêntrico gourmet que circulou em casas e salões dos poderosos de seu tempo. Era um cozinheiro talentoso e exigente, buscava a perfeição na execução de suas funções e deixou um manual de cozinha receitas que foram usadas nas grandes cozinhas patrícias e imperiais. O livro de Apício traz uma compilação de como preparar estes pratos, com alimentos salgados, doces e outros com molhos. Com isso, nas propriedades dos senhores eram criados peixes, lebres, corças e javalis para serem servidos nos festins. FIGURA 4: PRINCIPAL LIVRO ROMANO DE COZINHA Fonte: disponível em: https://stravaganzastravaganza.blogspot.com/2019/02/de-re- coquinaria-como-parte-de-una.html. Acesso em: 09 ago. 2021. https://stravaganzastravaganza.blogspot.com/2019/02/de-re-coquinaria-como-parte-de-una.html https://stravaganzastravaganza.blogspot.com/2019/02/de-re-coquinaria-como-parte-de-una.html 21UNIDADE I O Início da História da Alimentação Segundo Franco (2010), O principal livro romano de cozinha é “De re conquinaria”. Suas primeiras edições impressas apareceram respectivamente em Veneza e Milão, no fi- nal do século XV. São vários os títulos dados a essa obra: Ars Magiririca, Apicius culinarius, De re coquinaria libri decem e simplesmente De re coquinaria. O tempero muito presente na cozinha romana, com o uso de ervas, alho, orégano, louro, segurelha, hortelã e especiarias como pimenta-do-reino, cominho e alcaravia. Os pratos eram servidos com garum conhecido também como liquamen, condimento feito à base de vísceras de peixe marinadas. Os romanos também introduziram os escargots em seu cardápio, conheciam uma variedade de moluscos, que eram criados em locais próprios. Apreciavam os cogumelos e as trufas eram consumidas bem temperadas, com pimenta-do-reino, hortelã, mel e azeite. A carne de porco, o boi e o cordeiro estavam sempre presentes nas refeições romanas que eram preparadas de forma variada. O consumo de queijo também era comum, este era feito de leite de ovelha ou de cabra. Com relação ao vinho, cada região tinha sua especificidade na produção e na qualidade. Além do vinho, as receitas de Apício são fundamentais para o conhecimento da cozinha romana. As receitas que chegaram até nós datam do ano de 1498, no entanto, referem-se apenas às práticas alimentares dos patrícios. A versão que conhecemos do tratado de Apício é posterior à cronologia do próprio autor, situando-se nos séculos III-IV, na época de Diocleciano; estudiosos da História da alimentação situam o tratado de Apício no século V. No entanto, o próprio Apício incluiu em seu livro receitas de origem grega, anteriores ao período do Alto Império Romano. Muitas receitas foram incorporadas ao longo do tempo, outras se perderam, é provável que o manual de cozinha de Apício fosse mais extenso do que a parte que temos conhecimento (SILVA, 2013). O vinho fazia parte das cerimônias do banquete, e principalmente ao falar sobre po- lítica, o vinho estava sempre presente. No Império Romano, o vinho se popularizou sendo consumido diariamente juntamente com o alimento. Esta prática fez com que aumentasse sua importância econômica. Em Pompéia e Herculano podemos verificar o quanto as taver- nas representavam locais de encontros próprios de uma dinâmica social, regado a bebidas, hospedagem e prostituição. Mas a pena para as mulheres que bebessem vinho era a morte e era lícito que o próprio marido a executasse (CARNEIRO, 2010). Segundo Silva (2013), a gastronomia romana era a arte da metamorfose, era uma honra o cozinheiro modificar os alimentos ou torná-los irreconhecíveis. Misturar os ingre- dientes, o vinagre e o mel, o salgado e o doce eram uma marca do cozinheiro. Assim, a obra de Apício é repleta de extravagâncias e excessos. Muitos pratos são sugeridos mais pelo prestígio, do que pelo significado de seus ingredientes. Suas receitas serviram de ins- piração para os chefs modernos e recriaram os rituais e banquetes dos patrícios romanos. 22UNIDADE I O Início da História da Alimentação Com o passar dos anos, os países do Mediterrâneo foram criando força, Roma con- seguiu construir um “ império que, por mais de mil anos, sobreviveu e resistiu a crises internas e externas” (FRIEDMAN, 2009, p. 97), porém, não se sustentou mediante a crescente invasão dos bárbaros, concentrada na região ocidental do império, durante o século V d. C. Conforme Franco (2006, p. 53), “muito se especulou sobre as causas da decadên- cia do Império Romano. Há quem a relacione com o uso de água distribuída por meio de sistema de canalização de chumbo”, ainda havia quem acreditasse que a nobreza romana foi se extinguindo, por envenenamento e esterilidade, por utilizarem utensílios revestidos pelo mesmo componente, o chumbo. Após a queda do Império Romano do Ocidente, a Igreja ascendeu, tornando-se uma das maiores influências. Esse foi um dos fatores responsáveis por desenraizar o entu- siasmo dos banquetes, visto que a gula era considerada um dos pecados estipulados pela religião. Isso ocasionou grandes mudanças nos costumes e hábitos alimentares da vida cotidiana na região. 23UNIDADE I O Início da História da Alimentação 3. CHINA, JAPÃO E ÍNDIA A China possui uma vasta literatura gastronômica e há quatro mil anos, os escritores e poetas chineses são gourmets. No tempo da dinastia Chou, há cerca de mil anos antes de Cristo, cozinhar já era uma arte e as refeições eram revestidas de um grande cerimonial. Confúcio (550 a.C.) era um grande gourmet e estabeleceu várias regras para a preparação e apresentação dos pratos. Do confucionismo vieram a elegância e o cerimonial da cozinha chinesa; do taoísmo vieram o apreço pela leveza, o frescor natural dos ingredientes e o uso moderado de gorduras (FRANCO, 2010). Com a dinastia Tang (618-906) o Império Chines cresceu territorialmente até a Ásia Central, Vietnã, Mongólia, Coréia e Manchúria e fizeram grandes descobertas como a pólvora, a imprensa e o papel moeda, florescendo no comércio, nas ciências, na literatura e nas artes. Nessa época o consumo de carne era um privilégio para a elite e a cozinha se enriqueceu com o uso de especiarias e de alimentos antes desconhecidos, e o famoso co- zinheiro I Yin, chegou a ser primeiro-ministro. Milhares de pessoas trabalhavam no palácio imperial e mais da metade se dedicava à preparação de alimentos e bebidas; foi quando surgiram os Cânones para alimentação, detalhados por farmacologistas como Meng Shen, instruindo sobre a preparação de pratos dieteticamente equilibrados (FRANCO, 2010). Durante a dinastia Yuan (1276-1368) a culinária evoluiu pela troca de influências com os mongóis. Já no tempo dos imperadores Ming (1368-1644) grandes banquetes ho- menageavam embaixadores e visitantes estrangeiros; entretanto, as mulheres não eram convidadas e a imperatriz lhes oferecia um banquete à parte. (FRANCO, 2010). 24UNIDADE I O Início da História da Alimentação As grandes navegações ampliaram ainda mais a culinária chinesa, com a chegada do milho, da batata, do amendoim e da batata-doce vindas da América, ao mesmo tempo que a influência européia ia diminuindo. A China foi a primeira civilização do Extremo Oriente e exercia grande influência cultural na região,inclusive sobre os japoneses que começaram a sair de uma vida primitiva obscura, absorvendo muito da cultura chinesa e durante os séculos V e VI a Índia recebeu muita influência chinesa, devido às estreitas relações comerciais (FRANCO, 2010). Segundo Helena Silveira (1983), devido à peculiaridade entre escassez e variedade, nada era desperdiçado na China - tudo que fosse comestível era utilizado, sem qualquer proibição ou tabu. Devido à escassez de lenha, os chineses se adaptaram ao cozimento rápido em altas temperaturas, cortando tudo em pequenos pedaços. Franco (2010) salienta que alguns hábitos alimentares chineses ainda provocam repulsa e reprovação no Ocidente, como o consumo de carne de cachorro, que são abati- dos por espancamento, devido a crença que a dor favorece a produção de substâncias que conferem à carne propriedades estimulantes da virilidade. Ainda no século I, a China desenvolveu técnicas para a obtenção de metal laminado para fins bélicos e desde então, esse material tem sido usado na fabricação do wok, reci- piente de fundo abaulado que permite o cozimento rápido com óleo em alta temperatura. Também utilizavam (e ainda utilizam) o cozimento pelo vapor e o forno nunca foi utilizado com frequência. A variedade da agricultura chinesa, somada aos produtos oriundos do comércio com terras distantes, fez a cozinha chinesa muito mais rica que a da Europa medieval. Sal, vinagre e gengibre já eram utilizados durante a dinastia Han (206-220 d.C.), juntamente com pimenta, cardamomo, noz-moscada, sementes de coentro, cravo e canela oriundos das relações comerciais com outros países. Entretanto o consumo de sobremesas era desconhecido (FRANCO, 2010). As refeições chinesas sempre tiveram um ritual elaborado, com regras bem defi- nidas de como sentar os convidados e até de como conduzir a conversa. Não servir arroz em um banquete era sinal de que o anfitrião oferecia tanta variedade de alimentos que os convidados não necessitavam do arroz cotidiano. As sopas tinham um papel semelhante ao vinho no ocidente, e harmonizavam com os pratos principais. Além disso, o uso de palitos para comer era sinal de boa educação; e a faca era utilizada apenas pelos cozinheiros e auxiliares. Apesar de gostarem de bebidas alcoólicas, os chineses não as tomavam nas refeições (FRANCO, 2010). 25UNIDADE I O Início da História da Alimentação O chá ainda hoje é a bebida nacional da China, contudo acredita-se que o chá seja nativo da Índia e levado para a China no século III a.C. Inicialmente era usado apenas em cerimônias religiosas, depois se popularizando sem nenhum ritual especial para servi-lo, como ainda acontece no Japão. Também o utilizavam como erva medicinal, atribuindo ao chá (acrescido de gengibre, casca de laranja ou cebola) propriedades curativas (FRANCO, 2010). Segundo Franco (2010) os primeiros japoneses eram nômades que vieram do norte da Ásia e por volta do século III a.C. iniciaram o plantio do arroz, trazido da China, através da Coréia, fornecendo alimento, bebida e até abrigo para os japoneses. O primeiro contato com o mundo exterior aconteceu por volta do século VI, quando o Japão tomou consciência da civilização refinada dos seus vizinhos. Já durante os séculos VII e VIII, a influência chi- nesa foi enorme, sendo a soja, a principal contribuição na alimentação japonesa. Por terem apenas 15% do território cultivável, desde sempre os japoneses consideram de mau gosto deixar comida no prato. As diferenças entre a cozinha chinesa e japonesa começaram a aparecer por volta do século X, quando o budismo, em ascensão no país, proibiu a matança de animais e impôs uma dieta vegetariana, complementada com peixes. FIGURA 5: CERIMÔNIA DO CHÁ Fonte: China na Minha Vida. Disponível em:https://chinanaminhavida.com/2016/12/07/cerimonia-do-cha/. Acesso em: 26 jul. 2021. O chá foi introduzido no Japão por volta do ano 800, marcando profundamente a cultura nipônica, principalmente a partir do século XV, tomando forma quase religiosa, de- vendo ser preparado de acordo com regras pormenorizadas. A cerimônia do chá influenciou a arquitetura, os estilos decorativos e a etiqueta à mesa, refinando a cozinha, que também 26UNIDADE I O Início da História da Alimentação se ritualizou. A cozinha requintada e ritualizada é chamada de kaseki - uma cozinha mini- malista que veio das crenças xintoístas relativas à primazia da natureza, com os alimentos rigorosamente frescos, sazonais, produzidos no local e servidos imediatamente após se- rem preparados. Desde a emergência dos samurais, todo excesso no comer passou a ser considerado vulgar. (FRANCO, 2010). Outra bebida ritualizada é o sakê, que deve ser servido em pequenos copos de porcelana e bebido a 50°C e não deve ser tomado quando sopa ou chá são servidos. Num jantar com convidados servem-se uns aos outros. No início do século XVI o Japão teve o primeiro contato com os europeus, através dos portugueses que iniciaram um comércio lucrativo entre os portos japoneses e chineses. Entretanto, devido à tentativa de converter os japoneses ao cristianismo e a intromissão de missionários e negociantes portugueses com a política, todos os europeus foram expulsos em 1638. As portas do Japão aos europeus só voltaram a se abrir mais de dois séculos depois. 27UNIDADE I O Início da História da Alimentação 4. CIVILIZAÇÕES AMERICANAS As primeiras populações da América eram originárias do antigo mundo asiático, de onde começaram a emigrar por volta de 40.000 anos antes da Era Cristã. Essas migrações foram feitas a pé através do estreito de Bering, que se transformou em uma espécie de pla- taforma sólida durante o período de glaciação, permitindo os deslocamentos entre a Ásia e o continente americano. Na América, os povos nômades vindos da Ásia espalharam-se no sentido norte-sul. Não se sabe as razões dessa migração humana, de modo que só podemos formular questões e hipóteses (BROTHERSTON, 2007). O certo é que esses grupos nômades encontraram na América grandes reservas de proteína, gorduras, ossos e peles, sendo bem provável que tal abundância de recursos tenha facilitado a expansão vertiginosa desses povos pelo continente. Na virada do décimo milênio a.C., a temperatura da Terra elevou-se, fazendo subir o nível dos oceanos e destruindo a pas- sagem anteriormente presente no estreito de Bering. A partir desse momento, as populações americanas passaram a viver de forma relativamente isolada entre si e em relação ao resto do mundo até a chegada dos europeus no final do século XV (DARDEL, 2011). Nesse vasto espaço americano, duas regiões devem ser particularmente con- sideradas, pois foi nessas áreas que surgiram os Estados mais densamente povoados e politicamente hierarquizados a serem encontrados pelos espanhóis que chegaram ao continente: o Estado mexica (asteca) e o Estado inca. É importante, desde já, que você seja capaz de localizar duas regiões que serão por vezes mencionadas ao longo do curso: a Mesoamérica (onde viveram os mexicas, entre outros povos) e a região andina (onde floresceu o Estado inca)(BROTHERSTON, 2007). 28UNIDADE I O Início da História da Alimentação Na Mesoamérica e nos Andes, as condições climáticas e ecológicas, assim como um conjunto de circunstâncias particulares, permitiram a domesticação do milho e o desen- volvimento de uma agricultura intensiva por volta do terceiro milênio a.C. Essas condições permitiram, nessas áreas, o desenvolvimento de civilizações caracterizadas por forte hierarquia social, por sistemas de governo teocrático e por construções arquitetônicas mo- numentais. A capacidade de alimentar grandes conjuntos populacionais era propiciada pelo desenvolvimento da agricultura intensiva, que fixava as populações nativas e impulsionava o crescimento da urbanização, outra característica marcante das áreas nucleares da Amé- rica antes e depois da conquista. Os grandes regimes tributários surgidos nessasáreas, como foi o caso dos mexicas e dos incas, alimentavam-se da sedentarização: apenas as populações fixadas e praticantes de agricultura podiam produzir mercadorias excedentes para pagar tributos a seus governantes. Com a tributação, criaram-se sociedades nativas caracterizadas por forte hierarquia social, uma vez que os setores burocráticos e sacerdo- tais se distanciavam socialmente daqueles que trabalhavam diretamente para o pagamento de tributos (MONTANARI, 2008). 4.1 Mesoamérica A identidade alimentar dos habitantes pré-colombianos da Mesoamérica pode ser reconhecida pelo conjunto dos alimentos preparados e ingeridos, pelos produtos culti- vados e coletados e pelos animais que eram criados, caçados ou pescados. A localização geográfica das terras dos astecas e dos mais era privilegiada, pois dispunha de um vasto território com variados climas, vegetações, relevos e solos, além de ter acesso aos grandes oceanos Oriental e Ocidental (JENNINGS, 1980) O mercado de Tlatelolco era abastecido pela contínua chegada de canoas abarrotadas de produtos, durante o ano todo, vindo de todo o império. O povo asteca vivia em casas feitas de folhas de palmeiras ou de juncos. Os palácios, alguns feitos de madeira ou de pedras com ligamento de argamassa feita de conchas moídas. As roupas eram tecidas de fibras de palmeiras, de agave e, às vezes, os fios mais finos e resistentes eram extraídos da pele de tubarão, também usam as peles de lontras. O óleo para as lamparinas era obtido tanto de peixes quanto de alguns cocos, mas exalavam um odor fedorento (JENNINGS, 1980) Pescavam no mar do Ocidente, peixes em abundância como arraias, espadartes, linguados, lizas e caranguejos, lulas, mexilhões, camarões, ostras e lagostas. Comiam, também, a carne e os ovos das tartarugas, algas comestíveis, e cogumelos que brotavam por toda parte nos vãos úmidos. A pesca de yeye michi , um peixe cinza gigantesco, era um festim para muitos (DARDEL, 2011). 29UNIDADE I O Início da História da Alimentação Alguns dos animais que eram conhecidos e eram comidos são: tatu, veado, jaguar, macaco, cachorro, jacaré, cuatá (macaco de grande porte), porco, quati, pantera, ma- caco aranha, gambá, guariba; várias aves como: coruja, águia, garça, cisne, papagaio, arara e inúmeros passarinhos menores; também reconheciam os morcegos, os répteis (serpentes, cascavéis e cobras, em geral). Muitos desses animais se tornaram deuses e eram adorados, como o beija-flor (quetzal) (MONTANARI, 2008). As frutas eram saborosas, perfumadas e coloridas como a fruta do conde (chi- rimóia), sapotas, banana, abacaxi, mamão, abacate, siriguela, figo da índia (tuna), goiaba, amora, e muitas outras. A base da alimentação era o milho de cores variadas como branco, vermelho, amarelo, azulado e o feijão, também de várias qualidades. Comer milho era uma imagem simbólica, pois emprestava ao vegetal poderes extraordinários de força, de união, de solidariedade. Do milho se faziam tortillas, tacos, tamales, mixiotes. Empregaram muito na gastronomia as abóboras, os morangos, o tomate em forma de molhos e faziam uma farinha do fruto de uma palmeira, secando e morrendo, transformando-o em alimento. Havia abundância de doces. A característica mais marcante dos astecas e dos maias foi o uso do chocolate, considerado a bebida dos deuses, e da pimenta, destinados principal- mente aos nobres e guerreiros, sobrando muito pouco para o povo em geral e usavam o cacau como moeda (DARDEL, 2011). O banquete servido a Cortés e seus capitães pelo imperador foi histórico, com um cardápio extenso e variadíssimo. Eram carnes, legumes, frutas, peixes, aves, em uma profusão variada de cores, odores e sabores. Assim foi se revelando a cozinha asteca, com Tamales com consistência tão leve que se dissolvia na boca, acompanhados de manteiga batida. Carnes cozidas, mixiote em saquinhos de folhas de agave, abacate amassado e misturado com pimentões verdes e vermelhos, peru assado e seus ovos cozidos, faisões, perdizes, codornas e patos, carne de veado e de coelho, com molho de chocolate, peixes marinados em limão, pargo recoberto com suco de tomates, milho cozido com pimentas e mel, goiabas, tamarindos, abóboras variadas, batata doce assada, jarras de doce de agave, e o tradicional cachorro ensopado. Durante todo o banquete eram apresentadas jarras de chocolate espumante para facilitar a digestão (BROTHERSTON, 2007). Com a conquista espanhola, foi destruído o tecido social da sociedade asteca, com a perda de valores e atitudes, além das doenças trazidas pelos conquistadores. E final- mente, a cobiça dos espanhóis e das outras nações vizinhas foi o estopim da catástrofe. Assim, os astecas não foram derrotados apenas pelos invasores espanhóis, mas também pela coalizão das outras nações indígenas insatisfeitas e cansadas de pagar impostos que acabaram por se unir aos espanhóis (SHERWOOD, 2006). 30UNIDADE I O Início da História da Alimentação 4.2 Região Andina Acredita-se que as origens do império inca, também chamado Tahuantinsuyo (as quatro direções), remontem ao século XI, quando alguns grupos de índios quíchuas, vindos do norte da região que é o hoje o Peru, instalaram-se no sul, na região do vale de Cuzco, cidade que mais tarde se tornou a capital do império, considerada sagrada – “O Umbigo do Mundo”. Durante quase 300 anos eles fizeram incursões e, na medida do possível, impuseram tributos sobre os povos vizinhos (PRESCOTT, 1946). Quando os espanhóis se aproximaram da região andina, na década de 1530, os incas reinavam há algumas gerações sobre uma vasta área. Os incas instalaram-se inicialmente no Vale de Cuzco, por volta do século XIII d.C., mas apenas no século XV (por volta de 1470 d.C.) começaram a estender seus domínios sobre outros territórios e povos da região andina, incorporando e cobrando tributos de centenas de grupos étnicos caracterizados por grande diversidade cultural e linguística (PORTILLA, 1997) Cultivavam alimentos altamente nutritivos, como o milho e a batata. Mas a terra cultivável das montanhas era pouca, e por isso, dependiam da pesca, da coleta de produtos e do cultivo em vários pisos ecológicos, de modo a aproveitar os recursos de diferentes áreas e climas. As comunidades viviam a cerca de três mil metros de altitude. Assim, uma parte da comunidade deslocava-se de tempos em tempos para explorar os recursos de pastagens localizadas em outro “piso” das montanhas, a uma altitude de 4.000 metros. Outros membros da mesma comunidade da serra viajavam para as áreas mais baixas, aproveitando os recursos de um outro “piso”, localizado nas áreas mais quentes e úmidas, onde produziam a coca, o algodão e extraíam madeira. Movimentando-se pelos diferentes pisos ecológicos da região andina, os habitantes da montanha podiam compensar os rigo- res de viver em regiões tão altas e carentes de terras suficientes para que sobrevivessem. Assim, os andinos transformavam as limitações do clima e as restrições da terra em uma vantagem, deslocando-se para aproveitar recursos variados (CARDOSO, 1981). FIGURA 6: TERRAÇOS AGRÍCOLAS DE PISAC - VALE SAGRADO DOS INCAS Fonte:https://www.rediscovermachupicchu.com/agricultural-terraces.htm. Acesso em: 18 ago 2021 31UNIDADE I O Início da História da Alimentação Para John Murra, os incas transformaram essa antiga prática – a de complementar recursos da comunidade – em um meio de controle político, utilizando os mecanismos da mita (um tipo de prestação de serviços ao chefe da comunidade local) para reassentar pessoas em localidades cada vez mais distantes, impedindo-as de retornar às suas comunidades de origem, pois as viagens seriam muito longas. O domínio inca produzia um enfraquecimen- to dos vínculos nas comunidades originais, uma vez que certos membros eram afastados desses núcleos para atender às novas demandas do Estado. Com a expansão inca,a mita passou a ser exigida também pelo dirigente máximo, o Inca, obrigando os membros da comu- nidade a despender mais tempo e energia em trabalhos diversos (cultivo da terra, tecelagem, pastoreio, serviço militar, etc), cujo produto final seguia para o centro do Império. A batata era o alimento mais produzido no Império Incaico e elemento básico para o preparo de sopas e da Pachamanca, uma mistura de carnes e verduras cozidas com pedras quentes em uma fossa coberta de terra. Outro alimento importante na vida andina era a quinoa. Considerada sagrada pelos Incas que a chamavam de “grano madre”. Os conquistadores trouxeram novas espécies de animais e plantas, que se integra- ram à vida dos indígenas e fizeram surgir uma nova cultura “a comida criolla”, as carnes de frango, cabrito, vaca e carneiros trazidos pelos espanhóis se juntaram á da Ihama, da alpaca, cuy, lebre, arroz, o trigo, e a cevada foram introduzidos na América Latina junto com azeitona, óleos, vinagres, condimentos e uma variedade de verduras e frutas principalmen- te a uva. Os conquistadores europeus trouxeram, também, o forno e diferentes técnicas de cozinhar, curtir e fritar Na época pré-colombiana, existia no Peru um animal que é parente da galinha que conhecemos hoje. Era conhecida com o nome de “huallpa” cozida em ají (pimenta). O huallpa era muito importante na culinária e na vida incaica, tanto que o último inca, executado pelos espanhóis levava o seu nome Atahualpa. El ají de galinha (feito com pão velho, leite, pedaços de frango, queijo e várias pimentas), uma espécie de fricassê de frango e o exemplo perfeito da fusão dos ingredientes espanhóis e quéchuas. O pão, as nozes, e o queijo, somado ao frango e a pimenta deram a este prato uma dimensão internacional (DE LA VEGA, 1992) Ainda segundo De La Vega (1992) o mais importante dos cultivos incaicos foi o milho, ingrediente básico da cerveja andina a “Chicha’’ feita por mulheres sob a vigilância da deusa do milho Mamasara. A comida inca consistia principalmente de vegetais, pães, bolos, mingaus de cereais (notadamente de milho ou aveia), e carne (assados ou guisados), comumente de caititus (porcos selvagens) e de lhama. Apesar da dieta dos incas ser muito variada, havia muitas diferenças entre os alimentos consumidos pelos diversos setores da sociedade. 32UNIDADE I O Início da História da Alimentação A gente do povo só comia duas refeições por dia. O prato comum dos Andes era o chuño, ou farinha de batata desidratada. Adicionava-se água, pimentão ou pimenta, e sal para então servir. Eles também preparavam o locro com carne seca ou cozida, com muito pimentão, pimenta, batatas e feijão. Eles comiam ainda grandes quantidades de frutas, como a pêra picada ou o tarwi. O milho era bastante consumido e era preparado fervido ou torrado. Os nobres e a família real se alimentavam muito melhor do que o povo. Na mesa do Inca não podia faltar carne,mas era escassa para o povo. Ele comia carne de lhama, de vicunha, patos selvagens, perdizes da puna, rãs, caracóis e peixe (DE LA VEGA, 1992). A refeição começava com frutas. Depois vinham as iguarias, apresentadas sobre uma esteira de juncos trançados que eram estendidos no solo. O Inca se acomodava em seu as- sento de madeira, coberto com uma tela fina de lã e indicava o que lhe agradava. Daí, uma das mulheres de seu séquito o servia em um prato de barro ou de metal precioso, que segurava entre suas mãos enquanto o Inca comia. As sobras e tudo que o Inca havia tocado, devia ser guardado em um cofre e queimado logo depois, dispersando as cinzas (ROSSI, 2004). A maioria dos primeiros conquistadores espanhóis era formada por nativos da Andaluzia região ao Sul do país, ocupada durante setecentos anos pelos mouros, por influência destes povos árabes , foram levados para os Andes o cominho, o coentro, a canela e outros condimentos usados pela culinária crioula. A chegada da cana de açúcar foi uma surpresa deliciosa para os nativos e um complemento perfeito para suas ervas e especiarias, razão pela qual o consumo de açúcar foi muito grande. Os conventos foram os grandes especialistas na elaboração de doces e sobremesas, cada um deles tinha sua especialidade (ESCALANTE, 2005). A cidade de Cuzco tornou-se, no final do século XV, o centro desse Império, acu- mulando funções administrativas e cerimoniais. Em meados do século XVI, por volta de 1525, o território sob o domínio inca incluía desde a região ao norte do Equador, tendo como referência o rio Putumayo, abrangendo as áreas do Peru, Bolívia, até o rio Maule, no Chile Central. O território inca chegou a ocupar uma área de cerca de 4800 Km de extensão e abrigar mais de 12 milhões de pessoas, que falavam pelo menos vinte línguas. Em 1532 o império já estava seriamente debilitado com a divisão de forças e nessa mesma época crítica, os espanhóis, liderados por Francisco Pizarro, chegaram à costa em suas naus, trazendo cavalos e, principalmente, a pólvora de suas arcabuzes, uma das armas mais avançadas da tecnologia bélica da época. Contando com o apoio de diferentes grupos de indígenas descontentes com a dominação inca, Pizarro conseguiu controlar o império (PRESCOTT, 1946). 33UNIDADE I O Início da História da Alimentação 4.3 Tupis Guaranís As discussões sobre a origem e as rotas de expansão dos povos Tupi Guarani estão entre as mais acaloradas na antropologia brasileira, porque vestígios arqueológicos da tradição ceramista desses povos abundam em quase todo o território nacional. Meggers (1972) e Meggers e Evans (1973) defenderam a ideia de que essa tra- dição ceramista teria se originado na base dos Andes, na região onde atualmente é a Bolívia,e depois expandindo em direção ao sul, atingindo o Uruguai e o norte da Argentina. A partir desse extremo austral, os ceramistas Tupiguarani teriam empreendido uma segun- da expansão, desta vez em direção ao norte, povoando toda a faixa atlântica do sudeste, nordeste e norte do Brasil. Já de acordo com Brochado (1984), a Amazônia Central (médio Amazonas) teria sido o local de origem dessas culturas. A partir desse ponto de origem no médio Amazonas, dois eixos de expansão populacional teriam ocorrido: um em direção à foz do Amazonas, estendendo-se depois para leste, povoando toda a costa atlântica brasileira até, aproxima- damente, os limites entre São Paulo e Paraná; outro em direção meridional, por via das bacias do Uruguai, Paraná e Plata, que teria povoado todo o sul do Brasil, o Uruguai e o norte da Argentina. Para Lima (2005, p. 30), tal expansão se deu “contornando as terras altas do planalto brasileiro em um movimento de “pinça’’. Segundo levantamentos arqueológicos, esta migração teve início muitos séculos antes da criação dos Estados Nacionais, por volta dos séculos I e II depois do nascimento de Cristo (D.C.). Historiadores calculam que, no início da invasão européia ao Continente, em 1492, a população Guarani girava em torno de um milhão e meio a dois milhões de pessoas (CHANGARAY, 2006). Quando da chegada dos espanhóis e portugueses na América, por volta de 1500, os Guarani já formavam um conjunto de povos com a mesma origem, falavam um mesmo idioma, haviam desenvolvido um modo de ser que mantinha viva a memória de antigas tradições e se projetavam para o futuro, praticando uma agricultura muito produtiva, a qual gerava amplos excedentes que motivavam grandes festas e a distribuição dos produtos, conforme determinava a economia de reciprocidade. Quando Pero Vaz de Caminha chegou às terras tupiniquins, os únicos alimentos que saboreou foram a mandioca e o palmito, mas a mandioca reinava, pois era o alimento essencial acompanhando todas as coisas, da carne à fruta, com as lendas sobre sua ori- gem, variando de uma região para a outra. 34UNIDADE I O Início da História da Alimentação [...] a filha de um chefe indígena engravidara sem contato masculino, como em sonho comunicaraum homem branco ao pai furioso que se acalmou. Nasceu uma menina deslumbrante, de nome Mani, morta ao fim de um ano, sem doença e sem dor. Do túmulo surgiu um arbusto novo. A terra fendeu-se, como mostrando o corpo da menina morta, encontraram raízes que eram as primeiras mandiocas, fortificantes e poderosas. Mandioca, de Mani-oca, a casa de Mani. (CASCUDO, 2004, p. 96). Para o indígena a farinha uí-pon, uí-puba amolecida pela infusão, darinha d’água, e a uí-atã, farinha de guerra, seca, dura, resistente, comum. Feita de mandioca crua, raspada e espremida à mão ou no cilíndrico tipiti, a prensa de de palha contráctil, tecida e sensível (CASCUDO, 2004, p. 98). O milho fazia parte da alimentação dos indígenas, mas numa escala bem inferior, não como um alimento, mas como uma gulodice, um aperitivo, roendo as espigas assadas. A pimenta amarela e a pimenta vermelha, eram consumidas misturadas com a farinha, e com sal que obtinham retendo a água do mar em valas, e a esta mistura chamavam de ionquet, que não aplicavam diretamente nos alimentos, mas sim, o colocavam na boca, engoliam, e logo em seguida consumiam também o ionquet para dar sabor. Para se obter sal, como no interior da Bahia, os tapuias queimavam uma terra salitrosa que em seguida era lançada na água do rio em vasilhas e depois posta no fogo para cozer e ferver tanto até que se coalhasse, e assim, aparecia o sal. Entretanto, havia um certo desinteresse pelo sal porque não tinham necessidade, visto que sua epiderme nativa tinha proteção natural contra a perda excessiva dos sais minerais e também transpiravam pouco, além da pele ser protegida pelas tintas naturais que enfeitavam seus corpos, como a de jenipapo, urucum, argilas e pó de carvão (CASCUDO, 1983) Outro tempero usado era uma erva conhecida pelo nome de nhambi, que parece com a folha de coentro e era consumida crua e com ela temperavam também seus manjares e demais especiarias, dando-lhes perfume. A caça era assada, o peixe também era assado ou cozido; e nas refeições a mu- lher cozinhava e o homem caçava e pescava. Tinham o costume de cozinhar ou assar os peixes inteiros com as vísceras, os tubérculos com as cascas e os animais com o couro, consumindo ou retirando depois, isto para que o sabor fosse preservado; já a fritura não era reconhecida. Alimentavam-se também conforme os costumes alimentares de seus an- cestrais, como bicho-de-taquara, iças, caracóis, cogumelos e saúvas (CASCUDO, 1983). Segundo Câmara Cascudo (1983), existiam também as bebidas, feitas pelas mu- lheres num processo onde a mandioca era cozida em grandes potes, e depois de fria as moças se aglomeravam ao lado dos potes onde mastigavam as raízes e o que era masti- gado era colocado em outro pote e levado ao fogo para ferver novamente, e com isto feito as vasilhas eram enterradas até o meio e bem tampadas para que a bebida fermentasse 35UNIDADE I O Início da História da Alimentação por dois dias até formar teor etílico. Cada cabana fazia sua própria bebida, e quando havia festa na aldeia, todos se reuniam em uma cabana até consumir o total da bebida, para em seguida seguir para outra, e assim sucessivamente, até que todos tivessem bebido tudo o que houvesse na aldeia, acompanhado de muita dança e cantos; esta bebida era conhecida como caxiri ou caissuma. Entretanto, nenhuma bebida feita acompanhava a comida do dia-a-dia pois eles não possuíam provisão de água na oca, e ao ter sede eles iam beber fora, no poço, no regato ou na fonte. As frutas com mais sumo eram comidas, e não espremidas, exceto quando era para a finalidade de produzir vinhos, que eram feitos à base de jenipapo, ananás e caju. Devemos aos nossos indígenas vários hábitos alimentares, como a alimentação à base de peixes, crustáceos, caças, moluscos, pimentas, abóbora, palmitos, caldo de peixe, apicultura, e também alguns costumes como a curtição de fumo, aspirar rapé, a rede para as sestas e para nos embalar nos momentos de sossego. As próprias cunhãs faziam seus utensílios para a cozinha, panelas de vários for- matos, pratos largos e rasos também as cuias, que depois de secas ao sol, serviam como copos e pratos. Dominavam também a arte das cestas artesanais. Para fazer os assados as cunhãs embrulhavam em folhas a carne de caça, peixes, crustáceos e moluscos, entre outros. Se alimentavam muito mais de alimentos assados do que cozidos (CASCUDO, 1983) Infelizmente, como as índias não dominavam a arte do açúcar, nenhum doce foi criado por elas, e a sua desvalorização nas lides domésticas coloniais foi declarada com a crescente construção de engenhos, que por sua vez traziam mais o mercado de escravos, enquanto os índios foram mandados para os sertões porque não se adaptaram ao trabalho de rotina e tarefas sistemáticas dos engenhos (FREYRE, 1997) 36UNIDADE I O Início da História da Alimentação SAIBA MAIS “Bárbaros” era um nome genérico dado aos grupos humanos que invadiram os limites do Império Romano e foram uma das grandes causas da sua decadência. A expressão surgiu entre os gregos antigos, que chamavam de bárbaro qualquer estrangeiro. Nos relatos dos inimigos romanos – poucos grupos bárbaros sabiam escrever -, os bárbaros entraram para a história como sujos, sanguinários, primitivos e incontroláveis. Os primeiros a serem “presenteados” com o termo foram os persas, por volta do século 5 a.C. Mas a expressão ficou famosa mesmo por volta do século 1 a.C., quando os ro- manos passaram a chamar de bárbaros todos os povos nômades ou seminômades do norte da Europa que viviam além das fronteiras do império. Fonte: disponível em: https://mundoeducacao.uol.com.br/historiageral/invasoes-barbaras.htm. Acesso em: 26 jul. 2021. REFLITA “Não se vive do que se come, mas do que se digere”. (ANTHELME BRILLAT-SAVARIN - Fisiologia do gosto. Cia de Mesa. 2017) REFLITA “Diz-me o que comes, dir-te-ei quem és.” (ANTHELME BRILLAT-SAVARIN - Fisiologia do gosto. Cia de Mesa. 2017) https://mundoeducacao.uol.com.br/historiageral/invasoes-barbaras.htm 37UNIDADE I O Início da História da Alimentação CONSIDERAÇÕES FINAIS O Homem reinventou a forma de preparar os alimentos e isto fez parte de todo o processo evolutivo, a gastronomia caminhou junto com a humanidade, e juntos foram para todos os cantos do mundo. O Homem desde sempre foi onívoro, ou seja, se alimentava tanto de plantas como de animais, e nosso organismo se moldou ao longo dos anos para acompanhar nossa dieta, passamos a evoluir o estômago e consequentemente a desenvolver um cérebro maior. Com isso, passaram a ter contato com o fogo, e ao dominá-lo, passaram a desenvolver técnicas para utilizá-lo. E isso representou um grande salto na qualidade da alimentação humana. Em seguida, o homem começou a se estabelecer e a colonizar regiões, através da descoberta da germinação de grãos, “aqueles que havia descoberto como nova fonte de alimento”, passou a desenvolver a agricultura, posteriormente a domesticar pequenos animais, e realizar pequenas criações de animais. Esta transição foi um grande salto, pois puderam obter ração para animais, alimento para a mesa, e através de tentativa e erro, foram descobrindo a interação química entre os alimentos, e começaram a preparar pão, e bebidas como a cerveja e o vinho. A Mesopotâmia foi o grande berço da cultura alimentar humana até a queda do Império Babilònico e posterior ascensão do Império Romano. E foi a partir dessa região que o homem se espalhou pela Terra, chegando à América, que posteriormente se fundiu com o restante do mundo através das Grandes Navegações, num grande intercâmbio de alimentos entre os povos. Mas, por mais que a gastronomia evolua, uma coisa é certa, a forma em que um povo se alimenta continua fazendo parte dos seus costumes. 38UNIDADE I O Início da História da Alimentação LEITURA COMPLEMENTAR ALIMENTAÇÃO MUNDIAL - UMA REFLEXÃO SOBRE A HISTÓRIA Edeli Simioni de Abreu IsabelCristina Viana Rosymaura Baena Moreno Elizabeth Aparecida Ferraz da Silva Torres Através do estudo da gastronomia mundial é possível conhecer não apenas a arte de cozinhar e o prazer de comer, mas também a sua relação com os recursos alimentares disponíveis, pois as condições naturais de vida são extremamente variadas: influência da lati- tude, natureza dos solos, proximidade do mar, clima, etc. (MEZOMO, 1994). Condicionados fortemente à disponibilidade de alimentos estão também os hábitos alimentares - disposição duradoura adquirida pela repetição frequente de um ato, uso ou costume (BOURGUERS, 1998). Esses hábitos fazem parte da cultura e do poder econômico de um povo (MEZOMO, 1994), além de serem de primordial importância para a análise do comportamento alimentar de determinado grupo populacional (BOURGUERS, 1998; GARCIA, 1995; PIOVESAN, 1970; PHILIPPI, 1992). A distribuição de alimentos é bastante desigual no mundo, e afeta de forma importante os padrões de consumo de uma população. São evidentes as diferenças na distribuição de alimentos nos países desenvolvidos e em desenvolvimento, o que deixa claro a relevância do fator político econômico, assim como as diferenças dentro do próprio país. Nos países desenvolvidos há uma abastada oferta de alimentos, porém, o consumo sob o ponto de vista nutricional, nem sempre é adequado, podendo ocorrer excessos, ao mesmo tempo, as populações dos países em desenvolvimento convivem com a escassez de alimentos e não dispõem de recursos educativos, ambientais e até financeiros para obtenção dos mesmos, tendo como conseqüência a fome e/ou subnutrição (MONTEIRO, 1996; PEKKANIVEW, 1975). [...] ALIMENTAÇÃO NA PRÉ-HISTÓRIA E IDADE ANTIGA Desde o princípio, por milênios, vagaram os predecessores do homem, o próprio homem e seus descendentes, perscrutando a face da terra, em busca de alimento. Deixa- ram-nos um legado filogenético de experiências, em que se fundamentaram nossos se ao cultivo de cereais e condimentos (GIACOMETTI, 1989). 39UNIDADE I O Início da História da Alimentação Os condimentos também têm sua significação na história da alimentação humana. O homem primitivo, como o atual, desejava alguma coisa além do alimento em si; foi o sabor que desenvolveu a arte de comer e a de beber (SAVARIN, 1995). ALIMENTAÇÃO NA ANTIGÜIDADE CLÁSSICA E IDADE MÉDIA A disseminação do uso de diferentes tipos de alimentos entre os continentes se deve muito ao comércio e à introdução de plantas e animais domésticos em novas áreas. Os gregos e os romanos tinham um comércio de grande porte, envolvendo plantas comes- tíveis, azeite de oliva e ainda importavam especiarias no Extremo Oriente em 1000 a.C. (GARCIA, 1995). Durante os séculos tormentosos da Idade Média, houve um aperfeiçoamento lento dos modos de produção de alimentos. A alimentação não se desenvolveu, ocorrendo, ainda, um recuo às práticas primitivas, principalmente relacionadas às épocas de penúria e fome. [...] Segundo MEDVED (1981), com as cruzadas, que tiveram início em 1096, milhares de peregrinos entraram em contato com o Oriente Médio, estabelecendo-se um intenso comércio. Na a Idade Média, as especiarias e ervas aromáticas eram usadas em ban- quetes para ostentar riqueza. Durante os séculos XV e XVI, Portugal, Espanha e Veneza competiram no financiamento de viagens marítimas visando descobrir centros produtores de especiarias e apoderar-se deles. Essas viagens foram de grande importância para a descoberta de novos alimentos e especiarias, além de expressar o domínio econômico dos países que a realizavam. Durante a história, o poder econômico e o monopólio do comércio passou por vários povos e nessas conquistas e descobertas houve um intercâmbio de cultura, hábitos, culinária e conhecimentos. ALIMENTAÇÃO NA IDADE CONTEMPORÂNEA [...] A descoberta oficial da América, 1492 resultante das tentativas de novas descober- tas, como citado anteriormente, e as outras viagens que Cristóvão Colombo realizou, não tiveram apenas repercussões políticas e econômicas. As caravelas do navegador voltaram com novos ingredientes de cozinha. Se não encontrou um trajeto mais rápido para buscar as especiarias no oriente, como prometera, Colombo foi pelo menos um brilhante estimu- lador de descobertas gastronômicas. Assim, muitos alimentos foram à Europa, trazidos da América: tomate, batata, abacaxi, abacate, amendoim, baunilha, milho, mandioca, feijão, pimentas, provocando uma revolução nas receitas da época (GARCIA, 1995; GULA, 1997). 40UNIDADE I O Início da História da Alimentação Pelo valor que era dado aos cereais, os europeus desprezaram os tubérculos en- contrados no Novo Mundo, principalmente a batata que era usada por eles para alimentar porcos, prisioneiros e camponeses pobres (MEZOMO, 1994). O milho quando introduzido na Europa foi utilizado pelas camadas sociais de reduzidas posses, surgindo assim as preparações econômicas. O milho e a batata foram certamente as contribuições mais significativas para beneficiar as populações menos favorecidas em recursos alimentares. O cacau, a baunilha e o tomate ascenderam às esferas de maior sofisticação culinária, comparecendo à mesa dos ricos (ORNELLAS, 1978). [...] ALIMENTAÇÃO PARA O FUTURO Como demonstrou-se, a cada época uma região desenvolvia seu padrão alimentar em função da disponibilidade de alimentos acessíveis à população. Esses alimentos eram adaptados à culinária regional. Atualmente, os padrões de consumo alimentar variam grandemente em diferentes partes do mundo, dependendo do grau de desenvolvimento e condições econômicas e políticas para a produção. Paralelamente, o aumento da população e o envelhecimento no mundo, aliados ao “padrão alimentar” que vem seguindo estacionário, pode significar um agravamento dos problemas nutricionais (ABREU, 2000). Duas tendências se desenvolvem no escopo de obter alimentos para o futuro. A primeira, tradicionalista, se baseia em produtos primários e concede prioridade absoluta à agricultura, recomendando a contenção ou parada na industrialização. Ao esforço de prover alimentos para o futuro, há uma segunda tendência que se encaminha para fórmulas industrializadas: alimentos “de conveniência”; alimentos “desenhados”; alimentos sintéti- cos; proteína texturizada a partir de oleaginosas ou produtos de cereais processados e apresentados em formas variadas; concentrados ou isolados; extrusão; filamentos para confecção de alimentos não convencionais; além dos tão discutidos alimentos transgênicos e funcionais (NEUMANN et al.,2000). CONSIDERAÇÕES FINAIS A oferta de alimentos é mais do que suficiente para alimentar a população mundial, porém são necessárias medidas políticas que possibilitem a melhor distribuição de renda, permitindo o acesso ao alimento e propiciando o crescimento e fortalecimento das comunida- des agrícolas nos países em desenvolvimento (ABRAMOVAY, 1996; PEKKANIVEW, 1975). [...] 41UNIDADE I O Início da História da Alimentação Devemos considerar que o hábito alimentar de uma cultura foi constituído inicial- mente pela disposição regional de alimentos e, posteriormente, através de contatos entre diferentes povos, houve a produção de novos produtos, ampliando as possibilidades ali- mentares (GARCIA, 1995). O estudo da alimentação é um elemento para o entendimento da sociedade e de seu desenvolvimento (GARCIA, 1995). Os hábitos das pessoas de todas as partes do mun- do têm sido influenciados por convicções e valores culturais, religião, clima, localização regional, agricultura, tecnologia, situação econômica, etc. Consequentemente, os hábitos alimentares variam de país para país e de região para região dentro de um mesmo país (MEDVED, 1981). A forma de vida de cada grupo é identificada como cultura. Uma cultura pode ver o alimento como uma forma de saciar a fome e outra como uma fonte de prazer e oportunidade de socialização. A família, a igreja, a escola passa a prática cultural de uma geração para outra. Cada pessoa selecionae consome alimentos baseada nesse guia cultural (MEDVED, 1981). A preocupação em relação à distribuição de alimento ocupa lugar de destaque nas discussões mundiais, mas ainda não se chegou a uma política mundial conjunta que seja capaz de resolver esse dilema (COMITÉ NACIONAL DE LOS ESTADOS UNIDOS ,1992). É fundamental que sempre se analise a alimentação, seja em nível individual, regional, nacional ou mundial de forma crítica, considerando-se todos os elementos acima referidos e outros que se julgarem necessários. A reflexão sobre essas questões poderá significar um primeiro passo na busca de entendimento sobre a problemática que envolve a alimentação mundial. O fato é que não é mais possível ‘pensar’ o mundo por partes, quando o problema a ser resolvido estiver relacionado com a alimentação, principalmente com o advento da globalização. Fonte: Abreu, Edeli Simioni de et al. Alimentação mundial: uma reflexão sobre a história. Saúde e Sociedade [online]. 2001, v. 10, n. 2 [Acessado 9 Julho 2021] , pp. 3-14. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0104-12902001000200002>. Epub 05 Jun 2008. ISSN 1984-0470. https://doi.org/10.1590/S0104-12902001000200002. https://doi.org/10.1590/S0104-12902001000200002 42UNIDADE I O Início da História da Alimentação MATERIAL COMPLEMENTAR LIVRO Título: De Caçador a Gourmet Autor: Ariovaldo Franco. Editora: Senac. Sinopse: Neste livro, o autor discorre de maneira clara e agradável sobre o alimento, os rituais e os costumes que o cercam e sobre o desenvolvimento da gastronomia. Fala da relação entre alimenta- ção e educação, civilidade e cultura das pessoas. Trata-se de uma fascinante lição de história do comportamento que, ocupando-se do prazer de comer, instiga o prazer de ler. Gourmand World Cookbook Awards 2001 - Melhor Livro de História da Culinária. FILME/VÍDEO Título: 1492, a Conquista do Paraíso Ano: 1992. Sinopse: Vinte anos da vida de Colombo, desde quando se con- venceu de que o mundo era redondo, passando pelo empenho em conseguir apoio financeiro da Coroa Espanhola para sua expedição, o descobrimento em si da América, o desastroso com- portamento que os europeus tiveram com os habitantes do Novo Mundo e a luta de Colombo para colonizar um continente que ele descobriu por acaso, além de sua decadência na velhice. 43 Plano de Estudo: ● Idade Média; ● Idade Moderna; ● Idade Contemporânea; ● Chefs que fizeram história. Objetivos da Aprendizagem: ● Conceituar e contextualizar a culinária na Idade Média; ● Compreender a evolução da gastronomia na Idade Moderna; ● Compreender a gastronomia nos dias atuais; ● Estabelecer a importância dos principais chefs da história da gastronomia mundial. UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais Professor Esp. Cláudio da SIlva Junior Professora Me. Flávia Helena Franco de Moura 44UNIDADE I O Início da História da Alimentação 44UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias AtuaisUNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais INTRODUÇÃO Através do estudo da gastronomia mundial é possível conhecer não apenas a arte de cozinhar e o prazer de comer, mas também a sua relação com os recursos alimentares disponíveis, pois as condições naturais de vida são extremamente variadas: influência da latitude, natureza dos solos, proximidade do mar, clima, etc. Condicionados fortemente à disponibilidade de alimentos estão também os hábitos alimentares e os costumes que fazem parte da cultura e do poder econômico de um povo. A forma de vida de cada povo é identificada como cultura. Uma cultura pode ver o alimento como uma forma de saciar a fome e outra como uma fonte de prazer e oportunidade de socialização. A família, a igreja, a escola passa a prática cultural de uma geração para outra. Cada pessoa seleciona e consome alimentos baseada nesse guia cultural. Convido você aluno, a fazer uma viagem através do tempo, conhecendo a cultura, os hábitos e alimentação dos povos da Idade Média - um período caracterizado por um sis- tema de produção e consumo baseado no apoio recíproco e na combinação entre economia agrária e silvo-pastoril, Assim, a alimentação medieval passa a ser designada pela variedade dos recursos e dos produtos consumidos, oriundos não apenas da agricultura (cereais, legu- minosas, legumes), mas também de caça, pesca e animais criados nas clareiras e bosques. Nossa próxima parada será na Idade Moderna, quando a conquista de Constanti- nopla pelos turcos otomanos, a Revolução Francesa e as Grandes Navegações mudaram completamente os hábitos alimentares do homem. Nosso destino será a Idade Contemporânea, quando as grandes guerras, as gran- des invenções e a globalização deram origem a uma nova forma de nos alimentarmos, e surgiram as novas tendências da gastronomia, como a Nouvelle Cuisine. Como toda história tem seus personagens, por fim apresentaremos alguns dos principais nomes que se destacaram durante todos os tempos, escrevendo, criando, desen- volvendo, analisando e a maioria deles, cozinhando! Aproveitem essa viagem fantástica através da história da alimentação. Bons Estudos!! 45UNIDADE I O Início da História da Alimentação 45UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais 1. IDADE MÉDIA A Idade Média compreende o período da história que se passa no século V d. C., até o século XV. Iniciou após a queda do Império Romano do Ocidente e se estendeu até a transição para a Idade Moderna. 1.1 Constantinopla Em 330 d.C., Constantino, o Grande, decidiu mudar a capital do Império Romano para Bizâncio, tornando-a tão imponente como Roma, mas incorporando na sua arquitetu- ra, símbolos e emblemas religiosos, com o intuito de caracterizá-la como sede da primeira nação cristã (FRANCO, 2010). É importante saber que já no início da Idade Média a religião se tornou a grande força, e o imperador tomou o papel de representante de Deus na Terra, ficando assim responsável por conduzir seus súditos à salvação eterna. O Cristianismo ganhou força e a partir deste momento multiplicou-se em Constantinopla igrejas, santuários, mosteiros e demais artigos ligados à religião (FRANCO, 2010). 46UNIDADE I O Início da História da Alimentação 46UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais FIGURA 1: LOCALIZAÇÃO DE CONSTANTINOPLA Fonte: disponivel em: https://www.historiazine.com/2019/12/constantinopla-capital-do-Mundo.html. Acesso em: 27 jul. 2021. Conforme apresentado por Franco (2006), Constantinopla tinha localização privi- legiada, pois ficava fácil ter o controle das caravanas que vinham do Oriente através do tráfego marítimo entre Mediterrâneo e o Mar Negro. Essas caravanas chegavam repletas de produtos e artigos como pedras preciosas, marfim, âmbar, porcelana, açúcar, aloés, almíscar, sedas, medicamentos e especiarias, tudo trazido de regiões da Índia, do Ceilão, da China e do Oriente Médio, grande parte desses produtos era destinada aos mosteiros e também à elite. Cada navegação que descarregava enriquecia um pouco mais a cidade, isso em vários aspectos financeiros, sociais e culturais, visto que uma cidade localizada na passagem entre dois continentes é quase impossível não evoluir. Um dos aspectos mais salientes das cortes medievais era o seu caráter itinerante. Com efeito, os monarcas, como os demais senhores, eram viajantes incansáveis que cons- tantemente percorriam os respectivos territórios, em certas ocasiões apenas por prazer, mas, na maioria das vezes, no desempenho das suas funções, administrativas ou outras. Aonde quer que o rei aportasse, cidade ou vila, igreja ou mosteiro, a sua chegada, acom- panhado sempre por numeroso séquito de pessoas habituadas ao melhor que os recursos da época podiam proporcionar, acabavam por causar problemas de abastecimento, tanto em quantidade como em qualidade. Principalmente no início da Idade Média, em que os alimentos não abundavam, em que a falta de maleabilidade dos transportes dificultava o preenchimento das lacunas de uma regiãopor eventuais excessos de outras, em que a de- ficiência ou mesmo inexistência de infra-estruturas necessárias à circulação dos produtos, maximizava aqueles inconvenientes (ALMEIDA, 1981). 47UNIDADE I O Início da História da Alimentação 47UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais Assim foram criados alguns mecanismos foram criados para a resolução destes problemas: a obrigatoriedade, por parte das populações, do fornecimento de víveres para a mesa dos visitantes, quando da sua chegada. No caso do monarca, esse mecanismo deu origem a um tributo público: a colheita régia, que desde cedo começou a ter uma cobrança generalizada, que abrangia, não só as povoações, como os mosteiros, as igrejas, as comendas, e a ser considerado como um direito inalienável e imprescindível (OLIVEIRA MARQUES, 1964). Segundo Franco (2010), a maior parte da vida cotidiana acontecia nas ruas e fóruns, sempre animados por músicos e saltimbancos itinerantes. As tavernas serviam comida, vinho e outras bebidas e disponibilizavam jogos semelhantes ao dominó para os frequentadores. O hipódromo era o principal foco de diversão; e nos intervalos, as refeições eram compostas de pão, peixe salgado, fiambres, caviar, queijo e frutas frescas e secas. As festas e comemo- rações eram frequentes. Em 537, a inauguração da igreja de Santa Sofia consumiu seis mil cordeiros, mil bois, mil porcos e incontáveis animais de caça e de aves variadas. Os bizantinos reproduziam as tradições e o estilo de vida romanos, mas incorpo- raram inovações à mesa, como o uso de garfo, que foi inventado por eles. A elite bizantina consumia os alimentos caros e refinados vindos de longe, e para amenizar a vida dos pobres, construíram inúmeros asilos e hospitais, tornando a alimentação e a medicina, assuntos afins. Consumiam vinho sempre diluído em água, e nunca a cerveja, pois a con- sideravam bebida dos bárbaros (FRANCO, 2010). Utilizavam mel, uma vez que o açúcar era muito raro, de difícil aquisição até para os social e economicamente poderosos e era utilizado sobretudo pela medicina. Utiliza- vam cebola, alho, alho-poró, salsa, hortelã e coentro. Consumiam principalmente porco e cordeiro, já que os bois eram poupados para o trabalho agrícola, sendo as carnes sempre assadas e os peixes fritos (FLANDRIN, 1998). Neste período da história registraram-se importantes mudanças na cozinha, com destaque para o desenvolvimento dos processos de cocção, como podemos observar na descrição feita por Franco (2006, p. 71): Havia grandes lareiras em frente às quais giravam os espetos para assar as carnes e onde eram pendurados caldeirões para cozinhar sopas e legumes. Os espetos giravam movidos à mão, por engrenagem mecânica ou por um cachorro fechado em uma jaula circular giratória. Nessas cozinhas, o fogo era mantido aceso constantemente, pois não existia meio de ignição fácil e imediata. Não se utilizava o forno, tão importante na antiguidade, e como não havia nas grandes lareiras possibilidade de controlar o calor para uma cocção lenta, não se podiam preparar guisados e carnes em molhos, muito aprecia- dos mais tarde. Somente no final do século XIII se redescobriu a arte dos guisados e molhos e se recomeçou a utilizar o forno. Paralelamente, foram se aperfeiçoando técnicas culinárias e utensílios. Além do forno, a arquitetura incorporou às cozinhas mesas para a preparação e arranjo dos pratos antes de serem servidos. Em algumas casas, havia dois fogões: um que mantinha fogo intenso, e outro, com fogo baixo para cocção mais lenta. 48UNIDADE I O Início da História da Alimentação 48UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais FIGURA 2: COZINHA NA IDADE MÉDIA Fonte: disponível em :http://navegandonahistoria.blogspot.com/2010/08/ gastronomia-francesa-da-idade-media-as.html Acesso em: 09 ago. 2021 A cozinha ostentava muito mais luxo quanto aos ingredientes que a própria sa- bedoria em prepará-los, os mesmos eram sobrepostos, com a ausência de cuidado nas combinações. O que de fato importava era a apresentação dos alimentos e a forma de preparo acabava ficando em segundo plano. Diversos fatores contribuíram para a derrocada de Constantinopla, em 1453, quando foi tomada pelos turcos, como a invasão normanda no sul da Itália, concessões econômicas feitas a, Gênova, Pisa e Veneza, que acabou dominando o comércio com o Oriente, as cruzadas e a peste negra, que matou dois terços de sua população (GONÇALVES, 2004). 1.2 O Sistema Feudal O sistema feudal, com suas características sociais, econômicas e políticas, formou- -se lentamente como resultado da integração entre os romanos e os germânicos entre os séculos V e X, em toda a Europa, mas principalmente onde hoje se encontra a França. O bispo Eadmer de Canterbury, transmitindo os ensinamentos de Santo Anselmo, no século XI resume de maneira precisa, o pensamento da sociedade sociedade feudal: http://navegandonahistoria.blogspot.com/2010/08/gastronomia-francesa-da-idade-media-as.html http://navegandonahistoria.blogspot.com/2010/08/gastronomia-francesa-da-idade-media-as.html 49UNIDADE I O Início da História da Alimentação 49UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais A razão de ser dos carneiros é fornecer leite e lã; a dos bois é lavrar a terra e a dos cães é defender os carneiros e os bois dos ataques dos lobos. Se cada uma destas espécies de animais cumprir sua missão, Deus protegê-la-á. Desse modo, fez ordens, que instituiu em vista das diversas missões a reali- zar neste mundo. Instituiu uns - os clérigos e os monges - para que rezassem pelos outros e cheios de doçura como as ovelhas, sobre eles derramassem o leite da pregação e com a lã dos bons exemplos lhes inspirasse um ardente amor de Deus. Instituiu os camponeses para que eles - como fazem os bois com seu trabalho - asseguram a sua própria subsistência e a dos outros. A outros, por fim, os guerreiros, instituiu-os para que mostrassem a força na medida do necessário e para que defendem dos inimigos, semelhantes a lobos, os que oram e os que cultivam a terra. (NASCIMENTO, 1992) A fase final do Império Romano foi marcada por uma grande crise econômica nos centros urbanos, onde os comerciantes prejudicados pelo constante aumento dos impos- tos, passaram a adquirir grandes propriedades rurais, que passaram a ser auto-suficientes, dando origem aos feudos medievais. Os mais pobres procuravam a proteção dos grandes senhores feudais e em troca, entregavam parte da produção realizada nas terras cedidas pelo senhor feudal. Com o tempo, os proprietários dos feudos perceberam que deveriam dar liberdade aos escravos, transformando-os em novos colonos; assim o sistema escravagista começou a desaparecer dando lugar ao uso da mão-de-obra dos servos (MICELI, 1994) As invasões bárbaras influenciaram profundamente a formação da sociedade feudal, quando o comitatus , sistema de compromissos entre o chefe guerreiro e seus comandados, daria origem ao sistema de suserania e vassalagem(REZENDE, 1995) De acordo com Miceli (1994), feudo era uma unidade básica autônoma, produzindo quase tudo o que precisava para sua subsistência, assim o comércio e a moeda eram quase inexistentes. Nele existia o castelo, onde morava o senhor feudal e sua família; a vila ou aldeia, onde moravam os servos; e as terras onde trabalhavam. O manso senhorial ou reserva era exclusivo para a produção de alimentos para o senhor feudal; já o manso servil era arrendado ao servo em troca de obrigações em relação ao senhor do feudo. Já os campos e os bosques do feudo eram propriedade coletiva, assim, os servos podiam retirar desses espaços matérias-primas para sua subsistência e alimentação para o seu gado. O dono das terras tinha poder total dentro do seu domínio e, embora os reis continuassem a existir, seu poder limitava-se a promulgar decretos administrativos. A residência dos mais pobres continha um único cômodo, na qual se realizava tudo. O lar era praticamente frio, poissuas paredes eram feitas de barro e gravetos, sendo o fogão um meio utilizado para aquecer e as pessoas acabavam dormindo no mesmo cômodo para ficarem mais quentes (DURANT, 1950). Com relação aos hábitos alimentares, podemos perceber que, em função das diferenças regionais, era grande a variedade, todavia, praticamente a Europa Medieval 50UNIDADE I O Início da História da Alimentação 50UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais consumia os mesmos alimentos e bebidas. Também havia diferenças de cardápio para suseranos, clero e vassalos. Os senhores de terras consumiam praticamente tudo, já que recebiam a colheita dos seus camponeses, porém, na prática, por questão cultural, o car- dápio era pouco variado. A aristocracia consumia muito mais carne assada que verduras e legumes, haja vista serem considerados alimentos pouco refinados aos padrões da nobreza e, se utilizava muitos temperos para o preparo dessas carnes. As frutas eram cortadas do consumo, como se pode notar: As listas de compras revelam uma preferência por carnes finas (galinha, fran- go, capão e ganso), seguidas de carne de carneiro, de porco (fresca ou sal- gada) e de cordeiro. Essas carnes eram bem temperadas com especiarias (pimenta) e condimentos menos tóxicos (cebola e alho) [...] Depois da carne, pão e vinho, essenciais para a alimentação da nobreza, vêm os ovos e o queijo, combinados com a carne nos dias normais ou alternados com peixes no dia de penitência (RIERA-MELIS, 2015, p. 395). Para os camponeses e servos a alimentação era baseada em cereais, preparados como mingaus e papas. O acompanhamento da comida dos camponeses era aquilo que não era considerado nobre pelos aristocratas, ou seja, os legumes e vegetais; já o consumo de carne era muito raro. Criavam também alguns animais, como galinhas, patos e ovelhas, todos em pequenas quantidades, apenas um ou dois, e esses animais só eram consumidos em datas comemorativas como “uma festa alimentar: a matança do porco, em dezembro” (LE GOFF, 1995, p. 122). Alguns deles possuíam bois, mas eram utilizados para trabalhos agrícolas. Em compensação esses animais só eram consumidos quando esgotava a sua capacidade de produção (RIERA-MELIS, 2015). Muitos senhores feudais, como diversão, caçavam, faziam banquetes aos seus vassalos e realizavam torneios. Havia jogos como xadrez, baralho e jogos de azar. Aos cam- poneses restavam jogos ao ar livre como competições esportivas (FRANCO, 2010). Os mais pobres também se divertiam em torneios e julgamento em combate, onde eram distribuídos alimentos à multidão. Também havia procissões religiosas, desfiles militares sempre cheios de decoração como imagens de santos, cavaleiros e mercadores (DURANT, 1950). Segundo Miceli (1994), também havia festas em datas comemorativas como a páscoa, festas juninas e festas de São Miguel. Essas comemorações serviam como uma válvula de escape já que eram considerados dias de farturas, com muitas comidas, bebi- das e jogos. A mais importante era a antiga comemoração pagã no dia 25 de dezembro, caracterizada pelo solstício de inverno, que fora incorporada pelo catolicismo como o dia de nascimento de Jesus. 51UNIDADE I O Início da História da Alimentação 51UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais 1.2.1 Nobres A aristocracia dominante era formada pelos senhores feudais, também chamados de nobres. Viviam guerreando e eram detentores da posse da terra, pelo direito da primo- genitura. Apesar da desigualdade de fortuna entre seus membros, todos partilhavam, em determinados períodos, do mesmo estilo de vida, o de combatentes de ofício e de uma mentalidade peculiar que estimava o vigor físico, o gosto pelas proezas desportivas na guerra ou nas atividades violentas como a caça de animais de grande porte ou os torneios entre dois grupos de cavaleiros (MICELI, 1994) O homem que doava o feudo era um senhor ou suserano, e aquele que recebia era um vassalo, quer fosse um cavaleiro, duque ou conde. O rei era o mais alto suserano, depois vinham os grandes nobres (duques e condes) que subdividiam seus feudos aos nobres inferiores como os viscondes e os barões. No degrau mais baixo da escala ficavam os cavaleiros que não podiam dividir seus feudos. O vassalo jurava prestar serviço militar, hospedagem, contribuir para dote e arma- ção dos filhos do suserano em troca da proteção militar, justiça, garantia de posse sobre o feudo doado, tutoria sobre os herdeiros e viúva do vassalo morto, por parte do suserano (REZENDE, 1995). Os senhores alimentavam-se dos melhores tipos de carne, que assavam no espeto, como porco, cabrito e veado. Alimentavam-se ainda de ovos e peixes. Para comer sopa usavam malgas que se chamavam tigelas se fossem de barro e escudelas se fossem de ma- deira ou de prata. A carne e o peixe eram servidos sobre fatias de pão que mais tarde foram substituídas por pequenas tábuas. Já conheciam as facas e as colheres, mas os garfos não. Uma das representações típicas da nobreza medieval era o momento do banquete. Na mesa cheia de comida, diversas qualidades de carnes assadas significavam a refeição preferida dos nobres e dos mais fortes que julgavam uma autêntica fraqueza a abstenção voluntária. Esses banquetes eram organizados com carnes brancas ou vermelhas (galinhas, frangos, gansos, perus, porcos, bezerros)e carnes de caça como: faisões, patos, veados e javalis, que eram acompanhados por pão, ovos cozidos e queijos variados. As verduras e os legumes eram colocados marginalmente nas mesas dos ricos, de fato os médicos não aconselhavam muito estas refeições dos pobres, consideradas na época poucos digeríveis para os estômagos dos poderosos. 52UNIDADE I O Início da História da Alimentação 52UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais 1.2.2 Clero A ideia da privação da comida estava na base da concepção de vida religiosa dos tempos medievais. Se a abundância de comida era o símbolo da nobreza, o jejum torna-se sinônimo de espiritualidade. Na cultura medieval, o corpo impede a elevação para Deus, segurando os homens aos desejos. A carne era o primeiro alimento que precisava ser afastado, porque interpretava melhor a força e a potência dos guerreiros e das guerras (NASCIMENTO, 1992). Comer para os monges significava um momento de convívio entre todos. O almoço, rigorosamente ao meio-dia, era composto por legumes e sopa de verduras, para além de um terceiro prato, um rodízio em dias alternados composto por ovos, peixes e queijos. Vinho e pão nunca faltavam. O jantar era baseado nos restos do almoço juntamente com a fruta da época. A carne, afastada desde o século X e substituída por peixe, ovos, legumes e queijos, tende a comparecer na metade do século XI, quando a presença de nobres entre os religiosos foi mais forte (LAURIOUX, 1989). Nos numerosos dias de festas do século XI, a carne, especialmente o porco, es- tava presente nas refeições dos conventos e cozinhada de várias maneiras. Após o ano 1100 os trabalhos religiosos começaram a multiplicar-se, o património estava sempre a crescer graças às frequentes doações da Nobreza. Isto levou os monges a se distanciar da moderação das refeições, dando espaço à abundância e à grande variedade de comida. As cozinhas, cada vez maiores, eram um lugar de prosperidade, de felicidade e de prazer (RIERA-MELIS, 2015). O clero tinha uma posição de domínio na sociedade feudal porque a cultura teocêntri- ca vigente era caracterizada por uma visão do homem voltado para Deus e para a vida após a morte. A Igreja Medieval tornou-se a maior proprietária de terras nesse período devido à grande influência moral e econômica que exercia sobre a população (NASCIMENTO, 1992). 1.2.3 Servos A maior parte da população da Idade Média era formada por servos que não tinham a propriedade da terra; eram como trabalhadores semilivres, pois apesar de não serem vendidos como escravos, também não tinham liberdadepara abandonar o feudo onde trabalhavam e moravam. Trabalhavam de dois a três dias no manso senhorial (obrigação chamada corvéia) e ainda cediam uma parte do que produziam no manso servil (obrigação chamada talha); além disso pagavam impostos diversos, faziam serviço de manutenção no castelo feudal, protegiam o manso senhorial e pagavam para utilizar o moinho de trigo (MICELI, 1994). 53UNIDADE I O Início da História da Alimentação 53UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais 1.3 Os Mosteiros A vida monástica foi considerada desde os primórdios do Cristianismo no Oriente como uma forma de excelência da vida religiosa. Constituía-se como uma prática fundamen- tal do comportamento religioso e, por essa razão, não nos surpreende verificar a existência de semelhanças entre o monaquismo cristão e de outras religiões não cristãs. Todos os mosteiros possuíam bens, tendo grandes fortunas e riquezas. Já os conventos eram pobres e os seus religiosos solicitavam esmola, sendo, chamados de men- dicantes. A própria ideia de convento provém do conceito de comunidade, porque se vivem em comum, ao contrário do mosteiro que exprime a solidão, não uma solidão individual, mas a da comunidade afastada do convívio ou da proximidade dos centros urbanos. Por isso, os antigos mosteiros eram edificados longe dos aglomerados urbanos, e os monges dividiam o seu tempo entre a contemplação e o trabalho, visto que muitos conventos se fundaram perto e dentro das povoações, porque o instituto dos seus fundadores tinha em mente a pregação. Em termos organizacionais de espaço, o complexo monástico apresenta-se como um conjunto de edificações destinadas a satisfazer necessidades dos diferentes membros da comunidade, entre as quais as relacionadas com a alimentação, sua confecção e as estruturas de apoio ao armazenamento de alimentos. FIGURA 3: ESPAÇOS DOS MOSTEIROS Fonte: disponível em: http://cicmachadomghistoriadores.blogspot.com/2012/06/ o-espaco-dos-Mosteiros.html. Acesso em: 27 jul. 2021. 54UNIDADE I O Início da História da Alimentação 54UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais Os mosteiros possuíam mais do que o simbolismo religioso, forneciam alimentos à população e ainda um sistema de hospitalidade. Franco (2006, p. 65) descreve da seguinte forma: Os mosteiros eram mais do que meros centros de contemplação, pois os monges desdobravam florestas e tornavam produtivas áreas não cultivadas. Funcionavam também como armazéns de alimentos para as populações ao seu redor e abrigo para viajantes e peregrinos, oferecendo-lhes teto e boa mesa. A hospitalidade, [...] reforçava o papel dos mosteiros como fonte de transmissão de tradição culinária. Em todas as abadias havia monges encar- regados de acolher e dar assistência aos hóspedes e peregrinos. Esses religiosos ainda ampliaram a jardinagem, exploraram minas de sal, prati- caram a pecuária, desfrutaram o couro, aperfeiçoaram a conservação de alimentos e nas feiras comercializavam suas mercadorias, como carnes salgadas e especiarias. Ainda durante a Idade Média, mesmo período que compreendia uma sociedade estamental, composta por senhores feudais e servos no qual a Igreja era prestigiosíssima, foram os monges que, com a sabedoria herdada dos romanos, cultivaram uva, maçã e malte para o vinho, a cidra e a cerveja, concomitantemente. As tradições gastronômicas dos mosteiros tratavam-se também dos conhecimentos básicos da cozinha romana re- passada aos monges. Nos mosteiros ainda eram produzidos pães, e também exerciam a pesca no Ocea- no Atlântico, especialmente o arenque, que era salgado e vendido. Além disso, não era raro encontrar viveiros de peixes nos mosteiros e em castelos da nobreza. Na Idade Média o peixe se tornou um alimento amplamente consumido devido ao fato de, além de ter um valor acessível, ser um alimento popular na dieta dos cristãos, que não consumiam carne em diversas datas especiais no passar do ano (FLANDRIN, 1998). Segundo Saramago & Cardoso (2000) ao longo do tempo, os mosteiros desenvol- veram vários espaços para a produção das refeições devido ao grande volume de pessoas que entravam nas ordens religiosas. Em alguns edifícios monásticos, esses espaços eram totalmente independentes, para poderem produzir e comida em quantidade suficiente para as pessoas que aí residiam ou se encontravam de passagem. E foram nos conventos que nasceu a arte da doceria, sendo assim são considerados os pioneiros na arte e ciência da doçaria conventual, tanto a nível nacional como internacional. Estas casas monásticas, como grandes centros gastronômicos, ganharam popula- ridade quando as práticas religiosas começaram-se a interligar com as práticas culinárias. Os doces começaram a fazer parte do quotidiano conventual principalmente em Portugal e constituíam uma forma elegante de aproximação entre o convento e a sociedade exterior. Com os doces, as freiras agradeciam e retribuíam atenções recebidas, mas não eram uma 55UNIDADE I O Início da História da Alimentação 55UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais fonte de receita para a comunidade.A maioria dos doces conventuais resultava de uma produção aprimorada, onde o açúcar, os ovos, o mel e a amêndoa raramente faltavam, apenas variando a quantidade e a forma de os confecionar. (BRAGA, 2007). Transformar o ato de comer grandes iguarias em sacrifício sagrado oferecido a Deus era prova de legítimo poder. (SARAMAGO & CARDOSO, 2000, p. 28) Cascudo (1983) lembra que dentro dos conventos portugueses a maioria das frei- ras preparava doces sussurrando nomes que eram confissões de pecado, apelos, críticas, murmúrios: Bolinhos de amor, esquecidos, melindres, paciências, raivas, sonhos, beijos, suspiros, abraços, caladinhos, saudades. E os que traziam aromas de cela mística de freira letrada: beijos de freira, fatias-de-freira, creme-da-abadessa, toucinho do céu, cabelos-de-virgem, papos-de-anjo celestes, queijinho-de- -hóstia. Satíricos: barriga de-freira, conselheiros, velhotes, orelhas-de-abade, galhofas, lérias, casadinhos, viúvas, jesuítas, arrufadas, sopapos. (CASCU- DO, 1983, p. 303). A utilização do leite foi bastante reduzida ao longo da Idade Média. Possivelmente há quem considere que terá sido nos mosteiros (desde das suas origens) onde a acu- mulação de leite e a impossibilidade de o fazer circular criou a necessidade de descobrir maneiras de o aproveitar antes que se estragasse, dando origem ao queijo. Os leites mais utilizados no período medieval foram os de ovelha e cabra, que eram sempre os escolhidos para a produção dos queijos, mas no século XV também já se utilizava para o leite de vaca. Os ovos eram muito consumidos e preparados das formas mais variadas e servidos com generosidade, porém, muitas vezes a produção interna do mosteiro não era suficiente e era necessário comprá-los fora do mosteiro (GONÇALVES, 2017). A produção apícola explorada pelas ordens religiosas contribuiu para a valorização do mel que seria de grande utilidade no receituário de doces e em outros pratos requinta- dos. Considerado como um adoçante e o único de fácil acesso durante a Idade Média, era também considerado como uma das raras substâncias utilizadas pela medicina medieval. As compilações de receitas culinárias não esperaram a invenção da imprensa, pois apareceram em diferentes países da Europa em forma de manuscritos, desde o início do século XIV e talvez até o fim do século XVIII. Durante quase toda a Idade Média, pouco se escreveu sobre a evolução da gastronomia e os prazeres da mesa. Somente no século XIV é que surgiu uma obra simples e reduzida, chamada Le Ménagier de Paris, que reunia tudo o que havia de bom-comer naquela época. (LEAL, 1998, p. 34). 56UNIDADE I O Início da História da Alimentação 56UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais FIGURA 4: LE MÉNAGIER DE PARIS (PRIMEIRO LIVRO DE COZINHA BURGUESA) Fonte: disponível em:https://icavalieridellatavolaimbandita.files.wordpress.com/2014/04/ le-Mecc81nagier-de-paris.jpeg. Acesso em: 27 jul. 2021. Flandrin e Montanari (1998) consideram que outro tipo de obra se multiplicou no século XVI, como as “compilações de segredos”. Algumas obras enunciavam dupla especificidade – cosmética e receitas doces – destinando-se às damas. Vale lembrar que nesta época, na França e na Itália, a cozinha era uma atividade servil, enquanto que os cuidados com a beleza e a feitura de doces eram dignos do interesse das “damas” e “senhoritas” das elites sociais. 1.4 A trilogia do pão, vinho e azeite Em primeiro lugar devemos destruir o preconceito de que a Idade Média foi o pe- ríodo das trevas e que a alimentação era algo horrível, podre e gorduroso, ideia essa que nos foi deixada pelos historiadores do séc. XIX durante a época vitoriana. O que devemos considerar é que o paladar medieval era bem diferente do nosso. Na Idade Média surgiram muitas inovações, principalmente após o século XI, onde a criação de um sistema agro-pecuário mais eficaz e generalizado que o dos romanos (alguns especialistas dizem que não) e a integração deste num sistema global de crenças religiosas trouxe prosperidade (FLANDRIN, 1998). 57UNIDADE I O Início da História da Alimentação 57UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais A maior parte da alimentação medieval era baseada em alimentos frescos, colhidos para o propósito. Assim, a Primavera e o Verão eram as estações do ano mais esperadas porque traziam consigo a qualidade e a quantidade que as outras duas estações não tinham. Os alimentos quando não consumidos frescos eram conservados através do fumeiro, da salga, do vinagre, da cristalização, secos ao sol, cozinhados em pastas, marmeladas e do- ces, colocados em mostarda e outras especiarias, em azeite; incluindo a fruta, os legumes, a carne, o peixe, os produtos lácteos, os ovos, as nozes. Estas técnicas foram desenvolvidas e usadas para garantir uma alimentação ao longo do ano e para dias de maior fome. Na Idade Média havia uma preocupação constante por parte da Igreja em simbolizar o quotidiano e, por conseguinte, a alimentação também. Temos então, três alimentos que representavam para a religião cristã o símbolo perfeito da Santíssima Trindade: pão, vinho e azeite. Se contar o consumo da carne de porco, uma vez que os cristãos são os únicos que a consomem (GARCIA, 1999) 1.4.1 O Pão O mais importante elemento alimentar da Santíssima Trindade, era simplesmente feito a partir da fermentação natural da água com a farinha e à qual se vai acrescentando progressivamente mais água e mais farinha até se chegar à quantidade de massa desejada. É o denominado pão ázimo, uma vez que o fermento só foi inventado em 1663 (JACOB, 2003). FIGURA 5: FORNEIRO NA IDADE MÉDIA Fonte: disponível em: http://3.bp.blogspot.com/-NHy84rtIje4/TxCGaL_FbuI/AAAAAAAAFS0/ COOdKiW82es/s1600/Idade+Media-+padeiros.jpg. Acesso em: 27 jul. 2021. 58UNIDADE I O Início da História da Alimentação 58UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais Profissões como o padeiro, o moleiro e o forneiro eram profissões altamente valo- rizadas na sociedade medieval, mas seus instrumentos de trabalho, tais como os campos, os moinhos e os fornos eram taxados pela sua utilização e pertenciam quase sempre a um Senhor. Fazia-se pão em casa, no castelo, nas vilas, aldeias e cidades, nas tabernas e nos mosteiros, com técnicas variadas mas sempre sem sal, pois era um produto extre- mamente caro. Eram feitos nas cinzas, no forno, numa forma de barro, envolto em folhas de couve, assado no espeto, etc. Mas o mais comum era a bucha, uma bola achatada na base. Contudo, todos levavam uma marca para que pudesse ser reconhecido; era benzido, nunca tocava diretamente à mesa, estando sempre envolto num pano, pois representavam o corpo de Cristo (GARCIA, 1999). Na Península Ibérica, o trigo prosperava devido ao clima ameno, mas em regiões mais frias, como o Norte da Europa, o cultivo era feito à base da cevada e do centeio e mesmo do sorgo. 1.4.2 O Vinho Durante a Idade Média a água transmitia doenças, podendo inclusive causar morte se usada com frequência na higiene pessoal, por exemplo, ou na lavagem dos pratos, que para isso eram limpos com areia. Por isso, o Homem “inventou” outros meios para saciar a sua sede (LAURIOUX, 1989). Sendo o segundo elemento da Santíssima Trindade, o vinho representava o sangue de Cristo. O vinho era a bebida-rei, tal como o pão era o alimento-rei e não faltavam nem para os mais pobres. Eram consumidos diluídos com água (meados ou terçados) e mesmo com as invasões bárbaras, depois da queda do Império Romano, a viticultura foi mantida e até desenvolvida, principalmente pelos mosteiros; a sua tecnologia quase se manteve inalterada até ao século XIX (GARCIA, 1999). 1.4.3 O Azeite O azeite é o último dos elementos da Santíssima Trindade, com o qual se unge aqueles que mais o merecem, representando a presença do Espírito Santo para afastar os demônios. A sua extracção dependia, obviamente, do cultivo da oliveira, que é uma árvore que só subsiste em solos de clima quente, e a sua exportação implicava uma perda da sua qualidade, chegando a países mais longe que a França de maneira rançosa, incolor e excessivamente caro (GARCIA, 1999). 59UNIDADE I O Início da História da Alimentação 59UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais O azeite era, principalmente, usado para a iluminação e só aqueles com mais posses o podiam comprar regularmente para uso na culinária. A banha de porco era a gordura mais usada na preparação dos alimentos, pois era acessível a todos. Por motivos financeiros, climatéricos e de acesso à produção que no Norte da Europa era a manteiga a que era mais usada, tal como a banha, deixando de fora o azeite e a sua importância simbó- lica. Assim, somente o pão tinha igual importância religiosa por toda a Europa. Mesmo que o vinho fosse de igual simbolismo, não era produzido no Norte e, por conseguinte, pouco consumido (FLANDRIN, 1989). 1.5 As Cruzadas Durante a Baixa Idade Média houve a diminuição das guerras feudais e as invasões de povos à Europa. Mas houve também a criação de novas técnicas, como o surgimento dos moinhos de vento e de água, a rotação trienal dos campos, o arroteamento de terras (drenagens de pântanos e derrubada de florestas para novas áreas agrícolas) e o incre- mento da metalurgia, graças ao início das Cruzadas). As cruzadas foram uma consequência da grande instabilidade política e econômica da Baixa Idade Média, que indo em direção ao Oriente Próximo, dinamizaram os contatos entre os povos. Ocorrido entre os séculos XI e XIII, o Movimento Cruzadista aglutinou todas as forças europeias contra um inimigo comum, os muçulmanos, chamados de infiéis pela Igreja Católica. As Cruzadas pareciam a solução para a crise surgida do crescimento demográfico, tornando-se, na verdade, responsável por transformar ainda mais a sociedade feudal. Grande parte das especiarias ditas anteriormente decorreram do choque causado devido às Cruzadas europeias ao Oriente, que também proporcionaram o deslocamento de açúcar e trigo sarraceno, que alavancou um grande comércio no Oriente Médio, e o aparecimento dos molhos feitos com condimentos, açúcar (sukkar) e pimenta. Essas Cruzadas eram expedições militares e religiosas organizadas para ocupar Jerusalém, a terra onde Jesus viveu e que estava em poder dos mul- çumanos, os seguidores da religião do profeta Maomé. (LEAL, 1998, p. 31). As Cruzadas acabaram sendo um movimento que serviu de ponte para um intercâm- bio culinário entre Império Romano do Oriente e Oriente Médio, enriquecendo fortemente a gastronomia europeia. Podemos notar essa contribuição ainda nos dias atuais. Conforme Leal (1998), no século XIII resgatou-se a utilização dos guisados, que tinham ficado esquecidos com a chegada de amplas lareiras no início da IdadeMédia, os molhos passaram a ter utilidades mais relevantes, feitos com pimenta e açúcar, “o Salsicha, vinagre, mostarda, caldeirada de lebre, feijão com carneiro, alcachofra e caldeirada de peixes de água doce que antes eram apenas assados na brasa”, esses são exemplos de alimentos preparados naquela época (LEAL, 1998, p. 33) são exemplos de alimentos desta época. 60UNIDADE I O Início da História da Alimentação 60UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais 1.6 O Oriente Entre os povos do Oriente, durante o mesmo período, os ricos apreciavam sempre carneiros, tâmaras, berinjelas, iogurtes, sorvetes e melões. O vinho, ficando coibido pelo Islamismo, fez com que os orientais bebessem muito café doce e forte, o ‘Vinho do Islã’, como se tornou popularmente conhecido. Os orientais da Idade Média usavam o vinagre para preparar conservas, prin- cipalmente de pepino, pimentão, cebola e aspargos. Faziam geleias de pé- talas de rosas, de violetas e de frutas, como também os doces e bolos com amêndoas e mel. (LEAL, 1998, p. 33). No século XIII os chineses já preparavam massas à base de farinha de trigo ou soja, raiz dos atuais talharins e espaguetes, feitas em tiras e temperadas com gordura de peixe. Marco Polo, importante explorador veneziano que viajava em busca de descobertas, traria essa massa para a Itália, que mais tarde se tornou o prato símbolo do país. Assim como o macarrão, o arroz também foi trazido da Ásia para toda a Europa e depois distribuído para todo o mundo 1.7 Boas maneiras Medievais No período da Baixa Idade Média, já em seus finais no século XV, quando a divisão entre classes sociais já estava evidente, a invenção das “boas maneiras”, na corte e na cidade, contribui para determinar culturalmente os domínios do privilégio. As maneiras “corteses” e “urbanas” têm a função de rejeitar o “plebeu”, abrangendo outros elementos que também distinguem uns dos outros, ou seja, o comportamento camponês, os modos de arrumar a mesa, os aparatos e a arte gastronômica, são portadores de um “discurso”. Flandrin e Montanari (1998) destacam que o comportamento à mesa é regido por uma dupla preocupação: trata-se ao mesmo tempo de controlar e conter os gestos, os movimentos do corpo e de zelar pelos movimentos do espírito e guiá-los, com o objetivo ético e social que as circunstâncias exigem. O fio condutor da história das boas maneiras à mesa é o abandono da promiscui- dade e da exibição de comportamentos grosseiros. No século XVI, segundo Flandrin e Montanari (1998) nos famosos manuais e algumas obras de Erasmo, tal como o tratado De civilitate morum puerilium, sobre a educação e civilidade dos costumes das crianças, entre outros textos mais específicos e locais dirigidos aos jovens oficiais, notam-se formulações e proibições como: “Não assoes na toalha, não cuspas no prato, não reponha no prato ossos roídos ou alimentos que já foram à boca”. (FLANDRIN; MONTANARI, 1998, p. 501) 61UNIDADE I O Início da História da Alimentação 61UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais FIGURA 6: A MESA MEDIEVAL Fonte: disponivel em: http://reflexoeshumanistas.blogspot.com/2013/05/ idade-media-europeia-Historico.html. Acesso em: 27 jul. 2021. Flandrin e Montanari (1998) destacam que é no século XIII que surgem, por toda a Europa, conjuntos de regras relativas à vida social. Os mesmos autores indicam que as re- gras implicavam na capacidade de controlar os movimentos do espírito e sua exteriorização, ou seja, gestos e palavras. Sendo assim, não se deveria falar com a boca cheia, nem fazer perguntas a um conviva quando o mesmo estivesse bebendo, não se deveria perturbar a reunião com ruídos desagradáveis ou com tagarelices constantes e inoportunas: Os manuais de civilidade da passagem das sociedades feudais para as so- ciedades de corte nos dão notícias das origens da instauração de uma cente- na de pequenas regras de controle, hoje muito difundidas na cultura que mal damos conta de sua existência... Tudo o que hoje nos parece óbvio, regulado por sentimentos de pudor, nojo e vergonha que acreditamos muito “naturais”, foi incutido no comportamento ocidental ao longo dos séculos de trabalho civilizador. (NOVAES et al., 2003, p. 253 e 254). Flandrin e Montanari (1998) observam ainda que no século XVI o respeito pela sen- sibilidade do outro, o desprezo pelos gestos e atitudes que ofendam o sentimento estético, a preocupação com a higiene e a saúde aparecem constantemente. Nesta mesma ordem de ideias, há prescrições que visam garantir os “modos elegantes” de se portar à mesa: nem torto, nem apoiado, nem com as pernas cruzadas, nem com os braços sobre a mesa. Outras recomendações visam à limpeza pessoal e o desprezo por comportamentos desa- gradáveis, como por exemplo: “se enfias os dedos na boca para esgaravatar os dentes, não és um bom companheiro de prato”. (FLANDRIN; MONTANARI, 1998, p. 506). 62UNIDADE I O Início da História da Alimentação 62UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais A atenção respeitosa para com os convivas e destes para com seu anfitrião é de- monstrada muitas vezes e em diversas circunstâncias: [...] implica a exigência de oferecer os melhores pedaços, “quando lo to bom amigo mangia a la toa mensa” („quando teu grande amigo come à tua mesa‟), de não criticar os pratos servidos dizendo: „quest é mal cogio‟ („isto está mal cozido‟) ou „quest ´mal salão‟ („isto não está bom de sal‟) e de não fazer alarde, mas ao contrário, esconder „mosca o qualk sozura‟ („uma mosca ou uma sujeira‟) que eventualmente se encontre na comida. O self control chega a ponto de dissimular eventuais mal estares ou dores físicas:‟no demonstrar la pena‟ não apoquentes os que comem contigo: „no fai reo cor a quii ke man- gian teg insema‟. Por fim, a delicadeza extrema, deve-se esforçar para comer tanto quanto o hóspede, para que ele se sinta à vontade e não pare de comer antes de estar satisfeito. (FLANDRIN; MONTANARI, 1998, p. 506). Em 1453, quando os turcos invadiram a região de Constantinopla, começaram a se estabelecer os primeiros países que hoje formam o continente europeu, dentre eles: Portugal, Espanha, Inglaterra e França. Esse foi o marco do final da Idade Média, com a queda do Império Romano do Oriente. 63UNIDADE I O Início da História da Alimentação 63UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais 2. IDADE MODERNA “A Idade Moderna é o período da história posterior à Idade Média. Ela tem início no século XV, com a queda do Império Romano do Oriente, e vai até o século XVIII, quando ocorreu a Revolução Francesa, em 1789” (LEAL, 1998, p. 35). A Idade Moderna foi marcada pela era das inovações, a pólvora, a bússola e a prensa tipográfica são exemplos dessas novidades do século XV. Essas e outras inovações também refletiram na cultura culinária europeia. A prensa tipográfica permitiu ampla publicação de livros de culinária, de ma- nuais com conselhos alimentares e até livros de filosofia gastronômica. A combinação entre viagens, as oceânicas viabilizadas pela bússola e inten- sa força mortal possibilitada pela pólvora moldou a ascensão dos primeiros impérios europeus modernos ao redor do globo. Essa expansão do poder político, militar e econômico europeu também levou os europeus a conhecer vários novos alimentos e influências culinárias do exterior. Ao mesmo tempo, cada estado, nação que forjou esses impérios, desenvolvia forte consciência de identidade nacional, cada vez mais compreendida como distinção entre culinárias nacionais. (FREEDMAN, 2009, p. 197). Devido a tantas inovações, esse período recebeu o nome de Renascença, momen- to de anseio pelo novo; uma nova atitude em relação à vida, e isso fica evidente na arte e na mesa, uma ruptura com os padrões gastronômicas medievais, tanto na forma de comer como nas técnicas de preparo. As especiarias eram temperos extremamente apreciados pelos europeus, tanto pelo sabor que aplicavam aos alimentos,como para conservá-los melhor, e por mais tempo. Algumas especiarias ainda eram vendidas como remédio, por acreditarem que possuíam 64UNIDADE I O Início da História da Alimentação 64UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais propriedades medicinais. Nesse mesmo período da história, as especiarias se tornaram ainda mais caras e difíceis de se obter. Logo que “os turcos haviam tomado a cidade de Constantinopla, capital do Império Romano do Oriente, passaram a dominar o comércio no Mar Mediterrâneo. Com isso, eles impuseram altas taxas sobre as mercadorias que a Europa comprava no Oriente” (LEAL, 1998, p. 37). Foi durante a Idade Moderna que a utilidade dos talheres se propagou. Facas e colheres são utensílios que o homem utiliza desde a Pré-História, porém o garfo só passou a existir posteriormente e com o intuito de ater os alimentos e não os levar à boca. Os talheres eram vistos como objetos de uso pessoal e cada um tinha o seu próprio estojo, que era levado no bolso até a casa do anfitrião. O garfo só surgiu no século XV, na Itália, em função de uma profunda renovação da culinária italiana ocorrida sob influência ibérica. Nessa fase surgiu também a utilização das “pastas” (massas) como o espaguete. Muitos anos depois o uso do garfo foi se espalhando pelos países vizinhos chegando a toda a Europa Medieval. Nessa época (1533), a nobre italiana Catarina de Médicis casou-se com o futuro rei francês Henrique II e trouxe consigo seus renomados cozinheiros e confeiteiros para atuarem na cozinha real, introduzindo assim alguns novos elementos à culinária francesa, que já estava ficando bastante desenvolvida. Com as altas taxas impostas pelos turcos que dominavam Constantinopla, o lucro dos comerciantes ruiu e foi preciso buscar outras alternativas, traçaram então novas rotas marítimas, passando pelo Oceano Atlântico, ao redor da África, para chegar até o Oriente; processo que deu origem à era das Grandes Navegações, entre os séculos XV e XVI. Como pioneiros desse processo destacam-se os portugueses e depois os espanhóis. As rotas marítimas trouxeram grandes resultados para todo o mundo, inclusive para a gastronomia. Importantes modificações na alimentação foram trazidas, também, por intermédio da Reforma protestante, pois através da desarticulação de uma regulamentação ecle- siástica, que constituía forte influência na alimentação europeia durante a Idade Média, estimulou a abertura das cozinhas nacionais, diversificando-se. No entanto, a mudança mais importante introduzida pela Reforma foi o desenvolvimento da imprensa, difundindo a cultura escrita, consequentemente popularizando e alterando a função do livro de cozinha. Assim, todo um conjunto de livros, poemas e canções dedicadas ao prazer de comer e de beber, que apareceram durante os três séculos modernos, cons- tituem o terreno em que floresceu, desde os primeiros anos do século XIX, a literatura gastronômica classificada como tal. (FLANDRIN & MONTANARI, 1998, p. 553) 65UNIDADE I O Início da História da Alimentação 65UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais Outros fatores influentes na alimentação surgiram neste período de constantes inovações, como o progresso científico, principalmente o desenvolvimento da química, a criação de novos móveis e utensílios de mesa, etc. Além destes, o progressivo crescimento das cidades favoreceu a passagem da agricultura de subsistência para de mercado, onde o domínio das terras aráveis pelas elites burguesas aumentou suas rendas, favorecendo cada vez mais o refinamento da gastronomia e dos comportamentos à mesa, assim como a proletarização da classe baixa acarretou no aumento de desnutrição camponesa, a constante pobreza destes e a perda da porcentagem de terras. Através disto, houve uma alteração nos horários das refeições, sendo adaptadas tanto para um sistema burguês ocioso, quanto para os trabalhadores manuais (Flandrin & Montanari, 1998). No século XVIII já é possível visualizar nos horários de refeições um constante retardamento, onde as elites sociais passam a levar uma vida mais noturna do que ante- riormente. Diferem, porém, dos trabalhadores que ainda necessitam associar as refeições ao dia, dado que possuem menos tempo de ocio. Gera-se, através do sistema de trabalho versus ócio, uma dicotomia nas horas de alimentação das classes, onde burgueses alimen- tam-se mais tarde e trabalhadores mais cedo. Na Idade Média, as pessoas do povo faziam quatro ou cinco refeições diá- rias, enquanto entre as elites sociais os adultos não faziam mais do que duas. Contudo, as crianças, as mulheres e os velhos e até adultos menos ascéti- cos, eventualmente numerosos, podiam comer também três ou quatro vezes por dia. Contudo, para uns e outros, as horas das duas principais refeições eram mais ou menos a mesma: o “jantar” por volta do meio do dia – às 12 ou às 13 horas, quando se tinha almoçado às 9 horas, ou em torno das 10 horas, quando não se tinha almoçado – e a ceia ao cair da tarde. (FLANDRIN & MONTANARI, 1998, p. 555). Entretanto, se a Idade Média é evidenciada pela forte distinção das classes, se- parando-as do convívio uma da outra, na Idade Moderna essas fronteiras tornam-se mais fluídas, ou seja, para convidar alguém para jantar, bastava que essa pessoa possuísse rudimentos específicos da cultura, podendo ter sido aprendidos na escola, por exemplo. Significa dizer que a noção de distinção passou a se basear fortemente em questões de “boa aparência” e “fala adequada”, ou seja, em um comportamento hierárquico sobreposto à questão de “casta” (BOURDIEU, 1979). Quanto à igualdade à mesa, ela é condicionada pela exclusão daqueles cuja condição é muito diferente – aqueles cuja cultura, conversação e maneiras revelam pertencer ao povo. (FLANDRIN & MONTANARI, 1998, p. 556). Nessa trajetória a urbanização e desenvolvimento de inovações, assim como o contato com novos alimentos, diversificou o regime alimentar europeu, propiciando uma abertura gastronômica que se distanciava cada vez mais da dietética de equilíbrio nutricio- 66UNIDADE I O Início da História da Alimentação 66UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais nal para enfocar valores de prazer no ato de alimentar-se. As diversas técnicas culinárias e publicações que surgiram neste período auxiliavam este refinamento, vinculando-o ao ócio, à satisfação do paladar e à harmonia dos sabores. Á exemplo, vê-se a modificação da função e uso do açúcar na culinária: No século XIV, em Le Viandier de Taillevent, 40% das receitas que incluíam o açúcar eram, aliás, destinadas aos doentes. E na maioria das outras recei- tas, o açúcar tinha por função, como na farmácia, edulcorar a violência das especiarias sem lhes diminuir as virtudes; do mesmo modo, no século XV e XVI, quando se difundiu a utilização do açúcar na cozinha francesa. A partir do século XVII, os cozinheiros e os comilões franceses esquecem, progres- sivamente, essas funções dietéticas e limitam-se a levar em consideração a harmonia dos sabores. Antes do final do século, a prática de adoçar carnes, aves, peixes e legumes é considerada uma falta de gosto; daí em diante, o açúcar só é utilizado com ovos, cereais, na preparação de bolos, ou com fru- tas, café, chá e chocolate. (FLANDRIN & MONTANARI, 1998, p. 675) Assim como nos dias de hoje, os discursos médicos eram levados em consideração nos regimes alimentares, de maneiras específicas e menos generalizadas, isto é, ao invés de separar as dietas por classes, considera-se as especificidades dos indivíduos, tais quais, faixa etária, condições de saúde, gravidez, etc. Porém, os livros gastronômicos e especializa- ções emergentes neste período, focavam apenas nos sabores agradáveis, vinculando-se a perspectivas artísticas, tais como o belo e o harmônico, àquilo de “bom gosto”. 2.1 As Grandes navegações O domínio da navegação e conquista dos mares pelos europeus é fator importante nademarcação do início da Idade Moderna, afetando as redes comerciais e, consequente- mente, a modificação e integração de variados alimentos e práticas alimentares. Enquanto alguns alimentos oriundos da América necessitaram de um prolongado período de tempo para sua incorporação nos regimes ocidentais, como o tomate e o milho, outros foram adotados muito rapidamente, como o café, o chá e o peru. Várias espécies alimentares já haviam sido trazidas para a Europa durante a Idade Antiga e Média, mas nem todas foram incorporadas à alimentação. Mas, a descoberta da América fez com que vários gêneros chegassem em grande quantidade e de uma só vez. As inovações efetuadas nos hábitos e escolhas alimentares não se reduzem ape- nas à introdução das espécies estrangeiras, devem-se também à reabilitação de inúmeros alimentos locais pouco apreciados pelas elites sociais durante a Idade Média. Um bom exemplo disto, é a aceitação e popularização de carnes que antes eram consideradas gros- seiras, como a bovina. Houve também a diminuição do consumo de alimentos que antes eram bastante populares, como grãos, papas de cereais e, inclusive, do pão. Os temperos foram outro âmbito modificado, dado que surgiu a preferência pelos sabores gordurosos 67UNIDADE I O Início da História da Alimentação 67UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais ou açucarados, substituindo os ácidos e fortes (carregados em especiarias). A oposição entre doce e salgado começa, desse modo, a tornar-se mais evidente, sendo princípio fundamental de classificação (Flandrin & Montanari, 1998). Durante as Grandes Navegações os anseios não eram apenas as especiarias, ao mesmo tempo buscavam por pedras preciosas, terras ainda não descobertas, mão de obra escrava e, ainda, espalhar o cristianismo pelo mundo. Grandes conquistas aconteceram durante essas viagens, entre elas: ● Cristóvão Colombo descobriu a América no ano de 1492. ● Vasco da Gama chegou à Índia no ano de 1498. ● Pedro Álvares Cabral descobre o Brasil em 1500. A grande expansão marítima do início da Idade Moderna provocou um enorme intercâmbio cultural entre os europeus e aqueles com os quais mantiveram contato na Ásia, no Brasil, na América e na África. Os navegadores levavam sementes, raízes e cereais para as terras distantes e, de volta, traziam as novidades lá experimentadas. Assim, os europeus aprenderam e também ensinaram o preparo de um mesmo alimento de maneiras diferentes, o uso de novos temperos, a combinação de diversos sabores e o cultivo dos mais variados produtos. O resultado de tudo isso foi uma troca muito saudável de alimentos e de receitas (LEAL, 1998, p. 38). Podemos perceber que o contato com a América trouxe novas formas de alimenta- ção e técnicas de agricultura: ● A batata, que foi levada para a Europa da América do Sul (Equador, Bolívia e Peru) em 1524, ainda é importante lembrar que foi por conta das grandes plantações de batata que a Europa escapou das fomes cíclicas – causadas por pestes e guerras; ● O milho, que só causou impacto de verdade no norte da Itália – ingrediente principal das famosas polentas. Nas demais regiões da Europa o milho não foi benquisto; ● A mandioca, que de fato nunca foi cultivada pelos países europeus, mas os mesmos importam a fécula e apreciam a tapioca até os dias de hoje; ● A tomate, que também chegou à Europa através da América e por muitos anos foi considerado uma fruta venenosa e perigosa; ● A cacau, que foi levado à Europa das culturas pré-colombianas astecas e incas; ● Com o trajeto oposto, os ovinos e bovinos vinham da Europa para a América. 68UNIDADE I O Início da História da Alimentação 68UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais Esse intercâmbio resultou numa troca enriquecedora de alimentos e receitas. ● Do Brasil para a Ásia foram transportados pelos portugueses: milho, agrião, mandioca, batata-doce, repolho, pimentão, abacaxi, goiaba, caju, maracujá, mamão e tabaco. ● Da Ásia para o Brasil chegaram: cana-de-açúcar, arroz, laranja, manga, tange- rina, chás, lírios, rosas, crisântemos, camélias e porcelanas. ● Da África vieram banana, inhame, pimenta malagueta, erva-doce, quiabo, gali- nha d’angola, palmeira do dendê, melancia e coco. ● Da América para a África foram mandioca, caju e amendoim, e para a Europa foram batata, feijão, abóbora, amendoim, pimentão, baunilha, abacate e o cacau que os espanhóis transformaram em chocolate. Famoso mundialmente, e muito apreciado até os dias atuais. No mesmo período, as especiarias obtiveram, tanto na cozinha como no comércio europeu, uma função menos importante na Idade Moderna do que na Idade Média, passa- ram a ser usadas com parcimônia. Um dos motivos era o elevado preço agregado devido às taxas impostas e também as novas rotas que deixavam os produtos ainda mais caros, como já falamos anteriormente. Em substituição dos fogões a lenha e dos grandes brasei- ros, surgiram os fogões de 12 e até 20 bocas, possibilitando a cocção lenta dos alimentos. Os tempos modernos ficaram marcados pela grande época das bebidas coloniais, quando o chocolate, o café e o chá são objetos de crônicas, introduzem se no regime alimentar e ganham um papel determinante no comércio. Surgiram então as casas de café, que rapidamente se espalharam por Paris e demais países europeus. 2.3 A Itália A gastronomia da Itália pode ser considerada uma das mais saborosas do mundo, com pratos envolventes, vegetais variados, massas e carnes, onde seus sabores originam a partir de sua história, que com o passar dos tempos evoluiu como todas as outras. Re- lata-se que os italianos inventaram do sorvete até o café com leite, sem falar na pizza. Já a famosa massa ou macarrão teve origem na China, mas os italianos foram responsáveis por dar forma e molhos diferentes, sem dizer que também são os responsáveis por difundir esses pratos pelo mundo (BONA, 2009). 69UNIDADE I O Início da História da Alimentação 69UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais Durante o Renascimento, entre os séculos XIV e XVI, nas cidades de Veneza e Florença, houve um cuidado maior com a gastronomia, tendo sido criados alguns dos bons modos utilizados à mesa. A culinária foi fortemente influenciada pelas diferentes regiões, posições geográficas, clima e foi uma das responsáveis por influenciar outros povos. Uma das culturas que mais deixou herança na região foi a árabe, introduzindo na região da Sicília a utilização de açúcar, arroz, canela, açafrão e berinjela, e com doces de marzipã (FLANDRIN & MONTANARI, 1998). Segundo Franco (2010), é muito comum citar a gastronomia francesa como refe- rência na cozinha clássica. Poucos sabem que o início de estudo em culinária foi quando Catarina de Médici se casou, em 1553, na época, com o futuro rei francês Henrique II. Com apenas 14 anos, ao se mudar para Paris, levou uma enorme quantidade de serviçais e, claro, uma equipe de cozinheiros e confeiteiros que levaram, juntamente com suas receitas e técnicas, algumas pratarias, louças e porcelanas, insumos como alcachofra, cogumelos e frutas, sem comentar o refinado costume à mesa. Embora, no início, esse comportamento tenha causado estranheza, aos poucos começou a ser copiado e usado por outros na realeza e se tinha a Itália com uma imagem de sabedoria e refinamento renascentista. Catarina serviu de exemplo para costumes e hábitos diferentes, como o ato de lavar as mãos antes das refeições, uso de talheres e louças decoradas e até música adequada para os eventos à mesa. O livro italiano mais antigo sobre culinária é do século XIII, “Liber de coquina”, de autor desconhecido, escrito em Nápoles, onde estão inclusos o repolho estilo romano que se baseia em folhas pequenas preparadas de maneira campestre e um prato de feijão di Trevisio. No início do século XVIII, os livros culinários italianos começaram a enfatizar o regionalismo da culinária italiana, em vezda culinária francesa. Livros escritos naquela época não eram mais dirigidos a chefs profissionais, mas a donas de casa burguesas. Periódicos em forma de livreto, como La cucoca cremonese (O cozinheiro de Cremona), em 1794, dão uma sequência de ingredientes de acordo com a estação, junto com capítulos sobre carne, peixe e legumes. À medida que o século avançava, esses livros aumentaram em tamanho, popularidade e frequência. No século XVIII, textos médicos alertavam os camponeses contra a ingestão de alimentos refinados, pois acreditava-se que estes eram pobres para a digestão e seus corpos precisavam de refeições pesadas. Acreditava-se que alguns camponeses comiam mal porque preferiam comer mal. No entanto, muitos camponeses tinham que comer comida estragada e pão mofado, porque isso era tudo o que podiam pagar (BONA, 2009). 70UNIDADE I O Início da História da Alimentação 70UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais O uso das especiarias cresceu bastante, principalmente após a descoberta das Américas, quando novos produtos chegaram à Itália. As mais comuns desta época são: anis estrelado, pimenta, canela, cravo, noz-moscada, alecrim, orégano, tomilho e sálvia. Os mais pobres usavam ervas, alho e cebola. Já os ricos consumiam de tudo, e seus temperos eram guardados em frascos. Eles eram apreciados pelos nobres para dar cor, sabor e aroma de alimentos, sendo muitas vezes utilizados na carne, não para esconder maus odores, mas como uma prova de ostentação na qual mostravam que poderiam comprar especiarias e alimentos frescos (FLANDRIN & MONTANARI, 1998). Ainda segundo Flandrin & Montanari (1998), muitos usos alimentares são aperfei- çoados no renascimento, como as variedades no cozimento, o surgimento das geleias, a entrada da manteiga e da panna (nata) como ingredientes em receitas, e novos preparos ganhando importância, como o strutto (banha de porco). Outros progressos da época foram o uso de marinadas e novos processos de cozimento, particularmente no que diz respeito ao banho maria, e a fervura em panelas especiais de fechamento hermético (antepassados das panelas de pressão atuais), utilizada para cozimento lento e para não dispersar aromas e fragrâncias. Outra evolução significativa pode ser verificada no ramo das massas de pas- telaria, com o advento das preparações semelhantes às que possuímos hoje na pasta frolla (massa folhada). Os novos produtos vindos do continente americano, como o feijão, batata, cacau, milho, pimentão, tomate, berinjela, peru, etc. não tiveram muita difusão, tendo sido considerados curiosidades alimentares, utilizados apenas para mostrar durante suntuosos banquetes financiados por nobres ou pela rica burguesia. Nos banquetes a característica mais marcante era a atenção dedicada à prepa- ração, apresentação dos pratos e do evento, com uma imensa quantidade de pratos e porções generosas. O mesmo acontecia com os animais trazidos para a mesa: porcos, bezerros, pavões e outros animais ornados com prata e ouro, ou remontados e cobertos com sua pele natural; ainda que fossem comestíveis, eram identificados como ostentação e não eram consumidos: alimentos e objetos eram servidos como imensos troféus para exibir a riqueza. Os saleiros tinham funções representativas e não eram necessários para conter sal, mas para ilustrar a renda disponível do proprietário (FRANCO, 2010). A distinção entre as classes sociais era claramente perceptível. O pão, alimento vital para todos, se distinguia pelo tipo de farinha que era usado: branca (ou frumento) para os cidadãos, e escura (farinha mista de cereais) usada pelos camponeses. 71UNIDADE I O Início da História da Alimentação 71UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais 2.4 A França No século XVI, a França começa a ganhar mais destaque em sua cozinha, assim Leal descreve: Principalmente depois que Henrique II da França se casou com Catarina de Médici, da Itália. Ela trouxe uma comitiva de grandes pasteleiros para França e também chefs de cozinha italianos, considerados os melhores do mundo, e que ensinaram aos franceses muitas das receitas que hoje fazem parte de sua culinária. Ter um cozinheiro italiano passou a ser moda entre os nobres france- ses. Eles serviram, pela primeira vez, crepes de fígado, queijo parmesão rala- do, alcachofras, trufas, várias massas, carne de vitela e de veado. Nas sobre- mesas apareceram biscoitos de amêndoas, pudim de ovos, sorvetes, melões, compotas, geleias e doces de frutas. Adotou-se a moda dos aperitivos gelados. A chegada de Catarina de Médici marcou o início da mais complexa e refinada cozinha do mundo: a cozinha francesa (LEAL, 1998, p. 41). No momento da ascensão da cozinha francesa, destaca-se o uso da manteiga e o desaparecer dos molhos de sabor forte e ácido. O vinagre é utilizado de forma consciente, há um predomínio do molho branco, rico em manteiga, marcando a culinária francesa. Os hábitos da França se alastraram por outros países da Europa, e a mesma França presen- ciou em Paris o surgimento do primeiro restaurante, que era um local pequeno que tinha as sopas como prato a ser vendido. Pouco mais tarde, o La Grande Taverne de Londres despontou também em Paris como restaurante de luxo oferecendo serviços à la carte, “os restaurantes se distinguiam dos seus antecessores cabarets, albergues e tavernas pela limpeza, tranquilidade, espaço e decoração aprimorada” (FRANCO, 2006, p. 196). A culinária francesa “veio a dominar o pensamento culinário europeu da época como nenhuma outra culinária nacional foi capaz. Nascia, assim, a exclusiva e singular associação entre a culinária francesa e a haute cuisine europeia. Essa associação sobrevive, em muitos aspectos, até hoje” (FREEDMAN, 2009, p. 230). Ao longo do séc. XVII, a afirmação da cozinha francesa colocada acima foi iniciativa da realeza sob Luís XIV, o Rei Sol. O refinamento proveniente da Corte gera um vasto movimento de renovação dos costumes e práticas alimentares. Os cozinheiros franceses passaram a privilegiar os cozimentos, deixando as carnes com o máximo de sabor, o que permitiu que se desenvolvesse em França uma produção de carne da mais alta qualidade. Junto à carne de boi se exigiu legumes frescos e de sistema de manutenção de alimentos como os peixes e frutos do mar, isto é, oferecer sempre peixe fresco. 72UNIDADE I O Início da História da Alimentação 72UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais FIGURA 7: LEMA DA REVOLUÇÃO FRANCESA Fonte: https://www.humanite.fr/que-liberte-egalite-fraternite-deviennent-realite-566921 Desta forma, a grande novidade desta cozinha do séc. XVII é privilegiar os sabores naturais dos alimentos, que era algo inédito até então. O séc. XVIII viu surgir uma indivi- dualização da comida, isto é, um prato e seus talheres para cada pessoa. A mesa deixa de ter um serviço coletivo e cada pessoa terá um couvert para si. Desta forma, a França vai rompendo com os costumes medievais onde todos se serviam num prato comum e com as mãos (FREEDMAN, 2009) Foi ao longo do Séc. XVIII que surge os fundamentos da refeição moderna: a ele- gância da mesa, a etiqueta, o comportamento à mesa para comer e para beber. No séc. XVIII, a forma de dispor a comida nos pratos foi fortemente influenciada pelos acompanha- mentos e com a expulsão da ditadura do alho e da cebola: legumes, vegetais, os verdes, os temperos passaram a dar cores aos pratos. Desta forma, a França promove a substituição da cozinha do olfato pela cozinha do olhar. A realeza, ao realizar os famosos Banquetes de Estado que fizeram a fama do Palácio de Versalhes, produziu pratos que eram concebidos e apresentados de modo a realçar e divulgar a grandeza da cozinha francesa. Neste período os cozinheiros franceses já eram considerados os melhores do mundo (LORENÇATO, 2002). Ainda no séc. XVIII, antes da Revolução Francesa, se inventou em Paris o restau- rante. Há duas versões sobrea invenção dos restaurantes: 1. Aquela exposta por FLANDRIN & MONTANARI (2), demonstrando que M. Bou- langer, também conhecido como “Champs d’Oiseaux, um padeiro e vendedor de sopas, resolveu colocar em seu estabelecimento perto do Louvre, algumas mesas a disposição a disposição dos seus clientes, que até então tomavam seus caldos restauradores em canecas e em pé. E com o aumento da clientela que passou a exigir além dos caldos 73UNIDADE I O Início da História da Alimentação 73UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais restauradores, outros pratos, M. Boulanger passou a servir pratos com alimentos sólidos em porções individuais. A partir de então, ele foi seguido por outros imitadores e estava então inventado o restaurante na França, com um novo profissional o Restaurateur e um novo tipo de negócio, o Restaurante; 2. a outra versão sobre a invenção do restaurante, parte de SPANG que atribui à Mathurin Roze de Chantoiseau a criação destes paraísos dos sabores. Sendo uma figura conhecida, Chantoiseau fixou residência em Paris em 1760, em plena conjuntura de crise econômica da França em face da sua dívida interna. Em Paris, a partir da fortuna herdada do pai, um rico latifundiário e mercador, Roze de Chantoiseau, após algumas tentativas de elaboração de projetos para ajudar a França a sair da sua crise, em 1765 abriu as portas do primeiro restaurante. A intenção era, através dos restaurantes, “fazer circular o dinheiro, que ajudaria a melhorar a situação econômica francesa “(LORENÇATO, 2002). Em 1789 teve início um dos maiores movimentos franceses, a Revolução France- sa, que perdurou por dez anos. A Revolução Francesa, indiretamente, deu ao país muitos de seus restaurantes, e estes, ao colocarem a haute cuisine ao alcance de quem tivesse dinheiro para frequentá-los, iniciaram o processo de democratização da culinária. Com os restaurantes, a haute cuisine deixava de ser apanágio da aristocracia e dos palácios (FRANCO, 2006, p. 208). 74UNIDADE I O Início da História da Alimentação 74UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais 3. IDADE CONTEMPORÂNEA A França, do século XVII, era governada pelo modelo do antigo regime em uma Mo- narquia absolutista*, o que levava fome e miséria a toda a população. Os trabalhadores não tinham nenhuma participação nas decisões governamentais, aqueles que se opunham às decisões da realeza eram levados a Bastilha ou simplesmente guilhotinados. A insatisfação do povo com Luís XVI era tão grande, que a população faminta e miserável começa a se organizar e decide tomar o poder de forma a melhorar a sua condição de vida. O marco de início da revolução é a tomada da Bastilha e a libertação de todos os presos políticos que nela foram trancafiados já que esse cárcere era o símbolo da monarquia e do regime absolutista. Dez anos depois da Revolução Francesa, Napoleão Bonaparte começou a gover- nar o país, o então Império Napoleônico permaneceu por 15 anos. Durante esse percurso, Napoleão deixou claro que pratos simples eram suas preferências, optava sempre por pre- parações tradicionais italianas, sem muita especiaria. Não apreciava a cozinha francesa, por julgar que o essencial dessa cozinha era o requinte (LEAL, 1998). Uma das contribuições deixadas por Napoleão à gastronomia foi o método de conservação dos alimentos através de conservas em vidro e os enlatados, “foi quando o imperador, preocupado com a boa alimentação do seu exército, ofereceu um alto prêmio a quem criasse uma técnica para conservar alimentos por longo tempo” (LEAL, 1998, p. 50). Após o governo de Napoleão, a França vive o período da Restauração, período que compreende o governo de dois reis: 75UNIDADE I O Início da História da Alimentação 75UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais ● Luís XVIII: apesar da obesidade que o incomodava, apreciava as demoradas e abundantes refeições; ● Carlos X: Irmão legatário de Luís XVIII, considerado grande gourmet. Ainda durante a Restauração, os grandes chefs e cozinheiros foram trabalhar nos restaurantes de Paris ou abriram seus próprios negócios, depois de per- derem seus empregos nos palácios da nobreza, já que ela ficara enfraqueci- da com a revolução. Cada restaurante francês, simples ou não, passou a ter um homem que desenvolvia os prazeres da boa mesa, com satisfação e arte, o que levou a cozinha francesa a evoluir tanto. Tudo isso, aliado à afirmação da classe média após a Revolução Francesa, fez nascer a cozinha burguesa, que misturava os aromas do campo com a elegância da alta gastronomia. Combinou a cozinha da terra com a de laboratório, a profissional com a ama- dora, a provinciana com a internacional e a antiga com a moderna. Foi um encontro de tradição com a invenção. Uma combinação perfeita dos bons velhos tempos com a inovação das receitas (LEAL, 1998, p. 51). Em meados do século XIX, a França entra em batalha com a Alemanha e o exército alemão invade Paris, elevando os valores dos alimentos, principalmente das carnes, surgiu então um mercado que vendia carne de cavalo e até mesmo ratos. Os franceses foram além dessa crise, “na virada do século, havia cerca de 1.500 restaurantes em Paris, milhares de negociantes de vinho, mais de 20 mil cafés e cervejarias. Paris se tornara, então, “la ville unique au monde” (FRANCO, 2006, p. 228). A primeira escola de gastronomia também foi criada nesse período, a Le Cordon Bleu, destinada às filhas das famílias nobres. Atualmente essa rede de escolas de gastro- nomia conta com filiais por todo o mundo. “A culinária da França, enfim, atingiu seu apogeu! ” (LEAL, 1998, p. 53). No século XX surge o início da globalização, rápidos meios de transporte foram criados, o que facilitou a troca de cultura, técnicas e ingredientes entre países do mundo todo, dando origem à cozinha internacional. A cozinha internacional é uma das mais bem aceitas por toda a população mundial, visto que nela poderão encontrar pratos dos quais já tenham o costume de comer, com ingredientes conhecidos e formas de preparo difundidas por todo o mundo, facilitando a alimentação de viajantes e turistas. A cozinha internacional estava se afirmando em todo o mundo, enquanto que em diferentes países crescia uma preocupação pelos seus pratos regionais. Inúmeros restaurantes e livros de receitas especializadas em cozinha france- sa, italiana, chinesa, japonesa, alemã e portuguesa se espalharam pelo mun- do. Até a França acabou trazendo pratos das mais diversas nacionalidades para a sua cozinha (LEAL, 1998, p. 55). Entre os anos 1914 e 1918, aconteceu uma grande crise mundial que levou à tão comentada Primeira Guerra Mundial, período em que houve racionalização de alimentos na França, e em demais países europeus. Após a guerra, a Europa perdeu o poder para os Estados Unidos da América. Nesse momento, os materiais de cozinha se aperfeiçoaram, o gás e a eletricidade passaram a exercer papéis fundamentais, acendendo fornos e fogões, fazendo funcionar diversos equipamentos eletrônicos. 76UNIDADE I O Início da História da Alimentação 76UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais Depois da Segunda Guerra Mundial, que aconteceu no período entre os anos de 1939 e 1945, o costume de vida dos americanos multiplicou-se por todo o mundo, afe- tando a alimentação. Nesse momento os padrões franceses da gastronomia acabaram sofrendo modificações, já que o foco da cozinha francesa eram preparações cheias de etapas, técnicas e que demandavam tempo e conhecimento. Abriu-se então as portas para a McDonaldização, um modelo que potencializou o setor comercial alimentar, trazendo uma alimentação de fácil e rápida preparação, que ficou conhecida como Fast-Food. O fast-food não pode ser considerado, como querem alguns, mero indício de regressão gastronômica, pois apresenta um aspecto funcional inegável: satisfaz a necessidade atual de rapidez e responde à demanda de relações impessoais decorrentes da culturaurbana e de seu ritmo. Sua proliferação se explica também pela emancipação e autonomia financeira da juventude, pela distância entre a casa e os locais de trabalho, estudo e lazer, bem como pela dessacralização da refeição em família na sociedade pós-industrial (FRAN- CO, 2006, p. 229). Foi quando se expandiram nos Estados Unidos as refeições rápidas (sanduíches, pizzas, salgados, sucos, refrigerantes, sorvetes etc.). O que conhecemos por fast food e também o self-service (mesa ou buffet em que o próprio cliente se serve), hábitos alimenta- res que em pouco tempo se alastraram pelo mundo e se mantêm vivos até os dias atuais. Principalmente nas metrópoles em que o dia a dia se torna agitado e as pessoas procuram algo prático e rápido, mesmo se opondo ao que seja saudável, para se alimentarem. Em meados do século XX, surge na França um novo conceito e forma de cozinhar, a nouvelle cuisine, uma cozinha mais natural, que procurava realçar o sabor dos alimentos sem alterar a forma como a natureza os oferecia. Segundo os defensores dessa nouvelle cuisine, “a cozinha deve ser uma extensão da natureza. Não deve, portanto, anular o traba- lho da natureza e sim completá-lo” (FRANCO, 2006, p. 264). A nouvelle cuisine se mantém viva até os dias atuais em boa parte do mundo, nela as preparações apresentam as seguintes características: ● cozimento rápido; ● alimentos frescos (sazonalidade); ● não há excesso de temperos e molhos, esse último passa a ser mais leve; ● alimentos menos gordurosos; ● harmonia de cores, aromas, texturas e temperaturas; ● alimentos preparados com técnicas apropriadas para não perderem o sabor natural. 77UNIDADE I O Início da História da Alimentação 77UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais Vale lembrar que a nouvelle cuisine é também uma tentativa de ultrapassar a oposi- ção entre gastronomia e dietética, surgiu para satisfazer exigências características da vida atual” (FRANCO, 2006, p. 267). A gastronomia contemporânea, da qual a nouvelle cuisine faz parte e também a cozinha internacional, nada mais é que a forma de alimentação adotada nos dias de hoje, nos principais pontos urbanos. Quando se busca compreender, é nítido notar a união e harmonização de várias iguarias de diferentes tradições gastronômicas em um mesmo prato. Em que é feita uma união dos costumes e das culturas prevalecentes. É toda uma forma de um povo conviver e tratar-se num dia a dia repleto de várias culturas, raças e conhecimentos. Desenvolver uma nova cozinha se torna cada dia mais fácil, diante da distribuição global de matéria-prima (globalização), e também devido ao domínio tecnológico que o homem alcançou sobre o clima e o solo. Essa evolução nos fornece alimentos de origem longínqua em locais não viáveis antigamente. Os admiradores de uma boa alimentação podem se aproveitar desse grande passo e usufruir de condimentos, peixes, aves, leguminosas, carnes, frutas, produtos lác- teos em qualquer estação, em qualquer local. Devido a este fato, a cozinha contemporânea é vista também como a cozinha de mercado, pois almeja o melhor em cada época do ano, buscando sempre utilizar produtos no auge de seu frescor e exuberância. A internacionalização da gastronomia que ocorreu depois de 1960 e chegou ao Brasil depois do ano 2000 evidenciou a globalização da alimentação, fez com que tivésse- mos acesso fácil a produtos e alimentos de todas as partes do mundo. Em contrapartida, existe uma preocupação com a cozinha regional, que propõe a valorização dos produtos locais e o reconhecimento do que a região possui de melhor (FREIXA; CHAVES, 2008). A tendência da gastronomia mundial é a globalização e, como contrarrea- ção, a regionalização. Trocando em miúdos: ao mesmo tempo em que muitos cozinheiros buscam inspiração na culinária de povos diferentes, outros che- fs estão pesquisando e fortalecendo as cozinhas regionais de seus países. Cozinhar, hoje, é manter um olho na feirinha da esquina e outro na prateleira reservada aos produtos importados. (LEAL, 1998, p. 98). Nos dias atuais a gastronomia vivencia esse período de divisão cultural em relação à globalização em aversão a uma tendência à regionalização, o mesmo que aconteceu entre os movimentos Fast-Food (antes citado) e Slow Food. Nesse cenário desenvolveu-se o modo em que a sociedade se alimenta em con- junto. Atualmente, tudo que tange em torno da gastronomia é decorrente dos processos apresentados nos parágrafos anteriores. 78UNIDADE I O Início da História da Alimentação 78UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais Em todo alimento preparado sempre haverá sinais de trocas culturais entre os po- vos. As cozinhas típicas são resultado da miscigenação cultural que um dia se fez presente em determinada região (FRANCO, 2006). Comer, então, implica um feito social complexo que coloca em cena um con- junto de movimentos de produção e consumo tanto material quanto simbó- lico, diferenciados e diferenciadores. Nesse sentido, o consumo de alimen- tos e os processos sociais e culturais que os sustentam contribuem para a constituição das identidades coletivas, uma vez que são uma expressão de relações sociais e de poder (GIMENES-MINASSE, 2016, p. 195). Percebemos que desde as primeiras civilizações até os dias atuais, a raça humana progrediu de caçadores a consumidores exigentes, que não vêem a comida apenas como combustível para o corpo, mas sim, estão sempre em busca de algo sofisticado e que também transmita prazer. 3.1 Tendências Gastronômicas da Atualidade Tendência é tudo aquilo que cai no gosto das pessoas e passa a ser reproduzido, é uma soma de valores e desejos. Faz parte de vários setores, como: gastronomia, arte, moda, música e esporte. No final da década de 60 a França passou por grandes mudanças na relação ho- mem-natureza, o que levou a um rompimento do tradicionalismo. A Nouvelle cuisine nasceu nos anos 70 com o chef Paul Bocuse, como uma reação à culinária tradicional.Ou nouveaus cuisiniers rejeitavam o excesso de riqueza e as complicações nos pratos, pois entendiam que eles não combinavam com uma geração que se preocupava tanto com a saúde e que, por isso, não deveria consumir alimentos em excesso e nem alimentos gordurosos. Os preceitos básicos do movimento eram: Absoluto frescor dos ingredientes; luminosidade e harmonia natural nos acompanhamentos; e, simplicidade no modo de cozinhar A partir da Nouvelle cuisine surgiram outros importantes movimentos como o loca- vore e o slow food que direcionaram a alta gastronomia para utilização de produtos naturais, estreitando a relação entre os chefs e os produtores locais, o que beneficiou ambas as partes. A nouvelle cuisine não escapou das críticas, que são inerentes a todas as invenções artísticas. Suas porções exóticas foram consideradas por alguns como muito cozinha para anoréxicos, por ter suas porções muito reduzidas, e de valor elevado. Devido a inaptidão de alguns chefs e a todas as críticas recebidas, em 1982 Paul Bocuse declarou que a nouvelle cuisine havia terminado (FRANCO, 2004). Observa-se que a Gastronomia nunca foi tão valorizada como está sendo agora. Podemos atribuir esse sucesso às contribuições trazidas pelos canais da internet, da tele- visão, das revistas físicas e onlines e etc. 79UNIDADE I O Início da História da Alimentação 79UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais 3.1.1 Slow Food No início do século XXI começou a surgir no mercado gastronômico o conceito de slow food, onde o atendimento nos restaurantes, é feito de forma a maximizar a qualidade dos alimentos e seus sabores, sem pressa para prepará-los e sem pressa para saboreá-los (ELEUTÉRIO, 2014). O termo slow food, em português, significa “comer sem pressa”, exatamente o oposto do fast-food. Nasceu na Itália, no ano de 1986 e se espalhou pelo mundo, alcan- çando mais de 150 países, com associados em cada um deles. Essa tendência valoriza o produto, respeitao produtor e protege o meio ambiente. “… acreditamos que todos têm o direito fundamental ao prazer de comer bem e, consequentemente, têm a responsabilidade de defender a herança culinária, as tradições e culturas que tornam possível esse prazer. O Slow Food segue o conceito da ecogastronomia, reconhecendo as fortes conexões entre o prato e o planeta. Bom, limpo e justo: é como o movimento acredita que deve ser o alimento. O alimento que comemos deve ter bom sabor; deve ser cultivado de maneira limpa, sem prejudicar nossa saúde, o meio ambiente ou os animais; e os produtores devem receber o que é justo pelo seu traba- lho. Somos coprodutores e não simples consumidores, pois tendo informação sobre como nosso alimento é produzido e apoiando efetivamente os produ- tores, nos tornamos parceiros no processo de produção” (CARLO PETRINI, 1986). Fonte:disponível em: http://www.slowfoodbrasil.com/slowfood/filosofia 3.1.2 Finger Food “Comestíveis servidos em bufê ou refeição, que podem ser comidos com as mãos, como canapés, salgadinhos, frutas etc.” (CATUREGLI, 2011, p. 118). Partindo dessa de- finição é fácil perceber que o finger food trata-se de uma alimentação fácil de se servir, preparada em pequenas porções e servida de forma individual em verrines, palitinhos e mini louças, por esse motivo é bastante aprovado em festas e eventos, principalmente quando os convidados não permanecerão sentados. FIGURA 8: FINGER FOOD Fonte:https://www.welcomechef.com.br/blog/menus/ conhece-finger-food-esse-tipo-de-menu-pode-ser-o-ideal-para-o-seu-evento/ 80UNIDADE I O Início da História da Alimentação 80UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais Por mais simples que pareçam ser, os finger foods também podem se tornar prepa- rações sofisticadas, visto que, nas mãos de um bom cozinheiro, qualquer preparação pode ser transformada em um finger food. A maneira de apresentar essas pequenas porções também valoriza essa forma de servir; basta apostar em cores, formatos, aromas e texturas, garantindo assim ainda mais sofisticação. 3.1.3 Comfort Food O comfort food preza pelo quanto mais simples, melhor. Menos ingredientes, me- nos intervenções, mais natural, propostas simples e honestas. No livro “Não é Sopa”, a gastrônoma e autora do livro, Nina Horta, intitula em sentido análogo o comfort food como “comida da alma”: Comida da alma é aquela que consola, que escorre garganta abaixo quase sem precisar ser mastigada, na hora da dor, de depressão, de tristeza pe- quena. Não é, com certeza, um leitão à pururuca, nem um menu nouvelle seguido à risca. Dá segurança, enche o estômago, conforta a alma, lembra a infância e o costume (HORTA, 1996, p. 15 e16). Outros autores já nomearam o comfort food como: cozinha de mãe, cozinha da infância, o fato é que realmente tende a uma cozinha de espírito, muita das vezes um sentimento pessoal. Conforme Gimenes-Minasse (2016, p. 96 e 97): Pode-se dizer que comfort food designa toda comida escolhida e consumida com o intuito de proporcionar alívio emocional ou sensação de prazer em si- tuações de fragilidade (como estresse ou melancolia), sendo associada mui- tas vezes a períodos significativos da vida do indivíduo (como a infância) e/ou à convivência em grupos considerados significativos por ele (como a família). 3.1.4 Vegetarianismo e Veganismo Nos tempos atuais, é crescente o número de pessoas que optam pela alimentação vegetariana. Trata-se de “uma alimentação baseada em vegetais, de onde se excluem todos os tipos de carnes e seus derivados. Alguns grupos, menos ortodoxos, admitem a ingestão de ovos, leite e laticínios em geral” (CATUREGLI, 2011, p. 33). Os grupos que op- tam por excluir da dieta todos os produtos de origem animal são conhecidos como veganos, nessa forma de se alimentar a lista de produtos excluídos vai além de leite e ovos, já que a indústria alimentícia utiliza diversos componentes de origem animal, por exemplo: corantes, espessantes, gelificantes e estabilizantes; o grupo de pessoas que optam pelo veganismo está sempre atento a esses detalhes. Diante da percepção do crescimento do público vegetariano e vegano, muitos empreendedores viram uma oportunidade de negócio e assim surgiram diversos estabe- lecimentos especializados em alimentação vegana e vegetariana, foram tão bem aceitos que conquistaram clientes que nem praticam esse tipo de alimentação. É um mercado que continua em ascensão. 81UNIDADE I O Início da História da Alimentação 81UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais 3.1.5 Alimentos Orgânicos São considerados alimentos orgânicos todo e qualquer alimento que foi produzido sem a adição de qualquer aditivo químico, plantado e cultivado de forma natural, assim como no quintal de casa. Os alimentos orgânicos são definidos como aqueles alimentos in natura ou processados que são oriundos de um sistema orgânico de produção agrope- cuária e industrial. A produção de alimentos orgânicos é baseada em técnicas que dispensam o uso de insumos como pesticidas sintéticos, fertilizantes quí- micos, medicamentos veterinários, organismos geneticamente modificados, conservantes, aditivos e irradiação (SOUZA et al., 2012, p. 513). O crescimento do consumo de alimentos orgânicos está estreitamente relacionado à saúde, tanto de quem consome como do meio onde vivemos. Trata-se de uma consciência com o planeta, não apenas os orgânicos, mas também os produtos sustentáveis e aqueles produzidos por quem respeita as condições de trabalho dos seus funcionários e o ambiente da região em que estão localizados. Ao optar por alimentos orgânicos, o consumidor está ingerindo menos subs- tâncias tóxicas e apoiando um processo de transição ecológica que visa à desintoxicação gradual dos alimentos, do solo e das águas, promovendo a saúde ambiental” (SOUZA et al., 2012, p. 516). 3.1.6 Comida Saudável Comer de forma saudável é uma tendência que veio para ficar, muitas pessoas têm mudado seus hábitos alimentares, algumas por questão de saúde e outras por precauções. Comer de forma saudável não quer dizer que você irá sofrer por isso, você simples- mente vai passar a comer “comida de verdade”, consumir mais produtos in natura e menos produtos processados e industrializados. Cozinhar os próprios alimentos é uma boa maneira de praticar o consumo de alimento saudável, porém, alguns estabelecimentos já oferecem esse tipo de serviço tam- bém, produzem os alimentos a serem servidos da forma mais saudável possível, utilizando produtos orgânicos, mais frutas, legumes e verduras, além de grãos e oleaginosas. Muitos profissionais da gastronomia têm se especializado em cozinha saudável e hoje existem variados serviços relacionados a essa área, inclusive marmitas delivery, lanches saudáveis, coffee break, congelados, buffets para eventos etc. 3.1.7 Comida de Rua A cozinha de rua não é uma novidade, já faz parte do comércio de rua, principal- mente nas grandes cidades, há muitos anos. Em algumas localidades, a comida de rua é sinônimo de manifestação cultural, atrativos turísticos. 82UNIDADE I O Início da História da Alimentação 82UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais Muitas tradições, costumes e valores são passados entre as gerações atra- vés da comida de rua, da pipoca vendida na porta da escola até uma refeição japonesa mais elaborada, em uma barraca no bairro da Liberdade, um espa- ço da cidade de São Paulo que concentra lojas e restaurantes de nipônicos e outros orientais (FONSECA et al., 2013, p. 312). A comida de rua pode ser apresentada em mercados, em feiras, em carrinhos, em barracas, em trailers e ultimamente, em food trucks, que são automóveis (vans, micro-ôni- bus, trailers e caminhonetes) adaptados para preparar e servir comidas. FIGURA 9: FOOD TRUCK Fonte: https://pixabay.com/pt/photos/taco-comida-caminh%c3%a3o-558254/ Os food trucks ganharam ainda mais força quando resolveram se unir e montar um espaço, denominado food parks, onde pudessem se instalare receber mais pessoas, isso tem acontecido em diversas cidades e vem sendo aprovado pelos frequentadores. Com chefes de cozinha no comando, os food trucks passaram a ter um car- dápio mais sofisticado, normalmente especializado em algum nicho (hambúr- guer, comida oriental, comida saudável etc.), oferecido por preços razoáveis, dando oportunidade às pessoas de conhecerem menus gourmets com pre- ços acessíveis (SOUZA; LOPES, 2017, p. 22). 83UNIDADE I O Início da História da Alimentação 83UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais 4. PERSONAGENS DA GASTRONOMIA A palavra “gastronomia” foi criada por Arkhestratus, pesquisador dos prazeres da mesa, escritor, poeta e viajante em busca de descobertas culinárias no século IV a.C., mas o termo só adquiriu um caráter mais abrangente no século XVIII, com Jean Anthelme Brillat-Savarin, um estudioso francês, amante da boa mesa, foi um dos pioneiros a expor a gastronomia como ciência ou arte, escrevendo um livro que levou o título de “Fisiologia do Gosto”, que foi publicado anonimamente em 1825. A história da culinária é variada e mudou ao longo dos séculos, incluindo novas contribuições, novas ideias e novas criações. A arte da gastronomia também motivou nomes célebres como o pintor e inventor italiano Leonardo da Vinci, que criou diversos acessórios para a cozinha como a máquina de fazer espaguetes, o liquidificador, o saca-rolhas, o assador giratório, o garfo, o picador de alho e o guardanapo e até mesmo o sanduíche como se descobre num de seus escritos: “eu pensava de unir a carne ao pão, mas como posso denominar esse prato?” Alguns chefs foram fundamentais para a gastronomia por serem precursores, e destacam-se mundialmente. 84UNIDADE I O Início da História da Alimentação 84UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais 4.1 Marcus Gavius Apicio De acordo com a história, Marco Gavio Apício (ou apenas Apício; do latim Marcus Gavius Apicius) foi um homem extremamente apto aos assuntos relacionados à cozinha. Nascido em 25 a.C., era herdeiro de uma notória riqueza que utilizou praticamente toda em função dos seus desejos e paixões por uma gastronomia refinada. Foi seguidor do princípio filosófico conhecido como Epicurismo (procura dos prazeres moderados para atingir um estado de tranquilidade e de libertação do medo), se tornou alvo de muitas críticas de personagens como Sêneca e Tácito, do princípio oposto chamado es- toicismo (todo o universo é governado por uma razão universal divina que ordena as coisas), que entendiam isso tudo como uma fraqueza interior, mas tendo uma influência muito clara da sociedade que viveu focada no luxo extremo e o prazer de fazer o que gosta. Segundo Carazzali (1994, p. 28), “sob a ótica desse fundo obscuro, desprovido de boas referências morais, a personalidade de Apício perde o aspecto negativo com que Sêneca e Tácito a marcaram para tornar-se o espelho de sua época, voltada para a busca do prazer, pois no estado e na religião não encontravam pontos válidos de referência”. Apício entrou para a história pela grande paixão pela arte da cozinha, na qual aca- bou gastando toda sua riqueza, limitando-se a uma quantidade de sestércios (sestertius, em latim), que era a moeda da época. Sem condições de manter o padrão ao qual estava habituado, acabou colocando um ponto final na sua vida, tomando um copo de veneno. 4.2 Jean Anthelme Brillat-Savarin No período em que aconteceu a Revolução Francesa, Brillat-Savarin foi morar na Suíça e depois seguiu para os Estados Unidos, trabalhava como professor de francês e tocava violino em uma orquestra. Voltou para a França em 1796 e foi nomeado por Napo- leão juiz da Cour de Cassation (Tribunal de Cassação), “seria geral a surpresa quando se descobriu a identidade do autor, homem considerado exemplo de frugalidade e moderação. Em poucos meses, Brillat-Savarin se tornou famoso, e seu livro se converteu em um dos grandes clássicos do gênero”. Após a fama, alguns profissionais da gastronomia apenas o consideravam um convencido (FRANCO, 2006, p. 216). Brillat-Savarin é visto como o pai da dieta com baixo teor de carboidratos. Para ele, o açúcar e a farinha branca causavam obesidade, então optava por ingredientes ricos em proteínas. Esse grande personagem da gastronomia veio a óbito no dia 2 de fevereiro de 1826, em Paris. 85UNIDADE I O Início da História da Alimentação 85UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais 4.3 François Vatel Nascido em uma família de fazendeiros no norte da Suíça, ele entrou na casa de Luís XIV como mordomo e acabou se tornando o homem de confiança da casa. Com o tempo acabou sendo conhecido como o maître d’hôtel (mestre de hotel). Sempre esteve disposto a alimentar, entreter e acomodar os mais diversos convidados no decorrer dos anos. Mais tarde, foi trabalhar para o príncipe de Condé no castelo de Chantilly, tornando o local um dos mais requintados de toda a França na época. Franco (2006, p. 170) confirma que “em Chantilly, sob a orientação de Vatel, desenvol- veram-se preparações culinárias muito mais sutis que as dos mestres de Florença. Enquanto isso, novos alimentos e influências continuavam a chegar de várias partes do mundo”. Em 1671 Vatel acabou se suicidando, talvez por esgotamento ou mesmo por medo da desonra. O fato foi que ele acabou cometendo o suicídio porque não recebeu peixe suficiente para um banquete dedicado a Luís XIV. Apesar de Vatel nunca ter sido conhecido de fato como um chef, seu nome per- manece ligado ao surgimento da alta gastronomia francesa. Seu gesto final simboliza os requisitos de um momento em que o cargo de cozinheiro era uma posição competitiva, e em alguns momentos, sem espaço para erros. 4.4 Grimod de la Reynière Alexandre Balthazard Laurent Grimod de La Reynière nasceu em 20 de novembro de 1758 em Paris, alcançou destaque durante o reinado de Napoleão graças ao seu estilo de vida gastronômico e extravagante. Herdou grande fortuna de seu pai, Laurent Grimod de La Reynière, no ano 1793. Tornou-se membro da Société du Caveau (uma sociedade do café, composta por nomes influentes da época). Alexandre nasceu com sindactilia (dois ou mais dedos da mão fundidos), o que já despertou um grande humor negro nele desde jovem. Deu início à sua carreira pública em Lausanne, ao colaborar com a revista Journal des théâtres em 1777-78. Começou a escrever críticas de teatro, sendo que em algumas delas ele se auto pu- blicou, como na Le Censeur Dramatique. Durante a ausência de seus pais, ele deu grandes jantares no Hotel Grimod de La Reynière, em um desses jantares seu pai voltou antes do esperado, e acabou se deparando com um porco vestido acompanhando o jantar. A história rapidamente se espalhou por Paris, e por consequência disso seu pai acabou o deserdando. 86UNIDADE I O Início da História da Alimentação 86UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais Alexandre Balthazard começou a aprender a arte da boa comida, mesmo com pouco apoio familiar. Uma das mais notórias foi a substituição do serviço à la française, que era uma forma de servir os pratos todos simultaneamente. No sistema de servir os pratos conhecido como à la russe (no Brasil esse mesmo serviço ainda se chama “à la française’’ eram servidos os pratos um de cada vez. Segundo Franco (2006, p. 216), o próprio De la Reynière dizia que “a maneira de servir um prato de cada vez é o refinamento da arte de bem viver’’. Pode-se, assim, comer os alimentos quentes por mais tempo e em maior quantidade, pois cada prato representa um centro único, para onde convergem todos os apetites”. Com o falecimento da mãe em 1812, ele herdou uma grande quantia da família e simulou seu próprio funeral só para presenciar quem estaria presente. No dia 25 de dezem- bro de 1837 ele acabou falecendo de fato, mas seu legado para o mundo da gastronomia vive até hoje. 4.5 Marie Antoine Carême Marie Antoine Carêmenasceu no dia 8 de junho de 1783, em Paris, na França. Re- conhecido como o primeiro chef do mundo, carregando uma fama de estrela internacional, algo comum para a modernidade. Destacou-se pela forma simples e codificada do estilo de culinária chamado haute cuisine, que é a alta gastronomia (FRANCO, 2006). O então considerado “chef dos reis e rei dos chefs’’ teve uma infância difícil. Aban- donado por seus pais em 1794 durante a Revolução Francesa, começou a trabalhar em um restaurante em troca de um quarto. Após adquirir experiência trabalhando em lugares bem vistos na França, como uma loja próxima ao Palais-Royal pós-revolucionário em um bairro de alto padrão elegante, cheio de vida e movimentado, Carême abriu sua própria loja, chamada de Pâtisserie de la rue de la Paix, em que trabalhou e manteve até o ano de 1813. Trabalhava como freelancer na criação de peças para o diplomata e chef francês Talleyrand-Périgord, aumentando seu nível de habilidade e reconhecimento perante a so- ciedade de alto escalão. Tanto que mesmo Napoleão, conhecido como uma pessoa neutra em relação à gastronomia, se rendeu à relevância das relações sociais no mundo diplomático. Por isso, no ano de 1804, Napoleão ordenou Talleyrand para comprar o Château de Valençay, um grande castelo fora do território de Paris. Talleyrand logo se mudou para o local e levou junto Carême. 87UNIDADE I O Início da História da Alimentação 87UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais No Castelo, Carême mostrou toda sua capacidade e sagacidade ao criar um total de menus no período de um ano, sem nenhuma repetição, e usando apenas produtos sa- zonais, “Carême substituiu os complicados coulis do século XVIII por três molhos básicos: espagnole, velouté e bechamel. Além dos molhos à base de ovo (mayonnaise, hollandaise e béarnaise), a partir dos três molhos básicos, preparava dezenas de molhos compostos” (FRANCO, 2006, p. 214). Após a queda de Napoleão, Carême foi ser chef em Londres, e voltaria para Paris um tempo depois para trabalhar em um banco, mas a gastronomia permaneceu com ele através de vários livros escritos, principalmente sobre a enciclopédia L’Art de la Cuisine Française, com uma coletânea de cinco volumes, ele completou três antes da morte, nos quais englobava, além de diversas receitas, planos de menus, instruções para organizar cozinhas, e as bases para a profissionalização da gastronomia. Carême veio a falecer em 12 de janeiro de 1833, a causa foi apontada devido ao fato dele durante muitos anos inalar os fumos tóxicos do carvão que ele utilizava para cozinhar. FIGURA 10: MARIE ANTOINE CARÊME Fonte: disponivel em: https://amigogourmet.webnode.com/news/ grandes-cozinheiros-(14)-antonin-car%C3%AAme/. Acesso em: 27 jul. 2021. 88UNIDADE I O Início da História da Alimentação 88UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais 4.6 Georges Auguste Escoffier Georges Auguste Escoffier nasceu em 28 de outubro de 1846, na França. Para muitos, foi o sucessor de Carême, com sua técnica inspirada nesse personagem, simpli- ficando, elaborando, popularizando, atualizando e modernizando os métodos tradicionais de Carême, e consequentemente, da cozinha francesa. Foi o segundo chef, depois de Carême, a ficar conhecido como “o chef dos reis e o rei dos chefs”, foi também o principal chef da França no começo do século XX. Escoffier espelhava-se em Carême, seu guru, que também foi precursor do sistema de brigada de cozinha, simplificando e organizando o funcionamento desse setor. Criando uma hierarquia, em que o chef de cozinha é quem comanda toda a equipe, mantendo a organização e disciplina durante todo o serviço. Elevando o status dos chefs de cozinha para uma profissão de fato respeitada e valorizada. Escoffier racionalizou o trabalho na cozinha profissional, dividindo-a em cinco setores interdependentes: o do garde-manger, responsável pelos pratos frios e pelo suprimento de toda a cozinha; o do entremetier, incumbido das sopas, legumes e sobremesas; o do rotisseur, encarregado dos assados, bem como dos pratos grelhados e fritos; o do saucier, responsável pelos molhos; e o do pâtissier, que responde pelo preparo da pastelaria necessária aos vários setores da cozinha (FRANCO, 2006, p. 233). Escoffier publicou o Le Guide Culinaire, que ainda é usado como um trabalho de referência importante, é utilizado como livro de receitas e também livro didático para a culi- nária clássica. As receitas, as técnicas e as abordagens de cozinha de Escoffier continuam a ser influentes hoje, e foram adotadas por chefs e restaurantes não só na França, mas também em todo o mundo. Em 1928, ele ajudou a criar a Associação Mundial de Sociedades de Chefs e tor- nou-se seu primeiro presidente. Faleceu no dia 12 de fevereiro de 1935 com 88 anos, dizem que o motivo foi a perda de sua esposa Delphine. 4.7 Alain Ducasse Ducasse nasceu no dia 13 de setembro de 1956, no sudoeste da França. Em 1972, aos 16 anos, começou a estagiar no restaurante Pavillon Landais, e também na famosa escola de hotelaria Bordeaux. Aos 21 anos foi trabalhar como assistente no Moulin de Mougins, comandado pelo chef Roger Vergé, em que aprendeu os métodos de cozimento provençais. A primeira vez que teve a honra de chefiar uma cozinha foi em 1980, quando assu- miu a cozinha do L’Amandier em Eugène Mougin, que quatro anos depois foi premiado com duas estrelas no Guia Michelin. 89UNIDADE I O Início da História da Alimentação 89UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais Em 1987 assumiu a posição de chef de cozinha no Hotel de Paris em Monte Carlo, incluindo toda gestão de alimentos e bebidas do restaurante Le Louis XV, que fazia parte desse mesmo hotel. No ano de 1995, abriu uma pousada a que deu o nome de La Bastide de Moustiers, em Provence, e começou a atingir os interesses financeiros de outros hotéis da Provence. No ano seguinte, abriu seu primeiro restaurante no 16º Distrito de Paris, na França. Foi premiado com três estrelas pelo Guia Michelin apenas oito meses após a abertura. Após a abertura do primeiro restaurante, até os dias atuais, Ducasse abriu outros diversos restaurantes distribuídos por todo o mundo, os quais, na sua maioria, foram clas- sificados com três estrelas Michelin. Atualmente, Alain Ducasse possui a sua própria escola de gastronomia e descreve em seu site que é um cozinheiro feliz e que viaja bastante, sempre atento às novas descobertas. 4.8 Ferran Adriá Ferran Adrià, espanhol, é considerado um dos melhores chefs do mundo, começou sua carreira em 1980 lavando pratos no Hotel Playafels em Ibiza. Mais tarde, no mesmo hotel, aprendeu a cozinhar a tradicional comida espanhola. Adrià ficou mundialmente conhecido por elevar a gastronomia molecular, aventurou- -se em experimentar novas tecnologias, e deparou-se com inesperadas texturas e sabores. Em 2003, Adrià foi considerado pela revista New York Times como “o melhor chef do mundo”. Ferran Adrià foi proprietário do restaurante El Bulli (especializado em cozinha mo- lecular), restaurante com três estrelas Michelin, ficou mundialmente conhecido, e recebia mais de 2 milhões de reservas ao ano, nesse momento o sucesso passou a ser sinônimo de angústia e Adrià acabou fechando o restaurante em julho de 2011. Em junho de 2020, com outros chefs, arquitetos, prêmios Nobel de economia, diri- gentes de organizações internacionais, tornou-se signatário do apelo a favor da economia púrpura («Por um renascimento cultural da economia») publicado no Corriere della Sera, El Pais e le Monde. 90UNIDADE I O Início da História da Alimentação 90UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais 4.9 Paul Bocuse Paul Bocuse nasceu em 11 de fevereiro de 1926, sendo considerado um renomado chef francês, grande parte da sua região de trabalho é em Lyon, em que ele mantém res- taurantes. É conhecido por ter um alto padrão de qualidade nos seus restaurantes, e por suaforma de trabalho e condução inovadoras para a cozinha. Foi reconhecido o melhor chef da sua época, sendo nomeado em 2005 o “Chef do Século” pelo Culinary Institute of America. Paul Bocuse, Jean Pierre Troisgros, Michel Guérard, Roger Vergé e Raymond Olivier retomaram a nouvelle cuisine francesa, e foram precursores de uma cozinha que se caracteriza por ser leve, baseada em ingredientes naturais e frescos. Não só exerceu enorme influência sobre os chefs de sua geração, ele foi o respon- sável pela formação de muitos deles no mundo todo. Esse personagem da gastronomia, mediante a sua importância, criou e deu seu nome a um dos maiores prêmios da gastrono- mia, o Bocuse d”Or. Paul Bocuse morreu em 2018, aos 91 anos, em sua casa que abriga seu conhecido restaurante em Collonges-au-Mont-d’Or, perto de Lyon (centro-leste). Bocuse sofria da doença de Parkinson. FIGURA 11: PAUL BOCUSE Fonte: disponivel em: https://www.rfi.fr/br/cultura/20110331-paul-bocuse-e-eleito-o-chef-do-seculo acesso 27 julho 2021 91UNIDADE I O Início da História da Alimentação 91UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais 4.10 Joel Robuchon Nascido em 1945, filho de um pedreiro, em uma família modesta de católicos fervo- rosos de Poitiers, onde Joel Robuchon passou sua infância, e entrou no seminário menor de Mauléon em Deux-Sevres para se tornar um padre católico. Descobriu uma vocação para cozinhar ajudando as freiras da cozinha do estabelecimento e, finalmente, mudou-se em 1960, aos 15 anos, para a gastronomia como aprendiz de confeiteiro no Relais de Poitiers do chef Robert Auton. Em 1974, iniciou sua carreira, aos 28 anos, como chef de uma brigada de 90 chefs no Hotel Concorde Lafayette. Em 1978, tornou-se chef do Hotel Nikko onde ganhou suas duas primeiras estrelas Michelin. Em 1981, criou o seu próprio restaurante, Jasmim, em Paris, onde obteve, entre outros prêmios, as distinções de elite das três estrelas no Guia Michelin em 1984 (na velocidade recorde de uma estrela por ano). Em 1995, aposentou-se como chef aos 50 anos e dedicou-se à transmissão de seus conhecimentos culinários. Com grandes títulos e prêmios, foi considerado o melhor cozinheiro do século, em 1990. Em 6 de agosto de 2018, Joël Robuchon faleceu em Genebra de câncer pancreá- tico aos 73 anos de idade. SAIBA MAIS Também conhecido como alimentação viva, em inglês “Raw Food”, o crudivorismo é um conceito de alimentação que prioriza os alimentos de forma crua e da maneira mais natural possível. O mais importante está na temperatura dos alimentos. Eles não devem chegar acima dos 45-50ºC, por isso não podem ser assados, cozidos ou fritos, e são exclusivamente de origem vegetal. Fonte: disponível em: https://www.diagrarte.com.br/wp-content/uploads/2015/01/Alimentacao-viva-para- -todos_naturale-18-ed.pdf acesso 26 julho 2021 REFLITA “Se queres prever o futuro, estuda o passado”. (CONFÚCIO, filósofo chinês) https://pt.wikipedia.org/wiki/Paris 92UNIDADE I O Início da História da Alimentação 92UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias AtuaisUNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais CONSIDERAÇÕES FINAIS Caros Alunos !! Chegamos ao final da Unidade II, e ao longo dessa maravilhosa viagem pelo tempo vimos que a comida sempre teve um papel central nas sociedades ao longo da História. Na Idade Média servia como parâmetro social, pois identificava qual camada uma pessoa pertencia pelo alimento que consumia. Era também um elemento político, pois era nos banquetes que selavam aliança e acordos importantes. Tinha seu aspecto religioso, pois o corpo e o sangue de Cristo estavam representados simbolicamente no pão e no vinho. A Idade Moderna foi marcada pelas Grandes Navegações e pelo Renascimento, um movimento cultural que despertou para a liberação dos prazeres, com o surgimento do açúcar que era chamado de “ouro branco”. Houve também um grande intercâmbio gastro- nômico entre Europa, Ásia, Américas e África, com a introdução de novos alimentos como a mandioca, o milho, a banana, o café, a batata e o chocolate. A Idade Contemporânea deu asas à imaginação dos chefs de cozinha, ao combi- narem o classicismo com novos conceitos de restaurantes e inovações tecnológicas. Na segunda metade do século XX surgiu a nouvelle cuisine, ou nova cozinha, onde o sabor natural dos alimentos era privilegiado, valorizando os pratos que tinham cozimento rápido, sem excesso de temperos, com molhos mais leves e menos gordurosos. A apresentação dos pratos também era importante, com harmonia de cores, de cheiros e sabores. E assim surgiram novas tendências gastronômicas como o Comfort Food, Slow Food, Veganismo, o Fast Food e outros. Acredito que, no que diz respeito à História da Gastronomia, foi possível compreen- der como a evolução humana está diretamente ligada à história da sua própria alimentação. Assim, espero que o que vimos nesta Unidade, desperte em você a vontade de ir além, buscando sempre novas informações para aumentar ainda mais o seu conhecimento. 93UNIDADE I O Início da História da Alimentação 93UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais LEITURA COMPLEMENTAR NOUVELLE CUISINE: AUTONOMIA DOS CHEFS E DESTRADICIONALIZAÇÃO DO CAMPO GASTRONÔMICO Maria Lúcia Bueno “A nouvelle cuisine é tão lindamente disposta nos pratos que você sabe que os dedos de alguém andaram por tudo.” A ironia fina da norte-americana Julia Child, sobre o que se chamou de revolução gastronômica dos 70 do século passado. O movimento libertou os chefs permitindo a criação de novos estilos ou formas de cozinhar ( cozinha de assinatura , cozinha de fusão, etc.). Foi assim que o chef ficou conhecido pelos clientes e, assim, se tornou um artista de culinária. Essa tendência culinária nasceu na França por volta de 1970 , tendo inicialmente uma preocupação com a dietética. O “mago do fogão”, Bocuse foi o primeiro a se tornar grife e estrela da cozinha globalizada, tendo recebido, aos 85 anos, em New York, o prêmio de “chef do Século”, concedido pelo prestigioso Culinary Institute of América, que o nomeou como “o mais em- blemático chef de todos os tempos”. Ao se ouvir a frase preferida de Bocuse: “Todas as manhãs (...) vou ao mercado...” editada no prefácio do seu livro “La Cuisine de Marché”, não fica difícil entender a filosofia que o levou a revolução iniciada nos anos 50 na culinária francesa, criando a nouvelle cuisine, que se espalhou mundo afora e se incorporou definitivamente ao dia-a-dia das pessoas nos quatro cantos do planeta, de maneira sutil e irreversível, mudando hábitos alimentares e alterando a cultura gastronômica em muitos lugares. Na realidade o embrião da nouvelle cuisine, teve início com o chefe Fernand Point, no restaurante de sua propriedade, o La Pyramide, um 3 estrelas instalado na pequena cidade de Vienne, próxima a Lyon, que se tornou a meca da alta gastronomia. Point, que jamais publicou um livro de culinária, foi mentor de expoentes da culiná- ria e somente admitia o uso de ingredientes frescos, preparados na hora, em sua cozinha, jamais admitindo que pratos fossem preparados de um dia para outro. O movimento foi iniciado por dois críticos famosos da época, Christian Millau e Henri Gault (criadores do mais importante guia gastronômico, Gault-Millau). 94UNIDADE I O Início da História da Alimentação 94UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais Nouvelle Cuisine, na tradução livre, nova cozinha Na história se traduz como o movimento que surgiu na França, em idos de 1970 como um levante contra a cozinha clássica francesa. Encabeçado por nomes de peso como os chefs Paul Bocuse, Michel Guérard, Pierre Troisgros e Roger Vergé. Todos defendiam a bandeira de uma cozinha mais leve em contrapartida aos mo- lhos pesados e condimentados tão característicos nos pratos da cozinha tradicional. Entre os nomes ilustres que marcaram tal mudança gastronômica temos: Paul Bocuse, Pierre Troisgros (paido chef francês mais que carioca Claude Troisgros), Alain Chapel, Louis Outhier, Raymond Thuilier. Esse movimento foi uma tendência seguida por vários chefs europeus (principal- mente franceses). Gault Millau delineou, em 1973, os 10 mandamentos da Nouvelle Cuisine, que seriam as bases para uma nova gastronomia. 1- A culinária é uma arte criativa na qual o chef e o “jantar” estão em diálogo. A comida é o meio principal para este diálogo, mas todos os aspectos sensoriais da experiência gastronômica, também devem contribuir para isto. 2- Regras culinárias, convenções e tradições devem ser entendidas, porém elas não devem desautorizar ou impedir a criação de novos pratos. 3- A criatividade culinária quando quebra regras e tradições, cria uma forma pode- rosa de fazer o comensal pensar em uma experiência gastronômica. 4- Comensais têm expectativas em relação à comida a ser servida, umas explícitas, outras não. Surpreendermos com comidas que desafiam suas expectativas, é como outra maneira de envolvê-los intelectualmente. Isso inclui colocar sabores familiares em formas não ortodoxas ou vice versa. 5- Além da surpresa, muitas outras emoções, reações, sentimentos e pensamentos podem ser provocados pela cozinha modernista, entre eles a fantasia, a sátira e a nostalgia. O repertório do chef modernista não é apenas sabor e textura, é também a gama de reações emocionais e intelectuais que o alimento pode inspirar nos comensais. 6- Criatividade, invenção e inovação são intrínsecos ao papel do chef modernista. Porém quando se utilizar ideias ou know how de outros chefs, devemos sempre creditá-los. 7- Ciência e tecnologia são fontes que podem ser utilizadas na criação de novos pratos ou técnicas culinárias, porém, são estes os meios, não o objetivo final. 95UNIDADE I O Início da História da Alimentação 95UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais 8- Devemos avaliar os ingredientes e os fundamentos da culinária, ingredientes como trufas e foie gras tem o mesmo peso dos demais ingredientes. 9- Ingredientes originários da ciência e tecnologia dos alimentos, como os hidroco- lóides, enzimas etc., são ferramentas poderosas, sem as quais, seria impossível preparar alguns pratos. 10- Chefs e comensais devem ser sensíveis às condições sob as quais os alimentos são plantados, colhidos ou abatidos. Sempre que possível devemos procurar por fontes sustentáveis e ecologicamente corretas. Nouvelle cuisine: autonomia dos chefs e destradicionalização do campo gastronômico O motor das transformações impostas pela Nouvelle cuisine foi a expansão da autonomia individual no interior do campo gastronômico, a partir da construção de novos discursos, que induziram os atores a abandonarem a lógica institucional dominante por novas lógicas e papéis (RAO; MONIN; DURAND, 2003). Essa mudança de operação levou à erosão da hegemonia da cozinha tradicional francesa. O surgimento da Nouvelle cuisine é um exemplo perfeito do que Anthony Giddens designa de “Reflexividade Institucional (GIDDENS, 2002), que faz com que todo conheci- mento novo produzido sobre a estrutura social tenda a alterar substancialmente, e de forma imprevisível, sua dinâmica. As contínuas informações sobre a realidade social, em lugar de reforçar os meca- nismos de controle, como se previa, derivaram num movimento de instabilidade. “A produ- ção de conhecimento sistemático sobre a vida social torna-se integrante da reprodução do sistema, deslocando a vida social da fixidez da tradição” (Giddens, 1991, p. 59). A nova corrente não foi impulsionada por um chefe de cozinha, mas por dois críti- cos, Gault e Millau, responsáveis por um dos guias gastronômicos de maior prestígio, que lançaram, em 1973, um desafio pela renovação e modernização da culinária, propondo alguns novos mandamentos que atacavam os pilares da tradição gastronômica francesa. Começaram desvinculando a alta gastronomia do mundo do luxo, à qual estava associada, minimizando a importância dos cenários requintados e dos produtos caros, para enfatizar o talento do chef. 96UNIDADE I O Início da História da Alimentação 96UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais Em março de 1973, sob o título de À l’ouest du nouveau, anunciam uma transfor- mação na geografia gourmande de Paris, chamando atenção para uma nova geração de chefs que despontava na periferia da cidade,7 praticando uma cozinha inventiva, com um cardápio reduzido, instituindo um novo estilo baseado na simplicidade. Alguns meses depois, em outubro, publicaram outro artigo formulando o que pas- saram a designar como os dez mandamentos da Nouvelle Cuisine. Entre eles, constavam: a defesa de uma gastronomia mais leve; a valorização dos produtos frescos disponíveis no mercado; a utilização de novas técnicas e tecnologias; a abolição de anacronismos, como os temperos pesados e os cozimentos excessivos, resíduos de épocas em que as cozinhas não dispunham de sistemas de refrigeração (RAM- BOURG, 2010). A adesão entusiasmada de um grupo de chefes gerou uma verdadeira revolução, promovendo uma nova maneira de fazer cozinha: não mais a partir da tradição, mas de um projeto ligado a um conceito de gastronomia concebido a partir dos estilos de vida, das tecnologias, do estudo das novas possibilidades das tradições e dos ingredientes, mas, so- bretudo, das novas demandas da sociedade de consumo (FRANCO, 2006; RAMBOURG, 2010; SUAUDEAU, 2007). A proposta se difundiu rapidamente para os Estados Unidos, para países do Oriente Médio e de outras partes da Ásia. O entusiasmo pelo exotismo, pela experimentação e pela invenção estreitou as colaborações, intensificou o processo de trocas, promovendo o fortalecimento de uma nova prática: as hibridações. Nesse quesito, um destaque foi a forte influência da cozinha japonesa sobre a cozi- nha ocidental, modificando as técnicas de cozimento, a maneira de lidar com os produtos, o serviço nos restaurantes e a estética dos pratos (RAMBOURG, 2010). A gastronomia francesa, pautada por regras rígidas e a observância de algumas práticas e ingredientes locais, havia se transformado num anacronismo. A partir de então, efetiva-se o processo de sua destradicionalização, com a dissolução de seu caráter local e sua reconfiguração numa formulação global (GIDDENS, 1991, 1997). A Nouvelle Cuisine é a primeira de uma série das correntes que irão constituir o campo de debates em torno do qual se organiza o novo modo de operação da gastronomia na globalização cultural (CRANE, 2012). Fonte disponviel em: http://sossegodaflora.blogspot.com/2020/07/nouvelle-cuisine- -autonomia-dos-chefs-e.html acesso 26 julho 2021 97UNIDADE I O Início da História da Alimentação 97UNIDADE II Alimentação da Idade Média aos Dias Atuais MATERIAL COMPLEMENTAR LIVRO Título: Gula: História de um Pecado Capital Autor: Florent Quellier. Editora: Senac Sinopse: Se a palavra “gula” só aparece nas fontes manuscritas no final da Idade Média, sua história é bem mais antiga e remonta aos primeiros tempos do cristianismo dos séculos III e IV. De cunho negativo, qualifica um dos sete pecados capitais. Aos poucos, “gula” vai adquirindo um sentido mais positivo, nos séculos XVII e XVIII. Tornada “honesta” e “amável”, a boa gula designa então os amantes da boa comida. Ricamente ilustrado, o livro trata de toda uma trajetória de valores sociais ligados à arte do bem comer. LIVRO Título: História da alimentação Autor: Jean Louis Flandrin & Massimo Montanari. Editora: Estação Liberdade. Sinopse: Tratado histórico e antropológico sobre a alimentação, desde a Pré-História até os dias de hoje, apresentado de forma cronológica e dissertando sobre assuntos como função social dos banquetes, sistemas alimentares e modelos de civilização, a die- tética contra a gastronomia, etc. Livro fundamental para historiado- res, sociólogos e defensores das boas causas gastronômicas, por 42 destacados especialistas. Dois ricos cadernosde ilustrações coloridas. FILME/VÍDEO Título: Em nome de Deus Ano: 1988. Sinopse: Irlanda, década de 60. Margaret (Anne-Marie Duff) foi estuprada num casamento por seu primo. Bernardette (Nora-Jane Noone) é muito bonita e por isso representa um perigo para os homens da vizinhança. Rose (Dorothy Duffy) e Crispina (Eileen Walsh) são mães solteiras. Por causa disso, essas quatro mulhe- res são mandadas para um convento por seus familiares, com o intento de “pagar por seus pecados”. Essa punição é por tempo indeterminado, o que significa uma vida de trabalhos forçados na lavanderia do asilo católico. As internas são conhecidas como “as irmãs Magdalena”. Elas são humilhadas regularmente pelas madres, que não toleram desobediência, muitas vezes usando até mesmo castigos físicos. 98 Plano de Estudo: ● O início da cultura alimentar brasileira; ● A cozinha colonial brasileira; ● A cozinha da monarquia e do império; ● Arroz, feijão e feijoada. Objetivos da Aprendizagem: ● Conceituar e contextualizar a alimentação dos indígenas na época do descobrimento; ● Compreender a miscigenação da cozinha brasileira no período colonial; ● Compreender as características da cozinha da monarquia e do império; ● Estabelecer a importância do binômio arroz e feijão na alimentação do brasileiro. UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada Professor Esp. Cláudio da Silva Junior Professora Me. Flávia Helena Franco de Moura 99UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada INTRODUÇÃO A alimentação é um fator primordial na rotina diária da humanidade, não somente por ser necessidade básica, e através da evolução histórica da alimentação percebe-se que gastronomia e hábitos são aspectos importantes que nos auxiliam a refletir sobre os méritos da culinária e sua evolução ao longo do tempo. A partir do estudo da gastronomia brasileira, intensamente composta por gostos do mundo aliados aos hábitos dos nativos frente aos ingredientes locais, é possível conhecer não apenas a arte de cozinhar e o prazer de comer, mas também a própria cultura do Brasil. A partir do encontro entre portugueses e índios, a combinação dos recursos dispo- níveis e as práticas culinárias do Mediterrâneo e do Trópico Sul Americano, desenvolveram critérios de status social, atribuindo-se maior ou menor prestígio a algumas comidas, e este status era estendido às pessoas que as comiam. Com o tempo, as mãos portuguesas juntaram sua própria tradição culinária àquela que aprendiam dos indígenas, e criaram com os recursos da terra produtos até então des- conhecidos tanto em Portugal como no Brasil. Com a chegada dos escravos africanos, nossa cultura alimentar foi ainda mais en- riquecida, com os produtos africanos e com uma cultura tão diferente da cultura portuguesa e da indígena. Imagine se você pudesse entrar no Delorean, o carro de “De Volta para o Futuro” e desembarcar em uma das caravelas de Pedro Álvares Cabral, ou numa das tribos dos Tamoios? Ou quem sabe, participar do último Baile da Ilha Fiscal, junto com D. Pedro II? Como isso ainda é um sonho impossível, convido você a viajar pelas páginas da apostila para compreender como foi formada nossa gastronomia nos tempos do Brasil Colônia e do Brasil Império. Bons Estudos!! 100UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada 1. O INÍCIO DA CULTURA ALIMENTAR BRASILEIRA Até o século XV pouco se sabia a respeito dos oceanos e da geografia da Terra. As informações que os europeus possuíam eram imprecisas e povoadas de lendas e histórias religiosas. Tais informações, em sua maioria, foram colhidas pelos europeus dos gregos, que desde a Antiguidade viajavam pelos mares e contavam aquilo que haviam visto em histórias fabulosas, cheias de mitos e seres maravilhosos e monstruosos. Somavam-se às histórias transmitidas pelos gregos, aquelas que os próprios europeus criaram, nas quais a religiosidade cristã estava muito presente. O que se sabia até então era que a Terra estava dividida em três partes (Europa, Ásia e África), que estavam separadas por mares estreitos e pelos rios Ganges, Eufrates, Tigre e Nilo, e, por fim, que ela era cercada por um único oceano, cheio de perigos e habitado por monstros aterrorizantes. Apesar do medo que o oceano provocava e das dificuldades técnicas de se viajar por ele, nos fins do século XV, os europeus conseguiram desvendar seus mistérios, movidos por questões econômicas, políticas, religiosas, e até mesmo pelo fascínio que ele despertava. O que permitiu as grandes viagens marítimas, nesse período, foi o desenvolvimento dos instrumentos de navegação, a criação de embarcações mais resistentes e modernas, os incentivos e investimentos financeiros e também a disposição dos navegadores para viajar. Instrumentos como a ampulheta, a balestilha, o astrolábio, a bússola, o quadrante, etc, há muito tempo conhecidos no oriente, foram, nesse período, bastante divulgados entre os europeus e aperfeiçoados por eles. 101UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada Os portugueses foram os primeiros a se aventurarem pelo oceano Atlântico, movi- dos pelos interesses correntes na época. Enquanto a maior parte da Europa se encontrava, no século XV, dividida em várias pequenas regiões rivais entre si, Portugal já era um reino unificado desde o século XII, o que possibilitou seu crescimento e desenvolvimento. A Espanha também empreendeu, nesse período, grandes viagens, e, numa delas, Cristóvão Colombo chegou às terras de um continente, que era desconhecido por todos até então. Tais terras, que posteriormente receberam o nome de continente Americano, constituíam um Novo Mundo, totalmente diferente daquele que era conhecido pelos europeus. Mas até fins do século XV, os portugueses não haviam conseguido chegar às Ín- dias, o que era um dos principais objetivos de suas viagens. Somente em 1498 é que uma expedição portuguesa, comandada por Vasco da Gama, conseguiu chegar à cidade de Calicute, na Índia, quando, por fim, o sonho português foi concretizado. Depois que Vasco da Gama retornou da expedição à Índia, o rei português Dom Manuel enviou uma outra expedição para lá , a fim de estabelecer relações comerciais com os indianos. Não sabemos se o nascimento do Brasil se deu por acaso, mas não há dúvida de que foi cercado de grande pompa. A primeira nau de regresso da viagem de Vasco da Gama chegou a Portugal, produzindo grande entusiasmo, em julho de 1499. Meses depois, a 9 de março de 1500, partia do Rio Tejo em Lisboa uma frota de treze navios, a mais aparatosa que até então tinha deixado o reino, aparentemente com destino às índias, sob o comando de um fidalgo de pouco mais de trinta anos, Pedro Álvares Cabral. A frota, após passar as Ilhas de Cabo Verde, tomou rumo oeste, afastando-se da costa africana até avistar o que seria terra brasileira a 21 de abril. Nessa data, houve apenas uma breve descida à terra e só no dia seguinte a frota ancorou no litoral da Bahia, em Porto Seguro. Desde o século XIX, discute-se se a chegada dos portugueses ao Brasil foi obra do acaso, sendo produzida pelas correntes marítimas, ou se já havia conhecimento ante- rior do Novo Mundo e Cabral estava incumbido de uma espécie de missão secreta que o levasse a tomar o rumo do ocidente. Tudo indica que a expedição de Cabral se destinava efetivamente às índias. Isso não elimina a probabilidade de navegantes europeus, sobre- tudo portugueses, terem frequentado a costa do Brasil antes de 1500. De qualquer forma, trata-se de uma controvérsia que hoje interessa pouco, pertencendo mais ao campo da curiosidade histórica do que à compreensão dos processos históricos. Cabral permaneceu mais de uma semana nas terras e manteve contato com os habitantes do lugar,os indígenas. Mas em seguida continuou sua viagem, que tinha por destino final a Índia. A princípio, as terras descobertas não despertaram grande interesse 102UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada nos portugueses. O que delas se podia retirar de valioso erao pau-brasil, madeira da qual se extraía um pigmento vermelho usado para tingir tecidos. Para garantir a exploração dessa madeira, os portugueses estabeleceram algumas fortificações na região e se aproxi- maram dos indígenas, a fim de que eles trabalhassem retirando a madeira, que depois era negociada. Em troca do pau-brasil, os portugueses davam toda espécie de objetos que nem sempre tinham muita utilidade, ou eram valiosos. Mas os indígenas ficaram encantados pelos espelhos, colares, pentes, vasilhas, e outros tantos objetos que eles não conheciam e que os portugueses trataram de apresentar-lhes. 1.1 Os Habitantes do Novo Mundo Quando os europeus chegaram à terra que viria a ser o Brasil, encontraram uma população ameríndia bastante homogênea em termos culturais e linguísticos, distribuída ao longo da costa e na bacia dos Rios Paraná-Paraguai. Não se sabe quantos índios existiam no território abrangido pelo que é hoje o Brasil e o Paraguai, quando os portugueses chega- ram ao Novo Mundo. Os cálculos oscilam entre números tão variados como 2 milhões para todo o território e cerca de 5 milhões só para a Amazônia brasileira. Praticavam a caça, a pesca, a coleta de frutas e a agricultura, e quando ocorria uma relativa exaustão de alimentos nessas áreas, migravam temporária ou definitivamente para outras. Para praticar a agricultura, os ameríndios derrubavam árvores e faziam a queimada - técnica que iria ser incorporada pelos colonizadores. Plantavam feijão, milho, abóbora e principalmente mandioca, cuja farinha se tornou também um alimento básico da Colônia. A economia era basicamente de subsistência e destinada ao consumo próprio. Cada aldeia produzia para satisfazer as suas necessidades, havendo poucas trocas de gêneros alimen- tícios com outras aldeias. Mas existiam contatos entre elas para a troca de mulheres e de bens de luxo, como penas de tucano e pedras para se fazer botoque. Dos contatos resultavam alianças em que grupos de aldeias se posicionavam uns contra os outros. A guerra e a captura de inimigos - mortos em meio à celebração de um ritual canibalístico - eram elementos integrantes da sociedade tupi. Dessas atividades, reservadas aos homens, dependiam a obtenção de prestígio e a renovação das mulheres. A chegada dos portugueses representou para os índios uma verdadeira catástrofe - os brancos eram ao mesmo tempo respeitados, temidos e odiados, como homens dotados de poderes especiais. Muitas vezes em conflito, foi possível aos portugueses encontrar aliados entre os próprios indígenas, na luta contra os grupos que resistiam a eles. Os índios que se submeteram ou foram submetidos sofreram a violência cultural, epidemias e mortes. 103UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada 1.2 O Início da Colonização O descobrimento do Brasil não provocou, nem de longe, o entusiasmo despertado pela chegada de Vasco da Gama à Índia. O Brasil aparece como uma terra cujas possi- bilidades de exploração e contornos geográficos eram desconhecidos. Por vários anos, pensou-se que não passava de uma grande ilha. As atrações exóticas - índios, papagaios, araras - prevaleceram, a ponto de alguns informantes, particularmente italianos, darem-lhe o nome de terra dos papagaios. O Rei Dom Manuel preferiu chamá-la de Vera Cruz e logo de Santa Cruz. O nome “Brasil” começou a aparecer em 1503, associado à principal riqueza da terra em seus primeiros tempos, o pau-brasil. Seu cerne, muito vermelho, era usado como corante, e a madeira, de grande resistência, era utilizada na construção de móveis e de navios. Nesses anos iniciais, entre 1500 e 1535, a principal atividade econômica foi a extra- ção do pau-brasil, obtida principalmente mediante troca com os índios. As árvores não cres- ciam juntas, em grandes áreas, mas encontravam-se dispersas. À medida que a madeira foi-se esgotando no litoral, os europeus passaram a recorrer aos índios para obtê-la. Os índios forneciam a madeira e, em menor escala, farinha de mandioca, trocadas por peças de tecido, facas, canivetes e quinquilharias, objetos de pouco valor para os portugueses. O interesse português pelas terras do “Novo Mundo” tornou-se maior a partir do momento em que o comércio com o Oriente não estava mais sendo tão lucrativo. Mas a maior ameaça à posse do Brasil por Portugal não veio dos espanhóis e sim dos franceses. A França não reconhecia os tratados de partilha do mundo, sustentando o princípio de que era possuidor de uma área quem efetivamente a ocupasse. Os franceses entraram no comércio do pau-brasil e praticaram a pirataria, ao longo de uma costa demasiado extensa para que pudesse ser guarnecida pelas patrulhas portuguesas. Considerações políticas levaram a Coroa Portuguesa à convicção de que era necessário colonizar a nova terra. A expedição de Martim Afonso de Sousa (1530-1533) representou um momento de transição entre o velho e o novo período. Um importante passo nesse sentido foi a criação das Capitanias Hereditárias. Há indícios de que Martim Afonso ainda se encontrava no Brasil quando Dom João III decidiu pela criação das capitanias hereditárias. O Brasil foi dividido em quinze quinhões, por uma série de linhas paralelas ao equador que iam do litoral ao meridiano de Tordesilhas, sendo os quinhões entregues aos chamados capitães-donatários. Eles constituíam um grupo diversificado, no qual havia gente da pequena nobreza, burocratas e comerciantes, tendo em comum suas ligações com a Coroa. Dessa forma, coube ao investimento de particulares o início do processo de coloni- zação portuguesa do Brasil. 104UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada 1.3 Identidade da Cozinha Brasileira A cozinha brasileira possui uma identidade única, formada por meio da contribuição de diversos povos, dentre eles, principalmente, os índios, os portugueses e os africanos. Cada povo que, no Brasil chegou, trouxe consigo a sua cultura. Essa diversidade enrique- ceu ainda mais a gastronomia do país, da mesma forma exerceu influências nas demais tradições, nos costumes e nos simbolismos que podemos encontrar em todo o país. Muitas preparações, hoje consideradas típicas da culinária brasileira, são nada menos que o resultado de adaptações da culinária trazida pelos colonizadores e pelos povos que, posteriormente, chegaram aqui. Essa contribuição veio em forma de técnicas de preparo e ingredientes, porém, ajustadas à realidade local. Ao analisarmos a cultura gastronômica da Europa e do Oriente, vemos que mais de quinhentos anos da concepção da cozinha brasileira são um tempo muito curto para obtermos a formação de uma identidade gastronômica, porém, são poucos os países que apresentam tantas riquezas naturais como o Brasil. O Brasil reúne, em suas terras férteis e de clima variado, um leque diverso de surpresas gastronômicas difíceis de serem superadas. Na culinária brasilei- ra, encontramos alegria, combinações surpreendentes e sabores particulares aliados a pratos com influências de outros povos e continentes (MEDINA, 2006, p. 8). FIGURA 1: CARTA DE PERO VAZ DE CAMINHA Fonte: disponível em: https://www.techtudo.com.br/tudo-sobre/a-carta-pero-vaz-de-caminha.html Acesso em 10 ago 2021. De acordo com Zarvos e Didáti (2000, p. 3), “é inegável que a gastronomia faz parte de um povo. Afinal, cada imigrante que aqui chegou trazia, de suas origens — ao lado de suas ambições, seus planos e projetos de vida —, seu modo de falar, de vestir, suas https://www.techtudo.com.br/tudo-sobre/a-carta-pero-vaz-de-caminha.html 105UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada crenças religiosas e, naturalmente, suas preferências alimentares”. Podemos dizer, então, que a cozinha brasileira é uma mistura de raças, hábitos e costumes, dando origem aos pratos típicos que formam a base da alimentação no país. De acordo com Campos (2017, p. 34), “para caracterizar e compreender as origens de nossos hábitos alimentares é preciso recordar o passado, os costumes indígenas,a colonização, os efeitos da escravidão e a evolução da sociedade como um todo até se chegar ao período atual”. 1.3.1 Indígenas Compreender a cozinha indígena é bastante difícil, entretanto, entre as cozinhas que contribuíram para a formação da cozinha brasileira, foi a que mais se manteve fiel à sua origem. Na carta de Pero Vaz de Caminha, de 24 de abril de 1500, encontramos o primeiro depoimento sobre a alimentação aqui encontrada: Dizem que, em cada casa, se recolhiam de trinta a quarenta pessoas, e que assim os achavam; e que lhes davam de comer daquela vianda, que eles tinham, a saber, muito inhame e outras sementes, que na terra há e eles comem. [...] Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi e nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que costumada seja ao viver dos homens. Nem comem senão dessa inhame, que aqui há muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam.” (apud CAS- CUDO, 2004, p. 74 - 75) O que os portugueses chamavam de inhame, na verdade era a mandioca. O inha- me, na verdade, só veio mais tarde, com os africanos. Pero Vaz de Caminha, em sua carta, afirmava que “o que lá se come em lugar de pão e farinha-de-pau. Esta se faz da raiz de uma planta que se chama mandioca, a qual é como inhame” (CASCUDO, 2004, p. 77). FIGURA 2: MANDIOCA: A RAINHA DO BRASIL Fonte: disponível em: http://oagronomico.iac.sp.gov.br/?p=27. Acesso em: 25 jul. 2021. http://oagronomico.iac.sp.gov.br/?p=27 106UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada Os indígenas distinguiam a mandioca brava da mandioca doce, e dela retiravam uma infinidade de subprodutos. Com os índios, os portugueses aprenderam a beneficiar a mandioca e a incorporaram na sua alimentação, para suportar as grandes viagens em terras tupiniquins e até mesmo nas viagens ao Continente Africano onde buscavam mão de obra escrava. Dos subprodutos da mandioca brava, destacam-se as farinhas, que eram acom- panhamento indispensável para todos os alimentos consumidos tanto diariamente, como em festividades;e os beijus que inicialmente eram um alimento dos rituais indígenas e, posteriormente, passou a ser comida de “matolagem” ou “comida de guerra”, pois por ser seco e grosso, resistia às viagens dos índios e, mais tarde, foi companheiro das longas viagens de navio entre as terras brasileiras e Portugal (CASCUDO, 2004, p. 91). A mandioca brava era ralada e depois espremida num cilindro de palha chamado tipiti, que extraía o líquido venenoso da mandioca, que depois era fermentado ao sol ou fervido longamente, dando origem à manicuera ou tucupi, que era usado em caldos que acompanhavam o consumo de carnes de caça, raízes e frutas; ou dando origem a bebidas como o caxiri. Extraíam o amido, conhecido como goma fresca, da primeira decantação. Essa massa era prensada e seca em fornos rudimentares, dando origem às farinhas e aos beijus (CASCUDO, 2004). Outro alimento fundamental era o peixe, que era consumido cozido ou assado. Os peixes eram um dos alimentos favoritos dos indígenas, sendo cozidos ou assados. Quando assados inteiros, quase sempre não eram esvaziados e nem escamados antes. Também se fabricava a farinha de peixe, que era mais farnel para viagens ou caçada que alimento habitual. (LEAL, 1998, p. 67) Quando não havia disponibilidade de peixes, a fonte proteica era suprida pelas carnes de caça como caititus, porco do mato, macaco, anta, lagarto etc; ou por insetos como cupins, tanajuras cruas ou cozidas, com farinha ou paçoca, besouros e o tapuru, conhecido como larva de pau podre. Além do tipiti, a cozinha indígena possuía alguns equipamentos como moquém, yapuna e biabiri. ● Moquém era uma trempe, ou grelha, na qual o índio podia assar suas carnes e conservá-las através do fumeiro. ● Yapuna era uma vasilha de barro, chamada de forno, para cozer a farinha. ● Biaribi era um forno subterrâneo. 107UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada O moquém é utensílio de sobrevivência para tostar e fumar o peixe, sendo usado quando misturavam este importante ingrediente (peixe) na farinha de mandioca, junto com sal e pimenta, tendo-se, assim, a piracuí. Cascudo (2004), conta que a carne moqueada nunca era consumida de imediato, pois era comida de matolagem, de sobrevivência. Com a yapuna, farinhas eram torradas e os beijus eram moldados. A partir do tipiti, temos a manicueira ou tucupi, que é a base do tacacá e do cauim, esse último, parte das bebidas inebriantes (CASCUDO, 2004). FIGURA 3: MOQUÉM Fonte: disponível em: http://moqueio.blogspot.com/2010/08/. Acesso em: 25 jul. 2021 Em relação ao biaribi, tem-se que ressaltar que, a partir dele, teremos comidas saborosas, feitas assadas em sua cavidade. De assar a caça e a pesca diretamente nas labaredas passa-se ao calor das brasas, o moquém ou o espeto fincado à distância, além do uso das panelas que fazem o serviço sem vigilância especial. Havia ainda o processo do forno sub- terrâneo. Conseguem dar ao alimento uma concentração substancial, e quando retirado oportunamente, um sabor inesquecível. (CASCUDO, 2004, p. 88). O pirão também era feito a partir da farinha de mandioca. Além da mandioca plan- tavam e comiam também abóbora, feijão, fava, cará e amendoim. Consumiam frutas como pacovas (banana da terra), abacaxi, goiaba, maracujá, cajú, mambo, entre outras; porém não as plantavam - apenas colhiam. Com a pacova, sempre cozida ou assada, eram feitos mingaus, caldos e bebidas. 108UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada Os indígenas apreciavam a pimenta, porém não temperavam a comida antes de prepará-la. O sal, que era extraído das margens dos rios, das águas represadas ou de algumas plantas era pilado com a pimenta, dando origem a uma pasta chamada de ionquet, e seu consumo era quase um ritual: colocavam um punhado de carne na boca, em seguida, juntava-se um bocado de ionquet e os sabores se completavam. Já o nhambi, erva que lembra o coentro, era consumida tanto cru como para temperar. Da maniva, ainda usavam a folha, para preparar um tipo de guisado de várias coisas, o que deu origem à maniçoba, prato dos dias atuais da cozinha da região norte (CASCUDO, 2004). Segundo Cascudo (2004), várias eram as bebidas consumidas pelos indígenas como os caxiris, os cauins e a jacuba ou xibé. As bebidas fermentadas pela saliva, a partir da mastigação das mulheres mais velhas, tinham o seu uso relacionado ao sobrenatural, motivo pelo qual eles ingeriam essas bebidas nos seus rituais, dentre elas a caxiri e o cauim.A caxiri era feita a partir da fermentação da mandioca e o cauim, a partir da fermen- tação do milho. Já o xibé consistia em uma mistura de farinha de mandioca com água. Da farinha carimã ou da puba, teremos os beijus, que poderão ser feitos de formas variadas e condimentados. Nesse particular, vamos citar mais uma vez Cascudo (2004): Beiju-açu o maior destinado a fazer caxiri; beiju-cauã, achatado e largo como ninho de abelhas; beiju-cica, seco ao sol, quebradiço, atraente, e às vezes de goma de macaxeira (aipim): curandá com castanhas-do-pará, piladas, beiju membeca, mole podendo conter leite de castanhas, requinte posterior, varie- dade local da tapioca de coco nortista; beiju peteca, grosso batido, espesso, grumo áspero, mata fome porque deve ser mastigado com vagar, biju-quira, com pedaços ou sumo da fruta; beiju-ticanga, seco de farinha puba, leve- mente amargo, beiju toteca, meio queimado, dando bebida e o beiju turua, de tapioca delgado (CASCUDO, 2004, p. 99). O índio nos deixou como herança a farinha de mandioca, esse patrimônio que do- minou o paladar do português europeu, fazendo-o ampliar seu plantio em roças e melhorar as tecnologias usadas. O português melhorará as casas de farinha e irá viajar em busca de novas riquezas terra adentro, com os movimentos das entradas e das bandeiras, nessas ocasiões, os viajantes desbravadores sempre deixavam uma roça pronta para a próxima expedição: a mandioca é quemirá sustentar o viajante. 1.3.2 Portugueses Os portugueses contribuíram com diversos tipos de alimentos, técnicas de cultivo, preparo e criação. Consumos de carnes e laticínios, técnicas de cocção para o preparo dos alimentos, fabricação de bebidas, doces, entre outros produtos, inclusive a introdução do sal e do açúcar. Importaram produtos oriundos da Europa e do Oriente, como as especiarias e temperos, produtos antes desconhecidos pelos ameríndios. 109UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada Na tentativa de reproduzir a cultura alimentar europeia, os lusos trouxeram diversos produtos e animais que não existiam no Brasil. Porém, também adaptaram os alimentos ofertados pelos trópicos. Dentre eles, a principal substituição foi a do trigo pela mandioca, que constituía a principal base da alimentação indígena (MARTINS; BAPTISTA, 2010, p. 633 - 644). Para conhecer como os portugueses se alimentavam no século XV, Goes (2008, p. 88) conta que: [...] comia-se pão e peixe cozido, confeitos, mel, figos passados (segundo se lê na carta de Pêro Vaz de Caminha), o universal manjar branco, massapão, bolos de amêndoas, marmeladas e peradas, sopas, muitas sopas, caldos de carne ou hortaliças sobre fatias de pão, papas, trigo, centeio, cevada e aveia, milhetos e painços, pastéis e empadas de caça ou de peixe, perdizes, lebres, coelhos e veados, porcos (presuntos, enchidos, fumados), cabrito, vaca, carneiro, carnes assadas no espeto, galinhas e patos, ovos, cação, sardinha, linguados, corvinas, congro e lampreia, salmão, trutas, salmonetes, besugos, sargos, pescadas, atum, raias, polvos, solhas, sáveis, eirós, tai- nhas, amêijoas, berbigão e ostra, caranguejos, santolas, lagostas, lavagan- tes, percebes, leite, queijo e manteiga, marmelos, limões e laranjas, melão, figo, uvas, ameixas, cerejas, peras, castanhas, amêndoas e nozes, pepinos, alhos e cebolas, grãos, lentilhas. Temperava-se com sal, azeite, banana e especiarias (pimenta canela, noz moscada) vindas da Índia, mel e açúcar da Madeira. Ainda, bebia-se vinho branco e tinto. Um dos alimentos mais importantes levados para a colônia foi o gado. “Quando o Brasil foi descoberto não se encontrou por aqui nenhuma das espécies de gado doméstico da Europa. O boi só foi trazido para o nosso país na época das capitanias hereditárias” (ALZUGARAY; ALZUGARAY, 1983, p. 6). Além dos animais trazidos, os portugueses “plan- taram uma enorme variedade de frutas, legumes, vegetais, cereais e temperos. Trouxeram a festa de Carnaval, Quaresma, São João e Natal, com suas danças, músicas e comidas próprias” (LEAL, 1998, p. 71). As portuguesas aprimoraram muitos pratos indígenas, fizeram o beiju ameríndio mais fino e mais seco (para que ficasse o mais próximo da farinha de trigo), molharam o polvilho de mandioca com leite, criaram novas receitas, incluindo doces e conservas com frutas e raízes da terra, vinho e licor de caju, castanha-de caju no lugar da amêndoa, o cuscuz de mandioca, a carne com cará/mandioca, a canela e cravo conferindo sabores nobres a frutos tropicais (DUTRA, 2005). Foi na doçaria onde se desenvolveram muitas das conhecidas técnicas da cozinha portuguesa. Portugal tem uma larga tradição e história na doçaria conventual, cuja fama se estendeu além-mar e que engrandeceu a gastronomia brasileira. A Doçaria Conventual tem como ingredientes de eleição o açúcar, as gemas de ovos e a amêndoa. A doçaria da mulher portuguesa no Brasil também incluía sobremesas prepa- radas a partir de velhas receitas e ingredientes trazidos da terra natal. Eram bolos, pão de ló, folheados, sonhos, baba de moça, doce d’ovos, fios de ovos, gemadas, mães-bentas, cremes e manjares enfeitados e perfumados com cravo-da-índia, hortelã, erva-doce, alecrim e canela (LEAL, 1998, p. 78). 110UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada FIGURA 4: DOÇARIA CONVENTUAL PORTUGUESA - PASTÉIS DE BELÉM “A mulher portuguesa começou utilizando um elemento que sempre o negro igno- rou e o indígena desatentou: o ovo de galinha” (CASCUDO, 2004, p. 239). Hoje, o ovo de galinha é elemento básico na alimentação dos brasileiros. Os ovos, igualmente, não eram apreciados pelo índio e muito menos pelo negro, que rejeitava até os pratos preparados com eles, pois diziam causar coceiras no corpo e feridas na pele. Os portugueses é que usaram e abusa- ram dos ovos, passando a prepará-los cozidos, fritos, moles, quentes ou em fritadas variadas. Foram ainda acrescentados a pratos indígenas, enrique- cendo canjicas, mingaus e papas, e empregados em uma enorme variedade de gulodices, principalmente, os doces (LEAL, 1998, p. 77). 1.3.4 Africanos Vários povos africanos foram trazidos ao Brasil, daí os diversos conhecimentos culinários introduzidos em nossa cozinha. A cozinha afro-brasileira, que tem sua sede inconfundível na Bahia (Salvador e Recôncavo). Contudo, em todo o país observa-se a herança negra representada em seus pratos. Os primeiros africanos chegaram aqui logo depois que Portugal decidiu ex- plorar a nossa terra para tirar dela o maior lucro possível, e assim, resolver uma grave crise financeira pela qual passava. Iniciava, desse modo, a colo- nização do Brasil pelos portugueses, e as principais atividades econômicas eram a produção e a exportação do açúcar, um dos produtos mais valoriza- dos na época (LEAL, 1998, p. 70). A diversificação da gastronomia brasileira também foi influenciada pelos africanos trazidos para o Brasil pelos portugueses, para trabalho escravo. É difícil saber o número exato e as origens certas dos africanos embarca- dos para o Brasil. Todas as populações adensadas do Senegal ao Gabão, nas regiões do Congo de Angola e pela Contra-Costa, Moçambique, tiveram representantes nos engenhos de açúcar, na mineração e nas lavouras bra- sileiras. Os entrepostos eram depósitos de mercadoria embarcável, acumu- lada e confusa nos grandes armazéns escuros, arrebatada das regiões mais distantes, tangida dos altos sertões africanos para o litoral e rumo à servidão vitalícia (CASCUDO, 2004, p. 163). 111UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada Ao desembarcarem, os negros eram levados para grandes mercados e ven- didos como uma mercadoria qualquer. Chegavam debilitados, exaustos, cobertos de feridas e doentes. Recebiam, então, um tratamento à base de frutas pelos seus efeitos revigorantes, com destaque especial para os cajus, devido às altas porcentagens de vitamina C (LEAL, 1998, p.71). Segundo Didáti & Zarvos (2000), os africanos, ao desembarcarem em nossos portos, não traziam nada consigo. Possuíam, porém, uma arraigada tradição cultural e religiosa, que transmitiram ao restante da população. E foi através do candomblé que influenciaram a nossa culinária, pois os deuses dessa religião são apreciadores da boa mesa. Com o passar dos anos, a cozinha dos deuses transformou-se na cozinha baiana, já que as cozi- nheiras das famílias ricas de Salvador e do Recôncavo, muitas vezes também Iyá Bassê (filhas de santo que preparam os pratos dos orixás), aplicavam no trabalho doméstico os conhecimentos culinários adquiridos nos terreiros. Com os africanos vieram o dendê, feijão, pimenta-da-costa, inhame, quiabo, bananei- ras, erva-doce, gengibre, gergelim, galinha d’angola, temperos etc. Mais tarde, a imigração de outros povos, como italianos, alemães, árabes, japoneses, espanhóis, chineses, poloneses etc., ajudou a enriquecer a cozinha brasileira com suas técnicas de preparo e produção. 112UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada 2. A COZINHA COLONIAL BRASILEIRA A cozinha do Brasil Colonial começa com a chegada da coroa portuguesa que estava determinada a colonizar essas terras, com o objetivo de explorar e habitar a Colônia, que sofria, em função da dimensão territorial, ataques dos holandeses, ingleses, franceses e de piratas. Em 1530, a Coroa Portuguesa organizou a 1ª expedição com o objetivo de colonizar, comandada por Martim Afonso, com a missão de povoar o território, expulsar os invasores e iniciaro cultivo da cana no Brasil. Inauguramos, então, o Ciclo da Cana-de-Açúcar, produto que tinha grande demanda na Europa, o que despertou o interesse da Coroa Portuguesa, uma vez que o território Bra- sileiro oferecia condições ideais de adaptabilidade, pelo seu clima e solo, principalmente na região do nordeste. Esse período no Brasil é marcado pela exploração da cana-de-açúcar, pelo desenvolvimento dos engenhos e pela exploração do trabalho escravo. O cultivo da cana-de-açúcar começou primeiramente em São Vicente e, mais tarde, em Pernambuco, onde se adaptou ao clima úmido e solo rico em massapê; apesar de ter chegado a outras regiões, como Espírito Santo e Bahia,foi em Pernambuco que essa cultura prosperou. Para melhor organizar a Colônia, a Coroa dividiu o Brasil em Capitanias Hereditárias entre donatários, com a responsabilidade de proteger, de povoar e produzir a cana-de-açú- car. Porém a maioria das capitanias fracassaram em função da distância da metrópole e pela falta de recursos , com exceção das capitanias de São Vicente e Pernambuco. 113UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada A necessidade de intensificação da produção da cana-de-açúcar demonstrou a inadequação da mão de obra indígena para esse estágio da monocultura. Foi feita, então, a substituição do índio pelo negro africano, tal como nas colônias americanas, o que inau- gurou o mercado escravagista negreiro para a Colônia (CHAVES E FREIXA, 2007). Os escravos chegavam nos navios negreiros, enquanto os portugueses se instalavam com suas famílias, formando uma sociedade estratificada com os Senhores de Engenho no topo, alguns trabalhadores livres e funcionários públicos no meio; e os índios e os escravos de origem africana na base. Portugal estabelece, então, o Governo Geral como uma forma de centralizar o controle da Colônia com Tomé de Souza. O comércio do açúcar, por ter grande valor no mercado Europeu, fez com que a cozinha desse período se desenvolvesse em torno do engenho de açúcar, onde a maioria das pessoas passou a morar.. O engenho, além do local para a extração do açúcar, possuía a Casa Grande do Senhor do Engenho para sua família, a Igreja e a Senzala para os escravos (CASCUDO, 2004). A cachaça, que nasceu no engenho de açúcar. Essa bebida, que tanto alegrava o trabalhador escravo, foi discriminada por séculos por ser bebida de gente desfavorecida. Ela era barata e de embriaguez imediata. Cascudo (2004), em seu Prelúdio da Cachaça, faz a seguinte afirmação: A cachaça foi a revelação gostosa e catastrófica para negros africanos e amerabas brasileiros. Dissolvente dinástico, dispersador étnico, perturbador cultural. Graças ao álcool, o mercado africano exportador da escravaria pro- longou-se, resistindo às repressões, superando os obstáculos (CASCUDO, 2004, p. 43). O fumo foi uma significativa atividade destinada à exportação, embora estivesse muito longe de competir com o açúcar. A grande região produtora localizou-se no Recôn- cavo Baiano, em especial na área em torno da hoje cidade histórica de Cachoeira. Produ- ziram-se vários tipos de fumo, desde os mais finos, exportados para a Europa, até os mais grosseiros, que foram importantes como moeda de troca na costa da África. A produção de fumo era viável em pequena escala, e isso criou um setor de pequenos proprietários, for- mado por antigos produtores de mandioca ou imigrantes portugueses com poucos recursos (CASCUDO, 2004). A cozinheira indígena (cunhã) foi substituída aos poucos pela escrava negra (nhá-bas), que trazia em sua experiência uma culinária mais elaborada com técnicas e temperos e eram cozinheiras natas, conquistando as Sinhás (Senhora do Engenho). Assim, a Sinhá impõe e adapta os hábitos de uma cozinha europeia às restrições da colônia, uma verdadeira cozinha de subsistência focada no comer sozinho ou em pequenos grupos sem os requintes da comensalidade vivida em Portugal (CHAVES e FREIXAS, 2007). 114UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada [...] Trata-se de uma comida retirada de um modo de produção de subsistên- cia, ajustada ao meio, ao mesmo tempo em que adaptada a um paladar mais úmido, como era o português, acostumado às comidas cozidas e com caldo. Uma comida sem requinte, nem cerimônia, nem ritual, feita para se comer sozinho ou em grupos formados pelo acaso. Um cardápio ordinário e comum, composto por farinha de milho de mandioca, de peixe, um pedaço de carne seca e a mistura toda molhada pelo caldo de feijão, das favas ou verduras, constituindo um tripé culinário do Brasil colonial (SILVA, 2005 p. 23). De acordo com Cascudo (2004), os portugueses que aqui chegavam traziam tudo o que apreciavam na sua terra natal, na tentativa de recriar o seu ambiente familiar, cercan- do-se de recursos de curral, quintal e horta. Dessa maneira, os portugueses trouxeram para a Colônia ovelhas, cabritos, bois, vacas, galinhas, patos, gansos); plantou frutas variadas como laranja, limão, lima, melão, tâmaras e figos; legumes como nabos, abóboras, gengibre e mostarda; hortas com agrião, espinafre, couve, salsa, cominho, cebolinha, manjericão, alfavaca e cereais como o arroz. Trouxe, também, sua cultura, costumes e religião, bem como suas festas, como a de São João, Natal, Carnaval e a Quaresma, com suas comidas e danças.Dentre os cereais, o arroz. O cardápio nacional se ampliava. E se ampliaria muito mais com a instituição das capitanias hereditárias. A partir daí, começaram a chegar ao país os pri- meiros rebanhos de gado de leite e corte, vindos das Ilhas de Cabo Verde. Estava-se no ano de 1534, e o gado era enviado pela mulher de Martim Afon- so, primeiro para a capitania de São Vicente, da qual era donatário, e depois para a Bahia. [...]. De lá o gado subiu para o nordeste, especialmente para Pernambuco, Piauí e Maranhão, depois descendo para Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. O gado de Santa Catarina e Rio Grande do Sul entrou pelo país vindo da região do rio da Prata, trazido pelos jesuítas e pelos índios ca- tequizados. Com esses rebanhos, apareceriam também no país as primeiras, caseiras e rudimentares produtoras de queijo (ROMIO, 2000, p. 37-38). Nascia assim, a cozinha da Casa Grande, com as receitas das famílias portuguesas ensinadas às escravas que trabalhavam para a Sinhá. A mulher portuguesa introduziu na cozinha o fogão e o forno, além das panelas de fundição trazidas da Europa. Adaptou os ingredientes, valorizando o que se encontrava aqui, como a farinha de mandioca, que nas mãos da portuguesa, resultaram em bolos de carimã e seus mingaus, que eram adoçados com mel ou açúcar do engenho, e beijus mais finos para molhar no leite. São exemplos das produções da cozinha dessa época os bolos de milho, as canjicas, os pudins. Todas essas alterações sociais trouxeram para a cozinha influências de diversas culturas, com suas técnicas, ingredientes, saberes e sabores. Assim, essa cozinha que estava nascendo não será totalmente portuguesa nem indígena, nem africana na maneira de preparar os alimentos. Até então, a cozinha era uma parte suja da casa, de terra batida com três ou quatro pedras, que acomodavam o fogo. Com o tempo, a cozinha foi dividida em duas partes: a cozinha suja e a cozinha limpa. A cozinha suja era destinada ao trato primário dos ingredien- 115UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada tes, tais como limpeza (entranhas, pele, gordura de animais), retirada de cascas, secagem, corte, escaldagem e fervura, e feitura de doces; na limpa, as refeições eram finalizadas. Os portugueses, deixaram importantes contribuições para a cozinha brasileira, como o sabor do sal e do açúcar. Em resumo, são heranças portuguesas: ● Equipamentos como o fogão e o forno a lenha adaptados em função da escas- sez da fundição do ferro, sendo uma evolução para a cozinha indígena. ● Substituição da farinha de trigo pela farinha de mandioca ou de milho. ● Substituição das amêndoas pela castanha-de-caju e amendoim. ● Os doces de frutas,como goiabada, bananada, mangaba, entre outros. ● Substituição dos embutidos portugueses pela carne seca. ● Criação de bebidas de frutas. ● Sobremesas portuguesas como bolos, pão-de-ló, folhados, babas de moça, fios de ovos, cremes e manjares. A base da alimentação dos escravos era o angu de fubá, o mungunzá, adoçado com mel ou com rapadura e o pirão de farinha de mandioca e que era consumido com malagueta para fazer render a pequena porção. Os escravos da casa grande que traba- lhavam na cozinha, as doceiras, as copeiras e as amas de leite que tinham uma comida privilegiada, pois consumiam os restos das refeições do senhor. Para o norte, a farinha de mandioca garantia o pirão, indispensável, diário, sinônimo do próprio alimento geral. Pelo interior da Bahia, para o centro e sul do Brasil, estendia a geografia do milho. A farinha de mandioca não era ignorada e nem ausente no Sul e Centro, tal e qual o milho ocorria no Norte e Nordeste, mas sem predominância do primeiro elemento, característicos dos repastos [...]. Já no Rio de Janeiro a farinha de mandioca figurava inevi- tavelmente na comida do escravo, ao lado do feijão-negro [...]. A alimentação do negro numa propriedade abastada compõe-se de canjica, feijão-negro, toucinho, carne seca, laranjas e bananas. [...] Angu de milho, toucinho, algu- ma carne semanal era o regime do escravo em Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás” (CASCUDO, 2004, p. 202 - 203). Os escravos negros trouxeram para a colônia o quiabo, a vinagreira, o inhame, o hibisco, o gengibre, o gergelim e a galinha-d’Angola. Quando o comércio de açúcar com a Europa começou a decair, houve a necessida- de de procurar novas riquezas no Brasil - assim surgiram as Entradas e as Bandeiras, que além de novas riquezas, aprisionavam índios e negros rebeldes de fugitivos e assim, foram responsáveis pela ampliação do território para além do limite do Tratado de Tordesilhas. 116UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada FIGURA 05: MAPA DAS ENTRADAS E BANDEIRAS Fonte: disponível em: http://hid0141.blogspot.com/2020/05/tratado-de-madri.html acesso eom 10 ago 2021. Guiados pelos bugres (índios escravizados), os Bandeirantes adentravam a mata abrindo caminhos e estradas. Na sua matulagem, levavam mantimentos, como a farinha de pau ou de guerra, que era torrada em tachos de barro. Para cozinhar, usavam uma trempe ou montavam um fogareiro com pedras e ali aqueciam seus caldeirões. A falta de comida era suprida pelas roças de subsistência de raízes, abóboras, milho e feijão que deixavam plantadas por onde passavam (FREIXA E CHAVES, 2012). A comida não era farta, mas a rapadura era uma constante juntamente com a farinha de milho ou de mandioca, o toucinho, o feijão e as frutas que encontravam pelo caminho. Seu café da manhã era composto pela jacuba, pirão apreciado nesses tempos, conforme podemos imaginar na descrição de Freixa e Chaves (2012 p. 185): O café da manhã habitual dos bandeirantes era um prato chamado jacuba, espécie de pirão feito com farinha de milho socada, sobre a qual se derrama- va água fervente, adoçada com rapadura. Quando os Bandeirantes encontraram as primeiras jazidas de ouro na região das Minas Gerais no final do século XVIII, aventureiros de todo o Brasil e de Portugal correram para a região, dando início ao Ciclo do Ouro, ocasionando um rápido desenvolvimento econômico, cultural, social e urbano. Diante disso, a capital da colônia, que até então era Salvador, mudou-se para o Rio de Janeiro. Entretanto, essa superpopulação causou um desabastecimento da região mineira, em relação a produtos básicos, tais como alimentos e vestuário (CASCUDO, 2004). http://hid0141.blogspot.com/2020/05/tratado-de-madri.html 117UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada Os viajantes ou tropeiros tiveram uma grande importância nesse período, uma vez que eles abasteciam as regiões mineradoras com animais de carga e mantimentos vindos do Rio Grande do Sul, em direção a São Paulo, onde os viajantes se abasteciam de man- timentos para seguirem à região mineradora. As farinhas de milho e mandioca, o charque, o toucinho, a rapadura e o feijão não podiam faltar. No que diz respeito à sua comida, ela se assemelhava à do bandeirante, com pequenas diferenciações, uma vez que também era comida de matulagem. Usavam com maior frequência a carne de porco, deste era aproveitado quase tudo: eram salgados as orelhas, o rabo e os pés, e a banha era usada para conservar as outras partes (LEAL, 1998). Para enfrentar a dificuldade de abastecimento começaram a aparecer as roças caseiras, que cultivavam a comida de todos os dias: a couve, o milho, o feijão, a mandioca e alguns animais, como a galinha e o porco. Já a carne de boi só apareceu mais tarde apenas, com o declínio da mineração. Assim, temos o desenvolvimento da cozinha caipira, de fundo de quintal, resultado da escassez de produtos e da carestia dos insumos na região das Minas Gerais. Desta maneira, a comida de viagem se mistura com a comida de fundo de quintal, com suas farinhas, paçocas de carne, os farnéis, a carne seca, a comida de tropeiro e as roças. 118UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada 3. A COZINHA DA MONARQUIA E DO IMPÉRIO O Brasil Imperial começou com a chegada da Família Real no Rio de Janeiro, em janeiro de 1808, fugindo das tropas francesas de Napoleão que estavam prestes a invadir Portugal. A vinda da família real trouxe para a Colônia o status de Reino Unido de Algarves. Com a família real, vieram assessores, funcionários, criados, pessoas influentes na corte, além de muitos objetos de valor, obras de arte, dinheiro, documentos, livros e tudo aquilo que puderam trazer. Nessa época, o alimento na maioria das casas dos brasileiros era a carne de porco, pois a de vaca era cara e reservadas para os dias de festas; temperavam suas comidas com gengibre, pimenta, alho, azeite e gordura. Na Europa, nesse período, principalmente na França e na Itália, havia um grande quantidade de restaurantes, cafeterias e casa de chá, um serviço impecável à la russe, que substitui o à la française; as louças vindas da Inglaterra ou China; os manuais da cozinha burguesa; Carême, com seus molhos e sua confeitaria. Dessa maneira, a corte portuguesa que aqui chegou já conhecia alimentos mais sofisticados e variados, pratos elaborados e, apesar de provinciana aos olhos do restante da Europa, já consumia a boa mesa. D. João VI abriu os portos brasileiros às nações amigas e permitiu a abertura de indústrias no território nacional, além de construir estradas, melhorar os portos, permitir a entrada do chá, incentivar o desenvolvimento agrícola, e a instituição de ministérios, como o da Marinha, o de Guerra e o da Fazenda. Foram estabelecidos o Banco do Brasil, a Casa da Moeda, a Junta de Comércio, o Supremo Tribunal, a Escola de Belas Artes, a Escola de Ciências e a Escola de Medicina e Cirurgia. 119UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada O Rio de Janeiro se tornou mais moderno e cosmopolita com belas praças onde ha- via chafarizes, iluminação pública, abertura de ruas e estradas e a inauguração do primeiro jornal - tudo isso graças à presença da corte portuguesa. Nesse período, os alimentos como leite, carne e vegetais eram vendidos em feiras livres ou nas ruas pelos escravos (escravos de ganho) a mando de seus senhores. As escravas vendiam os quitutes, os pães de ló, os quindins de iaiá, o acarajé, os sonhos etc. A abertura dos portos permitiu o acesso a produtos como chás, carnes embutidas, amêndoas, azeite e manteiga, além de vinhos, champanhes, louças e talheres europeus. Os mais abastados da capital carioca, a maioria de origem portuguesa, desenvolveram uma cozinha que imitava a corte no uso de produtos importados, adaptando-os aos pratos nacionais. A cozinha desse período era marcada por uma mistura dos costumes da capital cosmopolita e alguns requintes internacionais Logo após terem se haverem reunidos todos, as senhoras sentadas, juntas em círculocerimonioso e os homens em pé, geralmente em outras peças, co- meçou a cerimónia de se tomar chá e foi dirigida mais lindamente do que na Inglaterra, os criados serviram em torno chá, café e bolos em grandes salvas de prata. Mas todas sentamos e tomamos nossos alimentos à vontade, em vez de ficarmos em pé com as xícaras em nossas mãos (ZERON; BRUNO, 2000, p. 64). Entretanto, a maioria da população, o povo comum, continuava a ter uma alimen- tação escassa. Os alimentos disponíveis no mercado também deixavam a desejar. A carne de boi era muito ruim, em razão da longa distância entre os centros produto- res e a nova sede do Reino. Transportado a pé, o gado chegava magro e can- sado sendo abatido antes que pudesse se recuperar. A variedade de peixes frescos posta à venda era pequena [...] o leite e a manteiga, toda importada, eram intragáveis (ZARVOS & DIDÁTI, 2000, p. 108). A corte promovia banquetes, ceias e jantares com mesas fartas e muitos convida- dos. Após as tradicionais sopas de presunto, engrossadas com pães, eram servidos patos assados com vinho, empadões de peixe e tortas de limão. D. João marcou nossa culinária por ser um apaixonado por ela, e seus ingredientes, principalmente as galinhas, que dizia ter sabor inigualável. O rei as comia em grandes quantidades, em todas as refeições: “três no almoço, três no jantar e três na ceia” (ZARVOS & DIDÁTI, 2000, p. 111). Isso sem falar nos momentos de lazer, em que a galinha também se fazia presente. Também não faltavam na corte a farinha de mandioca, a carne seca, a pimenta e a banana. Eram apreciados igualmente o chouriço com arroz, a galinha mourisca, o bacalhau e o pão de trigo, comum já na Europa, mas desconhecido em nossas terras. 120UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada O pão de trigo era desconhecido, e em seu lugar eram consumidos pão de man- dioca e milho. Quando o pão de trigo chegou ao Brasil, era exclusividade da Família Real, tendo ganhado depois as ruas do Rio de Janeiro (ROMIO, 2000). Aos poucos, porém, a mania foi pegando, e dos fornos reais o pão de trigo ganhou as ruas, passando a ser conhecido como pão francês, segundo se supõe, pela presença da missão francesa na cidade. Do mesmo modo, ou- tras receitas com sotaque francês foram fazendo parte do almoço e do jantar nacionais, entre as quais as batatas preparadas de maneiras diversas, tendo caído no gosto da maioria dos purês. (ROMIO, 2000, p. 1130). O serviço da mesa dessa monarquia era composto por aproximadamente trinta pratos, todos elaborados pela cozinha real, que era formada por cozinheiros reais vindos de Portugal e cozinheiras negras que conquistaram o paladar do rei. Mas além do alto custo de sustentar toda essa corte, havia um outro problema, que era o da disponibilidade de ingredientes, que eram raros na região (ZERON; BRUNO, 2000) A Corte esbanjava e o Brasil se vangloriava por ter deixado de ser Colônia. Mas Portugal começou a exigir a volta do rei. Em 1821, D. João voltou para Portugal e deixou em seu lugar seu filho como Príncipe Regente. Em 7 de setembro de 1822, D. Pedro I declarou a Independência de nosso país e se tornou, na sequência, o Imperador do Brasil. D. Pedro I foi outra personalidade apaixonada pelo Brasil. Como compositor, compôs o nosso hino da independência,e em sua mesa, havia preferência pela carne de porco com toucinho da terra com arroz, que era devorado após a sopa, simples, composta por caldo de carne e (ROMIO, 2000). Após 10 anos D. Pedro I abdicou do trono, voltando para Portugal e deixou seu filho, D. Pedro II em seu lugar. Nesse momento houve a intensificação da produção de café, desenvolvimento de ferrovias e de telégrafos e um grande incentivo à cultura. D. Pedro II gostava de dançar e tinha hábitos simples à mesa: O soberano era homem de costumes simples à mesa. Comia pouco e de for- ma simples no cotidiano. No café da manhã tinha como hábito comer ovos e café com leite. Como contam os estudiosos, ele gostava muito de canja, que tanto podia ser preparada ao modo tradicional, com galinha, quanto com a ave nativa do Brasil, o macuco. Até no intervalo das peças de teatro, um de seus passeios favoritos, tinha o hábito de tomar a sua canja. [...] tomava água com açúcar como refresco. Gostava também de doces simples como o figo (FREIXA; CHAVES, 2012, p. 200). Há relatos de que ele chegava a dançar doze quadrilhas em uma só noite. Gostava muito, também, de pratos simples, como o pirão, sem sal e tempero, que era apreciado pelas modestas casas, para acompanhar seus pratos em dias de festa, ou como prato único do dia a dia. Nessa época a mandioca ainda era o principal ingrediente da mesa dos brasileiros, juntamente com o milho. A mandioca era plantada em todas as províncias brasileiras e a sua farinha substitui o pão de trigo, que ainda era caro e raro (LIMA, 1999). 121UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada A farinha continuava a substituir completamente o pão, era consumida pura, sem nenhum preparo, ou com qualquer substância, como carne, feijão, tou- cinho etc., em todas as refeições. Para o estrangeiro, era algo estranho, ver na mesa alguém moldar com a ponta da faca, ou fazer pequenas bolas de farinha, molhada, que depois, metia na boca (LIMA, 1999, p. 69). A mesa imperial mantinha seu requinte com seus cozinheiros únicos e com o desenvolvimento de menus sofisticados. O luxo ainda era obrigatório, e uma ferramenta de diferenciação das classes. Nas festas oferecidas ao imperador e à imperatriz, todo o protocolo era cumprido, desde a sequência clássica de um menu até o aparato de sala e serviço, que eram todos de prata ou de ouro. Segundo Bruit (2006), cozinheiro do imperador era quem comandava a cozinha do palácio, e pela primeira vez a profissão tem destaque no Brasil. Aparece então nesse período o nome de R.C.M., que se manteve no anonimato pela importância do cargo, afinal era ele quem preparava as comidas do imperador. Em de 1840, o primeiro livro escrito e publicado no Brasil, O Cozinheiro Imperial, foi lançado com um apanhado das receitas de R.C.M. Mais tarde foi lançado O Cozinheiro Nacional. Ambos, apesar de seguirem a estrutura portuguesa, com receitas lusas de influência francesa, não deixam de destacar a nossa cozinha, sendo um marco para a culinária brasileira: Se O Cozinheiro Imperial quer suprir a falta de um manual dos artistas da co- zinha, O Cozinheiro Nacional busca ser um manual de cozinha nacionalista, cozinha em tudo Brasileira” (BRUIT, 2006, p. 28). FIGURA 6: O COZINHEIRO IMPERIAL 4ª EDIÇÃO - 1859 Fonte: disponível em: http://ovofritogourmet.blogspot.com/2012/06/cozinheiro-imperial-1-livro-da.html De acordo com Freixa & Chaves (2012), com o desenvolvimento da cultura cafeeira grandes famílias prosperaram, os famosos barões do café. As fazendas cresceram e pros- peraram, principalmente na região do oeste de São Paulo, abrindo estradas, preparando http://ovofritogourmet.blogspot.com/2012/06/cozinheiro-imperial-1-livro-da.html 122UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada mão de obra, primeiramente, escrava, e posteriormente, imigrante. A riqueza do café trouxe as estradas de ferro e suas estações, bem como o porto de Santos por onde chegavam os viajantes, os negociantes, pessoas em busca de trabalho ou diversão nas Cafeterias, nas Confeitarias e nos Restaurantes da capital paulista e carioca. A aristocracia, formada pelos barões do café, copiava a influência francesa, mas a cozinha cotidiana era aquela cozinha do interior paulista (formada pelo tropeiro, bandeirante) e a que prevaleceu até hoje. No almoço comia-se, por exemplo, frango ensopado, cuscuz e virado à pau- lista. Na ceia, à luz do lampião de querosene, havia caldos e sopas. No café da manhã ou da tarde, não faltavam o bolo de fubá com erva-doce, o pão de queijo, a geléia de laranja-cavalo azeda e os sequilhos (FREIXA; CHAVES, 2012, p. 203). A chegada dos imigrantes vindos da Europa, Oriente Médio e, mais tarde, do Japão parasubstituir a mão de obra escrava foi mais um grande contribuição para a formação da nossa culinária. Inicialmente, a maioria era originária da Itália, e se estabeleceram nas fazendas de café do interior, ou na capital paulista, trabalhando nas fábricas que já come- çavam a se desenvolver. Trouxeram na bagagem uma cozinha nova que se adaptou ao paladar do brasileiro: suas macarronadas, seus molhos, a polenta, suas sopas, antepastos, pizza, técnicas de produção de queijo, salames, o vinho e as cantinas. E assim foi se consolidando a sociedade brasileira. No final do século XIX, as famílias mais abastadas mandavam seus filhos para a Europa estudar e copiavam tudo da França. A Belle Époque influenciou também o Brasil, sendo uma oportunidade para a elite aparecer, em suas confeitarias, teatros, com suas rou- pas, por meio da sua comida e comportamento à mesa. Nesse período ocorreu a abertura da mais antiga confeitaria brasileira, a Confeitaria Colombo, no Rio de Janeiro. FIGURA 7: CONFEITARIA COLOMBO Fonte: disponivel em: http://www.confeitariacolombo.com.br/#historia. Acesso em: 25 jul. 2021. 123UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada Conhecido como Baile da Ilha Fiscal, o banquete oferecido aos oficiais do encou- raçado chileno ‘Almirante Cochrane’ pelo presidente do Conselho de Ministros do Império do Brasil, Visconde de Ouro Preto, foi realizado no dia 9 de novembro de 1889. Foi o último grande evento do Império Brasileiro, a apenas seis dias da Proclamação da República. Dentre os pratos servidos, estavam badejo e bijupirá com purê, perdiz com licor e língua de boi, além de peru recheado com castanhas e presunto. 124UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada 4. ARROZ, FEIJÃO E FEIJOADA No Brasil, independentemente das diferenças regionais, de classe social ou de origem étnica, há uma combinação alimentar que marca o cotidiano, constituindo-se na comida básica do brasileiro: o “feijão-com-arroz”. Essa combinação pode variar, mas, em geral, o prato da refeição principal do brasileiro constitui-se na mistura de feijão, arroz, car- ne (de porco, gado, ave ou peixe) e salada. Mesmo quando é servido um “prato principal”, arroz e feijão costumam ser servidos como acompanhamentos, sendo, dessa forma, quase que obrigatórios em pelo menos uma das refeições do dia. Não existe consenso sobre a origem dos feijões.. Quando os europeus chegaram no Brasil, já havia algumas espécies conhecidas pelos indígenas do litoral (RIBEIRO, 1987), mas que não eram aproveitadas de maneira significativa em seu sistema alimentar. Foi com a chegada dos portugueses e a introdução de novas variedades que os feijões adquiriram a importância que hoje possuem na alimentação brasileira. Historicamente, os feijões (ou favas) eram consumidos de maneira significativa pelos europeus. Em geral consumia-se o ‘faséolo’, o feijão antigo e medieval europeu, substituído por outras espécies após as grandes navegações (FLANDRIN, 1998). Segundo Câmara Cascudo (2004), no século XVII, o binômio feijão-com-farinha era a base do sistema alimentar brasileiro. A alimentação dos escravos era, fundamentalmente, constituída por feijão misturado com farinha de mandioca ou milho. Eventualmente, con- forme as condições dos senhores, essa alimentação poderia ser suplementada com carne seca, toucinho, banana, canjica ou laranja . 125UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada Além de ser a comida dos escravos, o feijão era, também, a comida dos soldados. Ainda segundo Câmara Cascudo (2004), o fato de se chamar a refeição de “bóia” vem do seu consumo pelo exército, o qual usava grãos que, colocados na água, ficavam boiando. No século XIX, o feijão estava afirmado como comida básica do brasileiro, conforme relato de Carl Seidler: O feijão, sobretudo o preto, é o prato nacional e predileto dos brasileiros; fi- gura nas mais distintas mesas, acompanhado de um pedaço de carne de rês seca ao sol e de toucinho à vontade. Não há refeição sem feijão, só o feijão mata a fome. É nutritivo e sadio, mas só depois de longamente acostumado sabe ao paladar europeu, pois o gosto é áspero, desagradável. (SEIDLER apud CÂMARA CASCUDO, 2004, p.: 500) Num primeiro momento, o feijão foi acompanhado por farinhas, em especial a de mandioca, mas a partir do século XVIII, quando a produção de arroz fica consolidada, a farinha é deslocada, mas ainda assim não se ausenta. A farinha de mandioca é, ainda hoje, em algumas regiões, o segundo elemento do binômio e, mesmo onde o arroz se impôs, ela permaneceu como um terceiro elemento, unindo os outros dois (ELIAS, 2004) Embora haja registros da existência de algumas espécies de arroz no período pré-colonial, tratava-se de um tipo de arroz selvagem, coletado pelos índios tupis, que não lhe davam muita importância (RIBEIRO, 1978). A introdução do cultivo do arroz deu-se no Pará, em Pernambuco e, principalmente, no Maranhão. Posteriormente, expandiu-se para o restante do país, até o Rio Grande do Sul. Segundo Câmara Cascudo (2004), por volta de 1808, D. João IV incluiu o arroz na alimentação dos soldados Não há como saber se foi a partir daí que o binômio arroz com feijão ficou estabelecido, mas não há como negar que, no século XX, ele esteve presente tanto no cotidiano do brasileiro quanto em pratos tidos como “tipicamente sertanejos”, como o baião-de-dois, ou “tipicamente gaúchos”, como o arroz de carreteiro. A feijoada é o mais conhecido dos chamados “pratos nacionais”, e tem como base a comida do cotidiano. Mas, nesse caso, a dupla feijão com arroz, acompanhada pela farinha de mandioca, sofre uma transformação no conjunto dos ingredientes e em seu significado, sendo transformada em um prato símbolo da nossa identidade cultural. Cantada por poetas, entre os quais Vinicius de Moraes e Chico Buarque, é oferecida aos estrangeiros quando se quer apresentar a cozinha brasileira; e é indispensável nos cardápios dos restaurantes de cozinha brasileira no exterior (ELIAS, 2004) Há uma diferença entre a feijoada comum do dia a dia, e feijoada completa que é feita com feijão preto, cozido com várias carnes - carne seca, pé, orelha, rabo, pele de porco, toucinho, lingüiça e paio, e é servida com arroz branco e farinha de mandioca, tendo como acompanhamentos couve, laranjas e molho de pimenta (PINTO E SILVA, 2005). 126UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada Mas não são apenas os ingredientes que fazem a diferença. A diferença está si- tuada no significado do prato. Embora possa ter surgido de uma transformação da dupla cotidiana (o que é mais provável), uma feijoada (em especial, a completa) não é apenas um feijão com arroz incrementado.. Ela é “A Feijoada”, um prato especial que exige muito mais tempo para ser feito e que fica reservado às ocasiões especiais, com convite aos amigos, implicando assim comensalidade (PINTO E SILVA, 2005). Há uma polêmica acerca das origens da feijoada, em que contesta-se a ideia mais conhecida, que situa seu surgimento nas senzalas. Segundo essa versão, ao carnearem um porco, os senhores reservavam para a Casa Grande as partes consideradas mais “no- bres” (corno o pernil e o lombo) e enviavam à senzala as partes desprezadas (corno patas, pele, orelha e rabo). Lá, essas partes seriam misturadas ao feijão, dando origem à feijoada. Para alguns historiadores, essa versão é fantasiosa. Para estes, a matriz da feijoada estaria nos cozidos de feijão que já existiam em Portugal, enquanto para outros ela estaria relacionada com os vários cozidos de feijão, entre eles o cassou/et francês. Argumenta-se também que era hábito português comer essas partes ditas “menos nobres” do porco e que, portanto, os senhores não as cederiam aos escravos, que se alimentariam basicamente de feijão e farinha. Outros ainda a veriam corno criação brasileira, mas da zona urbana do Rio de Janeiro. (ELIAS, 2004) Uma das mais antigas referências à feijoada é do médico francês Louis Couty, que veio ao Brasil aconvite do imperador D. Pedro II, percorrendo várias províncias, particular- mente interessado em pesquisar recursos alimentares. No Rio Grande do Sul, interessou- -se pela “carne seca”, o charque gaúcho, na época o principal produto de exportação da província. E a partir da utilização dessa carne que ele cita a feijoada: [...]A verdade, por mais estranha que pareça, é que a “carne seca” é, sobre- tudo, utilizada pelo consumidor rico. O camponês, “caboclo”, “caipira” e o escravo Iiberto são pobres demais ou por demais preguiçosos para consumir uma alimentação tão cara. Esta “carne seca” será comprada pelo produtor de açúcar e de café, que encontra, para seus escravos, um alimento caro, mas nutritivo, facilmente conservável e transportável; e ela será comprada, também e em maior quantidade, talvez, pelos habitantes das cidades, traba- lhadores, artesãos, comerciantes. Assim, a cidade do Rio de Janeiro é um dos mercados de “carne seca” mais importantes; e quase toda essa carne é aí utilizada pela população livre; ela servirá de base para a alimentação do artesão mas será consumida, muitas vezes também, diversas vezes por semana, em outras mesas e nas melhores. Vamos ver, porém, que a comi- da nacional brasileira, a feijoada, tem por base a carne dessecada. [...] Os preconceitos, porém, criados em grande parte pelos europeus são tais, que muitas pessoas negarão toda qualidade a urna alimentação da qual elas fa- zem uso com bastante freqüência; e é em todos os casos bastante raro que se sirva mesmo urna feijoada a um convidado! E, entretanto, essa feijoada é certamente superior a muitos pratos insuficientemente imitados da cozinha européia (COUTY, 2000: p. 36). 127UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada Mais adiante, Couty refere-se ao feijão preto (como acompanhamento da carne seca) e ao uso da pimenta, sem citar a carne de porco: Acontece, então, que em lugar de temperar simplesmente ou mesmo grelhar, complica se a mistura com molhos temperados, picantes; é assim que é pre- parada, tendo por base feijões e ‘carne seca’ a feijoada, de que falei acima (COUTY, 2000: p. 38). Qualquer que tenha sido sua origem, a feijoada ficou estabelecida como o “prato nacional”, existindo em todo o país, representando no plano da comida, a nacionalidade. A polêmica sobre a feijoada interessa não pelo que possa trazer acerca de suas origens, mas, sobretudo, por existir, ou seja, pela disputa que pode ser pensada como uma luta simbólica. FIGURA 8: FEIJOADA COMPLETA Fonte: disponível em: https://acarnequeomundoprefere.com.br/receitas/feijoada-completa. Acesso em: 09 ago. 2021. Manuela Carneiro da Cunha, em seu estudo sobre a Nigéria, cita o fato de as brasi- leiras terem ficado conhecidas em Lagos por venderem pratos, como mingau, mungunzá e pirão de caranguejo, os quais eram considerados africanos na Bahia, e brasileiros em Lagos . A alimentação, organizada como uma cozinha, torna-se símbolo de uma identidade (atribuída e reivindicada) através da qual os homens podem se orientar e se distinguir. Mais que hábitos e comportamentos alimentares, as cozinhas implicam formas de perceber e expressar um determinado “modo” ou “estilo” de vida que se quer particular a um determi- nado grupo. Assim, parodiando a afirmação “bom para comer e bom para pensar”, o que é colocado no prato, mais do que alimentar o corpo, alimenta uma certa forma de viver. https://acarnequeomundoprefere.com.br/receitas/feijoada-completa 128UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada Que prazer mais um corpo pede Após ter comido tal feijão? - Evidentemente uma rede E um gato para passar a mão ... (Vinicius de Moraes) Do ponto de vista sociológico, dados agregados sobre produção e consumo de ali- mentos pouco nos falam sobre o que, efetivamente, uma população “come”. A razão disso é uma distinção cultural entre comida e alimento, que dificilmente é feita quando se aborda esse tema sob a ótica econômica ou nutricional. Ninguém come genericamente. Come-se feijão preto com muito ou pouco caldo, com farofa ou arroz; come-se carne ensopadinha ou assada; come-se pão de trigo sob a forma de bisnaga, pão francês ou croissant; vagem ensopada ou sob a forma de salada, com sal ou apenas temperada com limão, entre outras inúmeras e infinitas possibilidades. FIGURA 9: COMIDAS BRASILEIRAS Segundo Lévi-Strauss, os alimentos são sempre manipulados e preparados a partir de uma determinada técnica de cocção, apresentados sob uma forma específica e ingeri- dos em determinados horários e circunstâncias, na companhia de certas pessoas. Hábitos alimentares implicam o conhecimento da comida e das atitudes em relação a ela e não a classe de alimentos consumidos por uma população. 129UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada Portanto, quando falamos de hábitos alimentares a partir da classe de “alimentos” e não da “comida” estamos informando pouco sobre aquilo que se come, pois, embora a base de nutrientes seja bastante semelhante entre as sociedades, a combinação entre eles é bastante distinta. Essa combinação a que chamamos de culinária – um conjunto que engloba manipulação, técnicas de cocção, representações e práticas sobre as comidas e as refeições – é o principal mecanismo que transforma o alimento em comida, ou seja, nos pratos. Juntos eles produzem os diferentes cardápios que caracterizam as diferentes regiões e sociedades humanas (DIAMOND, 2005). Do ponto de vista das representações (livros e revistas de culinária, nutricionistas, entre outros) e das instituições (escolas, hospitais, empresas), o sistema de refeições no Brasil é composto de seis refeições ao dia. São elas: café da manhã, lanche da manhã, almoço, lanche da tarde, jantar e lanche (antiga ceia). Se, em algum momento, as pessoas no Brasil ingeriram regularmente seis refeições ao dia, ou se ainda o fazem no interior do país, na época atual esse número diminui para três (44%) e no máximo quatro refeições (40%) nos centros urbanos com mais de 1 milhão de habitantes (BARBOSA, 2007) Essas três ou quatro refeições ao dia são organizadas em três subsistemas: o sis- tema de refeições semanal, o de fim de semana e o ritual. O subsistema ritual subdivide-se em dois: o “coletivo”, que inclui festas comemoradas por toda a sociedade como Natal, Dia das Mães, Páscoa, entre outras; e o “doméstico/familiar”, relacionado às comemorações familiares ou individuais como aniversários, casamentos, formaturas e bodas, entre outros. O subsistema de refeições semanal vigora de segunda-feira até sexta-feira na hora do almoço; o de fim de semana começa a partir de sexta-feira até domingo à noite. FIGURA 10: CEIA DE NATAL TIPICAMENTE BRASILEIRA Fonte: disponível em: https://revistadovilla.com.br/2020/12/25/ chef-emanuel-wollz-e-a-ceia-de-natal-no-brasil/. Acesso em: 09 ago. 2021. https://revistadovilla.com.br/2020/12/25/chef-emanuel-wollz-e-a-ceia-de-natal-no-brasil/ https://revistadovilla.com.br/2020/12/25/chef-emanuel-wollz-e-a-ceia-de-natal-no-brasil/ 130UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada Segundo Lívia Barbosa, em pesquisa feita com 400 grupos familiares em dez cida- des com mais de um milhão de habitantes, o Brasil apresenta algumas características muito específicas com relação à alimentação. 1. A mistura de vários estilos culinários em uma mesma refeição. Por exemplo, em um restaurante a quilo e em um grande número de churrascarias no Brasil, podemos encontrar arroz, feijão, salmão com molho de maracujá, sushi, sashi- mi, macarrão à bolonhesa, bife à milanesa, lasanha, canelone, carne assada, farofa, rosbife e assim por diante, como se estivéssemos em uma competição do mundo em uma única mesa. Em casa, verifica-se o mesmo tipo de mistura. Por exemplo, arroz, feijão e macarrão com molho é uma mistura comum no Nordeste, da mesma forma que arroz, feijão, strogonoff e batata frita no Rio de Janeiro. Essas misturas se associam ao pouco conhecimento da origem dos diferentes pratos à mesa e da forma como sãoingeridos nos seus países e lugares de origem. 2. A lógica de ingestão dos alimentos é outro aspecto distinto do sistema de refei- ções brasileiro. Entre nós vigora o “juntos, mas separados”. Ou seja, as pessoas colocam, ao mesmo tempo, os diferentes tipos de comida no prato, mantendo-os separados em pequenos montes e deixando que a combinação se processe no interior da boca. A mistura dos diferentes alimentos ainda no prato está associa- da à quebra de etiqueta e é vista com repugnância. A mistura, como elemento constitutivo do prato, está associada à cozinha regional ou típica, como é o caso do feijão tropeiro, do baião-de-dois e do cozido, ou a situações de intimidade, como é o caso do mexido (arroz, feijão, ovo, farinha, restos de feijoada). 3. A presença durante a semana de, pelo menos, duas refeições quentes ao dia – almoço e jantar – compostas por comidas de “panela”, “de sal” ou de “gordura”, e de diversos pratos que empregam técnicas de cocção distintas. Podemos ter em uma mesma refeição arroz, feijão, farofa, bife, batata frita, salada e en- sopadinho de vagem. Ou seja, sete pratos diferentes com pelo menos cinco diferentes técnicas de cocção (refogado, cozido, frito, tostado e cru). 4. A grande informalidade à mesa e a pouca preocupação com a apresentação da comida. Grande parte das pessoas se serve da comida diretamente da panela, principalmente durante a semana, reservando o uso de travessas para situa- ções mais formais e rituais, quando a refeição ocorre em torno de uma mesa devidamente posta com toalha, pratos, talheres e copos. 5. A ausência de hierarquia no servir e na composição da mesa. A tradicional posição de deferência em relação aos homens e aos mais velhos parece ter se 131UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada invertido em favor das crianças ou de um individualismo em que cada um faz o seu próprio prato.11 Refeições com um maior grau de hierarquia e formalismo parecem ocorrer apenas em momentos rituais e um pouco no final de semana, perante a presença de outros familiares e amigos. 6. Nos momentos dos rituais coletivos, o que predomina é a variedade tradicional. É aquilo que se come mais raramente, apenas em datas especiais e que sai inteiramente do cotidiano, mas que não é, necessariamente, uma novidade. À tradição coletiva – como o peru do Natal – adicionam-se os pratos vinculados à tradição das famílias. 7. O café da manhã não é considerado uma refeição familiar, no sentido de reunir toda a família em torno de uma mesa, embora seja a refeição mais feita em casa. No cotidiano, ele é ingerido de forma bastante individualizada, sequencial- mente, e, por vezes, desordenada, devido às múltiplas atividades dos membros da família ou do grupo doméstico. SAIBA MAIS Existem diversas variedades de mandiocas cultivadas, apenas no Brasil, existem mais de 4 mil variedades catalogadas. Ela que teve sua origem no território brasileiro, foi de extrema importância para a dieta dos índios que habitavam áreas da região amazônica (área de origem da planta) antes mesmo da chegada dos europeus; estes que adora- ram a planta e diversificaram seu cultivo para grandes áreas de todo o planeta, hoje a mandioca alimenta cerca de 700 milhões de pessoas em todo o mundo, principalmente dos países em desenvolvimento, e tem uma área de cultivo de 18 milhões de hectares no mundo todo. No Brasil as mandiocas são divididas em dois grupos: o grupo da mandioca mansa, conhecida também por mandioca de mesa, macaxeira ou aipim, que é comestível e de- liciosa; e o grupo da mandioca brava, esta segunda que como o próprio nome já diz, é perigosa. Mas como distinguir-las? Fonte disponível em: https://portalamazonia.com/noticias/cidades/mandioca-ou-macaxeira-pesquisadora-do-para-explica-as- -diferencas. Acesso em: 16 ago. 2021. https://portalamazonia.com/noticias/cidades/mandioca-ou-macaxeira-pesquisadora-do-para-explica-as-diferencas https://portalamazonia.com/noticias/cidades/mandioca-ou-macaxeira-pesquisadora-do-para-explica-as-diferencas 132UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada REFLITA A civilização do açúcar teve suas santas, suas mulheres, grandes sofredoras, que humi- lhadas, repugnadas, maltratadas, criaram filhos numerosos, às vezes os seus e os das outras mulheres mais felizes que elas; cuidaram das feridas dos escravos; dos negros velhos; dos moradores doentes dos engenhos. [...] Teve as suas Donas Mariazinhas, Donas Francisquinhas, Donas Mariquinhas que desde meninas, desde a Primeira Co- munhão, não fizeram senão cuidar dos maridos, dos filhos, dos escravos, dos santos.” (GILBERTO FREYRE, autor de Casa Grande & Senzala). 133UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada CONSIDERAÇÕES FINAIS Chegamos ao fim da Unidade III, depois de viajarmos no tempo, mesmo sem um Delorean. E pudemos perceber ao longo dessas três unidades que as cozinhas locais, regionais, nacionais e internacionais são produtos da miscigenação cultural. Fica mais uma vez claro que herdamos de nossos colonizadores e dos habitantes da Terra Brasilis, grande parte dos nossos costumes alimentares. Os indígenas nos forneceram a mandioca com toda sua riqueza de subprodutos, que ainda hoje da nossa alimentação do dia-a-dia; sem contar a redescoberta da mandioca pelos chefs brasileiros, que introduziram a mandioca em seus restaurantes. Dos Indígenas herdamos também o uso das pimentas, das ervas, a caça e o moquém, precursor do carac- terístico churrasco brasileiro. Os primeiros colonizadores portugueses trouxeram mantimentos de sua terra natal, mas também se depararam com a necessidade de adequar seus hábitos à oferta local de alimento. Ao longo do tempo, criou-se uma “cultura transatlântica” da comida, na qual os dois lados promoviam o intercâmbio de costumes alimentares. Com a chegada da corte portuguesa ao Brasil, novos ingredientes e novos costumes à mesa foram incorporados aos nossos hábitos alimentares, ao mesmo tempo que, aqui, os nobres tiveram que se habituar aos ingredientes nativos, inevitavelmente incorporados à dieta alimentar de Portugal. A abundância de espécies frutíferas aliada à onipresença da produção açucareira fez nascer um sem-número de doces de frutas e compotas de todos os tipos, sem contar a contribuição da doçaria conventual portuguesa, que tanto agrada nosso paladar. Não é preciso muita imaginação nem nenhuma estripulia estruturalista de trans- formações para imaginar que evoluímos a partir dessas bases para nos tornar o povo que somos hoje, que adora feijoada e não vive sem um prato de arroz com feijão. Como procuramos demonstrar, os homens alimentam-se de acordo com a socieda- de a que pertencem. A partir dessa compreensão, a comida passa a ter uma dimensão mais ampla, representando não apenas um objeto necessário para a manutenção fisiológica, mas a contextualização da história de vida dos grupos sociais. 134UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada LEITURA COMPLEMENTAR D. PEDRO II E O NASCIMENTO DA GASTRONOMIA BRASILEIRA Marina Ribeiro Ao se aproximarem da ponte flutuante montada junto ao Cais Pharoux, perto do que hoje é a Praça XV, os olhos já se encantavam com a suntuosidade da festa. Tendo ao fundo a paisagem da Baía de Guanabara, o acesso era ornamentado com seis grandes arcos e dois candelabros a gás. Junto, tocavam a primeira das seis bandas e orquestras contratadas para animação da festa em homenagem aos oficiais chilenos do navio Almirante Cochrane. Ao desembarcarem na Ilha Fiscal, os convidados eram recebidos por diversas mulheres vestidas como ninfas e sereias. Nas casas à beira-mar, a população da cidade se apertava para espiar um pouco do baile que acontecia no posto de fiscalização de navios. Recém-construído em estilo neogótico, o castelo era o ponto mais brilhante do Rio de Janeiro naquela noite. Dotado de um gerador de energia que iluminava milhares de lâmpadas dentro e fora do edifício, velas, balões e lanternas venezianas, além dos holofotes do couraçadochileno e de outros navios da marinha ancorados ali perto, não havia quem não se impressionasse com seu esplendor. Foi também um modo de inaugurar o palácio. No banquete foram servidos 18 pa- vões, 80 perus, 300 galinhas, 350 frangos, 30 fiambres, 10 mil sanduíches, 18 mil frituras, mil peças de caça, 50 peixes, 100 línguas, 50 maioneses e 25 cabeças de porco recheadas, além dos 500 pratos repletos de doces variados. Exemplo da vida na corte, do virtuosismo da aristocracia brasileira? Que nada! O Baile da Ilha Fiscal foi uma das raras ocasiões que o império ofereceu um banquete de alta gastronomia. MONARCA DE POUCOS BANQUETES O Baile da Ilha Fiscal não apenas marcou o fim de um regime (político, vale frisar). Foi o ápice da gastronomia imperial. O gosto por comer bem veio junto com a Corte Portu- guesa, em 1808, quando desembarcaram cozinheiros e literatura específica sobre culinária em forma de livros de receitas. Desde então, os hábitos à mesa se europeizaram, os ideais 135UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada alimentares e de paladar se tornaram cada vez mais semelhantes aos franceses, berço da gastronomia que conhecemos hoje. Mas não era uma prática cultivada no cotidiano do imperador. Para ele, comida sofisticada era algo reservado a ocasiões especiais. As receitas elaboradas, que vieram com dom João VI, se ampliaram com a indepen- dência, em 1822. Para negar a dominação colonial portuguesa, passou-se a buscar apoio na cultura francesa. Os estrangeiros que viviam no Rio de Janeiro forçaram a criação de um mercado que absorvesse produtos da Europa, como conservas, doces, frutos processados, salsichas, presuntos, manteiga, queijo, chá e temperos. FIGURA 11 – CARDÁPIO DO PRIMEIRO BANQUETE DE QUE SE TEM NOTÍCIA NO BRA- SIL, NO CLUBE FLUMINENSE, OFERECIDO PELO SENADOR NABUCO DE ARAÚJO (REPRODUÇÃO) Fonte disponível em: https://www.40forever.com.br/ livro-que-e-uma-joia-os-banquetes-do-imperador/ acesso em: 25 jul. 2021. https://www.40forever.com.br/livro-que-e-uma-joia-os-banquetes-do-imperador/ https://www.40forever.com.br/livro-que-e-uma-joia-os-banquetes-do-imperador/ 136UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada Permitindo uma reprodução da culinária degustada nos palácios, o que pode ser comprovado nos cardápios impressos, predominantemente em francês, com alimentos típicos dessas ocasiões. “No século 19, não era mais necessário ter berço para usufruir de itens de luxo, como os banquetes”, afirma Wanessa Asfora Nadler, professora do curso de pós-graduação de Gastronomia do Senac. “A classe alta precisava marcar posição social. Por isso, além das artes e moda, eles prestavam atenção na comida”. A CANJA DO IMPERADOR Os viajantes estrangeiros, tratados com deferência, espantavam-se quando, à mesa, era oferecido frango cozido em caldo quente (ótimo para espantar doenças). Isso fez com que muitos relatos de viagem ao Brasil mencionassem expressamente (e com certa monotonia) o “fenômeno galinha com arroz”. Os aventureiros podiam até ficar entediados com a repetição da canja, mas Dom Pedro II a tinha como prato predileto. “A canja hoje é barata, trivial, mas no século 19 era diferente. Não era comida de povão, era sofisticada”, diz André Boccato, autor do livro Os Banquetes do Imperador. Após analisar a coleção de cardápios da família real, nota-se a preferência pela repetição do prato em banquetes servidos ao monarca. Ainda que apreciasse uma boa sopa de galinha, Dom Pedro II não gostava dos grandes banquetes. No Baile da Ilha Fiscal, ficou pouco e passou a maior parte do tempo sentado. Tampouco era chegado às grandes refeições da época — um jantar cotidiano podia durar cerca de três horas. Ele gostava de comer sozinho e rapidamente. Em seu livro Antologia da Alimentação no Brasil, o folclorista Luís da Câmara Cas- cudo afirma que depois de um dos apressados almoços de canja, o monarca surpreendeu um dos cadetes que escoltava seu carro ao sair do Palácio de São Cristóvão, roubando algumas bananas. Ao perguntar por que fazia aquilo, o soldado respondeu com franqueza: “Para matar a fome, por sair faminto da rápida refeição”. Dom Pedro II riu e determinou que sua escolta tivesse refeições separadas, calmas e abundantes — não como as dele. Com tal temperamento, não é de espantar que Dom Pedro II tenha financiado apenas dois banquetes em todo o seu reinado de 58 anos. Um em 1852, sobre o qual não há muitos registros, e em 1889, justamente o da Ilha Fiscal. Tradicionalmente, é a família real que dá o tom da vida social da corte. Se dependesse dela, o brilho dos salões cariocas teria sido pálido. “Eles nunca foram grandes incentivadores de banquetes. No Brasil, a alta burguesia é que estimulava esse lado social”, afirma Boccato. Segundo seu livro, alguns comentaristas até dizem que foi exatamente pela falta de festas que a monarquia não se manteve no poder. 137UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada UMA NAÇÃO, UMA CULINÁRIA Se nem conseguiu manter o trono na mão da dinastia Bragança, Dom Pedro II foi bem-sucedido em criar uma identidade nacional. O historiador alemão Tim Wätzold afirma que a culinária foi um dos meios utilizados para atingir a ideia de nação. E o ponto de partida para o nascimento de uma cozinha brasileira foi o livro de receitas Cozinheiro Imperial, o primeiro do gênero impresso no país, em 1840. “Nenhum livro de culinária portuguesa tinha o nome de nação ou a caracterização nacional”, afirma Wätzold. Mesmo sem se importar tanto com o que comia ou em organizar banquetes para a nobreza, a gastronomia teria sido utilizada por Dom Pedro II, de acordo com Wätzold, para gerar um sentido de unidade no país. Os livros de receitas estimulariam a nobreza e os ricos a acrescentarem cada vez mais ingredientes e pratos nacionais em suas festas. Pode não ter funcionado completamente no século 19, levando-se em conta a quantidade de cardápios em francês publicados no livro de André Boccato. Contudo, hoje, a culinária brasileira é respeitada em todo o mundo. Fonte: disponível em: : https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/ historia-gastronomia-brasileira.phtml acesso em: 25 jul. de 2021. https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/historia-gastronomia-brasileira.phtml https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/historia-gastronomia-brasileira.phtml 138UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada MATERIAL COMPLEMENTAR LIVRO Título: O Processo Civilizador - Vol. 1 - Uma História dos Costumes Autor: Norbert Elias. Editora: Zahar. Sinopse: Nesta obra-prima fascinante e muito acessível, Norbert Elias analisa a história dos costumes, concentrando-se nas mudan- ças das regras sociais e no modo como o indivíduo as percebia, modificando comportamento e sentimentos. Elias buscou informa- ções em livros de etiquetas e boas maneiras, desde o século XIII até o presente, para mostrar que nossos hábitos se colocam em um determinado estágio de uma evolução milenar. O autor prova que desde a Idade Média, em que o controle das pulsões era bastante reduzido, até os nossos dias, as classes dirigentes foram lentamente modeladas pela vida social, e a espontaneidade deu lugar à regra e à repressão na vida privada. LIVRO Título: O Processo Civilizador - Vol. 2 - Formação do Estado e Civilização Autor:Norbert Elias Editora: Zahar Sinopse: Neste segundo volume, Norbert Elias examina as con- dições sociais, econômicas e políticas que provocaram mudanças na sociedade europeia, desde os tempos de Carlos Magno até o século atual. Baseando-se em grande volume de dados históricos, sociológicos e psicológicos, o autor formula uma originalíssima teoria sobre a formação do Estado. Esse verdadeiro clássico na historiografia sobre o tema é considerado por estudiosos de psico- logia, sociologia e história uma das maiores obras interdisciplinares das últimas décadas 139UNIDADE III Da Mandioca à Feijoada FILME/VÍDEO Filme: Mauá - o Imperador e o Rei Ano: 1999.Sinopse: Considerado o primeiro empreendedor brasileiro, Irineu Evangelista de Sousa (1813-1889), ao longo do século, foi respon- sável por uma série de iniciativas modernizadoras que mudariam o Brasil. O filme retrata a época do ápice da escravidão e sua decadência, mostrando a importância das fazendas de café e seus barões, bem como a formação da sociedade brasileira nesse pe- ríodo. Mauá defendia o fim da escravidão e o desenvolvimento da indústria brasileira e era contra as ideias das oligarquias do café. FILME/VÍDEO Filme: O Novo Mundo Ano: 2006. Sinopse: No início do século XVII poucas mudanças haviam ocor- rido na América do Norte. Apesar de ter sido descoberto em 1492, o continente continuava sendo uma grande área de mata primitiva, aparentemente interminável, habitada por várias tribos indígenas. Em abril de 1607 três pequenas naus, carregando 103 homens, partem da Inglaterra para este mundo pouco conhecido, com o objetivo de estabelecer nele raízes culturais, religiosas e econômi- cas. No navio Susan Constant, o principal da frota, está John Smith (Colin Farrell), um homem de 27 anos que foi condenado à forca por insubordinação e está agora acorrentado abaixo do convés. Quando o navio aporta, John é libertado pelo capitão Christopher Newport (Christopher Plummer), que considera que seus talentos possam ser úteis para que a tripulação sobreviva neste mundo desconhecido. Os navios ingleses aportam, sem saber, em meio a um império indígena sofisticado, que é governado por Powhatan (August Schellenberg). Os ingleses enfrentam dificuldades para se adaptar a este novo mundo, o que faz com que John busque ajuda junto aos homens locais da tribo. É quando ele encontra uma jovem impulsiva e voluntariosa, apelidada pela família e amigos de Pocahontas (Q’Orianka Kilcher), que é também a filha preferida de Powhatan. Em pouco tempo surge a paixão entre John Smith e Pocahontas, o que faz com que eles tenham que enfrentar a resistência de ambos os lados. 140 Plano de Estudo: ● A Riqueza da Cozinha Brasileira; ● A Cozinha da Região Sul; ● A Cozinha da Região Sudeste; ● A Cozinha da Região Centro-Oeste; ● A Cozinha da Região Nordeste; ● A Cozinha da Região Norte. Objetivos da Aprendizagem: ● Conceituar e contextualizar a história da culinária regional brasileira; ● Compreender as influências e a evolução da gastronomia da região sul; ● Compreender as influências e a evolução da gastronomia da região sudeste; ● Compreender as influências e a evolução da gastronomia da região centro-oeste; ● Compreender as influências e a evolução da gastronomia da região nordeste; ● Compreender as influências e a evolução da gastronomia da região norte. UNIDADE IV A Geografia dos Sabores Professor Esp. Cláudio da Silva Junior Professora Me. Flávia Helena Franco de Moura 141UNIDADE IV A Geografia dos Sabores INTRODUÇÃO Chegamos à última Unidade do nosso material sobre a História e Princípios da Gastronomia. Na Unidade III falamos sobre a formação da cozinha brasileira e agora vamos falar sobre as cozinhas regionais. A nossa cozinha é resultado de uma miscigenação de povos e culturas, sobretudo, do índio, do português e do negro, em um primeiro momento e, posteriormente, dos europeus e de outros povos que aqui chegaram na busca de uma terra melhor para se viver, de uma terra que tudo que se planta dá, como dizia Pero Vaz de Caminha, em sua Carta, descrevendo essa nossa terra. Vamos observar que a essência de nossa cozinha cotidiana pode ser considerada, de certa maneira, muito simples,mas nem por isso fácil e comum. Tomemos como exemplo alguns ingredientes, como o jambu, que, quando colocado em uma moqueca paraense, torna este prato único pela complexidade de um único ingrediente. Precisamos entender que a culinária é patrimônio cultural de um povo,e a comida regional é uma dos pilares que diferencia as regiões brasileiras. Vamos estudar as diferentes cozinhas brasileiras tomando por base a divisão tradi- cional proposta pelo IBGE: Norte, Nordeste, Centro-oeste, Sudeste e Sul. Assim veremos que cada cozinha irá mudar de região para região, cada uma delas com suas comidas típicas, suas preferências, suas técnicas e sabedoria, e é isso o que tor- na o nosso país tão rico e farto. Vamos reconhecer as pamonhas de milho, que aparecem em minas e no centro-oeste, nessa região, podem ser feitas com linguiça e queijo; no sul, teremos o arroz carreteiro do Sul e suas abóboras que mudam de nome conforme subimos o mapa do Brasil, bem como outros exemplos. No Norte, vamos conhecer o jambu e o tacacá, além das frutas da floresta; no Nordeste vamos diferenciar a cozinha do litoral e a sertaneja. No Sudeste, vamos entender como os bandeirantes que desbravaram o Brasil, levaram e trouxeram produtos que acabaram por influenciar a gastronomia brasileira em praticamente todos os estados. Essa é a cozinha regional do brasileiro. Bons Estudos!! 142UNIDADE IV A Geografia dos Sabores 1. A RIQUEZA DA COZINHA BRASILEIRA A culinária de um país é parte do gênero de vida de seu povo. Exprime não só os fa- tores físicos de sua geografia como também seus aspectos humanos, econômicos, sociais e culturais. Mas o prato não se resume a seus aspectos materiais. É necessário, também, que façamos uma “arqueologia dos sabores”, ou seja, uma dedução do tipo de clima e solo principais, dos grupos étnicos presentes, das migrações existentes, das influências exteriores, bem como das características culturais. Portanto, podemos, a partir das receitas representativas de sua culinária, descobrir muitos dos elementos que compõem a geografia física e humana de uma região. Tratando de cozinhas como de identidades, a conhecida frase de Brillat-Savarin, “Dize-me o que comes e te direi quem és”, foi transformada em “Dize-me o que comes e te direi de onde vens”. Indo mais longe, Sophie Bessis (1995, p. 126) afirma: Nos últimos anos, a cozinha brasileira vem sendo valorizada pelos nossos cozi- nheiros e chefs com a utilização de ingredientes e produtos típicos do nosso país pois, até alguns anos atrás, eles se preocupavam mais em reproduzir pratos da cultura alimentar europeia do que desenvolver preparações com produtos da nossa terra. 143UNIDADE IV A Geografia dos Sabores A combinação de pratos indígenas, portugueses e africanos tornou a culinária brasileira muito rica. Dos indígenas, herdamos o uso da mandioca (o beiju, a tapioca, a farofa); dos portugueses, temos a influência da maioria dos pratos (o bacalhau, a rabanada, o rissoles, as empadas, os doces de gemas etc.) e a forma de preparo (cozidos, refogados, assados). Ainda, dos africanos utilizamos os temperos (o leite de coco, o gengibre, o coentro e a pimenta, por exemplo), que possibilitaram receitas diferentes. Os portugueses intro- duziram o arroz e os seus vários preparos: o arroz de forno, o arroz de pato e, no Brasil, surgiu o arroz com feijão, que faz parte da refeição diária. Do feijão vieram a feijoada, o virado e o tutu [...] Cada região brasileira tem suas especialidades. No Norte, de influência indígena marcante, come-se pato no tucupi, tacacá, maniçoba (feijoada amazônica), peixes, camarão e carangue- jo. No Nordeste, carne de sol, moqueca, vatapá, acarajé. No Centro-Oeste, peixes de rios (pintado, caldo de piranha), arroz de pequi, galinhada, pamo- nha; no Sudeste, feijoada, cuscuz a paulista, leitão pururuca, pão de queijo, bolinho de bacalhau, doce de leite; no Sul, churrasco, chimarrão e barreado. (GUEDES, 2014, p. 47). Embora cada região do Brasil tenha sua identidade culinária local, o arroz e o feijão fazem parte do cotidiano do brasileiro de Norte a Sul do país, muitas das vezes acompa- nhados de farinha de mandioca (em cada região apresentada de uma maneira), bife e salada. Trata-se de uma combinação, além de apetitosa, equilibrada nutricionalmente. Se há um prato que abarca o povo brasileiro como um todo, sem dúvida, é a farofa. De farinhade milho ou mandioca e origem ancestral, ela se presta a vários propósitos: pode ser elemento neutro complementar da refeição; serve tanto para aumentar o que não é abundante quanto para amenizar o que é muito intenso; pode simplesmente dar liga ao prato, como também assumir ares de protagonista em recheios de peixes ou aves, com miúdos e temperos. O preparo das farofas raramente atinge algum nível de complexidade. Em geral, refogam-se os elementos em gordura abundante até que eles percam água o sufi ciente para não comprometer a textura do prato. Acrescenta-se a farinha, portanto, no momento em que não há mais água no fundo da panela (BASTOS; DÓRIA, 2018, p. 265). A nossa rainha mandioca aparece em diversas formas de preparo, assim como o milho, apresentado em suas diversas formas: verde, cru, canjica, quirera, fubá e farinha. Deu origem a vários pratos, dentre eles a tão famosa farofa, que pode ser feita tanto com a farinha de milho como com a farinha de mandioca. A região mais extensa do país é a região Norte, onde está a maior floresta tropical do mundo, a Floresta Amazônica. Possui uma rica e imensa área verde, vários rios navegá- veis e a cultura indígena, tanto nos costumes como na gastronomia local.Já no Nordeste, não podemos deixar de considerar a existência de duas cozinhas : a o sertão e a litorânea. O Centro-Oeste do Brasil, o Cerrado goiano e o Pantanal mato-grossense reser- vam tesouros a serem desvendados, como o iogurte de araticum, o pé-de-moleque de baru, o pão de jatobá e a geleia de cagaita. O restante do país está começando a descobrir os frutos e os peixes típicos da região, mas muitos deles só podem ser provados in loco (CHAVES; FREIXA, 2007, p. 90). 144UNIDADE IV A Geografia dos Sabores Devido às extrações de ouro em Minas Gerais, a região Sudeste foi se desenvolven- do, bandeirantes e tropeiros viajavam por todo o país e iam disseminando seus aprendizados, cultura e a forma de alimentação. Ainda, sempre levavam consigo mantimentos para venda e para o próprio consumo. Tratavam-se de alimentos secos que não estragam com facilidade. No Sudeste, com a modernidade encontrada na gastronomia das grandes cidades, vivenciamos um contraste a partir “das influências dos imigrantes e das tradições interiora- nas, em que se destaca a forte identidade mineira” (CHAVES; FREIXA, 2007, p. 105). Com a queda do comércio de ouro, a região começou a se sustentar de outras formas. Por esse motivo, o café e o leite fazem parte não só do dia a dia de cada estado do Sudeste, mas fizeram história e ajudaram a transformar a região no que encontramos hoje, pois ambos se tornaram base da economia de boa parte dessa região. Já a Região Sul do Brasil revela, em sua culinária, os imigrantes que ali chegaram: a presença portuguesa no extremo sul e no litoral, a alemã e italiana na área serrana centro-norte, bem como a eslava no estado do Paraná, oferecendo uma riqueza culinária vastíssima. Na região é difícil encontrar pratos puramente brasileiros, como no Norte, por exemplo. No entanto, as muitas receitas de origem europeia adquiriram algumas peculiari- dades, pois, como são muito antigas, o próprio tempo acabou por mudar. Podemos observar que os hábitos alimentares no Brasil acabaram sendo incorporados de acordo com as características de cada região, a geografia e o clima. O processo migratório também contribuiu para influenciar os hábitos alimentares das diversas regiões do país. 145UNIDADE IV A Geografia dos Sabores 2. A COZINHA DA REGIÃO SUL A região sul, conhecida como uma das regiões mais ricas do Brasil, econômica e culturalmente, é formada pelos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.É a parte do Brasil mais europeia devido ao clima temperado, pois, por ser mais próximo do clima europeu, acabou direcionando esses imigrantes para essa região. Cruzar as fronteiras rumo ao sul do país é como entrar em um cenário en- cantado de contos de fada. Ainda mais em época de festa, quando o povo se veste com trajes típicos de seus antepassados europeus de várias nacio- nalidades. Na paisagem subtropical, adornada por parreirais, araucárias e macieiras, o cenário se harmoniza perfeitamente com a comida típica, e todo esse conjunto nos traz a ideia de um Brasil diferente, que evoca um pedaci- nho campestre da Europa (CHAVES; FREIXA, 2007, p. 131). Seu povoamento se deu, inicialmente, pela busca de riquezas, o ouro e a prata. Já no século XVIII, após o ciclo do ouro, criadores de gado ocupavam esse território, e tropeiros já eram responsáveis pelo comércio entre o Sul e Sudeste brasileiro. A cozinha do Sul foi primeiramente desenhada pelos bandeirantes, mas foi a in- fluência do imigrante europeu, a partir do século XIX, que realmente definiu essa cozinha regional da maneira como é conhecida hoje. Em relação à alimentação desse período, podemos destacar o milho, o feijão e a mandioca, dentre outros ingredientes. A presença dos tropeiros também foi decisiva na cultura paranaense, colaborando com o surgimento de povoados e introduzindo pratos, como seu feijão tropeiro e a quirera.. O sul do país teve uma decisiva contribuição do imigrante, que veio em duas etapas, tendo a primeira (metade do século XIX) o intuito de desenvolver e ocupar a região sul, com 146UNIDADE IV A Geografia dos Sabores o italiano, o alemão e o açoriano; já a segunda leva veio como uma solução encontrada pelo governo e proprietários de terra para a falta de mão de obra escrava, ocasionada pelo fim da escravatura (abolição em 1888), com os sírio-libaneses, os árabes, os ucranianos, os poloneses e os japoneses. A maioria dos pratos típicos encontrados no Sul, são derivados de preparações de origem estrangeira, embora implementaram ingredientes regionais e fizeram substituições quando necessário. Além dos imigrantes europeus, a região também recebeu influências dos países que fazem fronteira com os estados, como Uruguai, Argentina e Paraguaia.. 2.1 Paraná Tendo como símbolo a araucária, árvore que produz o pinhão (conhecido como pi- nheiro-do-paraná), o Paraná é o estado que teve maior diversidade étnica do Brasil. Vieram alemães, italianos, ucranianos, japoneses, árabes, holandeses, portugueses, dentre tantos outros. O alemão trouxe suas festas e danças típicas, juntamente com suas comidas, sendo grande mestre da charcutaria, trouxe as suas salsichas degustadas com mostarda preta, o eisbein, o repolho azedo e sua cerveja. Os ucranianos trouxeram as sopas, como a borsch (à base de beterraba), o pirohei, feito em todas as casas e o trigo mourisco. O pirohei, ou pierogi do polonês (pastelzinho recheado com requeijão ou batata e é servido com cebola queimada). O prato mais típico da culinária paranaense é o Barreado, preparado com carnes, gordura, toucinho e bastante tempero, cozido em uma panela de barro por várias horas. A panela é barreada, ou seja, vedada com uma liga de água e farinha de mandioca. FIGURA 1: BARREADO Fonte disponível em: https://www.morretes.com.br/cultura/barreado.htm acesso em: 28 jul. 2021. https://www.morretes.com.br/cultura/barreado.htm 147UNIDADE IV A Geografia dos Sabores Na rica gastronomia paranaense, também cabe o leitão desossado e recheado, o porco no rolete, boi no rolete, croquete de pinhão, pudim de pinhão e carneiro ao molho de vinho e o quase primitivo carneiro no buraco. Nas cidades que funcionavam como estadia aos Tropeiros (Tibagi, Castro e Lapa) são famosos o arroz tropeiro, o virado de feijão e a paçoca de pinhão com charque. Das colônias europeias de italianos, alemães, ucranianos e poloneses veio o hábito de cozinhar carne de porco, carneiro e boi, muitas vezes no rolete. Cidades como Altônia, Engenheiro Beltrão, Marechal Cândido Rondon, Planalto, Ribeirão Claro, Santa Fé e Santa Terezinha de Itaipu promovem a Festa do Boi no Rolete. Carambeí, Piraquara, Ribeirão Claro e Cam- po Mourão organizam a Festa do Carneiro no Rolete. Em Foz do Iguaçuhá o Concurso do Dourado Assado e a Festa do Pirá de Foz, Outros peixes que possuem festas próprias são a tilápia (Porecatu), a tainha (Paranaguá), o caranguejo (Pontal do Paraná, onde também acontece o Festival de Frutos do Mar, o dourado (Medianeira, Itaipulândia), o lambari (Porto Vitória) e o pintado (Guaíra). A carne tornou-se o principal ingrediente da alimentação do paranaense, devido ao desenvolvimento da pecuária, dando origem aos mais variados pratos como o barreado, que teve origem nas regiões de Antonina, Morretes e Guaraqueçaba. Morretes, Guaratuba e Paranaguá são localidades que mantêm o ritual de servir o barreado com arroz de banana (e cachaça da mesma fruta), especialmente no período anterior ao Carnaval. O pinhão, fruto da araucária, é consumido no inverno, em casa, e servido em ocasiões como as festas juninas. Pode ser preparado cozido ou na brasa, chapeado ou compondo pratos como a paçoca de pinhão, cozidos de carne e doces. Até o nome da capital paranaense é relativo à araucária - vem do tupi Kuri (pinheiros) e Tyba (abundância) (CHAVES; FREIXA, 2007). FIGURA 2: PINHÃO Fonte disponível em: https://www.turismo.pr.gov.br/Turista/Pagina/Receitas-com-Pinhao.Acesso em 28 jul. de 2021. https://www.turismo.pr.gov.br/Turista/Pagina/Receitas-com-Pinhao 148UNIDADE IV A Geografia dos Sabores Os índios que habitavam a região foram os primeiros a utilizar o pinhão em suas preparações, e distribuíram essa cultura para os povos imigrantes. Alguns pratos típicos do Paraná: ● Barreado. ● Carneiro no Buraco. ● Quirera Lapiana. ● Pierogi. ● Croquete de Pinhão. ● Porco no Rolete. ● Porco no tacho ● Boi no Rolete. ● Pintado na telha ● Pachola (arroz com frango temperado) ● Carne de onça ( carne bovina crua temperada, herança do prato hackepeter alemão) 2.2 Santa Catarina Rica pelo seu litoral e suas serras, em Santa Catarina fica a terceira cidade mais antiga do Brasil – São Francisco do Sul. A região norte do estado tem forte influência dos alemães, italianos, portugueses e espanhóis. Dos hábitos herdados pelos descendentes europeus, principalmente alemães, podemos destacar a Oktoberfest que ocorre em Blumenau, cujo principal atrativo é o chope alemão, além das comidas típicas No litoral catarinense, fixaram-se os açorianos, principalmente na ilha de Florianó- polis – conhecida como a capital da ostra. Entre os meses de maio e junho, realizam a pesca artesanal da tainha, que rendeu à região pratos saborosíssimos com esse ingrediente. Feita com rede, os cardumes são arrastados até a beira da praia. A abundân- cia e predileção pelo pescado resultaram em muitas receitas típicas, como tainha escaldada (seca ao sol feita na brasa) e recheada com farofa (feita da ova), esta última uma iguaria muito valorizada no exterior. Os pratos são geralmente servidos com pirão de caldo de peixe ou pirão d’ água (FREIXA E CHAVES, 2012, p. 50) Da mistura das culturas, todos deixaram sua contribuição, seja na língua, seja em seus ingredientes, dos quais podemos citar alguns, principalmente os mais relevantes, como batata, mandioca, milho, pinhão, repolho, beterraba, e das frutas, a maçã. 149UNIDADE IV A Geografia dos Sabores Cada povo estrangeiro, [...] contribuiu com as receitas de seu país de origem. Dos alemães, por exemplo, herdou-se a familiaridade com pratos como o chucrute e o picles, e ainda caíram no gosto popular os salsichões, as lingui- ças de porco, as carnes defumadas e as guloseimas como o pão de trigo e de milho, as cucas de banana e de maçã e o famoso apfelstrudel (torta folhada de maçã). São curiosidades o stolen um tipo de panetone alemão com pas- sas brancas e pretas, nozes, amêndoas, frutas cristalizadas, rum e trigo; e o strudel de requeijão (streichfäsestrudel) (CHAVES; FREIXA, 2007, p.132). No Vale do Itajaí o cardápio é predominantemente alemão, mas com muita influên- cia italiana. Os pratos clássicos germânicos podem ser encontrados em toda parte: chuleta (kassler), joelho (eisbein) de porco, salsichão, marreco com repolho roxo, apfelstrudel — torta de maçã folhada com canela; além dos fartos cafés coloniais, com embutidos, tortas, cucas, e os pães com chimia e nata. Além da tradicionalíssima Oktoberfest, e festivais semelhantes acontecem em Joinville (Fenachopp), Jaraguá do Sul (Schützenfest) e Brusque (Fenarreco), em Treze Tilias (Tirolerfest) e os pratos mais procurados são o goulash, o spätzel (espécie de nhoque pequeno) e o chocolate caseiro. A influência da cozinha da Itália é expressiva com uma enorme variedade de mas- sas, polentas, molhos típicos, salames e ingredientes às vezes difíceis de encontrar em outras partes do Brasil. O pinhão também é um ingrediente muito presente, tendo o Entrevero como um prato encontrado em toda região serrana além de paçoca de pinhão, pudim de pinhão, bombom de pinhão, entre outros. FIGURA 3: ENTREVERO Fonte: disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/bomgourmet/ receitas-pratos/entrevero-de-pinhao/. Acesso em 28 jul. de 2021. https://www.gazetadopovo.com.br/bomgourmet/receitas-pratos/entrevero-de-pinhao/ https://www.gazetadopovo.com.br/bomgourmet/receitas-pratos/entrevero-de-pinhao/ 150UNIDADE IV A Geografia dos Sabores Alguns pratos típicos de Santa Catarina: ● Entrevero ● Paçoca de pinhão ● Cuca de maçã ● Marreco recheado ● Eisbein (joelho de porco) ● Spätzle (tipo de macarrão caseiro ● Purê de maçã ● Peixada catarinense ● Caldeirada de frutos do mar 2.3 Rio Grande do Sul Região mais ao sul do Brasil, que faz divisa, ao norte, com Santa Catarina, no sul, com o Uruguai, no leste, com o Oceano Atlântico e, no oeste, com a Argentina; quando pen- samos no Rio Grande do Sul, nos vêm à mente três coisas: a figura do gaúcho, o churrasco e o chimarrão. O povo gaúcho se formou a partir dos índios, que viviam nos pampas nesse período, e do europeu imigrante, originários principalmente da Alemanha, Itália, Polônia e Ucrânia, Síria, Japão e Holanda. O estado gaúcho, pela sua geografia, tem dois tipos de cozinha - a dos pampas - caracterizada pela criação de ovinos e bovinos, e a cozinha campeira, que se formou pela junção do índio, do português e do espanhol. As tradições italianas marcam as regiões da serra, onde as características geo- gráficas locais deram condições para o surgimento da mais importante produção de vinho do país. Na cozinha, destacam-se o galeto al primo canto (frango abatido ainda jovem), temperado com vinho branco e sálvia e assado na brasa – servido com bacon e radicchio, a sopa de agnolini (capeletti), os tortei de abóbora e a polenta. As carretadas entravam mata adentro, para levar os colonos responsáveis por fundar novas províncias. Pelas longas distâncias, os carreteiros tinham sempre mantas de charque para servir de alimento e, assim, juntando o arroz, se difundiu por todo o Rio Grande do Sul o arroz-de-carreteiro, prato apreciado em todo o Brasil. Sem falar das frutas, como o pinhão, que também aparece nesse estado, a maçã, o pêssego e o butiá. 151UNIDADE IV A Geografia dos Sabores FIGURA 4: ARROZ DE CARRETEIRO Símbolo da cultura do Rio Grande do Sul, o chimarrão é uma herança dos índios tupis-guaranis, e segue um ritual de comensalidade. A água nunca deve ser fervida, obe- decendo ao mesmo princípio do café, para não perder oxigênio e queimar a erva, o que lhe confere sabor desagradável. O fogo deve ser desligado quando a água chiar na chaleira. Outro detalhe está relacionado à cuia, que, quanto mais velha, melhor o chimarrão. Na roda do chimarrão, quem está com a cuia deve tomar o mate quente, até roncar a cuia, antes de passar para o próximo da roda. Na região central do Rio Grande do Sul,a cozinha italiana se manteve mais pre- servada através das gerações, com salames, risotos e massas. Os doces têm grande destaque - de fondados a cristalizados, compotas e doces portugueses feitos a partir da clara e da gema dos ovos. Na Serra Gaúcha a estrela é a chimia,doce em forma de pasta feito de melaço e batata-doce. Alguns pratos da culinária gaúcha: ● Arroz carreteiro ● Galeto na brasa ● Tortei de abóbora ● Papos de anjo ● Ambrosia ● Churrasco ● Matambre recheado ● Espinhaço de ovelha com aipim ● Cueca virada ● Sagú com creme 152UNIDADE IV A Geografia dos Sabores 3. A COZINHA DA REGIÃO SUDESTE O Sudeste brasileiro está dividido em três regiões: São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Região economicamente desenvolvida, que se formou à custa do ciclo do ouro e do café. A região começou a se desenvolver com o comércio de ouro no estado de Minas Gerais. Já o Rio de Janeiro, com o passar dos anos, acabou substituindo Salvador como centro econômico do país, até meados de 1960, quando Brasília se tornou a capital do Brasil. Com o declínio do ouro, o café tornou-se a nova jóia de exportação, conquistando os mercados mundiais. Os estados do Rio de Janeiro e São Paulo se tornaram grandes for- necedores do produto. Com a chegada dos imigrantes estrangeiros, no final do Século XIX, para trabalharem nas lavouras de café, a gastronomia brasileira começou a sofrer alterações e adaptações de receitas, além disso, novos produtos foram trazidos para o Brasil. Não podemos falar do Sudeste, sem mencionar o boteco, uma verdadeira institui- ção no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte e em São Paulo. O boteco teve sua origem no início do século XX, com o crescimento da industrialização, sendo uma opção que oferecia alimentação barata aos operários, já sem tempo de refeição em casa. Mais tarde, passou a ser um lugar descontraído, muito frequentado pelas pessoas no final da tarde, depois do trabalho, para bebericar, jogar conversa fora e petiscar (coxinha de frango, bolinho de bacalhau ou de carne e pasteizinhos). (CHAVES E FREIXA, 2007). 153UNIDADE IV A Geografia dos Sabores 3.1 São Paulo A cozinha paulista foi moldada principalmente pelos alimentos que os viajantes – bandeirantes e tropeiros – tinham à disposição em função de suas expedições: a mandioca, o feijão e o milho e mais tarde, o arroz, que foi incorporado por influência dos portugueses, formando nosso tradicional arroz com feijão;e também, a carne de porco. Para aumentar a quantidade de alimento por animal utilizado no transporte, o milho e a mandioca foram reduzidos à farinha. Esse ingrediente era pilado com a carne, resultando na paçoca, ou consumido com feijão, dando origem ao virado paulista. FIGURA 5: VIRADO PAULISTA Fonte: disponível em: https://www.revistamenu.com.br/2021/01/23/ confira-receita-do-tradicional-virado-a-paulista/ acesso em 28 jul. de 2021 Nas fazendas de café, nos séculos XIX e XX, era habitual o uso de ingredientes caipiras nas refeições, como refogados de chuchu, bolo de fubá e o trivial em torno da combinação de arroz com feijão. Os doces eram feitos no tacho de cobre, como a goiabada cascão e o doce de laranja-da-terra. O cuscuz paulista é um prato do coletivo com influência dos índios, de quem herdamos a farinha de milho e dos bandeirantes, pela presença dos alimentos que levavam nas suas viagens. Com a vinda dos imigrantes, a culinária paulista sofreu a influência dos povos que chegavam. Foram adaptadas receitas europeias de bolos, biscoitos, pudins, croquetes, nhoques e pães à mandioca, ao milho e suas farinhas. Mas as preparações com farinha de trigo, como a pizza, a esfiha e as massas, se incorporaram ao dia a dia paulistano. https://www.revistamenu.com.br/2021/01/23/confira-receita-do-tradicional-virado-a-paulista/ https://www.revistamenu.com.br/2021/01/23/confira-receita-do-tradicional-virado-a-paulista/ 154UNIDADE IV A Geografia dos Sabores A tradicional cozinha paulista incorporou outras influências com a chegada de imigrantes a partir do final do século XIX. Além dos italianos, com as pizzas e as massas, os árabes deram os seus quibes, esfihas e charutinhos de folha de uva. E os japoneses o tão típico pastel de feira, sushi, sashimi e yakisoba. (FREIXA E CHAVES, 2012, p. 244). A industrialização da capital paulista, no início do século XX trouxe transformações aos costumes, à cultura e à culinária, dentre as quais se destaca a herança francesa. A chegada dos imigrantes italianos fez surgir a descontraída cantina, tradicional na capital, São Paulo. A cidade de São Paulo é considerada a capital da gastronomia, pois acaba incorpo- rando tudo o que há de melhor no mundo. Alguns pratos típicos da culinária de São Paulo: ● Sanduíche de Mortadela. ● Farofa de Banana. ● Cuscuz à paulista. ● Virado à Paulista. ● Bauru (sanduíche de rosbife, queijo, tomate e picles — o sanduíche possui variações de ingredientes em diferentes localidades do Brasil, porém, essa é a receita original). ● Pasteis de feira. ● Pizzas e massas. ● Camarão à paulista. ● Picadinho de carne. 3.2 Minas Gerais A cozinha mineira é típica brasileira, pois quase não sofreu influências estrangeiras. Na culinária mineira, destacam-se as carnes de porco, embutidos e defumados, galinhas e carnes de caça. Entre os acompanhamentos, podemos destacar as verduras, como a couve, o milho verde, o quiabo, o jiló e as demais PANC (Plantas Alimentícias Não Convencionais), como o ora-pro-nóbis, umbigo de banana, taioba, serralha, peixinho, capiçoba, cambuquira (broto de abóbora), beldroega, trevo, azedinha etc. Peixes de rio, queijos de variados tipos, fubá de milho e feijão são também produtos muito utilizados. O pão de queijo é destaque na cozinha mineira. Ele está presente nas fartas mesas de quitandas, que são servidas com café, normalmente durante a tarde. 155UNIDADE IV A Geografia dos Sabores Em poucos lugares no Brasil se preserva tanto o costume das quitandas ser- vidas no lanche da tarde como em Minas Gerais. São biscoitos de polvilho, fofas broas de fubá, o curau e a pamonha feitos de milho. Bolinhos de fubá e de chuva fritos, polvilhados com açúcar e canela, fazem parte das recorda- ções da maioria dos mineiros” (CHAVES; FREIXA, 2007, p. 114). A cozinha mineira nos deu seus angus, lombo de porco assado e suas quitandas, da qual fazem parte os biscoitos de polvilho, o pão de queijo, as broas de fubá, os bolinhos de chuva, o curau e a pamonha.. Como bem diz um ditado popular da cultura brasileira: “o mineiro só acha que está sendo hospitaleiro, quando mata o visitante de tanto comer”. A hospitalidade é característica dos mineiros, e servir bem faz parte do ritual: É difícil um visitante sair da casa mineira sem antes ter tomado pelo menos um cafezinho da roça. Ainda, é muitas vezes passado no coador de pano. Dessas paragens também são bem típicos o pão de queijo e a canjiquinha com costelinha de porco. No cardápio mineiro não pode faltar o frango com quiabo, a galinha acompanhada de ora-pro-nóbis, o leitão assado à pururuca e a vaca atolada (um cozido com mandioca e costela de carne bovina). O tutu de feijão com couve e torresmo se aproxima do virado à paulista, também herança dos tropeiros. O angu de fubá é acompanhamento usual. Entre os muitos doces estão também o doce de leite, a ambrosia e o doce de limãozi- nho taiti, verdadeira iguaria mineira (CHAVES; FREIXA, 2007, p.106) FIGURA 6: TUTU A MINEIRA A corrida pelo ouro em Minas Gerais, ocasionou o desabastecimento da região de produtos de primeira necessidade, e assim se desenvolveu uma cozinha de fundo de quintal, conhecida também por cozinha caipira, que se desenvolveu em função do grande número de pessoas que migraram para as Minas Gerais: milhares de homens, mulheres, velhos, moços, largaram tudo e viajaram para se instalarem nas regiões mineradoras; a Coroa, que lá se instalou para enviar as riquezas para Portugal, e os escravos, que vieram para trabalhar nas lavras. 156UNIDADE IV A Geografia dos Sabores O milho, juntamente com a carne de porco, estava muito mais presente do que a mandioca, na culinária mineira. O porco, em termos de versatilidade, podia ser considerado a versãoanimal do milho. E é por essa razão que alcançou tamanho destaque na culinária regional. Ele produzia a gordura necessária para os refogados e frituras. O toucinho dava gosto ao feijão ou se transformava em torresmo. De sua carne eram produzidos embutidos, como paio e linguiça. A carne, muito saborosa, também podia ser consumida fresca. Numa época em que a troca de merca- dorias era tarefa complicada, criar em casa um animal do qual tudo se apro- veita tinha valor inestimável (ZARVOS, 2000, p. 44). Por meio do milho, obtinha-se o fubá que é utilizado até hoje para preparar o angu, além de biscoitos e broinhas, bambá de couve e escaldados de fubá com caldo de galinha. O gado só chegou a Minas com a decadência da mineração, no final do século XVII, aumentando a produção de carne e de leite, que deram ainda mais fama aos produtos e pratos da região como a vaca atolada, feito de carne de vaca cozida com mandioca, e os variados queijos e os doces de leite. O queijo da Serra da Canastra é um produto tombado pelo patrimônio imaterial, pelo seu legado e importância para essa cultura: por ser artesanal, produzido com leite cru e por ser um saber que vem sendo passado de geração a geração. Alguns pratos típicos da culinária de Minas Gerais: ● Feijão tropeiro. ● Frango com quiabo. ● Jiló com fígado (tradicional no mercado municipal de BH). ● Frango ao molho pardo. ● Leitão à pururuca. ● Vaca atolada. ● Canjiquinha com costelinha de porco. ● Angu ● Tutu de feijão. ● Galinhada. ● Bambá de couve. ● Pão de queijo. ● Compotas de frutas. ● Doce de leite. ● Ambrosia. ● Biscoito de polvilho ● Broinha de fubá ● Brevidade de maisena ● Goiabada ● Bananada 157UNIDADE IV A Geografia dos Sabores 3.3 Rio de Janeiro As influências da cozinha carioca são basicamente portuguesas e africanas. “São exemplos o cozido carioca, os pratos com bacalhau e o bolinho do mesmo peixe, ícone da cozinha de boteco” (CHAVES; FREIXA, 2007, p. 107). Por ter sido capital da colônia, do império e da república, entre os anos de 1763 e 1960, tem forte influência dos portugueses. Com o passar dos anos, sofreu forte influência da cozinha de outros estados brasi- leiros, como Minas Gerais, Bahia e Rio Grande do Sul. Provavelmente, na capital carioca, surgiram pratos como o picadinho de filé mignon, o filé a cavalo e, sem sombra de dúvidas, o filé Oswaldo Aranha, um dos clássicos de restaurantes tanto do Rio de Janeiro como do Brasil. Contudo, o prato que, se não foi inventado no Rio, pelo menos foi divulgado por essa capital, é a nacional feijoada. Outras receitas clássicas locais são a Sopa Leão Veloso e o casadinho da Confeitaria Colombo, além de seus pastéis de nata (CHAVES; FREIXA, 2007, p. 107). O picadinho de carne marinado na cachaça e servido com toucinho, banana, farofa e ovo é outro prato característico do Rio de Janeiro, além da sopa Leão Veloso, de frutos do mar – que no início era feita com os ingredientes que restavam das noites movimentadas de boemia, para servir os últimos clientes da Confeitaria Colombo, junto com seus famosos pastéis de nata. FIGURA 7: PICADINHO DE CARNE Alguns pratos típicos da culinária do Rio de Janeiro: ● Aipim frito. ● Bacalhau Gomes de Sá. ● Bolinho de bacalhau. 158UNIDADE IV A Geografia dos Sabores ● Picadinho de filé. ● Camarão com chuchu. ● Cozido carioca. ● Empadinha de camarão. ● Sopa Leão Veloso. ● File a cavalo. ● Rabada carioca. ● Feijoada. ● Filé Oswaldo Aranha. 3.4 Espírito Santo Em tupi, capixaba quer dizer roça, roçado, terra limpa para produção, nome dado pelos índios à sua plantação de milho ou mandioca. A cozinha capixaba é considerada uma das mais autênticas do país, pois a influência dela vem dos portugueses e índios. Até o século XIX, o Espírito Santo era uma das províncias de pouco desta- que. O panorama começou a mudar com a chegada dos imigrantes italianos e alemães e dos brasileiros de outros estados. A condição de ilha fez que a capital, Vitória, mantivesse sua identidade culinária, da qual fazem parte centenárias receitas indígenas e europeias. Enquanto nas cidades litorâneas prevalece a culinária de origem indígena, na região serrana mudam o clima (mais frio) e a cozinha (CHAVES; FREIXA, 2007, p. 107). No período da colonização do Brasil, os exploradores da capitania do Espírito Santo permaneceram praticamente isolados em função da geografia da região: de um lado, a serra do mar, do outro, o Oceano Atlântico. Esse isolamento obrigou esse povo a extrair localmente os ingredientes de que necessitavam e aprender com os nativos indígenas as técnicas culi- nárias para prepará-los. Por isso, a influência africana nessa cozinha é quase nula. FIGURA 8: MOQUECA CAPIXABA 159UNIDADE IV A Geografia dos Sabores Dos índios, herdaram o gosto pelo milho e pela mandioca, criando pratos como a papa de milho, bolo de aipim, pirão e muxá (feita de quirera), bem como a pacova assada e as deliciosas moquequinhas. Outro produto indígena é o urucum, semente vermelha que irá dar cor às moquecas e aos óleos para cozinhar, mantendo uma cozinha simples e tradicional Outros pratos típicos são a torta capixaba, que é quase uma fritada com peixes, frutos do mar e palmito, em que se acrescentam ovos batidos, muito comum na semana santa. Entre os pratos italianos mais consumidos, podemos encontrar o tortei de abóbora, o agnolini in brodo (sopa de capeletti) e a pavesa (outro tipo de sopa à base de caldo de carne, torradas e gema de ovo), minestrone e zucca. Entre os pratos tipicamente brasileiros destaca-se o frango com quiabo, herança dos vizinhos mineiros, e a moqueca capixaba. A moqueca capixaba é conhecida em todo o país por seus ingredientes, por seu peculiar preparo nas panelas de barro das goiabeiras e, principalmente, por ser considerada patrimônio imaterial da culinária do Espírito Santo. As panelas de barro são fabricadas de forma artesanal pelas mulheres paneleiras, com um barro especial extraído de regiões próximas aos mangues. O saber envolvido na fabricação artesanal de panela de barro foi o primeiro bem cultural registrado, pelo Iphan, como Patrimônio Imaterial no Livro de Re- gistro dos Saberes. O processo de produção no bairro de Goiabeiras Velhas, em Vitória, no Espírito Santo, emprega técnicas tradicionais e matérias-primas provenientes do meio natural. A atividade, eminentemente feminina, é tradicio- nalmente repassada pelas artesãs paneleiras, às suas filhas, netas, sobrinhas e vizinhas, no convívio doméstico e comunitário (IPHAN, 2014, online) Alguns pratos típicos da culinária do Espírito Santo: ● Moqueca capixaba. ● Muma de siri. ● Caranguejada. ● Frango ao molho pardo. ● Torta capixaba. ● Pirão de peixe capixaba. ● Frango com quiabo capixaba. ● Arroz de polvo. ● Risoto capixaba. ● Torta de palmito pupunha com bacalhau. 160UNIDADE IV A Geografia dos Sabores 4. A COZINHA DO CENTRO-OESTE A região centro-oeste é formada pelos estados do Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás e o Distrito Federal. Apesar de ser uma das maiores áreas em extensão territo- rial, ela não é banhada pelo mar, mas, por outro lado, tér abrangida por dois cenários de uma inigualável beleza: o Cerrado e o Pantanal, que lhe renderam duas cozinhas muito bem marcadas, a Pantaneira – formada pelo Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, e a do Cerrado – formada pelo cerrado. Que engloba Goiás. Sua diversidade cultural e gastronômica se deve também aos diversos povos que passaram por essa região, trazendo fortes influências dos bandeirantes, mas, criou sua própria identidade com o uso de ingredientes únicos, como o pequi e a guariroba. Os fluxos populacionais e imigratórios que colonizaram essa região se originaram, em suas maiorias, de outras partes do próprio Brasil, refletindo assim, na culinária local. O milho, que tem presença marcante na cozinha cotidiana, com preparos como a canjica, a farinha e o angu, as pamonhas e curaus. Do Rio Grande do Sul, veio o arroz de carreteiro,aqui batizado de Maria-Izabel, como os temperos e gostos da região. 4.1 Mato Grosso e Mato Grosso do Sul Até 11 de outubro de 1977, quando houve o desmembramento, o Estado do Mato Grosso do Sul fazia parte do Estado do Mato Grosso. Com o passar do tempo, os estados foram ganhando características particulares, porém, na gastronomia mantiveram uma grande semelhança. 161UNIDADE IV A Geografia dos Sabores Foi através da descoberta do ouro que a região começou a se desenvolver, com a chegada dos mineiros, paulistas e nordestinos e com o passar do tempo, povos vindos de outros estados brasileiros, como gaúchos e paranaenses, foram se juntando e trazendo consigo suas contribuições culturais e alimentares Devido aos seus rios fartos, há uma variedade de peixes com sabores marcantes, como a matrinxã, caldinho de piranha, a carne de jacaré, a piraputanga frita, o pacu enso- pado, frito ou assado, ou sua costela, chamada de ventrecha.. O pintado, um das estrelas da culinária mato-grossense, é servido como mojicas (peixe ensopado com mandioca), à moda pantaneira (servido na telha) ou frito com urucum. FIGURA 9: MOJICA DE PINTADO Fonte: disponível em: https://portojofre.com.br/pb/mojica-de-pintado/#about-us. Acesso em: 28 jul. 2021. A piranha é um dos peixes apreciados na região - o preparo mais conhecido é o caldo de piranha, preparado de forma lenta, temperado com alho, suco de limão, vinagre, pimenta, tomate, pimentão, cebola, cebolinha e coentro. O prato é muito procurado pelos turistas e, conta a lenda, que carrega poderes afrodisíacos. Para acompanhar os pratos preparados com peixe, temos o pirão, a farinha de mandioca, a mandioca cozida ou frita e banana-da-terra. A forte influência da Bolívia, incorporou a saltenha (salgado assado em formato de pastel, recheado com peito de frango desfiado, batata, azeitonas e bastante tempero) e o Arroz Boliviano (parecido com arroz à grega, temperado com carne moída, ovos cozidos, https://portojofre.com.br/pb/mojica-de-pintado/#about-us 162UNIDADE IV A Geografia dos Sabores milho, temperos verdes, pimenta, alho e cebola), e do Paraguai, as chipas, que lembram o pão de queijo mineiro, e as sopas paraguaias, que não são sopas, e sim uma torta salgada, feitas a partir do milho e de muito queijo. Entre tantos ingredientes e produtos típicos, temos queijos, requeijões de corte, linguiças de Maracaju, doce de leite (em pasta, pedaço e coalhado), mocotó e vários tipos de erva-mate para fazer tereré, que lembra o chimarrão gaúcho por usar a erva-mate e também pela confraternização que ele propicia. Alguns pratos típicos da culinária do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul: ● Arroz Boliviano. ● Arroz com Pequi. ● Buré (Sopa de Milho com Cambuquira — Broto de Abóbora). ● Caldo de Piranha. ● Capivara Assada. ● Chipa. ● Cumandá Quesu (Sopa de Feijão Verde e Queijo). ● Dourado na Folha de Bananeira. ● Filé de Pintado à Urucum. ● Furrundu (doce de mamão e rapadura). ● Jacaré Cozido e Assado. ● Sopa Paraguaia. ● Tereré (erva-mate em água fria). ● Linguiça de Jacaré. ● Linguiça de Maracaju. ● Maria Izabel (arroz com carne-seca, parecido com arroz carreteiro). ● Mojica de Pintado. ● Piraputanga ao Molho Branco. ● Pixé (milho-torrado, açúcar e canela). ● Quibebe de Mamão Verde. ● Sarrabulho. 4.2 Goiás O bioma que predomina no estado de Goiás é o Cerrado, repleto de cores, sabores e diversidade. Apesar de ter uma gastronomia tão rica e diversificada, a região do Cerrado só se desenvolveu a partir do século XX, principalmente a partir da formação de Brasília. 163UNIDADE IV A Geografia dos Sabores Apenas dois séculos após o descobrimento do Brasil que os primeiros coloniza- dores chegaram no território que viria a se tornar o estado de Goiás. Eram bandeirantes vindos de São Paulo em busca de ouro. Do encontro com os nativos foi se formando a culinária goiana. Dos mineiros e paulistas vieram os pratos à base de carne-seca, de carne de porco (como o leitão à pururuca) e de feijão (como o tutu e o feijão tropeiro ou virado). Os alimentos consumidos pelos indígenas e que foram incorporados ao cardápio goiano eram à base de milho e mandioca, feitas de farinhas e massa. O que acabou por tornar a culinária goiana diferente da cozinha do resto do Brasil foi o aproveitamento dos produtos típicos do Cerrado, como a guariroba e, principalmente, o pequi, nas receitas mais típicas de Goiás: a galinhada com pequi e arroz com pequi. A guariroba, um tipo de palmito com gosto amargo, é ingrediente indispensável de outro prato característico até no nome: o em- padão goiano (COLEÇÕES ABRIL, 2009h, p. 15). As principais preparações são o empadão goiano, carne de porco, carne de frango e queijo. os peixes na telha, as pamonhas, arroz com suã, arroz Maria Izabel, o arroz de puta pobre, uma receita que junta sobras de arroz e sobras de carne e de feijão, ou arroz de puta rica, que é o mesmo arroz, que, com passar do tempo, ganhou mais ingredientes, como linguiças, bacon, azeitona, passas, milho verde e ervilha, e transformou-se em um prato requintado para figurar nas mesas de ocasiões especiais. Conta a lenda que o arroz de puta rica foi criado por uma cafetina da região, que para diferenciar sua preparação das demais galinhadas servidas em outros estabelecimentos, resolveu dar mais sustança à receita adicionando mais proteínas e temperos. A carne suína aparece em forma de torresmo, assada, leitão recheado e à pururuca, feijoada. O milho é consumido, cozido, refogado, em forma de pamonha (pode ser doce ou salgada e recheada), suco de milho, sopa e curau. Da farinha de milho prepara-se o angu, que serve de acompanhamento para diversos pratos. As pamonhas são servidas nas casas de família, nas feiras livres e em restaurantes. A sua receita demanda técnica, que é passada de geração a geração: o milho é ralado e, depois, é passada a faca nas espigas para extrair todo o sabor do milho. Só então a massa é temperada e coada para encher as palhas. 164UNIDADE IV A Geografia dos Sabores FIGURA 10: ARROZ DE PUTA RICA Fonte: disponível em: https://www.revistamenu.com.br/2016/11/10/ aprenda-a-preparar-o-arroz-de-puta-rica/. Acesso em: 28 jul. 2021. A poetisa, escritora e doceira Cora Coralina retratou as doceiras de Goiás. Os doces mais encontrados são os de frutas cristalizadas, como de mamão, figo, abacaxi e até jiló, além desses, os doces típicos são os de limão recheado com doce de leite, o pastelzinho recheado com doce de leite e o bolinho de arroz com coalhada e açúcar. As mãos de fada que confeccionam doces artesanais, com tanto esmero, preservam a memória cultural de Goiás. E tem como fonte de inspiração, uma de suas representantes ilustres, a poetisa Cora Coralina, que se julgava mais doceira que poeta. De tachos de cobre saem doces de frutas cristaliza- das, como cajuzinho do cerrado, compotas como a de limãozinho recheado com doce de leite. Do forno, especialidades como o pastelzinho, um tipo de tortinha com doce de leite. Moldados a mão, um a um, os alfenins, de origem árabes, são confeitos de açúcar e polvilho, feitos na forma de bichos e flores (FREIXA E CHAVES, 2012, p. 244) Além dos doces, o cerrado é famoso por suas frutas típicas como pequi, jenipapo, guariroba, curriola, cagaita, mangaba, baru, buriti, coquinho-azedo, araticum, bacupari-do- -cerrado, murici, pera-do-campo, cereja-do-cerrado e jatobá-do-cerrado. O pequi se destaca por ser o fruto mais tradicional dessa região, estando fortemente ligado às raízes da culinária do cerrado. https://www.revistamenu.com.br/2016/11/10/aprenda-a-preparar-o-arroz-de-puta-rica/ https://www.revistamenu.com.br/2016/11/10/aprenda-a-preparar-o-arroz-de-puta-rica/ 165UNIDADE IV A Geografia dos Sabores O pequi é uma fruta nativa do cerrado brasileiro, cujo nome científico é Caryo- car brasiliense camb. É também conhecido como: piqui, piquiá, piquiá-bravo, amêndoa-de-espinho, grão-de-cavalo,pequiá-pedra, pequerim e suari. Seu significado na língua indígena é “casca espinhosa”. Do caroço desta fruta é extraído o óleo, e a partir dele é produzido o biodiesel e 50% deste corres- ponde ao óleo vegetal, que tem uma composição química adequada para a produção de biodiesel (PERES (s/d, online). FIGURA 11: PEQUI Fonte: disponível em: https://come-se.blogspot.com/2017/02/ pequi-e-sua-castanha-coluna-do-padalar.html acesso 28 jul. de 2021 Na região de Goiás, como se planta muito arroz, destacam-se pratos à base de arroz e preserva-se ainda a utilização de fogão à lenha.. A cebola, o alho, os temperos verdes e pimentas não podem faltar. Alguns pratos típicos da culinária de Goiás: ● Arroz com Pequi. ● Galinha com Pequi. ● Arroz de Puta Rica. ● Arroz com Suã. ● Feijão-Tropeiro. ● Empadão Goiano (Carne de frango, de porco e palmito de guariroba). ● Arroz com Suã. ● Matula. ● Mojica de Pintado. ● Carne-de-sol à moda de Goiás. ● Pastelim (massa assada com recheio de doce de leite). ● Doces de frutas do Cerrado. https://come-se.blogspot.com/2017/02/pequi-e-sua-castanha-coluna-do-padalar.html https://come-se.blogspot.com/2017/02/pequi-e-sua-castanha-coluna-do-padalar.html 166UNIDADE IV A Geografia dos Sabores 5. A COZINHA DO NORDESTE O Nordeste é composto por nove estados: Bahia, Pernambuco, Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas e Sergipe. Região berço do descobrimento do Brasil, sofreu uma forte influência dos portu- gueses. Foi nessa região que tivemos a capitania de Olinda e, mais tarde, a região que abrigou a primeira capital do Brasil, Salvador, no ano de 1549, sendo também essa região um grande centro comercial financeiro da época, em razão da Capitania de Pernambuco, principal região produtora da colônia. Quando o assunto é comida cotidiana do nordestino, temos como destaque o cuscuz, muito consumido durante o café da manhã, derivado do encontro da cozinha portuguesa com influências mouras do Norte africano e os recursos locais; a tapioca (tradicionalmente recheada com jabá e queijo coalho ou coco e leite condensado); o queijo coalho; a maca- xeira (mandioca); o inhame (cozido em água e sal, serve para tomar com café); a tapioca; a canjica; a carne-seca; a galinha d’Angola; o jerimum; o maxixe; a rapadura; a farinha de mandioca; o bolo de aipim; o escondidinho; o sarapatel (feito de miúdos); o feijão fradinho; a fava; tudo preparado e temperado com muita manteiga de garrafa, leite de coco, dendê, coentro e, dependendo do estado, pimenta (CHAVES; FREIXA, 2007). 167UNIDADE IV A Geografia dos Sabores FIGURA 12: CUSCUZ NORDESTINO Fonte: disponível em: https://www.cozinhatecnica.com/2020/02/ cuscuz-de-milho-cuscuz-nordestino/ Acesso em: 28 jul. 2021. Nas tradicionais festas de São João, no Nordeste, o forró é o ritmo predominante, as preparações servidas são à base de milho, amendoim, coco e macaxeira (mandioca/ aipim). As barracas de comidas oferecem: canjica, pamonha, cuscuz, pipoca, curau, mungunzá, paçoca, tapioca, doce de batata-doce, doce de abóbora, doce de jaca, bolo de aipim, bolo de fubá, quentão de cachaça, licores de frutas locais, milho assado, milho cozido, amendoim cozido etc. O litoral nordestino oferece iguarias ricas em frutos do mar e peixes como moquecas, caldeiradas, porções de camarão, pirão de peixe, caranguejada, mariscada, casquinha de siri, camarão na moranga, patinhas de caranguejo.O pirão e a farofa sempre acompanham os pratos ou os petiscos do final do dia, que são feitos a partir das coisas do mar ou da terra, como os caldinhos de feijão ou sururu. Ainda, no litoral nordestino, o caldo de cana e a água de coco estão sempre pre- sentes assim como as demais frutas da região, como o caju, a graviola, a manga, a jaca, o araçá, a mangaba, o sapoti, a melancia, a seriguela, o cajá, o umbu e a pitomba. Como herança dos grandes engenhos de açúcar, temos a rapadura, o açúcar mascavo e o melado. Destaque para o bolo Souza Leão, que é patrimônio da humanidade, tombado pelo IPHAN. https://www.cozinhatecnica.com/2020/02/cuscuz-de-milho-cuscuz-nordestino/ https://www.cozinhatecnica.com/2020/02/cuscuz-de-milho-cuscuz-nordestino/ 168UNIDADE IV A Geografia dos Sabores 5.1 Bahia A Bahia é o estado brasileiro que conserva maiores influências africanas tanto nos costumes, crenças quanto na gastronomia. Uma forma do negro cultivar suas tradições religiosas se deu por meio de suas oferendas - as comidas de santo sempre eram feitas para um orixá, como é o caso do Abará, feito com feijão fradinho, camarão seco, cebola e dendê; do Acaçá, bolo de milho ou de arroz, cozido em banho-maria na folha de bananeira; do Caruru, feitos com quiabo e camarão seco, amendoim e dendê, cozidos em guisado. A cozinha baiana é marcada pelo uso de ingredientes como o leite de coco, o azeite de dendê, o coentro e a pimenta malagueta, muitas das receitas regionais levam esses ingredientes. Dos africanos, herdaram as tradições e costumes e também receberam as influên- cias deles para preparar suas receitas típicas, como em um dos principais pratos baianos: a moqueca, que, diferente da rival capixaba, leva em seu preparo o azeite de dendê e o leite de coco. Vieram da África sementes como as do dendê, do quiabo, da pimenta malagueta, que foram cultivadas no litoral baiano. Do índio, como em outras regiões brasileiras, o baiano herdou o uso da farinha de mandioca, do feijão e de alguns utensílios de cozinha, como, pilões e cumbucas de cerâmica. Do português herdou o uso das carnes, com a introdução dos bovinos, caprinos e aves, além da doçaria, uso do azeite de oliva, dos legumes, das castanhas, do queijo, do trigo e a influência da feijoada que, conforme alguns autores, é uma aculturação do cozido português com o feijão e a carne-seca. Apesar de a comida baiana ter um forte cunho religioso pelo seu sincretismo, te- mos também a comida cotidiana. O “almoço fresco ou cozido” é preparado aos sábados, com carnes, raízes, folhosas e leguminosas, cozidas em um caldo, e leva esse nome por sábado, na Bahia, ser dia de feira-livre, dia de ingredientes frescos. Os pratos de miúdos e vísceras, como a dobradinha, o sarapatel e o mocotó também são comuns e tiveram origem nos tempos de comida escrava e escassa. FIGURA 13: ACARAJÉ 169UNIDADE IV A Geografia dos Sabores Alguns pratos típicos da culinária da Bahia: ● Acaçá (mistura de leite de coco e creme de arroz ou farinha de milho branco cozido até dar ponto). ● Abará (massa cozida de acarajé). ● Acarajé (espécie de bolinho de feijão frito no azeite de dendê). ● Bacalhau à moda baiana. ● Bobó de camarão. ● Bucho à moda baiana. ● Casquinha de siri. ● Ensopado de camarão e coco. ● Filés de carne-seca à moda baiana. ● Quibebe. ● Efó (à base de camarão seco, verduras — taioba e mostarda, língua de vaca, dendê e pimenta). ● Moqueca baiana. ● Mugunzá (doce feito com canjica branca, leite, leite de coco, açúcar e canela). ● Bolinho de estudante (bolinho frito à base de tapioca com coco). ● Vatapá (serve como recheio do acarajé). ● Xinxim de galinha (feito com galinha, amendoim, castanha, camarão e muito tempero). ● Cocada. 5.2 Pernambuco As tradições culinárias de Pernambuco são herança dos indígenas, africanos e portugueses, sendo seguidas há anos. Nas festas de São João, assim como nos demais estados nordestinos, a variedade de pratos à base de milho é imensa: pamonha, canjica, bolo de fubá. Ainda são servidos bolos de macaxeira, pé-de-moleque, o tão famoso bolo Souza Leão e o bolo tradicional de Pernambuco, o bolo de rolo. 170UNIDADE IV A Geografia dos Sabores FIGURA 14: BOLO DE ROLO A primeira notícia histórica que se tem do bolo Souza leão é datada de 1859, época em que a família Souza Leão teria servido a receita regional ao imperador D. Pedro II, a família real e sua comitiva durante viagem ao estado, tendo agradado e se consolidado na cozinha local (CAVALCANTI, 2008, online). Na época doimpério, Rita de Cássia Souza Leão Bezerra Cavalcanti, juntou ingre- dientes da terra numa única receita: massa de mandioca peneirada oito vezes, açúcar (um quilo), leite de seis cocos, manteiga nativa e 18 gemas de ovo, resultando na tradicional receita que remete ao ciclo açucareiro, criando um bolo com consistência de pudim. A receita também inovou ao substituir o trigo pela mandioca, a manteiga francesa pela fabri- cada no engenho e o leite de vaca pelo de coco. Isto porque, segundo Gilberto Freyre, em Casa-grande e Senzala, os ingredientes vindos de Portugal chegavam aqui deteriorados e faltavam alimentos frescos (FREYRE, 1997). O bolo de rolo se diferencia de outros bolos enrolados, como o rocambole, não só numa diferença estética, de textura e sabor. Provavelmente, a utilização da goiabada deu-se pela disponibilidade de goiaba em nossa terra. A goiabada por sua vez é um doce de preparo semelhante ao de geléias – outro quitute tipicamente europeu. Já durante a Semana Santa o prato encontrado vai ser o peixe ou camarão acompanhado de bredo (planta/tempero, muito utilizado na região), arroz e feijão preparado com leite de coco. Alguns pratos típicos da culinária de Pernambuco: 171UNIDADE IV A Geografia dos Sabores ● Bolo Souza Leão. ● Bolo de rolo. ● Cartola (sobremesa com queijo e banana). ● Arrumadinho (prato servido com ingredientes lado a lado, charque ou carne de sol, farofa, vinagrete e feijão-fradinho). ● Tapioca. ● Buchada de bode. ● Sarapatel. ● Dobradinha. ● Escondidinho. ● Peixada Pernambucana. ● Cuscuz. 5.3 Maranhão No Maranhão, temos uma cozinha diferenciada pela sua localização geográfica, já que esse território fica entre os estados do Norte e Nordeste brasileiro, com influência das duas regiões. Podemos dizer que esse estado faz parte do nordeste, mas seu ecossistema, sua vegetação e fauna são, na maior parte, muito similares aos da Amazônia. O uso dos temperos e do modo de preparo de seus peixes, de seus moluscos, e crustáceos, de tubérculos e de raízes têm muita influência portuguesa e africana. Com acompanhamento sempre de farinha d’água e arroz. A mandioca, chamada de macaxeira no Maranhão, é consumida em forma de fari- nha d’água. Trata-se de uma farinha mais grossa e crocante. A puba também é um derivado da macaxeira preparada a partir da sua fermentação, formando uma massa ácida utilizada no preparo de paçocas, farofas, pirões e mingaus. O Maranhão também é terra da batata doce, do cará, do inhame, da macaxeira, dos óleos de babaçu; e são pratos característicos dessa região a rabada, o sarrabulho (conhecido como sarapatel), o mocotó, o chambaril, que são pratos com a forte influência das técnicas portuguesas. Essa cozinha é caracterizada também pelo pouco uso de óleo e pimenta e é consi- derada a mais natural do nordeste. Dentre seus ingredientes mais importantes está o arroz, trazido pelo europeu que rendeu aos maranhenses o apelido de papa-arroz. 172UNIDADE IV A Geografia dos Sabores Entre os pratos com esse ingrediente, temos o arroz de cuxá, o de jaçanã (feito com marreco), o de carne (que lembra o arroz de carreteiro, ou ainda, o Maria Izabel do centro-oeste), o de caranguejo, o de camarão e o com feijão. FOTO 15: ARROZ DE CUXÁ Os doces são muito apreciados, tanto os de origem portuguesa como os feitos à base de ovos e os preparados com frutas nativas, na forma de compotas. A tiquira é uma aguardente tradicional com forte influência indígena, feita a par- tir da fermentação do beiju da farinha de mandioca, caracterizada pela sua cor azulada. Atualmente, destaca-se a bebida conhecida como guaraná Jesus, bebida gaseificada, tipo refrigerante, de coloração rosa e extremamente edulcorada. Alguns pratos típicos da culinária maranhense: ● Arroz de cuxá ● Peixada maranhense ● Caranguejo Tic Toc ● Caranguejada ● Torta maranhense ● Juçara (como o açaí é conhecido no Maranhão) ● Sururu ● Sarnambi ● Panelada (feito com miúdos de boi) ● Doce de espécie (a base de coco) 173UNIDADE IV A Geografia dos Sabores ● Biscoito Monteiro Lopes (biscoito amanteigado, com chocolate e açúcar granu- lado, também encontrado na região Norte do país). ● Buchada de bode. ● Arroz de Capote (Galinha d’Angola). ● Sarrabulho (feito com sangue e miúdos de porco). ● Capote no leite de coco. ● Paçoca de carne-seca. ● Tarioba. ● Caruru maranhense. 5.4 Alagoas A gastronomia alagoana reserva traços das cozinhas europeia, africana e indígena, contudo, é muito variada devido ao seu litoral, com uma variedade de peixes e frutos do mar e, ainda, ingredientes do semiárido alagoano. De seus peixes e frutos do mar, destacam-se o sirigado, a cavala, a arabaiana, a cioba, o pitu, a carapeba, o sururu e o camarão, sempre preparados com muito leite de coco. O prato mais clássico é o Sururu de Capote, cozido na própria casca e lavado com muita água corrente. Depois, é cozido com leite de coco e bastante tempero. O Sururu de Capote é servido com pirão preparado com o próprio caldo. Os alagoanos ainda preparam o Sururu ensopado e a fritada de Sururu. FIGURA 16: SURURU DE CAPOTE Fonte disponível em: http://gourmetbrasilia.blogspot.com/2011/02/ sururu-de-capote-iguaria-alagoana.html Acesso 13 ago 2021. http://gourmetbrasilia.blogspot.com/2011/02/sururu-de-capote-iguaria-alagoana.html http://gourmetbrasilia.blogspot.com/2011/02/sururu-de-capote-iguaria-alagoana.html 174UNIDADE IV A Geografia dos Sabores Na região do semiárido, as carnes mais preparadas são a de bode, a de carneiro e a de sol. Encontram-se, também, pamonhas, tapiocas, cuscuz, batata doce, macaxeira, mungunzá, inhame, canjica, umbu e paçoca de carne. Na comida do dia a dia, temos a feijoada regional (que, além de carnes, leva ver- dura), os cozidos, a buchada e a carne de sol. Para acompanhar seus pratos, tem sempre o pirão de leite, que é uma influência do sertanejo. Os doces são tradicionais na região de Riacho Doce, que são assados em forno a lenha e embalados nas folhas de bananeira, como o bolo de macaxeira, a puba e o de milho. Os doces de jenipapo são preparados em tachos e dão origem a licores; acerca das bebidas, pode ser mencionado o cachimbo, que é a mistura de aguardente e mel de abelhas, oferecidos como forma de comensalidade. As frutas típicas são: jaca, manga, mangaba, abacaxi, banana, sapoti, graviola, cajá, caju, seriguela, etc. A feijoada alagoana é com feijão-mulatinho e com menos defumados que a feijoada carioca. Em algumas regiões são acrescentados, ainda, tripas, bucho e/ou verduras. Alguns pratos típicos da culinária de Alagoas: ● Sururu de Capote. ● Caldinho de sururu. ● Sururu ensopado. ● Tapioca. ● Cuscuz. ● Inhame com mel de engenho. ● Umbuzada sertaneja. ● Cocada. ● Arroz de coco. ● Feijão verde com coco. ● Fava com coco. ● Pituzada (Pitu, espécie de camarão/lagostim de água doce). ● Maçunim ao coco (espécie de marisco encontrado facilmente na região de Alagoas). ● Uçá e Guaiamum (caranguejos). 175UNIDADE IV A Geografia dos Sabores 5.5 Sergipe A culinária sergipana é rica em sabor e muito farta, com destaque para os frutos do mar, como os siris, os caranguejos, os uçás e os guaiamuns — crustáceo graúdo, de cor azulada, semelhante ao caranguejo. Aparecerão, também, as moquecas, a arraia e o leite de coco. Do São Francisco, que percorre essas terras, vem o surubim e, do sertão, as carnes. O pirão é o acompanhamento que está presente tanto no litoral como na cozinha sertaneja. Por exemplo, a carne de sol pode ser servida com pirão de leite e manteiga, assim como as moquecas e os caldos de peixes, crustáceos e frutos do mar são acompanhados de pirão preparado com seus próprios caldos. FOTO 17: GUAIAMUM COM PIRÃO Fonte: disponível em: http://rclatosensu.blogspot.com/2010/03/ guaiamum-com-pirao-ao-molho-de-coco.html acesso em: 28 jul. 2021 Produtos como a tapioca e a farinha de mandioca são destaque no estado do Sergipe, assimcomo os demais produtos derivados da mandioca, conhecida também como macaxeira. O milho também está presente na cultura alimentar sergipana, principalmente nas co- memorações de junho. “Com ele são preparados bolos, canjicas, pamonhas, cural, cuscuzes e mungunzás, além de ser consumido assado ou cozido” (COLEÇÕES ABRIL, 2009a, p. 26). As frutas nativas são diversas, como o caju, a mangaba, o jenipapo, o manjelão, o murici, o sapoti, o cajá, a pitomba, a ubaia, a uvaia, o umbu e a pitanga. Esses frutos dão origem a variados doces e sucos. Alguns pratos típicos da culinária do Sergipe: http://rclatosensu.blogspot.com/2010/03/guaiamum-com-pirao-ao-molho-de-coco.html http://rclatosensu.blogspot.com/2010/03/guaiamum-com-pirao-ao-molho-de-coco.html 176UNIDADE IV A Geografia dos Sabores ● Pastel de pitu. ● Pitú com pirão. ● Bacalhau sergipano (cozido em leite de coco). ● Surubim grelhado. ● Moqueca de arraia. ● Patinhas de uçá. ● Guaiamum com pirão. ● Carne de sol frita na manteiga de garrafa. ● Macaxeira com carne de sol. ● Amendoim cozido. 5.6 Ceará A cozinha cearense é uma mistura de tudo que se tem no sertão e no mar. Do litoral, ressalta-se a lagosta, as peixadas e o camarão ensopado., e podemos dizer que: Na região costeira, prevalecem as receitas à base de peixes e frutos do mar, embora também sejam consumidos pratos com carne de sol e galinha. Entre os peixes, há preferência pelo pargo que, normalmente, é preparado assado com sal grosso na brasa. O sirigado (nome pelo qual é conhecido o badejo) é o preferido para o prato mais tradicional da culinária cearense, a peixada. A preparação é com peixe fresco cortado em postas, estas que são temperadas com sal, limão e alho. Enquanto o peixe descansa, repolho, cenoura, cebo- las, batatas inteiras, tomates cortados em cruz e ovos são cozidos em uma panela, temperados apenas com óleo, colorífico e sal. Quando estão quase cozidos, juntam-se as postas do peixe e adiciona-se o leite de coco natural. A peixada é servida com pirão de farinha de mandioca, cozida no caldo peito com a cabeça do peixe (COLEÇÕES ABRIL, 2009d, p. 16 - 18). Da terra, temos a batata doce, o coco, o milho e a macaxeira irão resultar em bolos, cuscuz, canjica, pamonha. Outro prato típico da região é o baião de dois. A carne seca irá resultar nas paçocas de carne, servidas puras ou para acompanhar o baião. As buchadas, o sarapatel e os demais miúdos compõem pratos do dia a dia. Assim, podemos destacar que: FIGURA 18: BAIÃO DE DOIS 177UNIDADE IV A Geografia dos Sabores Alguns pratos típicos da culinária do Ceará: ● Baião de dois. ● Escondidinho. ● Buchada de carneiro (feita com miúdos temperados e refogados, depois coloca- dos dentro do bucho costurado e cozido). ● Sarrabulho, também conhecido como sarapatel. ● Guisado de carneiro. ● Panelada (cozido de vísceras e mocotó de boi). ● Pirão de ossobuco. ● Camarão no leite de coco. ● Caldeirada ou mariscada. ● Caranguejada. ● Patinhas de caranguejo à milanesa. ● Mungunzá. ● Tapiocas. 5.7 Rio Grande do Norte O Rio Grande do Norte tem uma região geográfica privilegiada, com grande ex- tensão às margens do Atlântico, e por essa localização, teve forte influência do europeu. A influência do índio e do negro não se sobressaiu, sendo que a maior influência potiguara é a do português. Os pratos típicos do estado são compostos por produtos da terra e por frutos do mar. O povo natural do Rio Grande do Norte são nativos potiguares. Em tupi, sig- nifica “comedor de camarão” e atesta a importância que, desde antes da chegada do homem branco, o crustáceo já ocupava na alimentação de quem vivia na costa mais oriental do Brasil (COLEÇÕES ABRIL, 2009b, p. 14). Existem diversas preparações nas quais o ingrediente principal é o camarão, como exemplo, o bobó de camarão, o camarão ao creme de milho, camarão no abacaxi, camarão na manteiga de garrafa, camarão com legumes, camarão com manga e cachaça, camarão no leite de coco, moqueca de camarão etc. Além dos camarões, o caranguejo aparece em destaque em algumas preparações regionais, como a caranguejada, o arroz de caranguejo e as patinhas de caranguejo. Os peixes menores são fritos em azeite de dendê e servidos com legumes ou como recheio de tapiocas, com destaque para a Ginga com Tapioca. Os peixes maiores, como o pargo e a garoupa, são preparados como moquecas, assados ou grelhados, cozidos com legumes e, muitas vezes, servidos com mandioca (frita ou cozida), farofa ou purê de jerimum (abóbora). 178UNIDADE IV A Geografia dos Sabores Das criações de gado, surgiram produtos muito consumidos no estado, em prin- cipal no sertão, como a carne de sol, o charque e os diversos derivados do leite, como a manteiga de garrafa e a nata. Os caprinos também estão presentes na cultura potiguar e as receitas não diferem das encontradas em outras regiões do interior do Nordeste. Os acompanhamentos de muitas preparações feitas com as carnes giram em torno do milho, do feijão, do arroz de leite, do jerimum e da mandioca. FIGURA 19: BUCHADA DE BODE O Rio Grande do Norte oferece, ainda, os bolos de carimã e de macaxeira, a canji- ca, as pamonhas, o cuscuz e o famoso grude (preparado com manteiga, sal, açúcar, coco ralado, leite e goma de tapioca). Alguns pratos típicos da culinária do Rio Grande do Norte: ● Bobó de camarão. ● Camarão na manteiga de garrafa. ● Camarão com manga e cachaça. ● Camarão no leite de coco. ● Moqueca de camarão. ● Peixada com leite de coco. ● Caranguejada. ● Arroz de caranguejo. ● Galinha à cabidela ● Ginga com tapioca. ● Carne de sol com farofa d’água. 179UNIDADE IV A Geografia dos Sabores ● Arroz de leite. ● Paçoca (carne de sol frita, triturada e misturada com cebola, manteiga de garrafa e farinha de mandioca). ● Carne de sol com queijo. ● Escondidinho. ● Buchada de bode. 5.8 Paraiba A Paraíba possui influência de franceses, holandeses, portugueses e, ainda, do índio e do negro., repetindo o binômio mar/sertão, assim como ocorre em outros Estados da região Nordeste, cuja ocupação portuguesa deu-se a partir do litoral para o interior. Em seu litoral, encontramos camarão, lagosta, caranguejo, ostra, mariscos prepa- rados no alho, no leite de coco, ou ainda com tomates. Do sertão, a carne de sol, a macaxeira, o cuscuz, o jerimum, a manteiga de garrafa, acompanhados de seus pirões de mandioca, sendo rara a utilização de alimentos vegetais frescos, devido ao clima. FIGURA 20: CARNE DE SOL COM ACOMPANHAMENTOS Fonte: disponível em: https://minutopalmeiradosindios.cadaminuto.com.br/noticia/ 2018/06/25/carne-de-sol-paraibana acesso 28 jul. de 2021 https://minutopalmeiradosindios.cadaminuto.com.br/noticia/2018/06/25/carne-de-sol-paraibana https://minutopalmeiradosindios.cadaminuto.com.br/noticia/2018/06/25/carne-de-sol-paraibana 180UNIDADE IV A Geografia dos Sabores A carne de bode está fortemente presente na Paraíba também, assim como nos demais estados do Nordeste. Os doces vêm em forma de rapadura, cartola (queijo com banana), pamonha, ta- pioca doce, queijo com mel de engenho, torta de castanha-de-caju, coalhada com rapadura e doces das frutas regionais, como caju, goiaba, sapoti e acerola. Alguns pratos típicos da culinária da Paraíba: ● Peixada. ● Camarão com leite de coco. ● Ensopado de caranguejo. ● Buchada de bode. ● Linguiça de bode. ● Cabrito assado. ● Pirão de peixe. ● Carne de sol com mandioca. 5.9 Piauí No Piauí, a cozinha regional é um pouco diferente das demais cozinhas do Nor- deste. Os temperos são sempre verdes e frescos, como a salsinha, o coentro, a cebolinha verde e a branca e a pimenta-de-cheiro, que dão sabor às carnes e peixes. Ainda, utilizam quiabo, jerimum, macaxeira, maxixe, manteiga de garrafa e nata. Lá, o peixe tem menor importância na composição dos pratos , contudo são usados alguns de água doce, como a matrinxã, o surubim e a curimatã. Essa cozinha, que também sofreu forte influência do português e do negro, que influencioua comida do vaqueiro, por meio do uso das pimentas e do cominho. Destaque também para as carnes de caça, como o tatu, consumido principalmente no interior, e, quando acrescidos de leite de coco, transformam-se em uma iguaria. FIGURA 21: PAÇOCA DE CARNE SECA 181UNIDADE IV A Geografia dos Sabores O Piauí possui o menor litoral dos estados do Nordeste, portanto, a gastronomia de maior peso é a sertaneja. Os sucos e os doces são diversificados, feitos a partir das frutas regionais do Piauí, como o caju, a manga, a goiaba, a mangaba, o buriti, o bacuri, limão etc. Alguns pratos típicos da culinária do Piauí: ● Galinha d’Angola de Teresina. ● Arroz Maria Isabel. ● Capote ao molho. ● Mão de vaca. ● Arroz de leite. ● Frito (carne de sol refogada com coentro, alho, cebola e colorífico). ● Beiju. ● Paçoca de carne-seca. ● Buchada de bode. ● Capão cheio. ● Mucunzá. 182UNIDADE IV A Geografia dos Sabores 6. REGIÃO NORTE A região Norte é a maior em extensão territorial no Brasil e é composta por sete estados, sendo eles: Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins. Essa é uma região considerada patrimônio da humanidade pela sua biodiversidade. Até os dias de hoje, encontra-se nessa região a maior população indígena do Brasil, sendo, por essa razão, a região que mais preservou a cultura indígena e as raízes de seu legado para a formação do Brasil. A cultura está viva no folclore, nos produtos utilizados, nos utensílios e até mesmo nos rituais de preparo. Tudo baseado nos recursos oferecidos pela Floresta Amazônica e seus imensos rios. Além da vegetação, a região é rica em rios navegáveis, que são fonte de alimento dos nortistas, com diversas espécies de peixes, sendo o pirarucu o mais conhecido, poden- do chegar a pesar cerca de 200 kg. Inicialmente, a influência da culinária dessa região foi indígena, em que a caça, a pesca e o plantio da mandioca predominaram. É uma cozinha que prima pela simplicidade de seus pratos e é exótica em seus ingredientes: apresenta alimentos assados, moquea- dos, tostados e, às vezes, cozidos, em que o sal é difícil e o açúcar, desconhecido. A mandioca está presente tanto como acompanhamento, como ingrediente principal de algumas preparações, matéria-prima principal na produção de diversos tipos de farinhas, de goma (polvilho), do tucupi, líquido retirado da mandioca-brava, temperado e cozido por longo tempo para ser transformado em molho que é utilizado em várias preparações da região Norte. 183UNIDADE IV A Geografia dos Sabores Para extrair o líquido que se prepara o tucupi, descasca-se e ralam-se as raízes de mandioca-brava, depois, a massa obtida é levada ao tipiti, para ser espremida e deixar escorrer o caldo. Além do tucupi, existem outros ingredientes que fazem parte da identidade gas- tronômica do Norte como o jambu, a chicória, a alfavaca, o coentro, as folhas da mandio- ca-brava, as pimentas, cerca de 100 espécies de peixes de água doce, que podem ser utilizados para fins culinários (os mais comercializados: curimatã, dourado, filhote, pirarucu, matrinxã, piramutaba, surubim, tambaqui e tucunaré), os inúmeros frutos amazônicos, ver- dadeiramente nativos, como: o açaí, o cupuaçu, o bacuri, a castanha-do-pará (atualmente conhecida também por Castanha-do-Brasil), o murici, a mangaba, a taperebá, o tucumã, o biribá, o camapu, o inajá, o cupuaí, dentre outros. FIGURA 22: JAMBU Fonte: disponível em: https://d.emtempo.com.br/saude/212259/ jambu-conheca-os-beneficios-do-agriao-da-amazonia acesso em 28 jul. de 2021 A maioria desses produtos pode ser encontrada no Mercado-Ver-o-Peso, em Be- lém, no Pará, que é o ponto de partida para entender a autêntica cultura da Amazônia. O nome tem origem na enorme feira ao ar livre criada pela Coroa Portuguesa para pesar e taxar as mercadorias que entravam e saíam da região (CHAVES; FREIXA, 2007, p. 20). 184UNIDADE IV A Geografia dos Sabores 6.1 Pará O Pará é um dos estados brasileiros que preservam os sabores do Brasil nativo, o Brasil que antecede as descobertas, “aquele Brasil antes mesmo das caravelas e dos navios negreiros” (COLEÇÕES ABRIL, 2009k, p. 11). Em Belém, o mercado Ver o Peso representa a excentricidade desse Estado, é um verdadeiro despertar dos sentidos e sua diversidade de produtos e personagens que são encontrados na região Norte, só nos faz reforçar a ideia de que “o Brasil é mesmo de uma riqueza natural sem fim” (CHAVES; FREIXA, 2007, p. 20). A cozinha paraense é considerada a mais verdadeira do Brasil, por ter sofrido me- nor influência dos colonizadores manteve-se a mais nativa, utilizando das fontes oferecidas pela floresta Amazônica e das técnicas criadas pelos povos indígenas. A base da alimentação no Pará são os peixes amazônicos, os frutos-do-mar e a mandioca, que é utilizada de forma quase integral, desde as folhas até o líquido extraído da raiz — o Tucupi. As folhas da mandioca-brava, a maniva, é cozida durante três dias até perder o veneno e adquirir consistência pastosa. Depois ela é temperada com pimenta-de-cheiro e coentro dando origem a um dos pratos mais famosos no Pará e em demais estados do norte, a Maniçoba, que é a “feijoada” paraense. FIGURA 23: TACACÁ O jambu é uma erva local, considerada afrodisíaca e que causa uma leve dormência na boca” Além do Pato no Tucupi, ela pode ser encontrada em outros pratos, como: o Tacacá (caldo preparado com tucupi, goma de tapioca, jambu, camarão seco e pimenta-de-cheiro) e o arroz de jambu, que serve como acompanhamento de outros pratos. 185UNIDADE IV A Geografia dos Sabores No Pará servem também caruru e vatapá, que diferem um pouco do nordestino. O caruru paraense leva camarões secos inteiros, quiabo picadinho, farinha de mandioca, azeite-de-dendê, cebola, tomate, alho, pimenta-de-cheiro, cheiro-verde, chicória-do-Pará e alfavaca. No vatapá paraense não há peixe, amendoim ou castanha-de-caju. (COLEÇÕES ABRIL, 2009k, p. 20 - 22). Os peixes amazônicos são fartos e preparados em vários formatos, o mais famoso deles, o pirarucu, embora possa ser consumido fresco, é comum que sua carne seja salga- da, por isso, ganhou o apelido de bacalhau amazônico. É muito comum o consumo de peixe frito servido com açaí e farinha. As sobremesas no Pará dão destaque às frutas regionais, “doces em calda, pudins, compotas, cremes e sorvetes são feitos com frutas, como o bacuri, cupuaçu, açaí, taperebá, manga e murici” (COLEÇÕES ABRIL, 2009k, p. 30). Na Ilha de Marajó, destaca-se o queijo marajoara, feito a partir do leite de búfala, podendo ser consumido também como sobremesa, que pode originar o Mundico e Zefinha, quando servido com cupuaçu. O queijo se faz presente no cotidiano dos vaqueiros, sendo considerado comida de matulagem. Importante destacar também dessa cultura as suas danças, como o carimbó, e a cerâmica marajoara. Alguns pratos típicos da culinária do Pará: ● Açaí com peixe frito. ● Arroz com Jambu. ● Arroz Paraense (Camarão, Jambu e Tucupi). ● Bolinho de Piracuí. ● Caldeirada Paraense. ● Caruru do Pará. ● Chibé (mistura de farinha de mandioca e água). ● Maniçoba. ● Mojica. ● Moqueca Paraense. ● Mugunzá. ● Pato no Tucupi. ● Pirarucu no leite de coco. ● Tacacá. ● Tapioca. ● Tucunaré de Forno. ● Vatapá do Pará. 186UNIDADE IV A Geografia dos Sabores 6.2 Amazonas Muito parecida com a cultura do Pará, a cozinha amazônica também preserva características de um Brasil indígena, graças a uma abundância de ingredientes locais e ao isolamento em relação a outras regiões brasileiras. A base da alimentação no estado do Amazonas fica em torno das frutas da região, dos peixes fornecidos pelos imensos rios e da mandioca, alimento fundamental, que apare- ce em suas diversas formas, em especial as diversas farinhas. Os peixes mais consumidos são: o tambaqui, e matrinxã, o jaraqui, o pacu, o pirarucu, o surubim, o filhote e o tucunaré. As formas de preparo mais comumpara os peixes, são: assados na brasa ou no forno, caldeiradas, cozidos, ensopados ou fritos. Nos cozidos e ensopados de peixe, muita das vezes o leite de coco é substituído por leite de castanha-do-pará, os peixes são acompanhados por pirão, farinha de mandioca, mandioca, frita ou cozida e banana-da-terra. FIGURA 24: PATO AO TUCUPI Fonte disponível em: https://villagermania.com.br/receitas_detalhe.php?id=NDU= acesso em 20 ago. de 2021 O Tucupi, assim como no Pará, está fortemente presente na alimentação do povo amazonense. Outro molho derivado desse líquido que, acrescido de pimenta-malagueta, alho e ervas aromáticas, recebe o nome de arubé. O pato no Tucupi e o Tacacá fazem parte da lista de preparos feitos com molho de mandioca. Os frutos nativos ganham destaque em forma de sucos, cremes, sorvetes, geléias, compotas, pavês, entre outros. Os mais utilizados são o bacuri, a manga, a pupunha, a 187UNIDADE IV A Geografia dos Sabores bacaba, o cupuaçu, o patauá, a graviola, o buriti, o taperebá, o araçá e o tucumã — fruto de cor amarelada e textura bastante oleosa —, com ele é preparado um sanduíche que na região é conhecido com caboquinho, ou X-caboquinho, quando adicionado queijo coalho. O mesmo recheio pode ser encontrado em tapiocas. Alguns pratos típicos da culinária do Pará: ● Pato no Tucupi. ● Maniçoba. ● Tacacá. ● Tambaqui Recheado. ● Caldeirada de Tucunaré. ● Tartaruga à Moda Karajá. ● Costela de Tambaqui no Tucupi. ● Bolinho de Pirarucu e Batata. ● Farofa de Pirarucu. ● Matrinxã na Brasa. ● Peixe Moqueado. ● Pão francês com Tucumã e Queijo, também chamado de X-caboquinho. ● Tapioca de Tucumã e Queijo. ● Pirarucu de Casaca. 6.3 Acre O Acre era, até a segunda metade do século XIX, habitado pelas populações indí- genas e ainda fazia parte dos territórios boliviano e peruano. A partir de 1877, motivados pela exploração do látex, os primeiros migrantes da Região Nordeste do país chegaram ao território acriano. O Brasil adquiriu o Acre dos bolivianos em 1903, através do Tratado de Petrópolis, e foi elevado à condição de Estado em 1962. O estado é um grande exportador de castanha-do-pará e madeira, além de ser o principal produtor de borracha do país. 188UNIDADE IV A Geografia dos Sabores FIGURA 25: PIRARUCU A CASACA Dos estados nortistas, o Acre herdou preparações como o vatapá, a panelada e a carne de sol com macaxeira. Dos imigrantes sírios e libaneses que ocuparam o estado, encontramos pratos como: kibe, esfihas, tabule, charutos e outros. Além de um farto café da manhã, preparações à base de frutos regionais, licores, sucos, doces e bombons de frutas amazônicas são irresistíveis. Alguns pratos típicos da• Quibe de Arroz. ● Quibe de Macaxeira. ● Saltenhas (original da Bolívia). ● Tambaqui à Moda Acreana. ● Pirarucu de Casaca ● Rabada no Tucupi. ● Feijão ao Leite de Castanha do Brasil. ● Pato no Tucupi. ● Charutos Mariolas. ● Mingau de Banana e Tapioca. ● Açaí na Tigela. ● Cocadas. ● Bombom de Cupuaçu. ● Salames de Cupuaçu. 189UNIDADE IV A Geografia dos Sabores 6.4 Roraima A história da descoberta, ocupação e colonização da região que hoje forma o es- tado de Roraima está diretamente ligada à estratégia e interesse da coroa portuguesa em expandir seu território na América, motivado pela descoberta de ouro, como também, pela necessidade de garantir sua supremacia territorial, que estava ameaçada pela invasão de espanhóis, ingleses, holandeses e franceses. Assim como os demais estados do Norte do país, a culinária roraimense carrega influências indígenas, utilizando das ervas locais, das raízes, das pimentas, dos peixes, dos frutos amazônicos e tudo o que essa região pode oferecer. Imigrantes nordestinos, sulistas e mato-grossenses, também trouxeram um pouco da cultura de onde vieram. Alguns pratos típicos da culinária roraimense: ● Chibé (Farinha de mandioca hidratada com água). ● Caldeirada de peixe. ● Guisado de Galinha. ● Paçoca de carne com banana. ● Cuscuz de Milharina e Coco. ● Tapioca. ● Pé-de-Moleque roraimense (resultado de uma mistura de carimã, açúcar, ovos, manteiga, sal, cravo, erva-doce. A massa preparada é enrolada em folha de bananeira e levada ao forno para assar). ● Bolo de Macaxeira. ● Suco de Guaraná (com castanhas, amendoim ou acerola). ● Vinho de Buriti. 6.5 Rondônia Os primeiros bandeirantes chegaram à região onde hoje é o Estado de Rondônia por volta de 1650, com o objetivo de explorar os minerais do território, sobretudo o ouro. As preparações da cozinha de Rondônia pouco se diferem das outras cozinhas da região, mantendo as mesmas características com base no que oferecem a região amazô- nica e seus imensos rios. A cozinha do Estado de Rondônia é baseada nos peixes dos principais rios da região, como o Madeira, o Guaporé, o Mamoré e o Ji-Paraná. Tucunarés, tambaquis e surubins, entre outros, recebem temperos como o cheiro verde, a cebolinha, a chicória, a 190UNIDADE IV A Geografia dos Sabores alfavaca e as pimentas-de-cheiro, a pimenta-malagueta e a murupi. Caldeiradas e peixes na brasa acompanhados de produtos obtidos da mandioca, como as farinhas e a maniçoba, são as formas de preparo mais comuns na região, que tem a maioria dos pratos também típicos em toda região Norte. O cupuaçu é o fruto com o qual são feitos bolos e doces (COLEÇÕES ABRIL, 2009f, p. 24). Alguns pratos típicos da culinária de Rondônia: ● Maniçoba. ● Tacacá. ● Tucunaré assado. ● Pirarucu na casaca. ● Caldeirada de Tambaqui. ● Caruru. ● Tapiocas. ● Bolo de macaxeira. ● Cocada de castanha. 6.6 Amapá No século 16, o território do atual Amapá pertencia aos espanhóis, pelo Tratado de Tordesilhas. O território foi incorporado ao estado do Pará com o nome de Araguari, até se tornar o Território Federal do Amapá, em 1943. O Amapá é outro estado do Norte que abraça os elementos disponibilizados pela natureza amazônica. As preparações da cozinha amapaense são marcadas por ingredien- tes típicos da região e sabores inigualáveis. Os peixes estão entre os destaques da culinária e mantêm-se os costumes indíge- nas da região, e influências africanas, o que proporciona características únicas e originais. Alguns pratos típicos da culinária do Amapá: ● Maniçoba. ● Rosquinha de Carimã. ● Pirarucu ao leite de castanha. ● Tacacá. ● Camarão ao molho de Tucupi. ● Pato no Tucupi. ● Caldeirada de Tucunaré. ● Tucunaré na brasa. 191UNIDADE IV A Geografia dos Sabores ● Sopa de caranguejo. ● Gengibirra (bebida fermentada feita com frutos, gengibre, açúcar, ácido tartárico, fermento de pão e água). ● Torta de cupuaçu. 6.7 Tocantins A trajetória tocantinense começa há mais de 300 anos, com a ocupação de uma região ainda desconhecida. Do sul vieram bandeirantes paulistas em busca de ouro, en- quanto do nordeste chegavam criadores de gado e do norte, especificamente do Pará, comerciantes utilizavam o rio Tocantins como rota de escoamento para suas mercadorias. A gastronomia do Tocantins é influenciada por diversas culturas, entre elas, a cultu- ra indígena, portuguesa, paulista, mineira e africana, assim como a de Goiás, uma vez que, até 1988, as terras do Tocantins eram a parte norte de Goiás. Assim como os vizinhos de Goiás, no Tocantins se faz largo uso de produtos do Cerrado, como o baru (castanha), gua- riroba e o pequi. Também apreciado e versátil é o buriti, fruto da palmeira de mesmo nome, do qual se faz bebidas, óleo, doces, sorvetes, cremes, geléias e licores. A paçoca de carne seca nos remete aos tempos dos tropeiros, enquanto o biscoito Amor Perfeito derrete na boca. Em Tocantins o tucunaré assado, chambaril, carne seca e frutos do cerrado também são muito apreciados. FIGURA 26: CASTANHA DE BARU Os frutos utilizados no Tocantins se misturam entre os amazônicos e os do cerrado. Um dos mais famosos no estado é o coco babaçu, dele são preparados óleo, leite e outros produtos. 192UNIDADE IV