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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO FACULDADE DE DIREITO DELITOS ORGANIZACIONAIS CORPORATIVOS E PUNITIVISMO: OS REFLEXOS DO DIREITO PENAL DO INIMIGO Pedro Simões Pião Neto São Paulo - SP 2020 DELITOS ORGANIZACIONAIS CORPORATIVOS E PUNITIVISMO: OS REFLEXOS DO DIREITO PENAL DO INIMIGO Monografia apresentada à Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pelo graduando Pedro Simões Pião Neto, como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) sob orientação do Professor Doutor Édson Luís Baldan. Avaliação: _____________________________________________________ Assinatura do Orientador: _______________________________________ AGRADECIMENTOS Meu eterno agradecimento à minha família, pelo apoio e amor integral; aos professores Édson Luís Baldan, Leonardo Massud e Pedro Serrano, pela formação técnica, crítica e libertadora; aos companheiros de escritório e grupos acadêmicos que neste curto período colhi, pelos valorosos ensinamentos no exercício da defesa das liberdades; ao Augusto, Gabriela, Ivan, Lucas e Matthäus, pelo companheirismo de ideias e pelos constantes, desafiadores e intensos debates; à Rebeca, por ser fonte de inspiração e tão bem dividir comigo os sentimentos do mundo. “El gran peligro de todo aquel que se dedica al estudio del Derecho penal o procesal penal es que le suceda lo que al fabricante de guillotinas: que se enamore del brillo de la madera, del peso exacto y del pulido de la hoja mortal, del ajuste de los mecanismos, del susurro filoso que precede a la muerte y finalmente olvide que alguien ha perdido su cabeza.” (Binder, Alberto B. Introducción al derecho processual penal - Prefácio da primeira edição - 2 ed. - Buenos Aires : AD-HOC S.R.L., 1999, p. 20) RESUMO Com o objetivo de questionar a punitivista narrativa atual, comodamente posta, que sustenta como necessária e inevitável a expansão do Direito Penal, acompanhando assim o natural desenvolvimento da sociedade contemporânea, o presente trabalho pretende, de forma responsável e atenta, alertar sobre as possíveis consequências de se aceitar de maneira passiva e acrítica esse movimento, que ampliando o ferramental coercitivo do Estado, tende a instaurar um aparato de controle e punição demasiadamente intenso e, eventualmente, danoso à estrutura de garantias fundamentais positivada. A partir de tal problematização, se pretendeu analisar ainda o grau de presença do chamado “Direito Penal do Inimigo” no discurso de “combate” às organizações criminosas de natureza corporativa, pautado em grande medida pela narrativa de “fim da impunidade” e “igualdade repressiva”, explicitando seus claros malefícios à plenitude dos já abalados alicerces do Estado de Direito. Palavras-chave: Expansão do Direito Penal. Delitos organizacionais corporativos. Punitivismo. Direito Penal do Inimigo. ABSTRACT Aiming to questioning the current punitivist narrative, comfortably put, that sustains the expansion of Criminal Law as necessary and inevitable, thus accompanying the natural development of contemporary society, this paper intends, in a responsible and attentive way, to warn about the possible consequences of accepting this movement in a passive and uncritical manner, which, expanding the State's coercive tools, tends to establish an excessively intense control and punishment apparatus, eventually damaging the fundamental guarantees structure. From this problematization, the intention was also to analyze the degree of presence of the so-called “Enemy Criminal Law” in the discourse of “combating” criminal organizations of a corporate nature, guided in large measure by the narrative of “end of impunity” and “equality repressiveness”, explaining its clear harm to the fullness of the already shaken foundations of the rule of law. Keywords: Expansion of Criminal Law. Corporate organizational offenses. Punitivism. Enemy Criminal Law. SUMÁRIO 1. Introdução ..………………………………………………………………………… 10 2. O Direito Penal e a sociedade contemporânea …………………………………….. 11 2.1. A função e estruturação do Direito Penal …………………………………………… 11 2.2. A proteção de bens jurídicos ………………………………………………………… 14 2.3. A legitimidade e limites da coerção penal ..………………………………………… 17 3. Delitos de natureza organizacional no âmbito corporativo .………………………. 20 3.1. O Direito Penal Econômico .………………………………………………………… 20 3.2. Criminalidade organizada corporativa ……………………………………………… 23 3.3. Bem jurídico afetado ……………………………………………………………….. 27 3.4. Mecanismos de repressão …………………………………………………………… 30 4. Direito Penal do Inimigo …………………………………………………………….. 34 4.1. A expansão do Direito Penal na sociedade contemporânea e as Teoria das Velocidades………………………………………………………………………… 34 4.2. A diferença entre o cidadão e o inimigo …………………………………………….. 37 4.3. Punitivismo e Direito Penal simbólico ……………………………………………… 40 5. Punição alargada e suas consequências sociais e jurídicas ……………………….. 44 5.1. O obscuro discurso de igualdade repressiva à luz dos delitos organizacionais ……. 44 5.2. A impossível limitação do conceito de inimigo …………………………………….. 46 5.3. O eminente risco ao Estado Democrático de Direito ……………………………….. 50 6. Conclusão …………………………………………………………………………….. 55 7. Bibliografia ..………………………………………………………………………… 57 10 1. Introdução Transitando entre os objetivos anunciados e velados do Direito Penal, a estruturação do aparato coercitivo positivado em contenção aos delitos organizacionais corporativos, assim como os fundamentos propulsores do chamado Direito Penal do Inimigo, o presente trabalho tem como objetivo problematizar e gerar reflexões em torno do fenômeno de expansão do Direito Penal e suas consequências práticas, tendo como base de análise e crítica os discursos que legitimam e impulsionam as construções legislativas propostas. Tomaremos como plano de fundo o sentimento de insegurança social em face da macrocriminalidade organizada, ponderando os anseios sociais por mais punição frente aos reais desafios para a contenção dessa nova modalidade de delito por meio das estruturas repressivas clássicas. Assim, o que se busca é desmistificar a narrativa confortavelmente posta em torno da inevitável intensificação da intervenção penal do Estado como resposta à criminalidade moderna e organizada, por meio da ampliação do escopo punitivo, alertando ainda para a possibilidade de que tal ferramental repressivo cause graves consequências às estruturas do Estado de Direito. Isso tudo, considerando e rebatendo o falacioso discurso de que dessa forma se estaria equiparando a intensidade e forma de tratamento punitivo perante as diversas camadas sociais, acabando com a seletividade do sistema penal brasileiro. O objetivo do presente trabalho nada mais é, então, de estabelecer reflexões em torno da necessária defesa do pleno equilíbrio democrático, não buscando propor, certamente, qualquer espécie de “ode à impunidade” ou de um tratamento diferenciado e mais benéfico às classes mais abastadas, tendo em vista serem elas as mais afetadas pela tipificação delituosa posta em debate. O que se busca em realidade é um alerta voltado aos tendentes e cada vez mais intensos movimentos de produção legislativa e aparelhamento repressivo do Estado, embasado na maioria das vezes em argumentos fundamentalmente pragmáticos e simbólicos. 11 2. O Direito Penal e a sociedade contemporânea 2.1. A função e estruturação do Direito Penal A busca pela compreensão das finalidades do Direito Penal, que se resume no melhor entender dos objetivos da criminalização de determinadas condutas que são praticadas por certos indivíduos, extraindo assim os objetivos das penas e outras medidas jurídicas de reação ao crime, não é tarefa que extrapole a área do jurista e do aplicador do Direito de forma ampla. O Direito Penal, em breve conceituação, pode ser interpretadocomo um conjunto de normas jurídicas com o fim de determinar infrações de natureza penal e suas correspondentes sanções, balizado por princípios e métodos de valoração próprios que objetivam orientar sua efetiva e justa aplicação (BITENCOURT, 2020, p. 44). Visto por muitos estudiosos das ciências jurídicas como uma “ordem de paz pública e de tutela das relações sociais” (PRADO, 2020, p. 03), há quem questione sua suposta real e missão única de proteger a convivência humana e assegurar, pela coação, a sustentação da ordem social e jurídica. Na visão de Nilo Batista (2019, p. 22), o Direito Penal estaria, de uma forma ou outra, à disposição do Estado para a concreta e efetiva realização de seus fins, sejam eles quais forem e a depender do ponto de partida teórico escolhido, sendo inquestionável e preponderante, porém, sua função de controle social. Nesta questão, diversas são as bases de análise de tal ramo da ciência jurídica frente à sociedade, podendo ser interpretado como ferramenta de garantia das condições de vida da sociedade, como objeto de combate ao crime de um modo geral, ou mesmo como caminho necessário para a “preservação dos interesses do indivíduo ou do corpo social” (FRAGOSO, 1985, p. 02). Aqui, cabe provocação sobre a coerência prática e eventual finalidade do uso do conceito corpo social, tendo em vista a clara imersão da sociedade em uma desigual realidade e na leitura de alguns, em uma verdadeira divisão de classes. E assim, não 12 havendo essa suposta unidade social, plausível seria pressupor uma inevitável preponderância ideológica de uma classe perante as outra, para a enfim definição de quais seriam os interesses “gerais” prevalecentes e merecedores de tutela. A “missão do Direito Penal”, que em tese seria de defender a sociedade, protegendo bens, interesses cívicos e valores com o fim de garantir a segurança jurídica e a confiabilidade da população na lei, encobriria assim suas efetivas tarefas, que se resumem em efetivar os interesses das classes dominantes por meio de uma essencial inversão: colocar o homem na linha de fins da lei e aplicação da pena; fazendo com que esse exista para a legislação, e não a legislação exista para o homem (BATISTA, 2019, p. 109). Partindo diretamente para o âmbito da função social do sistema penal, possível se mostra adentrarmos em uma análise cuidadosa frente ao fenômeno dual hegemonia- marginalização, que prevê análises do Direito Penal a partir da Criminologia e da Sociologia. Em uma primeira vertente, se sustenta que tal sistema cumpriria a função de selecionar, de maneira mais ou menos arbitrária, determinados indivíduos que fazem parte de camadas sociais desprivilegiadas em termos econômicos, criminalizando-os com o fim de estabelecer, ao corpo social, os limites dos espaços de vivência. Já em uma segunda linha, a função do Direito Penal seria meramente de sustentar a hegemonia de um setor social sobre o outro (ZAFFARONI, 2019, p. 74), partido para isso de parâmetros marxistas de interpretação e aplicação frente ao plano prático. Nesta segunda vertente, sob o espectro da chamada luta de classes, Juarez Cirino dos Santos (2014, p. 06) suscita as inevitáveis contradições e antagonismos políticos que condicionam o desenvolvimento da vida social em uma comunidade estruturada, essencialmente, em classes diferenciadas pela posição nas relações de produção e de circulação da riqueza material, na qual alguns indivíduos se identificam como proprietários do capital ou possuidores de força de trabalho, e outros não. Os sistemas jurídicos e políticos de controle social do Estado como um todo, englobando Direito Penal, funcionariam então com o fim de instituir e garantir as 13 condições materiais fundamentais da vida social, protegendo interesses e necessidades dos grupos sociais hegemônicos da formação econômico-social, com a correspondente e inevitável exclusão ou redução dos interesses e necessidades dos grupos sociais subordinados. Perante o capital não seria diferente, funcionando como uma forma de manutenção das então estruturas materiais em que se baseiam na existência das classes sociais, protegendo as formas jurídicas e políticas que disciplinam a luta de classes e instituem o domínio de uma camada social sobre outra. Garantindo uma ordem social desigual, se garante a desigualdade social (SANTOS, 2014, p. 07). E é com base na criminalização seletiva de determinados indivíduos, identificados por sua posição social, que haveria a contenção dos anseios de uma comunidade que frente à constante sensação de perigo, justa ou imaginariamente imposta, clama pela punição. Punição essa que quando efetivada de forma direcionada, bem garante a manutenção plena do status quo. E nesse ponto, crucial ressaltar a possibilidade de que no momento em que o controle social típico fracassa, o sistema penal se mostra disposto a então criminalizar pessoas dos próprios setores hegemônicos do corpo social, mesmo que de forma menos recorrente e simbólica (ZAFFARONI, 2019, p. 75). Assim, em tese, se garantiria que esses setores esporadicamente criminalizados não desenvolvam conduta prejudicial à efetiva hegemonia dos grupos a que pertencem, recuperando a sensação de equilíbrio e igualdade de tratamento à estrutura como um todo. O papel simbólico do Direito Penal ao reprimir tanto as condutas que partem de setores mais abastados da comunidade, quanto dos mais carentes, mantém como objetivo assegurar a hegemonia de determinados setores sociais. E tal ponto em específico, nevrálgico para o tema aqui proposto, será amplamente explorado e mais bem cotejado ao longo do presente trabalho. 14 2.2. A proteção de bens jurídicos Como um dos objetivos declarados do Direito Penal e considerado por muitos como pilar essencial de sustentação de tal matéria perante a sociedade, podemos mencionar a proteção de bens jurídicos, que ensejaria na proteção de valores considerados como relevantes para a manutenção e harmonia da vida humana individual ou coletiva, sob ameaça e eminência da pena. Como exemplos de bens jurídicos protegidos e tutelados pelo Direito Penal de um modo geral podemos mencionar, por exemplo, a vida, a integridade e saúde corporal, a honra, a liberdade individual, o patrimônio, a sexualidade, a família, a incolumidade, a paz, a fé e a administração pública que, entre outros, foram selecionados com base em critérios político-criminais deduzidos à luz da Constituição Federal, devendo assim serem protegidos contra possíveis formas de lesão pelo Código Penal. Alertando sobre a dificuldade de se conceituar de forma precisa bem jurídico, Juarez Tavares (2000, p. 179) bem pontua o necessário atrelamento de tal termo dentro do contexto constitucional no qual se assenta a norma jurídica, entendendo-o não apenas como um valor abstrato, mas como valor concretizável, advindo da realidade social e subordinado assim às suas condições. E com isso, bem jurídico deve ser considerado como um elemento da própria condição de sujeito e de sua projeção social, encaixando-se como “valor que se incorpora à norma como seu objeto de referência real”, constituindo assim elemento primário da estrutura do tipo penal. Não há injusto e não há restrição às liberdades individuais sem a comprovação concreta e inequívoca de lesão ou perigo de lesão a um determinado bem jurídico. Ou ao menos assim deveria ser. Em um Estado Democrático de Direito, preponderante é o papel desempenhado pela noção e balizas estabelecidas pelo conceito de bem jurídico, que justamente define a função e legitimidade do Direito Penal no momento em que esclarece os limites do ius 15 puniendi, sendo assim tema muito caro à política criminal e à dogmática jurídica (BALDAN, 2005, p. 52). Adentrando brevemente na dogmática Penal Alemã produzida entre 1933 e 1945, que será melhor explorada adiante, EugênioRaul Zaffaroni (2019, p. 180) menciona o interessante fato de que o conceito de bem jurídico, em tal período, foi extremamente atacado e o alvo de críticas pretensamente superadoras por parte das escolas majoritárias da época. Tais visões do Direito Penal, que essencialmente se mostravam pautadas pela defesa de uma certa ética derivada da contrariedade à comunidade e seus interesses, apelando ainda para um tipificação penal baseada em uma suposta “violação ao dever”, de alcance extremamente amplo e subjetivo, via no conceito de bem jurídico uma tutela demasiadamente limitada, parcial e vazia de conteúdo. Inadequada, assim, para os fins vislumbrados pelo ornamento deste contexto histórico. E é com base nesse paradoxo é que as análises em torno da delimitação dogmática dos bens jurídicos a serem tutelados pelo Direito Penal, em todo o mundo, passaram a ser consideradas como tema de primeira ordem e objeto de diversos estudos. Entre os inúmeros autores que se debruçaram sobre o tema ao longo dos anos, Claus Roxin é sem dúvidas o que ganhou maior relevância ao tratar sobre o tema na atualidade. Em seus estudos, o professor emérito da Universidade Ludwigs Maximilians (Munique) parte do princípio de que a função do Direito Penal “consiste em garantir a seus cidadãos uma existência pacífica, livre e socialmente segura”, devendo para isso atuar no momento em que “estas metas não possam ser alcançadas com outras medidas político-sociais que afetem em menor medida a liberdade dos cidadãos” (ROXIN, 2018, p. 16). À luz da concepção ideológica do contrato social, os indivíduos transferem aos legisladores as atribuições de balizar, de forma técnica e bem delimitada, os limites das intervenções jurídico-penais necessárias para se alcançar uma vida pacífica e racional em 16 sociedade (ROXIN, 2018, p. 17). E assim, se encontraria o equilíbrio entre o poder de intervenção do poder estatal e a liberdade dos cidadãos. Como objetos legítimos de proteção das leis penais, Roxin (2018, p. 18-20) entende não haver necessidade de que os bens possuam realidade material e corpórea, não existindo qualquer óbice à possibilidade de que esses façam parte de uma realidade empírica, como por exemplo: o livre desenvolvimento da personalidade, a liberdade de opinião ou religiosa, assim como os demais direitos fundamentais e humanos em suas variadas formas. E aqui, crucial frisar que a conceituação sustentada busca demonstrar ao legislador as fronteiras de uma punição legítima e justa. Angariando os elementos suscitados, possível seria então sustentar que, no âmbito do Direito Penal, bem jurídico é o objeto da sociedade que exige uma proteção especial da própria tutela penal, tendo em vista a insuficiência das garantias oferecidas pelo ordenamento extrapenal (BALDAN, 2005, p. 54). E considerando o até aqui exposto, cabe retomar o ponto de inflexão proposto de início. Se a missão do Direito Penal é a tutela de bens jurídicos por meio da cominação, aplicação e execução da pena, em uma sociedade dividida em classes que busca em realidade proteger relações, valores e interesses sociais escolhidos pela classe dominante, quão crível seria a aparente universalidade e busca pelo bem comum por meio do manejo de tal instrumento punitivo (BATISTA, 2019, p. 113). Cabe ainda ressaltar o alerta feito por Zaffaroni (2019, p. 180-181) de que a dogmática aplicada sobre um necessário respeito da essência do delito, concebido como lesão a um bem jurídico, não condiciona à conclusão de que esse seria um conceito que, isoladamente, garante um Direito Penal respeitoso e garantidor dos Direitos Humanos. E é esse o exato ponto que se pretende aqui melhor analisar. 17 2.3. A legitimidade e limites da coerção penal Tendo como pressuposto o caráter subsidiário do Direito Penal, que deve agir sempre como ultima ratio da atuação estatal e apenas quando qualquer outro meio se revele ineficiente, ponderada deve ser a avaliação de quais comportamentos o Estado deve proibir sob a ameaça de pena, não podendo o legislador, por mais que influenciado por forças externas e hegemônicas, decidir por penalizar um comportamento pela simples razão desse ser supostamente indesejável. E para além da utilização do Direito Penal como ultima ratio, necessário frisar que a proteção bens jurídicos deverá ser sempre limitada pelo princípio da proporcionalidade, que justamente proíbe o emprego de sanções penais desnecessárias ou inadequadas em termos racionais e humanos. Nesse aspecto, verificamos que eventuais lesões de bens jurídicos com mínimo desvalor de resultado não devem ser punidas com penas criminais, mas constituir contravenções ou permanecer na área da responsabilidade civil, assim como deve se dar com lesões de bens jurídicos com máximo desvalor de resultado, que não poderão ser punidas com sanções penais extremamente gravosas e desumanas, ao menos de forma aparente e positivada (SANTOS, 2014, p. 06), com o fim de garantir o equilíbrio e a legitimidade do sistema jurídico penal. A coerção penal deve se dar sempre pautada, em essência, pelos princípios da legalidade, intervenção mínima, lesividade, culpabilidade e humanidade. O Direito Penal, como espécie de controle social, age como uma suposta resposta necessária à sociedade para que essa, frente à sua aplicação, sinta-se protegida, mesmo que ciente da não eficácia plena no impedimento da prática de fatos delituosos, e confiante de que existem limites à legitima imposição de sanções, os quais fundamentam o direito de punir (REALE, 2020, p. 06). Como bem estabelece José Frederico Marques (2001, p. 03-05), o poder-dever de punir é composto por três momentos, quais sejam: edição da norma penal incriminadora, 18 aplicação da norma por meio do processo e execução da pena concretizada na sentença condenatória. Novamente, a pena, como manifestação expressa da coerção penal e intervenção mais grave do Estado na liberdade individual, deve ser cominada apenas no momento em que não mais se dispuser de meios mais brandos para se obter a situação social desejada. E assim, os limites à faculdade de punir devem ser deduzidos das finalidades do Direito Penal, que como já exposto, busca impedir danos sociais, sob a necessidade de certificação de que esse não podem ser evitados pelo uso de meios menos gravosos (ROXIN, 2008, p. 33-35). Como alternativas menos gravosas à movimentação da máquina punitiva estatal em busca da aplicação de uma pena podemos mencionar: pretensões de indenização de direito civil, medidas de direito público e a descriminalização, com eventual previsão de sanções pecuniárias ao invés de pena. De forma clara e objetiva, Eugênio Raul Zaffaroni (2019, p. 98) bem explica que “a pena não pode perseguir outro objetivo que seja o que persegue a lei penal e o direito penal em geral: a segurança jurídica”, complementando tal ideia, ainda, com a visão de que a prevenção de futuras condutas delitivas deve ser a real aspiração da legítima coerção penal. Voltando a citar o professor emérito da Universidade de Buenos Aires, Eugenio Raúl Zaffaroni, em sua leitura sobre a dogmática Penal Alemã entre os anos de 1933 e 1945 (2019, p. 110), já suscitada neste capítulo, cabe ressaltar que ao retomar as diretrizes nacional-socialistas para o novo Direito Penal alemão, evidente a verificação do caráter extremamente repressivo de tal ordenamento. Como forma mais expressa de tal faceta punitiva, se mostram os conceitos vagos implicados e que previam, por exemplo, certos “deveres de lealdade” à comunidade popular, declarando que “a tarefa do Estado nacional- socialista é impor a devida punição expiatória a todo desleal que por sua infidelidade tenha sido separado da comunidade. A devida punição serve de fiança e de proteção à 19 segurança da comunidade, mas serve também à educação e correção do delinquentee dos partícipes do povo ainda não perdido.” 1 Nesse ponto em específico, verificamos uma clara proximidade de tal forma de previsão legal-repressiva com o que chamamos hoje de Direito Penal do autor, que será melhor e mais profundamente analisado, à luz de todo o exposto, adiante. E frente ao até então sustentado, cabe frisar que em uma leitura sistêmica, Claus Roxin (2018, p. 20-21) entende como necessária a imposição de limites ao legislador no momento em que esse se propõe a estabelecer bens jurídicos a serem tutelados, possibilitando assim com que haja a posterior e eventual imposição, legítima, de uma sanção penal a um determinado cidadão. Entre esses diversos limites, para fim de análise mais atenta e contextualizada futura frente ao objeto principal da pesquisa posta, cumpre mencionar: i) normas jurídico-penais preponderantemente simbólicas devem ser recusadas; ii) tipos penais não podem ser fundados sobre bens jurídicos de abstração impalpável. Princípio n˚ 6, em Hans Frank (ed.) Nationalsozialistische Leitsätze für ein neues deutsches Strafrecht, t. I., 1 4. ed., Berlim, 1935. 20 3. Delitos de natureza organizacional no âmbito corporativo 3.1. O Direito Penal Econômico De maneira vanguardista, Edwin H. Sutherland foi o primeiro estudioso a se debruçar efetivamente sobre temas relacionados aos delitos de natureza econômica, conceituados por ele como crime de colarinho branco. Em seu último livro, lançado em 1949 e nomeado nos exatos termos de sua própria conceituação, o estudioso angariou dados relativos à atuação das 70 maiores empresas norte-americanas da época, cuidadosamente coletados ao longo de 17 anos de análise e pesquisa, trazendo contribuição única para o campo criminológico. Com o passar das décadas, o aporte científico trazido pelo pesquisador em sua obra possibilitou um refinamento do conceito de crime de colarinho branco a partir de novos estudos, investigações e descobertas, assim como um interessante debate em torno das causas desse tipo de criminalidade. Isso pois, como conclusão teórica, Sutherland (2015, p. 385) fixa o entendimento até hoje incontestável de que, com base nos diversos elementos empíricos por ele coletados, pessoas de classes socioeconômicas ditas superiores cometem - sim - crimes, devendo então suas condutas, por se enquadrarem como indevidas no âmbito do necessário equilíbrio social, serem também incluídas no espectro da Teoria Geral do Comportamento Criminoso. E nesse aspecto, outra valorosa contribuição da obra mencionada é o fato de ter sido desenvolvida, de brilhante maneira, a partir da premissa de que a prática criminosa existe mesmo quando o agente permanece fora das estatísticas oficiais e da efetiva punição estatal, sendo crucial se explorar então, a fim de resultados empíricos verossímeis e conectados à realidade, a chamada cifra oculta, também identificada como cifra dourada no caso dos delitos econômicos e de colarinho branco, que será melhor explorada e problematizada adiante. 21 Assim, pontua interessante e revolucionária visão de que “os crimes não estão relacionados a patologias pessoas e sociais” quando analisados à luz dos delitos de colarinho branco, não devendo, por essa razão, serem considerados como fatores essenciais aos crimes em geral (SUTHERLAND, 2015, p. 386). E levando em consideração a gênese teórica dos delitos de natureza econômica, aqui brevemente abordada, cabe exposição de sintetizada análise histórica do contexto legislativo brasileiro, no âmbito do Direito Econômico e sua faceta penal. A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891, assim como o Código Penal da Primeira República de 1890, não criminalizaram as condutas que pudessem traduzir qualquer forma de abuso do poder econômico em homenagem à ideologia liberal, à livre iniciativa plena e ao amplamente conhecido e sustentado laissez faire (BALDAN, 2005, p. 43). Foi apenas a partir do período de 1930 a 1934 que uma legislação mais ligada aos aspectos econômicos da sociedade se mostrou tendente, sob a legitimação da Carta Constitucional de 1934. Com a consagração da Constituição de 1937 no entanto, de forma agora mais explícita, houve o estabelecimento da possibilidade de práticas intervencionistas por parte do Estado nacional no domínio econômico, sempre com o fim de “suprir as deficiências da iniciativa individual e coordenar os fatores de produção” (BALDAN, 2005, p. 45), evitando e eventualmente resolvendo, assim, possíveis conflitos que pudessem interferir no “interesses da Nação, represados pelo Estado”. A baliza mestra posta à estipulação das condutas, no âmbito econômico-penal, a serem suprimidas pela coerção, sempre foi o interesse público, tendo como limite os direitos fundamentais constitucionalmente garantidos. E sobre isso, deveria a intervenção estatal no domínio econômico e nas organizações monopolísticas ser pautada pela busca de uma ordem comunitária em pleno acordo com os princípios da justiça social, liberdade de iniciativa e valorização do trabalho 22 humano, garantindo assim a existência digna de todos os cidadãos (BALDAN, 2005, p. 46). A intervenção mais intensa dos Estados na economia em todo o mundo, sob o enfoque aqui do Direito Penal, se deu de forma mais explícita e enérgica como resposta ao modelo econômico liberal na sequência das graves crises financeiras, que abalaram o início do século XX. Atualmente, em um plano global, o capitalismo financeiro, juntamente com um grande desenvolvimento tecnológico e a proliferação das relações digitais, fez com que a economia real se mostre superada por uma economia virtual e imaterial, clamando assim por uma desregulação econômica e pelo enfraquecimento estatal (RODRIGUES, 2020, p. 32-33). E frente à essa instabilidade, dificuldades vêm sendo demonstradas por parte dos Estados Nacionais em lidar, de maneira efetiva, com as questões político-criminais recorrentemente postas. Isso pois a criminalidade econômica, diferentemente da criminalidade clássica, muitas vezes acaba por provocar danos não individualizáveis, irreparáveis e incontroláveis por meio das ferramentas de repressão típicas, tendo como objetivo principal um lucro exacerbado, uma vantagem comercial ilícita ou a desleal dominação de um mercado. Tais elementos, somados ao recente avanço tecnológico, possibilita que tais condutas se deem em grande escala e, em algumas situações, praticadas por organizações complexas e de grande potencialidade lesiva. E é nesse aspecto que surge, como tendência e com certo protagonismo, o Direito Penal Econômico. Englobado pelo fenômeno da expansão do Direito Penal em todo o mundo, e com o fim de supostamente resolver problemas sociais, esse pujante campo da ciência jurídica busca “tranquilizar uma sociedade que está sobretudo interessada em reduzir as margens de risco que ameaçam a vida em comunidade” (RODRIGUES, 2020, p. 43). 23 Frente a isso, cabe o necessário alerta para o caráter essencialmente simbólico do Direito Penal, que alcança também, de forma óbvia e talvez até mais evidente, os delitos de natureza econômica. E fixando tal aspecto como base de reflexão, passaremos a analisar de forma mais atenta essa questão à luz dos delitos organizacionais corporativos, considerando para isso a intrínseca relação da temática com a realidade e interesses sociais vigentes na sociedade moderna, em irrefreável evolução. 3.2. Criminalidade organizada corporativa Da mesma forma que o avanço nas relações sociais ocorre e inevitavelmente acarreta a criação de mais leis penais, a fim de conter os novos modelos de criminalidade, ocorre também o fenômeno do aparecimento de legislações simbólicas que objetivam uma “resposta social ou cultural a determinados problemas do que propriamente à solução deles” (CALLEGARI, 2016, p. 10). E sobre isso, fica claro que quando se tratade delitos organizacionais de natureza comum ou corporativa, repressão e punitivismo são as matrizes dessa nova política criminal, como veremos. Como bem analisado pelo professor e especialista no tema, André Callegari (2016, p. 11), a expansão globalizada da atividade econômica se mostra inexoravelmente acompanhada por uma expansão da criminalidade, que deixa de estar condicionada à ação de um indivíduo isolado e passa a se dar de maneira estruturada, muitas vezes em um modelo empresarial, buscando maior eficiência e ganhos monetários mais significativos. Pode-se definir como crime organizado aquela prática delitiva que se dá de forma sistematizada e com uma espécie de planejamento empresarial de divisão de funções, sendo caracterizado ainda por seus efeitos predatórios, quase sempre respaldados por uma base de corrupção estatal sistémica a fim de garantir sua efetiva manutenção (ARAÚJO, 2019, p. 69). 24 De curiosa maneira, nos deparamos então com um cenário atual em que os delitos denominados clássicos, como por exemplo homicídios, furtos, roubos e lesões, que continuam a ocorrer praticamente com a mesma frequência de antes, são abstraídos pela dogmática e pelas formulações de política criminal frente aos delitos mais complexos e não tradicionais - como é o caso dos crimes organizacionais corporativos -, antes não apurados de forma mais detida. No que diz respeito aos delitos ditos organizacionais no Brasil, cumpre ressaltar de início que o referencial normativo brasileiro, que perdurou por anos para a delimitação da hipótese de envolvimento de um determinado indivíduo em uma suposta organização criminosa, era a Convenção das Nações Unidas sobre Crime Organizado, chamada de Protocolo de Palermo , que define grupo criminoso organizado como: 2 “Grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material”. Como fenômeno mundial, a denominação de crime organizado ou de organização criminosa passou a receber tratamento específico em nosso ordenamento jurídico só em momento posterior, principalmente sob o escopo econômico. Em breve análise histórica, verificamos que no Direito Penal brasileiro, o Código Criminal do Império de 1830 e Código Penal de 1890 não consagravam essa figura delituosa, não havendo qualquer exigência da estabilidade ou permanência na prática do delito. Assim, as tipificações adotadas prescreviam uma espécie sui generis de concurso eventual de pessoas, distinta assim da figura que acabou positivada por nosso conjunto normativo em sequência (BITENCOURT, 2016, p. 646). Superando a previsão normativa anterior do chamado ajuntamento ilícito, que não abarcava o elemento da necessária estabilidade na união, o crime de associação, quadrilha ou bando é uma criação do Código Penal de 1940. Elaborado no ano de 2000 e ratificado pelo Brasil por meio do Decreto n. 5.015/2004.2 25 Em interessante e minuciosa análise proposta por Clara Moura Massiero, desenvolvida em obra coordenada pelo professor André Callegari (2016, p. 30), verifica-se que a criminalidade organizada em meados de 1940 certamente não tinha as mesmas características ou atenção de hoje, em que é vista como um dos mais nefastos crimes por parte da percepção social. Mas de qualquer maneira, já havia grande preocupação com o tema. Tanto que o tratamento despendido à questão da criminalidade organizada no Código Penal de 1940 já era considerada bem punitiva, visto a vigência de uma espécie de “presunção legal de periculosidade para aqueles que cometem crimes na condição de filiados a associação, bando ou quadrilha de malfeitores”, havendo então a possibilidade de se aplicar medida de segurança mesmo após o cumprimento da pena privativa de liberdade, e até mesmo na hipótese de absolvição do réu (CALLEGARI, 2016, p. 31). Essa instituição de medidas de segurança aplicáveis post delictum, como supostas medidas preventivas ao crime, foi afastada apenas com o advento da reforma da Parte Geral do Código Penal, que se deu com a promulgação da Lei n. 7.209/1984. E antes da entrada em vigor da Lei n. 12.850 de 2013, também conhecida como Lei de Organização Criminosa, o tema era tutelado pela Lei n. 9.034/1995, que não trazia um tipo penal incriminador em específico para tal modalidade delitiva, sendo então utilizado para tanto o art. 288 do Código Penal, que versava sobre os crimes de quadrilha ou bando. Com o advento da Lei n. 12.850/2013, foi incluído em nosso ordenamento pátrio um tipo penal direcionado à punição daquele que se prove integrante de uma organização criminosa, sendo ainda alterada a redação do art. 288 do CP, que passou a balizar a agora denominada associação criminosa (NUCCI, 2019, p. 10). Apenas com a elaboração e aprovação da Lei n. 12.850/2013 que se redefine, então, o crime de quadrilha ou bando, alcançando uma mais precisa e própria estrutura tipológica e reduzindo o mínimo de participantes para três, nas chamadas associações criminosas. A 26 núcleo central do crime de organização criminosa está balizado na consciência e vontade de, com clara e inequívoca divisão de tarefas, se organizem os agentes de forma estrutural e ordenada com o fim de obter vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes graves, ou seja, reprovados com pena superior a quatro anos. Há quem sustente que o delito de organização criminosa constitui nada mais do que uma derivação do genérico delito de associação criminosa, pautada então pelo princípio da especialidade. Assim, na falta de um elementar especializante do delito de organização criminosa, se manterá caracterizado o delito de associação (GOMES, 2019, p. 61). Na visão de Marcus Alan de Melo Gomes (2019, p. 62), emblemático é o tipo dos delitos organizacionais frente ao recorrente fenômeno de “alargamento do alcance da imputação no iter criminis para justificar a antecipação da resposta penal relativamente ao grau de ofensa ao bem jurídico”. A pretensa modernização do Direito Penal resulta em inevitável expansão de seu campo de intervenção sobre as liberdades dos cidadãos, assim como na sua proeminência perante outros instrumentos de controle social (ARAÚJO, 2019, p. 76). E isso se justificaria pois, a criminalidade organizada, de modo geral, seria um fator objetivo gerador de insegurança, sendo assim o estado psicológico e social derivado desse fator, que é programaticamente “retroalimentado pelos meios de comunicação e o poder político encarregado da repressão da criminalidade” afim justamente de legitimar, de maneira mais fácil, as suas políticas e seus fins (CALLEGARI, 2016, p. 14). E essa é, em última análise, a faceta mais alarmante dos discursos que circundam criminalidade moderna e organizada, visto supostamente exigir um novo arsenal instrumental para “combatê-la”, o que em tese justificaria um abandono de princípios garantistas do Direito Penal que representam históricas conquistas ao longo dos séculos. Retomando à leitura do professor André Callegari (2016, p. 20), na incessante busca por “combater” o crime organizado, tal forma mais rígida de repressão representaria 27 uma espécie de Direito Penal ad hoc, de caráter excepcional, visto seu claro estabelecimento em critérios de necessidade e eficácia, justificando eventual desestabilização do sistema tanto político quanto econômico deste tipo de criminalidade, como melhor se analisará no decorrer do presente trabalho. 3.3. Bem jurídico afetado Recorrente na doutrina são as discussões acerca da necessária concretude e limitação do conceito de bem jurídico penal, principalmente quando se trata dos delitos de natureza econômica em âmbito organizacional, afim de fixar a aptidão para que seja devidamente exercido o controle do jus puniendi estatal (ESTELLITA, 2009, p. 16), fator caro à qualquer Estado Democrático de Direito. Ao analisar de forma mais detida os aspectos que circundam os delitos de natureza organizacional, é essencial que seja feita valoração sobre a real e objetiva necessidade de proteção dos bens jurídicos supostamente colocados em risco por esse fenômeno criminal, em oposição a uma eventual demanda social de punição irracional, “gerada por um poder político que se vê apertado para gerir empiricamente o desafio de novas formas de criminalidade” (CALLEGARI, 2016, p. 13). E justamente por essa razão, crucial que seja proposta uma minuciosa análise em torno do bem jurídico afetado no âmbito dos delitos organizacionais. Isso pois, sempre que se propõe a positivação de um tipo penal aberto, do qual não apresenta o estrito respeito à taxatividade, corre-se o risco de que haja uma demasiada ampliação das ações puníveis. O que pode vir a causar um grave problema no futuro - tanto para os cidadãos, quanto para a estrutura democrática de direitos e garantias fundamentais como um todo. Como bem assinala o professor Édson Luís Baldan (2005, p. 65) sobre o Direito Penal Econômico de forma ampla, o estabelecimento de um conceito claro e objetivo de 28 bem jurídico nessa seara é tarefa árdua e problemática, tendo em vista a dificuldade de se isolar os objetos merecedores de tutela frente a delitos que, inspirados em concepções político-econômicas, afetam uma série de interesses e expectativas de natureza distinta. E vai além (BALDAN, 2005, p. 73), agora acerca dos chamados bens jurídicos ditos supraindividuais, que se afastando da concepção clássica de interesses individuais e tangíveis, poderiam representar uma perda da função do próprio conceito de bem jurídico, visto não haver mais um controle de seu alcance valorativo. E justamente essa tendente incorporação na legislação penal de novos enfoques de proteção, englobando bens jurídicos de caráter difuso e supraindividual, por exemplo, faz com que novas construções teóricas e dogmáticas sobre o objeto de tutela do Direito Penal se deem. Especificamente sobre os delitos de natureza organizacional, como uma espécie de modernização funcional a fim de potencializar a efetividade em conter a chamada criminalidade moderna, há a proposição de mudanças semântico-dogmáticas como por exemplo: perigo em vez de dano; risco ao invés de uma frontal ofensa um bem jurídico tutelado; abstrato em vez de concreto e objetivo; tipo aberto substituindo o tipo fechado e bem delimitado; bem jurídico coletivo ou supraindividual em vez de individual e tangível (BITENCOURT, 2014, p. 21). Elementos esses que serão melhor analisados ao longo do trabalho, frente às suas eventuais e veladas consequências no âmbito prático, perante a sociedade. Sobre a específica questão do bem jurídico a ser tutelado, majoritária parte da doutrina nacional considera que sendo o sujeito passivo a própria sociedade, de forma ampla, esse será, pois, a paz pública ou a paz social, sempre atrelado ao conceito de segurança pública. A ideia de paz pública estaria, no entanto, balizada sob um aspecto subjetivo, qual seja, de sentimento coletivo de segurança, condicionado à confiança na ordem e proteção 29 jurídica, em tese violado pela simples conduta de organizar-se de forma associada com o fim de obter vantagens econômicas por meio do cometimento de delitos. Na visão de Cezar Roberto Bitencourt (2016, p. 669), indemonstrável seria a concretização do conceito de paz pública sob um aspecto objetivo, tendo em vista que “a coletividade somente toma conhecimento de ditos crimes após serem debelados pelo aparato repressivo estatal, com a escandalosa divulgação que se tem feito pela grande mídia, sem ignorar que a possível ofensa é pura presunção legal.” Importante ainda mencionar que, dizendo respeito a um delito de perigo abstrato, a mera existência de uma organização criminosa pode desencadear na verificação de um perigo para o bem jurídico protegido, que se mostra capaz de gerar a tipificação pelas figuras delitivas que serão praticadas pelo grupo. Assim, há a verificação de um injusto autônomo, considerado como uma espécie de estado de coisas antijurídico que ameaçaria a paz pública e, assim, estaria apto a sofrer uma sanção penal (CALLEGARI, 2016, p. 19). O ponto nevrálgico que permeia o debate, e que é bem explorado pelo professor André Callegari (2016, p. 16), repousa em torno da delimitação estrita do objeto jurídico a ser tutelado na tipificação dos delitos de natureza organizacional e na adequação de tal fenômeno em nosso ordenamento pátrio no que diz respeito, essencialmente, à “transferência da responsabilidade de um coletivo a cada um dos membros da organização”, afastando assim os “critérios dogmáticos de imputação individual de responsabilidade que vigem normalmente para o Direito Penal” (CALLEGARI, 2016, p. 16). Em uma leitura problematizadora da essência da tutela proposta frente ao delito em questão, verificamos que partindo de uma visão vaga e ilusória de proteção da paz pública e garantia da segurança, tal conceituação estaria então ligada, na visão de Glaucio Roberto Brittes de Araújo (2019, p. 119) à um suposto “interesse social reconduzível à dignidade de cada ser humano”, sob o ideário de que se concebe ao cidadão o “desenvolvimento em sociedade livre e segura, conforme valores dotados de dignidade constitucional”. 30 E é justamente tal ponto, rodeado por uma espécie de “salvacionismo” e “legítimo combate” a um ente criminoso que supostamente coloca em grave risco toda a sociedade, que permite que medidas extremamente invasivas sejam utilizadas com o fim de proteção do bem jurídico posto. E quando utilizadas frente a um “inimigo” muitas vezes pouco delimitado em termos alcance, coloca então em risco toda a ordem constitucional, como se verá no desencadear do exposto. 3.4. Mecanismos de repressão Enquanto as políticas de segurança pública de caráter democrático buscam lograr a confiança e a proteção dos cidadãos, contendo os comportamentos desviantes de forma ponderada e legítima, as políticas de segurança autoritárias têm como objetivo primeiro a adesão dos cidadãos, sendo essa conquista então utilizada como mecanismos populistas capazes de “canalizar em proveito de determinadas pessoas ou partidos políticos sentimentos, medos ou reações sociais” (CALLEGARI, 2016, p. 10). Sobre isso, bem tensiona a questão o professor Cezar Roberto Bitencourt (2014, p. 19) ao afirmar que é tendente o movimento por parte das autoridades governamentais de adotar uma “política de exacerbação e ampliação dos meios de combate à criminalidade, como solução de todos os problemas sociais, políticos e econômicos que afligem a sociedade”, fazendo uso do Direito Penal como uma espécie de “panaceia de todos os males (direito penal simbólico)”, pouco se importando para as graves transgressões de direitos fundamentais e a frontal ameaça a bens jurídicos constitucionalmente protegidos. Tendo então como fim único a satisfação da sanha punitiva da população, trazendo ainda, assim, uma suposta solução imediata e eficaz ao problema da segurança e da criminalidade. 31 Como bem frisado pelo professor Pierpaolo Cruz Bottini (2019, p. 75), a complexidade tanto relações sociais modernas, quanto das estruturas empresárias atuais, faz com que os limites da “aferição de responsabilidade pela criação de perigos ou danos” sejam reavaliados, assim como os critérios de aferição da responsabilidade e participação de cada indivíduo em um determinado ato delituoso. Para a efetivação de tal política de “combate” ao crime organizado, seria necessário então sustentar, de forma explícita, a necessidade de uma responsabilidade penal objetiva,em frontal oposição à responsabilidade subjetiva e individual, assim como às garantias dogmáticas tradicionais, aumentando-se a capacidade funcional do poder punitivo estatal com o fim de tratar das complexidades modernas impostas. Para além disso, notamos ainda a criação de meios extraordinários de investigação, idealizados a partir da reforma de instrumentos probatórios anteriormente regulamentados por leis esparsas, e que agora se mostram potencializados e capazes de efetivamente cumprir com seus “fins”. Sobre esse mecanismo de antecipação e incremento do poder punitivo estatal, verificamos que se mostra elencado no rol do art. 3º da Lei 12.850 de 2013 os seguintes: (i) colaboração premiada; (ii) captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos; (iii) ação controlada; (iv) acesso a registros de ligações telefônicas e telemáticas, a dados cadastrais constantes de bancos de dados públicos ou privados e a informações eleitorais ou comerciais; (v) interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas, nos termos da legislação específica; (vi) afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal, nos termos da legislação específica; (vii) infiltração, por policiais, em atividade de investigação, na forma do art. 11; (viii) cooperação entre instituições e órgãos federais, distritais, estaduais e municipais na busca de provas e informações de interesse da investigação ou da instrução criminal. E sobre o ferramental posto à disposição dos órgãos de investigação e persecução penal, cruciais são as problemáticas suscitadas pelo professor Cezar Roberto Bitencourt (2016, p. 703) sobre a possibilidade de tais meios serem empregados em qualquer fase do 32 procedimento judicial ou pré-processual, em casos de organizações criminosas, causando assim um complexo paradoxo a ser superado, qual seja: “as fórmulas especiais de investigação só estariam autorizadas quando fosse demonstrada a existência de uma organização criminosa e, no entanto, demonstrada já a existência de tal organização – como requisito para o emprego das fórmulas específicas de produção probatória –, estas seriam desnecessárias, ao menos no que tange ao objetivo de demonstrar a existência da organização criminosa.” Fazendo ainda intrigante indagação em torno do fato de que: “sendo medidas probatórias excepcionais, aflitivas da condição do investigado, deveriam ser utilizadas como exceção, em ultima ratio, mas, se já provada a existência da organização, a própria razão de ser das medidas estaria extinta, não mais as justificando. Mas pode ser ainda pior. É que, sendo incerta a condição de existência da organização criminosa, a atividade investigatória policial fazendo uso de alguma das medidas previstas no art. 3º ver-se-ia compelida à demonstração da efetiva existência da organização criminosa, sob pena de se verem seus executores acusados de abuso de autoridade; afinal, a legitimidade das provas é condição sine qua non de sua validade processual, e, ainda que a enumeração processual das provas não seja taxativa, quando apontado um rol limitado ao emprego a respeito de determinado delito, resulta imprescindível que a ele se limite” Cumpre ressaltar que tal ferramental pode vir a ser utilizado de maneira indevida, gerando um verdadeiro caos em matéria de garantias fundamentais na medida em que autoriza a quebra de sigilos telefônicos, fiscais e bancários de forma coletiva, sem um critério mais detido, e muitas vezes com base em meras suspeitas de alguma irregularidade ou relação com a suposta organização criminosa, determinando ainda, em alguns casos emblemáticos e amplamente veiculados pela mídia, invasões indiscriminadas a escritórios de advocacia, violando sigilos profissionais e corroendo os caros alicerces do nosso Estado Democrático de Direito. E assim, concluirmos que a legislação brasileira voltada à repressão às organizações criminosas é marcada, em essência, por um evidente caráter de eficientismo nas investigações e desencadear processual, resultado em uma problemática equação “relativização do ônus da prova x flexibilização de garantias penais e processuais penais x maximização do resultado punitivo” (GOMES, 2019, p. 12). 33 E sobre isso, cabe já suscitar problemática a ser melhor desenvolvida e tensionada adiante, quando feito o paralelo entre o incentivo a uma maior repressão a determinados delitos e seu efetivo resultado frente ao sistema penal e à sociedade como um todo. No âmbito da chamada esquerda punitiva (KARAM, 1996), necessário consignar alerta para o equívoco de se atrair atenção aos crimes da elite, fortalecendo os mecanismos de fiscalização e repressão penal, com a recorrente e inevitável tendência do sistema continuar a recair, de forma drástica e preferencial, sobre as classes pobres e politicamente mais vulneráveis. E o ponto principal que se busca aqui frisar repousa sobre o risco eminente de que, frente a um ainda ineficiente e incerto tratamento jurídico-penal perante a figura da criminalidade organizacional corporativa, reste possível o estabelecimento de uma indevida aplicação de incisivas medidas repressivas a delitos em concurso material de forma geral, assim como a pequenas manifestações de delinquência marginal, a fim de expandir o espectro punitivo, como se analisará mais detalhadamente adiante. 34 4. Direito Penal do Inimigo 4.1. A expansão do Direito Penal na sociedade contemporânea e a Teoria das Velocidades Como já assinalado, a atual tendência da política criminal é de superação do clássico modelo de garantias penais e processuais penais rígidas, adquiridas ao longo de diversos anos de debate e estudos, por uma linha teórica e política que busca essencialmente a segurança do cidadão ou, ao menos, que simbolicamente demostre esta suposta proteção. Nas palavras de Edgardo Donna (2008, p. 67), em representativa e apertada síntese, na dogmática pós-moderna “deve existir um direito penal com penas mais duras e violentas de modo a proporcionar segurança”, tendo em vista o sentimento social e a realidade atualmente posta. Isso pois a repercussão desmesurada dos perigos da vida em sociedade por parte dos meios de comunicação de massa trás, inevitavelmente, uma pujante sensação de insegurança, fazendo com que parte da população passe a demandar por mais intervenção penal. Tal necessidade se daria, também, pela incapacidade de contenção demostrada por outros meios de controle social. Junto com tal movimento, verificamos então a crescente demanda por uma expansão do Direito Penal a fim de acompanhar os novos riscos sociais postos, enfrentando a contra-argumentação de ordem econômica que alerta para uma necessária “retratação dos âmbitos de abrangência das normas criminais, sob pena de paralisação de todas as atividades produtivas” (BOTTINI, 2019, p. 67). No entanto, ao que parece, a tendência expansiva dessa área jurídica vem se mostrando como um fenômeno irreversível. De maneira geral, para além do já especificamente apontado à exemplo da Lei 12.850/2013, sob o enfoque dos delitos organizacionais corporativos, são características típicas da dogmática penal inspirada nessa política criminal de expansão repressiva: (i) o uso abundante de tipificações abertas, com uma maior incidência de elementares normativas; (ii) o incremento da tipificação pela técnica da norma penal em branco; e (iii) 35 a ampliação do uso de tipos de perigo abstrato, visando a prevenir danos e exercitar uma tutela penal preventiva própria de uma sociedade de riscos. Sobre a chamada sociedade de risco, expressão que faz referência à obra do sociólogo alemão Ulrich Beck (1998), verificamos que sua gênese encontra-se no próprio movimento de globalização econômica e expansão em rede e em tempo real de informação automatizada (COSTA, 2001, p. 12), juntamente com o desenvolvimento tecnológico e industrial, que se mostrouacompanhado também de problemas relacionados à imigração, crescimento da violência urbana, dentre outras causas. E assim, na contramão do sustentado pelo ex-integrante do Tribunal Federal Constitucional alemão e catedrático de Direito Penal da Universidade de Frankfurt, Winfried Hassemer, que sempre sustentou a tese do Direito Penal mínimo e da menor intervenção estatal possível, a fim de justamente assegurar o máximo de liberdade aos cidadãos, o Direito Penal moderno advoga pela expansão do aparato punitivo a fim de supostamente garantir o máximo de proteção social. Sobre isso, para esse importante jurista (1991, p. 34), tal movimento faz com que ocorra um afastamento da missão original do Direito Penal, esvaziando o seu objetivo de proteção efetiva de bens jurídicos e fazendo com que desempenhe, dessa forma, uma função meramente simbólica, pretendendo anunciar uma segurança ficta em situações problemáticas e fugindo, assim, de resultados práticos verdadeiros. Dessa forma, o objetivo inicial de assegurar o máximo de liberdade por meio da menor intervenção estatal possível, limitando sempre que viável o uso da punição e efetivando garantias inerentes a um Estado Democrático de Direito, parece tender a ser deixado de lado em busca de um “bem maior”. Em crítica à visão de Winfried Hassemer, muito se diz que no direito de intervenção sustentado por esse jurista estaria presente uma espécie de “válvula de escape” a fim de abrigar a criminalidade econômica, os crimes de colarinho branco e os ilícitos 36 ambientais em uma forma de Direito Penal de classes, que protegeria as camadas da população mais abastadas em detrimento das menos privilegiadas (BOTTINI, 2019, p. 79). Um dos mais relevantes críticos da leitura de Hassemer do Direito Penal na atualidade é Jesús-María Silva Sánchez, professor catedrático da Universidade Pompeu Fabra de Barcelona. Para esse importante jurista, o Direito Penal não poderia ser reduzido a um patamar mínimo, sendo necessário que se estabeleça um sistema que realmente enfrente os novos riscos sociais postos, mas que, ao mesmo tempo, respeite o Estado Democrático de Direito. De acordo com a Teoria das Velocidades do Direito Penal idealizada por Jesús- María Silva Sánchez, haveria então a: (i) primeira velocidade, caracterizada pela pena de prisão e regras rígidas de imputação, de garantias processuais e de respeito aos princípios político-criminais; e (ii) segunda velocidade, que defende uma flexibilização das regras de imputação, garantias processuais e princípios político-criminais, com tutela de novos riscos sociais e buscando, em especial, a proteção de bens jurídicos supraindividuais por meio da tutela penal antecipada e da tipificação de crimes de perigo presumido e de acumulação, fazendo-se uso especificamente de penas restritivas de direitos e pecuniárias (SILVA SÁNCHEZ, 2013, p. 189-192). Dentro dessas duas primeiras velocidades estabelecidas pela concepção de Jesús- María Silva Sánchez, em torno do necessário desenvolvimento da dogmática penal em todo o mundo, entende-se que a expansão do Direito Penal deve vir acompanhada da redução do rigor das sanções aplicadas, sendo apenas admitida a flexibilização de princípios tradicionais se acompanhado por um movimento de substituição da pena privativa de liberdade por outras medidas de caráter mais brando, como penas pecuniárias e privativas de direitos, por exemplo. Na visão do jurista espanhol, haveria no entanto, ainda, a tendência para o surgimento de uma espécie de terceira velocidade do Direito Penal, representada principalmente pela pena de prisão, acompanhada de uma “ampla relativização das 37 garantias político-criminais, regras de imputação e critérios processuais” (SILVA SÁNCHEZ, 2013, p. 193). Essa terceira velocidade seria aplicada, especialmente, no Direito Penal socioeconômico, podendo ainda servir para o “combate” de outras modalidades criminosas, incluindo a organizada. E aqui, cumpre ressaltar que a utilização do vocábulo combate, não deve ser interpretada como uma escolha lexical aleatória, visto trazer consigo uma carga valorativa que busca de maneira clara sustentar um discurso bélico de eliminação do outro, classificado como opositor social. E é nesse ponto que podemos estabelecer uma estreita relação entre esta terceira velocidade do Direito Penal e o chamado Direito Penal do Inimigo, terminologia difundida por Günther Jakobs. De acordo com Silva Sánchez (2013, p. 196), o Direito Penal de terceira velocidade “não pode manifestar-se senão como o instrumento de abordagem de fatos ‘de emergência’”, tendo em vista ser justamente a expressão de uma espécie de Direito de Guerra, incompatível então com a ordem democrática classicamente posta. 4.2. A diferença entre o cidadão e o inimigo À luz da teoria clássica e da concepção estrita de Estado, estabelecida essencialmente com base em argumentos contratualistas, o delinquente seria o indivíduo que infringe o contrato que ele mesmo entendeu por firmar perante e junto à sociedade, não devendo então, verificado o desvio, se beneficiar dele. Na leitura de Günther Jakobs (2020, p. 24), o filósofo Jean-Jacques Rousseau entendia que o malfeitor que decida por 3 atacar o direito social deixa de ser membro do Estado, entrando em frontal guerra com esse ente. ROUSSEAU, Staat und Gesellschaft. “Contra social”, traduzido e comentado por WEIGEND, 1959, p. 33 3 (segundo livro, capítulo V). 38 Em interpretação da visão do também filósofo Johann Gottlieb Fichte , extrai 4 Jakobs (2020, p. 25-26) que aquele que, estabelecido o contrato cidadão, decide por abandoná-lo em um ponto que se contava com a sua prudência, perde todos os seus direito não apenas como cidadão, mas também como ser humano, passando assim para uma ausência completa de direitos. E nesse sentido, importante frisar que enquanto para Rousseau e Fichte todo delinquente era automaticamente considerado como um inimigo, para Thomas Hobbes , existia uma diferenciação entre o mero delinquente e o delinquente 5 de alta traição, devendo esse segundo - sim -, ser tratado como inimigo. Acompanhando o entendimento de Hobbes, Immanuel Kant também reconhece a 6 existência de um Direito Penal do cidadão, que se dirige às pessoas que não delinquem de modo persistente por princípio, e um Direito Penal do Inimigo contra aqueles que desviam por princípio e optam por não participar na vida em um estado comunitário-legal. Sobre tal retrospectiva e breve análise das concepções clássicas em torno da noção de inimigo, importante mencionar ainda que essa visão está fundamentada na leitura de que “os cidadãos têm direito de exigir do Estado que tome medidas adequadas, isto é, têm um direito à segurança” sempre que se sentirem colocados em risco, tomando como máxima a ideia de que “frente ao inimigo, é só coação física, até chegar à guerra” (JAKOBS, 2020, p. 28). Na leitura de Jesús-María Silva Sánchez (2013, p. 194) da obra de Günther Jakobs, o inimigo atual seria aquele indivíduo que, em razão de sua ocupação profissional, comportamento ou vinculação organizacional, abandona o Direito de forma duradoura e passa então a não mais garantir, mesmo que de forma mínima, a segurança cognitiva necessária de seu comportamento pessoal para a vida harmônica em sociedade. E por essa FICHTE, Grudlage des Naturrechts nach den Prinzipien der WissenschafislebreI, em: Sämtliche Werke, ed. 4 a cargo de J. H. FICHTE, Zweite Abteilung. A. Zur Rechts - und Sittenlehre, tomo primeiro, s.f., p. 260. HOBBES, Leviathan. Op. cit., p. 242 (capítulo 28); idem, Vom Bürger, em: GAWLICK (ed.), Hobbes. Vom 5 Meschen. Vom Bürger, 1959, p. 233 (capítulo 14, parágrafo 22). KANT, Zum ewigen Frieden. Ein philosophischer. Entwurf, em: Werke nota 18, p. 349.6 39 razão, restaria legitimada a “transposição da legislação jurídico-penal à legislação decombate”, assim como o “solapamento de garantias processuais”. Nesse rol de indivíduos que supostamente não proporcionam a garantia cognitiva mínima necessária a um tratamento como pessoa podemos verificar, por exemplo e de acordo com o elencado pelo próprio Günther Jakobs: os terroristas e os integrantes de organizações criminosas, sejam elas de cunho econômico ou não. A motivação para tal escolha estaria fundamentada na ideia de que esses indivíduos optaram, por livre vontade, por não entrar em um estado de cidadania e respeitá-lo, não podendo assim participar dos benefícios do conceito de pessoa (JAKOBS, 2020, p. 35). Esse indivíduo estaria então rechaçando, por princípio, a legitimidade do ordenamento jurídico a fim de destruir a ordem social posta. A decomposição proposta por Günther Jakobs (2020, p. 40) a fim de sustentar sua teoria se resume então à seguinte divisão do conceito de delinquente: indivíduos que tenham cometido um erro (delinquente-cidadão) e indivíduos que devem ser impedidos de destruir o ordenamento jurídico mediante coação (delinquente-inimigo). Por trás do conceito de inimigo, encontra-se a atribuição de perversidade e demonização do ente humano em questão, fundamentado em uma intensa carga de punitivismo e vingança. Em interpretação de Eugenio Raúl Zaffaroni (2019, p. 23), a modalidade jurídica que se apresenta em frontal discordância com o Direito Penal do cidadão poderia ser conceituada como Direito Penal desumano -, que se mostra presente de forma expressa, por exemplo, em ditaduras, sob a máxima de que “há seres humanos que são provados do status jurídico de pessoa e a que se combate livremente por qualquer meio”. Mas as diferenças estruturais entre o Direito Penal tradicional, voltado ao cidadão comum, e o Direito Penal do Inimigo, são bem resumidas por Manuel Cancio Meliá (2020, 40 p. 101) da seguinte forma: (i) o Direito Penal do inimigo não estabiliza normas, mas as demoniza a determinados grupos de infratores; (ii) o Direito Penal do inimigo não é um Direito Penal do fato, mas do autor. Sob o discurso do inimigo na atualidade, normalmente encontra-se uma velada indisposição e desinteresse por se discutir, de forma qualificada e responsável, questões de política criminal extremamente importantes no contexto social. Isso tendo em vista haver a crença na maior efetividade, à luz de uma perspectiva leiga, irresponsável e meramente simbólica, em um simples aumento do aparato repressivo estatal, elegendo inimigos e propondo combatê-los com o máximo rigor. 4.3. Punitivismo e Direito Penal simbólico De acordo com Manuel Cancio Meliá (2020, p. 80), o que se vê à luz da expansão do Direito Penal na modernidade, no âmbito do debate político, é o surgimento de um crescente e exacerbado clima punitivista, que prega pelo incremento qualitativo e quantitativo no alcance da criminalização como único critério político-criminal. Para além disso, as medidas extremas e punitivistas suscitadas contra os sujeitos que supostamente não se identificam com a maioria social - essa, preocupada com a possibilidade de ser vítima mesmo que indireta de delitos graves -, muitas vezes se dão em conjunto com eventuais abusos do Estado no exercício de seu poder punitivo. Esses excessos, no entanto, ao menos em um primeiro momento, parecem não ser objeto de grande preocupação, visto que quando ocorrem, recaem sobre elementos alheios ao corpo social nacional (CALLEGARI, 2016, p. 14). Sob esse aspecto, importante retomarmos a discussão em torno da utilização do vocábulo combate, guerra ou luta, no momento em que se aborda o tema do Direito Penal do Inimigo. 41 Nesse assunto, o próprio Günther Jakobs em sua obra (2020, p. 62) afirma que a “luta” que se prega por ser estabelecida contra o terrorismo - aqui entendendo enquadrar também os demais ditos inimigos, principalmente os que se estabelecem de forma organizada -, “não é somente uma palavra, mas sim um conceito”, devendo então ser tratado dessa forma. Importante então se mostra frisar que toda a narrativa bélica estabelecida em torno de tal teoria está embasada no simbolismo do Direito Penal e na sua mística capacidade de ir de encontro ao esperado por comunidades que, muitas vezes abandonadas pelas políticas públicas, encontram conforto em um punitivismo rasteiro e crescente. Punitivismo esse que, quando mal canalizado de maneira vazia e meramente simbólica, pode gerar graves consequências à sociedade de maneira global. E aqui cumpre ressaltar que enquanto o funcionalismo moderado de Claus Roxin sustenta que a real funcionalidade dos institutos dogmáticos será efetivamente comprovada de acordo com sua capacidade de resguardar valores e interesses fundamentais, dentro dos limites e garantias inerentes à atividade de persecução penal, o radicalismo de Günther Jakobs entende ser a missão do Direito Penal a mera proteção e firmeza das expectativas normativas essenciais, direcionando seus objetivos à proteção das estruturas de funcionamento de um corpo social postas. Isso considerando ainda que, partindo de uma leitura pragmática do ordenamento jurídico penal, que desconsidera a proteção de bens jurídicos como efetiva missão do Direito Penal, cumpre ressaltar que sendo a pena uma resposta estatal à violação da norma, essa então serviria para que as expectativas normativamente fundadas não fiquem anuladas por sua defraudação frente a um caso concreto. E assim, a pena consistiria em uma contradição da violação da norma, que se executa à custa de seu autor (PAÑARANDA RAMOS, 2013, p. 20). 42 Nessa linha de concepção, podemos então verificar o crescimento de um Direito Penal carregado de simbolismos punitivos, embasados de forma próxima nos anseios sociais e em técnicas jurídicas especialmente confeccionadas para supri-los. Em interessante debate em torno da “luta contra o delito”, travada de maneira ferrenha e quase sempre fracassada em todo o mundo, Winfried Hassemer e Francisco Muñoz Conde (1989, p. 38) pontuam o seguinte: “Dos condiciones favorecen esta tendencia: un entendimiento preventivo excesivamente unilateral de los fines del Derecho penal, y la esperanza, basada en la historia de la Filosofía, de que el delito pueda ser alguna vez "eliminado" de la faz de la tierra. Ambas condiciones, por más que ideológicamente estén alejadas la una de la otra, tienen en común una confianza ingenua en, por un lado, la posibilidad de modificar el curso de la historia por el hombre o el proceso evolutivo y, por otro, una enorme impaciencia frente a la conducta desviada. Ello conduce, pues, a una actitud intervencionista bastante radical, buscando más la efectividad del Derecho penal que su formalización o su corrección jurídica.” O Direito Penal do Inimigo, é alimentado pelo simbolismo do Direito Penal e pelo punitivismo expansionista, agregando em uma só metodologia de forma alarmante o conservadorismo moral e ideológico com o liberalismo penal. No entanto, como bem apontado por Manuel Cancio Meliá (2020, p. 78) em leitura do assinalado pela teoria de Hassemer, não há qualquer simbolismo nas vivências reais e terrenas de quem é submetido à persecução penal, acabando por detido, processado, acusado e eventualmente condenado e encarcerado. E não se pode aceitar que os danos concretos da pena, a fim de saciar efeitos meramente simbólicos de uma determinada legislação, sejam ignorados. E a partir de interessante leitura da dogmática penal nazista, Eugenio Raúl Zaffaroni (2019, p. 228-229) alerta sobre a correspondência expressa de cada momento científico do Direito Penal alemão com seu marco temporal político ideológico. Assim, não se pode mais acreditar na pura superioridade técnica da ciência jurídica, que ao longo da história se mostrou capaz não só de introduzir novos conceitos políticos como conteúdo, mas também, de promover umdesmonte do sistema anteriormente posto. 43 E aproveitando a temática de estudo suscitada (ZAFFARONI, 2019, p. 241) cumpre ressaltar ainda as ditas “heranças” das construções dogmáticas nazistas, como por exemplo, a promoção constante de legislações penais para suprir os anseios sociais, a idolatria do poder punitivo como capaz de resolver todos os problemas da comunidade, assim como a utilização da mídia com o fim de “intimidação midiática a políticos e juízes”, assim como para “estigmatização de quem opõe resistência ou responde a discursos de vingança e discriminatórios”. Como bem indicado por Manuel Cancio Meliá (2020, p. 79), “toda legislação penal, necessariamente, possui características que se podem denominar de ‘simbólicas’”, sendo então necessário se analisar de maneira atenta se, por trás de uma determinada construção normativa, existe também efetividade ou apenas “agentes políticos [que] tão só perseguem o objetivo de dar a ‘impressão tranquilizadora de um legislador atento e decidido’”, predominando assim uma função latente sobre a manifesta, que se escancara no momento em que há evidente discrepância entre os objetivos invocados pela lei e a dita “agenda real” oculta sob as declarações expressas. A reflexão aqui proposta, principalmente à luz dos delitos organizacionais corporativos, pretende melhor entender se a legislação e a narrativa que embasa suas políticas de contenção e “combate” à criminalidade realmente objetivam, e podem alcançar, resultados efetivos, ou se em realidade podem representar à sociedade, no futuro, um potencial perigo frente a eventual má utilização e deturpação. Fundamentar a necessidade de utilização de legislações expansivas e amplamente punitivas com base em discursos de “combate à impunidade” e de punição à agentes anteriormente não atingidos pela lei penal, não mais bastam. 44 5. Punição alargada e suas consequências sociais e jurídicas 5.1. O obscuro discurso de igualdade repressiva à luz dos delitos organizacionais As ciências jurídicas, fundadas na ideia ilustrada de contrato social, buscam ao menos em teoria a regulação do convívio social por meio de normas e pautas de ações civilizadas, assim como a definição de atos ditos inapropriados (CARVALHO, 2015, p. 25-26). Quando se estabelece um debate para a instituição de disposições normativas de caráter criminal, verifica-se então um “verdadeiro fascínio pelos atos de crueldade, pelo excesso de violência, pelo abuso da força e o uso desmedido do poder”. No âmbito dos delitos organizacionais, à luz do até aqui exposto, fica ainda mais evidente como sua assimilação e aceitação integral de normas expansivas, sem qualquer problematização, pode significar a abertura de uma perigoso precedente. Na visão do professor Manuel Cancio Meliá, em colaboração à obra desenvolvida e coordenada pelo professor André Callegari (2016, p. 82-83), “los nuevos delitos dirigidos a la represión de agentes colectivos serían especialmente importantes en la lucha contra ‘el nuevo crimen’”, possibilitando assim uma espécie de “prevención fáctico-policial”, assim como uma “presión de legitimación especial”. E nesse aspecto, o próprio renomado professor complementa, “se trata de uno de los terrenos en los que se expande el llamado ‘Derecho penal’ del enemigo”. Aqui, importante ainda ressaltar que como muito bem pontuado pelo professor Pierpaolo Cruz Bottini, o clamor social instaurado acaba por sensibilizar o discurso político e influir em uma “judicialização da opinião pública”, fazendo com que de maneira perigosa, o público deixe de ser um mero destinatário da norma jurídica para se transformar em “um elemento indutor da expansão deste sistema, interferindo na produção legislativa e orientando a construção de um novo direito penal” (BOTTINI, 2019, p. 71). Nesse sentido, cumpre ressaltar que uma legislação penal fundada sob o ímpeto do exercício arbitrário de poder está fadada a produzir um conjunto de regras e 45 comportamentos estatais avessos aos direitos e garantias fundamentais previstos na Carta Constitucional. Como já se demonstrou ao longo da história, à exemplo da dogmática nazista, já mencionada no presente trabalho. As políticas criminais maximalistas, normalmente encabeçadas por partidos ou movimentos de direita, foram amplificadas e desencadearam modelos de hipercriminalização. Potencializados por tendências e discursos político-criminais vindos então da esquerda política, principalmente com relação aos crimes de caráter econômicos, sejam eles organizacionais ou não, induziram o aparecimento de diversas teorias legitimadoras de pautas moralizantes e que buscam, de forma fracassada, realizar justiça social através do sistema penal (CARVALHO, 2015, p. 239). Jesús-María Silva Sánchez (2001, p. 70) já entendia tal movimento como “ideología de la ley y el orden en versión de izquierda”. Sobre isso, Alessandro Baratta (1997, p. 202) bem alertava da necessidade de se evitar cair em uma política reformista e ao mesmo tempo “panpenalista”, que consistiria “em uma simples extensão do direito penal, ou em ajustes secundários de seu alcance, uma política que poderia produzir também uma confirmação da ideologia da defesa social, e uma ulterior legitimação do sistema repressivo tradicional, tomado em sua totalidade”. E tudo isso, vale repetir, apoiado em grande medida pelos movimentos ligados à esquerda política, no que Maria Lúcia Karam já denominava, em 1996, de esquerda punitiva. Nas palavras da ex-juíza e professora (1996, p. 80), “apropriando-se de um generalizado e inconseqüente clamor contra a impunidade, estes amplos setores da esquerda foram tomados por um desenfreado furor persecutório, centralizando seu discurso em um histérico e irracional combate à corrupção”, se esquecendo no entanto das lições da história, que já demonstrou que tal discurso por diversas vezes foi utilizado como forma de legitimação das forças reacionárias. Em interessante leitura, Manuel Cancio Meliá (2020, p. 82-83) dedica atenção especial aos movimentos encabeçados pela esquerda política, que mesmo sempre tendo 46 identificado na criminalização de determinadas condutas um verdadeiro mecanismo de repressão direcionado à manutenção do sistema econômico político de dominação posto, passou a se identificar em grande medida com pretensões neocriminalizadoras, descobrindo ainda “o quanto rentável pode resultar o discurso da law and order, antes monopolizado pela direita política”. E se aproveitando dessa tendência, o movimento foi rapidamente assimilado potencializado pela direita política, que até mesmo identificou na aprovação de normas penais um caminho para assumir matizes políticas ditas “progressistas”. Como bem apontado pelo Prof. Nilo Batista na palestra de encerramento do 26º Seminário Internacional de Ciências Criminais do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), que se deu no mês de setembro do presente ano, “nada melhor para relegitimar a pena do que prender espetacularmente um branco rico. O público não sabe que para cada um desses, prende-se dez mil pobres e pretos”. E essa é justamente a denúncia que se pretende estabelecer por meio do presente trabalho: não negando a necessidade de uma legislação específica para a contenção dos delitos organizacionais de natureza corporativa, alertar para o risco de que tais ferramentas de controle e repressão sejam potencializadas e utilizadas de maneira disforme a seu real objetivo. Aos que bradam por mais punição e por uma espécie de justiça social por meio do Direito Penal, sustentamos pela impossibilidade de tal objetivo se concretizar da maneira esperada e sem que desencadeie em um grande desequilíbrio à ordem democrática, já constantemente abalada. 5.2. A impossível limitação do conceito de inimigo 47 O primeiro problema na conceituação de “inimigo”