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Linguagem OraL e escrita Linguagem OraL e escrita Fernando WolFF Mendonça Li n g u a g em O ra L e es c ri ta Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-2864-1 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Fernando Wolff Mendonça Linguagem Oral e Escrita IESDE Brasil S.A. Curitiba 2012 Edição revisada Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br © 2008 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais. CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ __________________________________________________________________________________ M494L Mendonça, Fernando Wolff. Linguagem oral e escrita / Fernando Wolff Mendonça. - ed. rev. - Curitiba, PR : IESDE Brasil, 2012. 76p. : 28 cm Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-2864-1 1. Linguagem e línguas. 2. Linguística. I. Título. 12-4800. CDD: 469.5 CDU: 811.134.3 09.07.12 23.07.12 037209 __________________________________________________________________________________ Capa: IESDE Brasil S.A. Imagem da capa: IESDE Brasil S.A. IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br Todos os direitos reservados. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Sumário As diferentes linguagens da linguagem ...................................................................................5 O que vem a ser linguagem? .......................................................................................................................5 As abordagens da linguagem ......................................................................................................................6 As linguagens e as relações sociais ..........................................................................................9 Linguagem, cultura e cognição ....................................................................................................................9 A história do homem é a história da linguagem .....................................................................17 Aspectos biológicos do surgimento da linguagem ....................................................................................17 Os estudos científicos da linguagem ......................................................................................21 Os estudos da linguagem hoje ...................................................................................................................21 As perspectivas interacionistas de linguagem ........................................................................25 A aquisição da linguagem nas perspectivas interacionistas ......................................................................25 A linguagem e o cérebro humano ..........................................................................................31 Aspectos neurológicos da linguagem .......................................................................................................31 Como aprendemos a falar ......................................................................................................35 A aprendizagem da linguagem oral – a fala ..............................................................................................35 Em busca das primeiras palavras ..............................................................................................................35 A produção do discurso pela criança .....................................................................................39 A aprendizagem da linguagem oral – o discurso ......................................................................................39 A linguagem oral e os seus desvios de manifestação .............................................................43 O que é normal e patológico na aquisição da oralidade ...........................................................................43 Os desvios da fala .....................................................................................................................................43 A apropriação de instrumentos culturais de representação .....................................................47 O desenho como representação da linguagem oral ...................................................................................47 O brincar com objetos e a representação mental .......................................................................................47 A apropriação da linguagem escrita .......................................................................................51 Os registros sociais e o interesse das crianças ..........................................................................................51 Quando os traços ganham sentido ............................................................................................................51 Desenhando as palavras na boca ...............................................................................................................51 A linguagem escrita: letramento ............................................................................................55 A aquisição da linguagem escrita como um processo de letramento ........................................................55 A aquisição da escrita e a tomada de consciência das relações sociais ....................................................56 O que é normal e patológico na linguagem escrita ................................................................63 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Aspectos cognitivos da leitura e da escrita ............................................................................67 Como se dá a cognição da linguagem, da leitura e da escrita ....................................................................67 Sucesso, fracasso e leitura escrita ..........................................................................................71 Como a escola deve fazer uso da linguagem? ...........................................................................................71 A escola que fala a linguagem da sua realidade ........................................................................................71 Ler e escrever a realidade social e individual ............................................................................................72 Referências .............................................................................................................................75 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br As diferentes linguagens da linguagem O que vem a ser linguagem? N o momento em que você põe os olhos num texto, você o lê. Por que você leu? Que proprie-dade é esta que as palavras tem de fazer com que você retire delas formas constantes de um repertório de imagens e significados? Placas, sinais, ruas, filmes, livros, bilhetes, todas essas manifestações só existem porque existe linguagem. Agora, lembre-se de sua infância, mais precisamente de sua época de aluno alfabetizan- do ou de um fato ocorrido neste período. Como você o fez? Percebeu o papel deste discurso interno ou interior? Ele possibilitou a busca de eventos na sua memória à medida que você conversou e falou consigo. Lembre-se da novela, da emoção representada pela ação da vilã, pelo beijoapaixonado do par romântico. Sim, além de possibilitar uma convivência social, a linguagem cria e desperta emoções, sentimentos e memórias. Já que estamos abordando a memória, lembramos que o estudo da história do homem é dividido em período pré-histórico (o homem sem a escrita) e a história (após a invenção da es- crita). Ou seja, o homem, gradativamente, enquanto agia sobre o mundo natural, foi criando um poderoso instrumento que lhe permitiu agir não só com o meio natural, mas com o meio social. Como consequência, transformou e continua transformando as pessoas à proporção que este ins- trumento evolui socialmente. Um bom exemplo disto, atualmente, está na substituição do apagar pelo deletar, contingência da era da informática na linguagem cotidiana. Como você percebe, a linguagem é um instrumento poderoso para que a nossa mente pos- sa operar, ela está viva na nossa mente. Mas, ao pensarmos assim, uma grande dúvida sempre nos vem à cabeça: como a linguagem chegou até a minha mente? Ela é uma apropriação? Ou ela é um dom da espécie? Por que cada uma das culturas possui idiomas característicos à sua comunidade? Por que a nossa linguagem se transforma quando frequentamos lugares diferen- tes em nosso país? Ao conseguirmos falar e nos comunicar com diferentes grupos culturais dentro e fora de nossa cultura, será que entendemos como a linguagem inicial, ou a língua materna, chegou à nossa mente? Que contribuições a Linguística e a Psicolinguística têm para nos ajudar no entendimento do processo de uso e da aquisição da linguagem? A proposta de abordagem deste tema está relacionada à linguagem enquanto prática social. Vê-se nesta perspectiva uma linguagem viva e dinâmica, que se transforma socialmente e que os sujeitos de interação com esta linguagem devem apropriar-se para estar participando ativamente da realidade social na qual estão inseridos. Afinal, nos humanizamos à medida que nos apropriamos do uso e da forma da linguagem e, como educadores, somos os elementos mediadores da apropriação deste instrumento pelas crianças em seu processo de humanização. 5 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br alici Realce Porém, esta perspectiva não é pertinente a todas as escolas linguísticas; algumas fazem seus estudos de maneira diferenciada àquela que estaremos abor- dando. Este aspecto diferenciado de olhar a linguagem e sua aquisição pode nos levar a ver a aprendizagem da linguagem de outra forma e, por consequência, encararmos o processo de constituição dela como algo incapacitante ou de problema no desenvolvimento da criança que aprende. Assim, vamos começar a nossa abor- dagem sobre linguagem mostrando as mais diferentes formas de entendê-la. As abordagens da linguagem Na literatura existem diferentes formas de se abordar a linguagem, mas, basicamente, estas diferentes abordagens emergem de três grandes vertentes. A primeira vertente é aquela que busca entender a linguagem como algo externo ao indivíduo. A segunda vertente é a que crê que a linguagem é um fenômeno inter- no, do cérebro humano e está vinculada à natureza inata do ser. E uma terceira proposição é a da natureza social, na qual vemos a linguagem como uma constru- ção inteligente do homem e que, pela prática dialógica, vai sendo ressignificada de sujeito para sujeito à medida que homens e sociedade evoluem. Na primeira situação, a da linguagem como algo externo ao sujeito, ela é um produto da comunicação entre os seres e é constituída de um conjunto de regras e formas com o qual os sujeitos devem fazer uso no momento necessário. A lingua- gem é vista como um código, algo que está posto e seu conjunto está estruturado de forma fonológica, sintática e semântica e, para tornarmos sujeitos que fazem uso da linguagem, devemos usá-la com todas as suas características estruturais. Ela pode ser representada pelo diagrama a seguir: CÓDIGO EMISSOR RECEPTOR MENSAGEM Assim, só existe troca de informações se o receptor e o emissor estiverem utilizando o mesmo código. Esta forma de ver a linguagem ainda é muito prati- cada nas escolas, já que os processos estruturais da língua prevalecem no ensino e que todos devem escrever e falar da mesma maneira, a chamada norma culta. Neste processo não se considera, na maior parte das vezes, as variantes culturais e individuais de cada sujeito. Na segunda perspectiva, a da representação, entende-se a linguagem como uma capacidade inerente aos humanos, ou seja, ela é um produto da mente e está predeterminada a aparecer na vida do sujeito à medida que seu corpo e cérebro tornam-se maduros e as áreas cerebrais disparam este potencial de linguagem. Aqui percebemos a influência marcante dos estudos psicológicos e biomédicos para entender esta vertente. As diferentes linguagens da linguagem 6 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br alici Sublinhado alici Sublinhado alici Realce alici Sublinhado Acredita-se que por nascermos imaturos e com um cérebro em desenvolvi- mento, ao chegarmos a esta maturidade começamos a construir imagens internas, produto de nossa interação gradativa com o meio, e nossa mente passará a repre- sentar o mundo interno mediante o uso de áreas cerebrais especializadas para a linguagem. Esta forma de ver está, muitas vezes, relacionada à prática psicológica ou biológica da imaturidade, ou seja, a criança não fala ou não escreve porque ainda é imatura ou porque seu cérebro ainda não representa as experiências cog- nitivas necessárias à linguagem, ou então porque possui um distúrbio. A terceira perspectiva está vinculada à ideia da linguagem como uma prá- tica social, ou seja, ela surge da necessidade do homem em viver em grupos e a constituir um instrumento que lhe permitisse realizar trocas com seu grupo social. Assim, à proporção que o homem foi tendo vida social e transformando a natureza, foi criando mecanismos para deixar suas marcas por meio da cultura. Desta forma, ele necessitava de instrumentos e do seu grupo social para manter estas aquisições e continuar evoluindo com as gerações seguintes. Com isto, suas marcas no mundo e suas ações passaram a ser interpretadas e resignificadas pelos integrantes da sua sociedade. E, em um processo dinâmico e criativo, foram sendo repassadas aos diferentes membros, tornando-se parte in- tegrante deste grupo. Mas este não era um modo rígido de comunicação, existiam diferentes interpretações, o que caracteriza um diferente modo de representar o que é realizado pelo grupo e por cada sujeito. Da mesma forma, hoje entendemos as sociedades que criam seus próprios ritos e formas de comunicação, nos quais gestos e falas são ressignificados e interpretados pelos mais diferentes grupos sociais e culturais. Esta forma de ver a linguagem não a torna um código restrito, nem um dom da pessoa, mas a vê como uma construção dialógica, criativa e transformadora à medida que homem e sociedade se transformam com a produção de instrumentos culturais e simbólicos da sociedade. 1. Converse com seu colega de turma e pergunte se ele já vivenciou situações em que uma falha de comunicação levou-o ao engano, se ele conhece alguma pessoa que após uma doença perdeu a linguagem, ou se ele já viu cartazes/propagandas com falhas, mensagens confusas ou linguajar popular. As diferentes linguagens da linguagem 7 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br alici Realce 2. Identifique em seu grupo social pessoas de outras localidades e culturas e analise as dife- rentes manifestações da linguagem presentes na fala destes indivíduos. Elabore uma amos- tra e converse com o grupo. As diferentes linguagens da linguagem 8 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br As linguagens e as relações sociais Linguagem, cultura e cognição É interessantepercebermos as diferenças que surgem em um diálogo entre duas pessoas. Se você imaginar a situação a seguir podemos entender melhor do que se trata. Imagine que você foi ao Fórum de sua cidade, acompanhando um colega que tem uma audi- ência judicial. Uma pessoa, aparentando péssimas condições de vida social e cultural, entra, aborda seu amigo e lhe pede um auxílio. Seu amigo, preocupado e nervoso porque está a ponto de entrar na audiência, responde bruscamente a esta pessoa, mas ao chegar à antessala do julgamento encontra seu advogado e conversa com ele de maneira muito educada e firme. Imediatamente seu amigo é chamado à sala de julgamento e então, em um tom de voz diferenciado, humilde e submisso busca explicar os acontecimentos ao juiz. Como você analisaria este caso? Que relações existem em cada uma destas situações? Que as- pectos da linguagem se encontram presentes nesses diferentes momentos? O que aconteceu nessas situações reflete as diferentes manifestações que a linguagem assume em nossa sociedade. Usamos a linguagem como elemento de posicionamento social e cognitivo. No ambiente em que vivemos, ter acesso ao conhecimento e às formas de sua produção nos colocam de forma diferenciada em relação aos que não os têm. Assim, a linguagem faz com que possamos assu- mir papéis sociais, autoafirmarmos sobre quem somos ou deixamos de ser, e ela manifesta o interior dos pensamentos da pessoa que fala. As questões sociais representadas nas diferentes manifestações da cultura Quanto ao aspecto cultural, o fato de nos apresentarmos em diversas situações cotidianas possi- bilita, na hora da troca de informações com o outro, sabermos em que posição estamos e conhecermos nosso limite em relação ao que falamos. Sabemos nos comportar adequadamente, pois construímos a nossa consciência humana nestas trocas, e percebemos com isto que a forma e o modo de falar com o outro reflete a nossa cultura. Em nossa sociedade, as pessoas com quem convivemos também manifestam este tipo de atitude por meio da sua linguagem. Esta diversidade nos leva a construir a consciência de quem somos, como e com quem queremos conviver e participar nossas questões. Soares (2001) nos coloca de modo claro esta questão quando nos diz: É no processo de enunciação que se constituem os sentidos; esse processo e, portanto, esta constituição de sen- tidos é determinada pelo contexto em que esse processo ocorre, entendendo por contexto, aqui, não apenas as 9 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br As linguagens e as relações sociais 10 condições pragmáticas imediatas, mas, sobretudo as condições e circunstâncias sociais; essas condições e circunstâncias sociais variam em diferentes grupos sociais, portanto, os processos de enunciação constroem diferentes sentidos em diferentes grupos sociais (de pensar, sentir, perceber). Desta forma, além do contexto individual em que nos colocamos, podemos saber que o contexto de sociedade também se reflete na linguagem, pois se esti- vermos imaginando o que se representa com o papel da pessoa que pede auxílio na situação exemplificada no início deste texto, veremos que nela estão represen- tadas as mazelas sociais da falta de oportunidades, da dimensão capitalista e da dimensão antropológica. Ou seja, a linguagem que se usa e pratica na sociedade reflete a cultura e sociedade em que vivemos. Outro aspecto relevante da linguagem é ela poder estar relacionada ao conhecimento individual de cada um. Na perspectiva de Vygotsky, citado por Luria (1994, p. 196), a consciência é um sistema estrutural com função semân- tica, desta forma relaciona a tomada de consciência com a apropriação dos signi- ficados produzidos pelos instrumentos culturais desenvolvidos pela sociedade na qual este sujeito se insere. Góes (2000, p. 81, apud CEDES 24), ao se referir à natureza social das fun- ções psicológicas, afirma que “elas emergem e se consolidam no plano de ação dos sujeitos, tornam-se internalizadas, isto é, transformam-se para construir o funcio- namento interno”. Pela transformação entende-se não se tratar de uma consciência preexistente que se atualiza, tornando assim uma base biológica ampliada, mas sim da criação de um novo modo de funcionar no qual o sujeito é o regulador. Entende-se então que a apropriação tem-se na reconstrução interna do su- jeito, e não em uma cópia dela, modelos dos modos de ação do outro e as re- presentações dos atos produzidos por ele. Este modo de autorregulação (GÓES, 2000 apud CEDES 24) é o fundamento do ato voluntário, sendo assim o modo pelo qual a criança começará a internalizar os processos sociais, importantes na aprendizagem do uso dos instrumentos práticos e na internalização dos elementos semióticos da linguagem. Desta forma ela reflete o modo como cada um de nós representa individualmente sua sociedade. Regionalismos Então, se a linguagem representa um universo social e um universo in- dividual, ao conversamos com as pessoas podemos entender que, ao se expressa- rem, elas trazem a região, a cultura e as formas de ver e compreender o mundo. Assim, percebemos que na fala do nordestino brasileiro, no gaúcho, no mineiro, seu linguajar traz uma quantidade variada e interessante de costumes, crenças e conceitos que não encontramos mais em regiões do litoral do Sudeste. O regiona- lismo de um país com dimensões tão grandes ou de culturas tão distintas, como o Brasil, reflete sua história, hábitos e costumes. Assim, devido aos fluxos migra- tórios de uma sociedade em busca de oportunidade, não é raro você encontrar em uma sala de aula pessoas com diferentes formas de ver o mundo e concebê-lo. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br As linguagens e as relações sociais 11 Cultura, educação e poder Da mesma forma que a linguagem revela diferentes culturas, regiões e lin- guajares, ela também espelha uma dimensão de poder. Muitas pessoas impõem seus modos e costumes com a força de sua posição social, cultural ou até mesmo cognitiva para diferenciar-se de outras que não tiveram o acesso às formas mais elaboradas de conhecimento e de linguagem. No Brasil, não é difícil encontrarmos pessoas que abusam da fala “Você sabe com quem está falando?” como uma forma de discriminação e preconceito dentro da mesma sociedade. Temos então de ficar atentos para utilizarmos a linguagem como um instru- mento de humanização e de construção de sujeitos socialmente ativos. Uma vez que, como educadores, dentro desta perspectiva dialógica e social de fazer uso da linguagem, representamos os instrumentos de humanização pelo nosso apelo comprometido com a sociedade. A linguagem na escola: um olhar sob a perspectiva da economia das trocas linguísticas Maria Celeste Said S. Marques A Sociolinguística ao explicar a covariação entre os fenômenos linguísticos e os fenôme- nos sociais, revela as diferenças de dialetos determinadas pela classe social do falante. Hoje, na escola brasileira, essas diferenças geram antagonismos acentuados por estarem presentes classes sociais que historicamente dela estiveram ausentes. Os professores, quase sempre de classe média, não percebem que muitos alunos nem entendem o vocabulário mais elaborado usado na escola. Por vezes, nem compreendem muitas palavras usadas pelas crianças; nem percebem que tais palavras fazem parte da rica herança cultural do grupo social a que pertencem. Grande parte das pesquisas e estudos feitos a respeito das causa do fracasso escolar, principal- mente entre crianças vindas de ambientes mais pobres, demonstram que uma das dificuldades está na área da Linguagem. A perspectiva de Bourdieu sobre a economia das trocas linguísticas é muito produtiva para se compreender os problemas de linguagem que ocorrem na escola, pelo fato de ter deslocado o ângulo de análise da caracterização da linguagem para a caracterização das condições sociais onde ocorre.Para o autor, na sociedade capitalista, os bens materiais (como a força de trabalho, as mer- cadorias, os serviços) e os bens simbólicos (como os conhecimentos, as obras de arte, a música, a linguagem etc.) circulam em relações de trocas desiguais. As relações de forças materiais separam os dominantes dos dominados por meio da posse dos meios materiais e as relações de Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br As linguagens e as relações sociais 12 força simbólicas através dos meios simbólicos. Dessa forma, segundo o referido autor, “não se deve esquecer que as trocas linguísticas – relações de comunicação por excelência – são tam- bém relações de poder simbólico onde se atualizam as relações de força entre os locutores ou seus respectivos grupos” (p. 24). Conforme Bourdieu, o modelo de produção e circulação linguística é uma relação entre os habitus linguísticos (as disposições, socialmente modeladas) e os mercados linguísticos nos quais eles oferecem seus produtos. A sua análise da economia das trocas linguísticas oferece instrumentos para se compreender fenômenos relativos à produção, distribuição e consumo da linguagem inscritos nas relações sociais, entre elas, a escolar. Escola: um mercado linguístico Na escola, os locutores (sobretudo, professores e alunos) instauram relações de co- municação linguística em condições sociais concretas que, segundo Bourdieu, funciona como um mercado linguístico. Desde os primeiros anos de escola, a criança (sobretudo das camadas populares) começa a aprender uma língua estranha, que raramente é a sua ou de seus pais: trata-se da língua escolar padrão, a única reconhecida pela escola como correta. Toda a maneira espontânea de falar da criança (expressões, frases, pronúncia etc.), que não correspondem às normas da língua escolar, é constantemente corrigida, reprimida, penali- zada pelo professor para que, de correção em correção, todas as crianças falem a língua exigida pela escola. Se a criança demonstra não saber exprimir o que deseja, se não consegue entender di- reito as explicações do professor, nem consegue fixar instruções um pouco longas, ou se tem vergonha de falar na escola, muitas vezes a dificuldade é entendida como tendo origem na criança e que ela deve ser corrigida. Entretanto, em sua casa, essa criança consegue se comu- nicar perfeitamente, de falar a Língua Portuguesa com desembaraço em várias circunstâncias de sua vida. Segundo Bourdieu (1998, p. 32): A língua oficial está enredada com o Estado, tanto em sua gênese como em seus usos sociais. É no processo de constituição do Estado que se criam as condições da constituição de um mercado linguístico unificado e dominado pela língua oficial: obrigatória em ocasiões e espaços oficiais (escolas, entidades públicas, insti- tuições políticas etc.), esta língua de Estado torna-se a norma teórica pela qual todas as práticas linguísticas são objetivamente medidas. Ninguém pode ignorar a lei linguística que dispõe de seu corpo de juristas (os gramáticos) e de seus agentes de imposição e controle (os professores), investidos do poder de submeter uni- versalmente ao exame e à sanção jurídica do título escolar o desempenho linguístico dos sujeitos falantes. Muitas crianças, para não correrem o risco de serem criticadas por falar errado, prefe- rem calar a boca e reduzir o que tiverem de escrever ao mínimo possível, para não se expor às observações do tipo pobreza de vocabulário, falta de sentido, erro ortográfico etc. Segundo a perspectiva de Bourdieu, as palavras são bens que são trocados, na escola. O falante (o aluno) coloca seus produtos nesse mercado linguístico que é: Estritamente sujeito aos veredictos dos guardiões da cultura legítima, o mercado escolar encontra-se estri- tamente dominado pelos produtos linguísticos da classe dominante e tende a sancionar as diferenças de ca- pital preexistentes. O efeito acumulado de um fraco capital escolar e de uma fraca propensão a aumentá-lo através do investimento escolar que lhe é inerente condena as classes mais destituídas às sanções negativas do mercado escolar, ou seja, à eliminação ou à autoeliminação precoce acarretada por um êxito apagado. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br As linguagens e as relações sociais 13 Os desvios iniciais tendem, portanto, a se reproduzir, pelo fato de que a duração da inculcação tende a variar tanto quanto seu rendimento, fazendo com que os menos inclinados e menos aptos a aceitar e a adotar a lin- guagem escolar sejam também os que se expõem menos tempo a essa linguagem, bem como aos controles e sansões escolares. (BOURDIEU, 1998, p. 50) Com efeito, Bourdieu reflete sobre a relação professor-aluno, mostrando-a como tensa e não instaurada sobre a singularidade dos alunos. Caminhando nessa mesma direção de análise, Alkmin afirma que é necessário muito mais [...] pensar a realidade social do que a realidade linguística. Sabemos que a utilização da língua é regida por um conjunto de regras sociais que regulam a pertinência ou não, a adequação ou não dos comportamentos linguísticos. Ou seja, tanto para a escrita como para a fala, existem restrições e assentimentos quanto ao seu uso: há punições previstas para quem infringe essas regras que vão desde estar exposto à galhofa até não ser aceito em empregos, por exemplo. Não podemos perder de vista que a hierarquização das formas linguísticas é calçada em valores que refletem a estrutura de uma sociedade, no caso da nossa, a de uma sociedade de classes. No mercado linguístico, por exemplo, o escolar, em que a modalidade de linguagem legíti- ma domina e se impõe, o aluno aprende também as condições de sua aceitabilidade, que Bourdieu (1998) chama de aceitabilidade sociológica e não linguisticamente como faz Chomsky; para ele, aceitabilidade não é apenas o uso da língua intuitivamente gramatical ou normal (como diz Chomsky), mas um uso da língua que engloba tanto as leis propriamente linguísticas da grama- ticalidade internalizadas pelo falante quanto a formação de preços característicos do mercado em questão. Isto significa que “as condições de recepção antecipadas fazem parte das condições de produção, e a antecipação das sanções do mercado contribui para determinar a produção do discurso” (BOURDIEU, 1998, p. 64). Em suma, a escola é lugar onde a aquisição do capital cultural e do capital linguístico pelo falante acontece por meio de um processo formal e intencional de inculcação de regras explícitas. O mercado linguístico escolar tem a especificidade de ser uma instância social a ser- viço do mercado cultural e linguístico dominante para reproduzir e difundir a linguagem legítima que confere aceitabilidade. Dessa forma, é oportuno perguntar: como a escola trata das diferenças dialetais? É o que se discutirá a seguir. O dialeto e língua legítima Todo falante nativo usa sua língua de acordo com as regras específicas de seu dialeto, reflexo da comunidade linguística a que pertence. Dessa forma, há diferenças entre as regras de um modo de falar de um dialeto e o de outro. Como afirma Alkmin (1991, p. 25), “a língua é um complexo de variantes e não existe superioridade de uma variedade sobre a outra”. No entanto, nem todos possuem o mesmo valor no mercado, visto que a presença de grupos hierar- quizados é a condição para a instauração de relações de dominação linguística. Como explica Bourdieu, no mercado linguístico (e, neste ensaio, em particular o escolar), o valor dos produtos linguísticos (seu preço) rende lucro para o falante, cujas características linguísticas correspon- dam às posições econômicas e sociais privilegiadas. A linguagem legítima é aquela dos grupos dominantes. Ela se converte em capital linguístico, favorecendo a obtenção de lucro por aqueles que o detêm. Com efeito, conforme Bourdieu (1998, p. 41) [...] ao privilegiar as constantes linguisticamente pertinentesem detrimento das variações sociologicamente significativas para construir este artefato que é a língua comum, tudo se passa como se a capacidade de falar, mais ou menos universalmente difundida, fosse identificável à maneira socialmente condicionada de realizar esta capacidade natural, cujas variedades são tantas quanto as condições sociais de aquisição. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br As linguagens e as relações sociais 14 Para Bourdieu, as diferenças linguísticas de pessoas provenientes de diferentes regiões se encontram relegadas ao inferno dos regionalismos, das expressões viciosas e de erros de pronúncia que os professores corrigem. “Reduzidos ao estatuto de jargões idiomáticos ou vulgares, igualmente impróprios em ocasiões oficiais, os usos populares da língua oficial sofrem uma sistemática desvalorização” (p. 40). No mesmo mercado linguístico, as pessoas podem ter a mesma competência linguística. No entanto, o discurso depende da posição do falante do mercado linguístico para poder ser reconhecido como linguagem legítima e assim se transformar em capital linguístico. Em de- corrência disso, Bourdieu critica o conceito de competência linguística como formulado por Chomsky porque “escamoteia a questão das condições econômicas e sociais de aquisição da competência legítima e de constituição do mercado onde se estabelece e se impõe esta defi- nição”. Contra a competência linguística (abstrata) de Chomsky, sugere o conceito de capital linguístico, que remete à competência necessária para falar a língua legítima, visto que esta tem um mercado linguístico que confere autoridade, poder e dominação ao falante. A comunicação pedagógica no mercado escolar O mercado cultural e linguístico é socialmente dotado de critérios de avaliação que con- ferem legitimidade aos bens simbólicos, como a própria linguagem dos grupos dominantes eco- nômica e socialmente. Com efeito, a cultura e a linguagem desses grupos são transformados em capital cultural e linguístico e sua aquisição e domínio torna-se uma exigência no mercado dos bens simbólicos enquanto que a cultura e a linguagem dos grupos dominados são depreciados. Uma das especificidades mais importantes da escola é ser um mercado linguístico que usa e ensina a linguagem legítima por meio da comunicação pedagógica, que tem como característica distintiva a de ser uma relação de força simbólica no grupo constituído pelos professores e pelos alunos. O papel do professor, na comunicação pedagógica, é o de inculcação da cultura (capital cultural) e da linguagem legítima (capital linguístico). No entanto, essa comunicação pedagógica é fundamentada em bases desiguais. Os alunos das classes dominantes, ao chegarem à escola, estão em condições de usar o capital cultural e o capital linguístico escolarmente rentável, visto que estão familiarizados com eles em seu grupo social; já dominam, ou podem facilmente dominá-los. Entretanto, os alunos das camadas populares familiarizadas com sua linguagem, que é considerada pelo mercado linguístico como não legítima – como diz Bourdieu, não reconhecida socialmente – ao chegarem à escola, em geral, fracassam, visto que a comunicação pedagógica não atinge o objetivo de fazê-los adquirir os bens simbólicos que constituem o capital cultural e linguístico legítimos. O fato de não dominarem a linguagem da escola se torna difícil para compreenderem e se expressarem na comunicação pedagógica. E por não disporem do capital linguístico escolarmente rentável, muitos alunos fracassam na escola. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br As linguagens e as relações sociais 15 A comunicação pedagógica envolve atividades que, em geral, caracterizam-se muito mais pelo reconhecimento da linguagem legítima do que seu conhecimento. O ensino da língua caracteriza-se pelo estudo da gramática da língua legítima, leitura de textos sempre escritos em língua legítima, correção da linguagem oral e escrita dos alunos conforme os pa- drões da língua legítima. Consequentemente, para os alunos das classes dominantes, o ensino constitui além de uma didática do reconhecimento que já possuem da língua legítima, um aper- feiçoamento da capacidade de produção e de consumo do conhecimento. Todavia, para os alunos pertencentes às camadas populares, a escola possibilita, em geral, apenas o reconhecimento que existe uma maneira de falar e escrever considerada legítima e que é diferente daquela que conhecem e dominam. Tal reconhecimento se inscreve, para Bourdieu (1998, p. 37-38), “em estado prático nas disposições insensivelmente inculcadas pelas sanções do mercado linguístico”. Com efeito, a escola não leva esses alunos a conhecer essa outra ma- neira, isto é, não os leva a produzi-la e consumi-la eficientemente, aumentando, assim, a distân- cia entre a linguagem das classes populares e o capital linguisticamente social e escolarmente rentável. Segundo Bourdieu (1998, p. 50), “os mecanismos sociais da transmissão tendem a garantir a reprodução da defasagem estrutural entre distribuição (bastante desigual) do conhe- cimento desta língua legítima e a distribuição (muito mais uniforme) do reconhecimento desta língua”. Dessa forma, os bens simbólicos das classes dominantes e a comunicação pedagógica le- gítima são instrumentos para o fracasso escolar das classes populares, contribuindo, assim, para a perpetuação dessas classes como dominadas e para perpetuação da estratificação social. Retomando a discussão, cabe entender as implicações desse modo de ver a educação. A análise de Bourdieu fornece-nos importantes esclarecimentos a respeito do sistema educacio- nal e dos processos de ensino e seleção, especialmente com relação à natureza classista desses processos. Entretanto, do ponto de vista do desenvolvimento de uma sociolinguística alternativa, para compreender a educação há limitações. Substancialmente, uma educação vista à luz da linguagem como um mercado linguístico não sugere uma disponibilidade para a mudança, na medida em que implica dispor o aluno numa relação estereotipada com a precariedade do próprio momento. Logo, não é possível pensar-se num processo educacional com fronteiras determinadas entre educação e o mercado linguístico, sem o risco de alijar da escola o próprio processo constitutivo de sujeitos. Nessa perspectiva, a escola não é o campo de luta contra o fra- casso escolar das camadas populares e sim um instrumento e causa para a divisão da sociedade de classes. A solução dos problemas está na eliminação das discriminações e das desigualdades sociais e econômicas. É inegável a relação entre escola e sociedade, mas também é verdade que muitas “dificuldades e problemas do ensino de língua materna podem ser resolvidos no âmbito de discussões pedagógicas e didáticas” (ALKMIN, 1991, p. 26). Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br As linguagens e as relações sociais 16 1. Organize grupos com os seus colegas de curso, nos quais sejam utilizados como exemplo situações onde haja a necessidade de se pedir um aumento de salário para o chefe autoritário, uma conversa com o delegado onde você foi vítima de um roubo e a professora que conversa com um aluno que está com dificuldades escolares. Compare as propostas com as demais pessoas e perceba, com a ajuda do texto, as diferentes maneiras de usar a linguagem. 2. Analise, depois da atividade anterior, que papel teve o seu planejamento mental para a realiza- ção da tarefa e discuta com os demais. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br A história do homem é a história da linguagem Aspectos biológicos do surgimento da linguagem E ntender a linguagem como uma prática social implica em entender o homem como um ser so-cial. Para entendermos o homem desta forma é preciso conheceras grandes transformações que ele sofreu ao longo de sua existência. A estação em pé, a liberação da mão e a configuração da face fizeram do hominídeo um ser diferente dos demais seres biológicos. Em primeiro lugar pelo desenvolvimento do próprio cérebro, que passa de 800cm3 nos primeiros hominídeos para aproximadamente 1 500cm3 no homem atual. Estas transformações causaram grande impacto na vida humana à medida que, por estar em pé, ele muda seu centro de gravidade e, por consequência, sofre as influências de uma nova postura na prole, que começa a nascer prematura devido a esta nova posição. Esta condição obriga ao homem formar grupos fixos de convivência, ou grupos sociais, pois as grandes saídas levavam à morte dos descendentes imaturos. Ao fixar residência, o homem então precisa criar meios de sobrevivência. Assim, segundo Pino (1993), “tais transformações estão na origem da atividade produtora do ho- mem. Esta atividade se manifesta, de forma particular, na produção de instrumentos – com os quais o homem transforma a natureza, imprimindo-lhe sua marca”. Desta forma começa a transformação do meio natural pelo homem, que cria condições para sua sobrevivência por modificar a condição natural das coisas. Uma vez a mão liberada, ela assume papel multifuncional, pois com ela o homem transforma as coisas naturais em artificiais, dando a estas uma função instrumental ou mediadora da intervenção do homem sobre a natureza. Por outro lado, esta mesma mão criadora, ao associar-se ao instrumento cria a técnica e o gesto, formas de expressão da maneira pela qual o homem modificou o ambiente. O mico tem mãos desajeitadas porque todos os seus dedos se movem de uma só vez. Os dedos das mãos de outros macacos movem-se melhor, mas somente o polegar do chimpan- zé e do homem é capaz de encostar nos outros dedos e segurar até mesmo uma bolinha. Observe o desenho: mico chimpanzé macaco homem Pela nova configuração da face, o reposicionamento da laringe, mais abaixo do que quando o homem apoiava as mãos no chão, permite o surgimento do som. Esta possibilidade associada ao que foi proporcionado pela mão faz com que técnica e movimento criem o gesto e a comunicação, fatores característicos da linguagem. 17 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br A história do homem é a história da linguagem 18 A necessidade de manter-se em grupo para sobreviver Analisando estas características no âmbito de um grupo social, podemos perceber a emergência de um conjunto de modos de representação comum a este grupo. Afinal, quando um grupo usa os mesmos sistemas de representação e de simbolização, estão valendo-se de características de uma língua como ins- trumento de comunicação de um povo. Assim, o homem passou a criar uma ação diferenciada dos demais seres. Uma ação ativa pois, segun do Pino, porque “está marcada pela atividade produtora que a transforma de acordo com os projetos elaborados em função de determinados objeti- vos”, e também uma ação dialética pois “ao transformar a natureza, o homem trans- forma-se desenvolvendo funções mentais e suas habilidades técnicas” (1993, p. 10). Levando em conta que desde a criação destas habilidades e instrumentos culturais o homem vem produzindo cultura, percebemos que a história do homem é transmitida dentro da própria escola. Então, estudamos o homem desde a sua pré-história, e quando analisamos os instrumentos produzidos pelo mesmo vemos que quando ele vai transformando a natureza, vai elaborando instrumentos mais sofisticados e técnicas mais elaboradas para a sua produção. História da linguagem – história do homem no mundo Tem-se como claro que a grande entrada do homem na história está vincu- lada a mais uma de suas invenções: a escrita. Depois dela, o homem pode ser es- tudado e analisado por suas obras simbólicas construídas e constituídas mediante aquilo que ele mesmo registrou. E nestes registros estão marcadas suas conquistas sobre o mundo dos homens e sobre a natureza. Desta forma, nos dias de hoje, a criança nasce imersa neste tipo de mundo, um mundo cultural-histórico que foi produzido e mantido por meio das gerações e pelo incessante papel da criação humana. Se hoje podemos nos posicionar em uma sociedade da informação, a tecnologia (instrumentos) e a linguagem (mediação sígnica) contribuíram para que cada um se aproprie dela no momento do tempo pre- sente em que vive, sem deixar de entender pela própria linguagem, oral ou escrita, a história de sua vida, de seu povo e de outros povos. Assim, a criança nasce com as marcas humanas da espécie, mas estas marcas não lhe dão a condição humana. Segundo Pino, esta advirá “como resultado da sua convivência em uma comunidade humana onde deverá se apropriar das caracte- rísticas, das habilidades e os saberes produzidos por ela”. Portanto ao apropriar-se, a criança desenvolve-se, torna-se humana, pois torna-se alguém capaz de tomar a posse das produções culturais e históricas pertinentes a sua vida, constrói pela ati- vidade sua condição humana. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br A história do homem é a história da linguagem 19 Percebemos então que a linguagem, enquanto instrumento de transmissão da cultura e dos saberes elaborados, transforma-se em instrumento de criação de um mundo de representação construído nas interações que a criança fará com sua realidade cultural. 1. Pense na frase: “Parece que a cada dia que passa as crianças estão aprendendo cada dia mais cedo”. Explique o papel que a tecnologia pode causar no desenvolvimento da linguagem da criança atualmente. 2. Defina a palavra ecologia. Explique qual é a correlação entre ecologia, domínio da natureza e o impacto social sobre o desenvolvimento humano. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br alici Realce A história do homem é a história da linguagem 20 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Os estudos científicos da linguagem Os estudos da linguagem hoje O estudo da linguagem ocorre desde o surgimento da própria ciência. Buscar para ela uma origem já fez parte dos mais diferentes estudos ao longo da própria evolução social e cien-tífica. Os debates entre os papéis do ambiente ou do organismo na constituição dela esta até mesmo nos clássicos filosóficos pré-socráticos. Porém, à medida que a ciência vem evoluindo ao longo das civilizações e principalmente a par- tir dos princípios cartesianos de ciência, os debates sobre se a linguagem era uma questão biológica ou social acirrou-se criando entre os pesquisadores diferenças que os têm separado até mesmo nos dias de hoje. O ponto de vista biológico e o ponto de vista ambiental estiveram presentes nos estudos da Medicina, da Psicologia, da Linguística e da Filosofia. Aspectos comportamentais Com o avanço dos estudos e as descobertas do início do século XX sobre o papel do cérebro na linguagem, devido às áreas cerebrais e do ambiente, mediante a imitação ou condicionamento, esta questão aumenta ainda mais de importância. Assim, é muito comum que este debate sobre a origem social ou biológica venha a ser representado, ainda hoje, de diferentes maneiras. Afinal, a base do estudo que se busca ainda exerce influência determinante sobre o ponto de vista daquele que fala sobre linguagem. Para quem trabalha com a educação, esta temática se reveste de importância na medida em que cada dia mais cedo a criança está institucionalizada em escolas, e que o professor terá um papel ainda mais importante no desenvolvimento da linguagem. Portanto, é importante identificarmos como os cientistas construíram suas perspectivas sobre a linguagem e sua aquisição. Levaremos em conta as perspectivas que analisam o ambiente, a aptidão, os aspectos cognitivos e as que trazem a interação entre eles. Em primeirolugar, podemos definir os estudos por aqueles que descrevem a linguagem como um comportamento social aprendido por imitação direta ou por condicionamento. Esta escola conhecida por comportamentalista, defendida principalmente pelas ideias de B. F. Skinner. Este autor defende que a linguagem é produto da natureza humana e que a criança aprende esta linguagem por causa do ambiente a que estão expostas. Para tal, foram propostos dois mecanismos para esta aprendizagem: a imitação e o condiciona- mento. Por imitação defende-se que a criança vai moldando seu linguajar de acordo com a fala pro- duzida pelos adultos, ela repete as falas que eles produzem e à medida que ela realiza acertos destas falas, passa a fazer uso destas em seu repertório comportamental comum. 21 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Os estudos científicos da linguagem 22 Por condicionamento afirma-se que as crianças ouvem as elocuções e as- sociam-nas aos objetos e eventos em seu ambiente. Produzem estas elocuções e, então, são recompensadas pelos genitores que as cercam por terem conseguido falar sobre o evento ou objeto. Estes dois mecanismos extremamente simples de entender a linguagem ex- plicam alguns dos fatos que estão relacionados à aquisição da linguagem, mas não conseguem dar explicação para fenômenos mais complexos, como a argumentação ou a fala interna que permite a criança construir a sua própria elocução. Aspectos biológicos cognitivistas Outra base teórica muito estudada e difundida é a representada pela escola de Noam Chomski. Este autor estabelece que nós, humanos, somos pré-configura- dos biologicamente para desenvolver a linguagem. Ele fala isto fundamentado em estudos nos quais analisa a rápida capacidade neuropsicológica de a criança captar e processar os sons dos fonemas da língua, repeti-los e ir agregando a eles, grada- tivamente, outras estruturas (lexicais e semânticas) na aquisição da linguagem. Ele defende um dispositivo biológico que chama de dispositivo de aqui- sição da linguagem, que vai amadurecendo na proporção em que o cérebro vai recebendo os estímulos procedentes do meio ambiente e os organiza sob forma de sinais mentais. Justifica seu ponto de vista ao comparar o desenvolvimento de linguagem entre crianças surdas e ouvintes, e afirmar que as aquisições são quase da mesma forma e tempo. Analisa que as crianças têm períodos críticos para esta aquisição e que se estes períodos forem perdidos ou prejudicados, podem acarretar distúrbios de linguagem nas crianças. Nestes períodos, o ambiente tem fundamental im- portância para a estimulação destes dispositivos que proporcionarão o desenvol- vimento da linguagem. Estas duas escolas ou linhas de estudo sobre a linguagem ainda são bem difundidas nos dias de hoje. Muitos de nós poderemos estudar e pesquisar os es- tudos do comportamentalismo cognitivista de Bandura, um dos representantes da escola de Skinner, em que, mediante os estudos contemporâneos da mente humana propõe a análise da cognição como elemento capaz de explicar por que as crianças constroem discursos a partir dos princípios da imitação e do condicionamento. Também podemos realizar estudos sobre a perspectiva do processamento da informação, que propõe estudar os módulos mentais existentes no cérebro, caracterizando-os como processadores biológicos de informações sobre o desen- volvimento da linguagem. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Os estudos científicos da linguagem 23 Contribuição à Linguística Syntactic Structures foi uma destilação do livro Logical Structure of Linguistic Theory (1955), no qual Chomsky apresenta sua ideia da gramática gerativa. Ele apresentou sua teoria de que as oralizações ou discursos (quaisquer palavras, frases ou sentenças emitidas por uma pessoa) correspondem a estruturas superficiais abstratas, as quais, por sua vez, correspondem a estruturas profundas ainda mais abstratas (esta difícil distinção entre estruturas de superfí- cie e estruturas profundas não está mais presente nas versões atuais de sua teoria). Na teoria de Chomsky, regras transformacionais (juntamente com regras de estrutura de frases e outros princípios estruturais) governam ao mesmo tempo a criação e a interpretação das oralizações. Com um limitado conjunto de regras gramaticais e um conjunto finito de palavras, o ser huma- no é capaz de gerar um infinito número de sentenças, a incluir sentenças que ninguém ainda disse antes. Desta maneira, Chomsky concluiu que a capacidade para estruturar as oralizações é inata ao ser humano (isto é, é parte do patrimônio genético dos seres humanos) e que Chomsky chamou de gramática universal. Segundo Chomsky, nós não temos consciência desses princí- pios estruturais assim como somos não temos consciência da maioria das nossas outras proprie- dades biológicas e cognitivas. As recentes teorias de Chomsky (como o seu Programa Minimalista) são fortes reivindicações sobre esta gramática universal. Entre outras afirmações, Chomsky diz que os princípios gramaticais subjacentes às linguagens são completamente fixos e inatos e que as diferenças entre as várias lín- guas usadas pelos seres humanos através do mundo podem ser caracterizadas em termos de con- juntos de parâmetros cerebrais (como o parâmetro pro-drop, que indica se um sujeito explícito sempre é exigido, como no caso da Língua Inglesa, ou se pode ser opcionalmente deixado de lado, como no caso do Espanhol). Esses parâmetros são frequentemente assemelhados a interruptores (como os que acen- dem e apagam uma lâmpada). Daí o nome principles and parameters, frequentemente dado a este conceito. Nesta abordagem, uma criança que está a aprender uma língua precisa adquirir apenas e tão somente os itens léxicos necessários (isto é, as palavras) e os morfemas, para de- terminar os conjuntos apropriados de parâmetros. Este é um trabalho que ela pode realizar com base em apenas alguns exemplos primor- diais. Esta abordagem baseia-se na rapidez espantosa com a qual as crianças aprendem línguas, pelos passos semelhantes dados por todas as crianças quando estão a aprender línguas e pelo fato que as crianças realizam certos erros característicos quando elas aprendem sua língua-mãe, enquanto que outros tipos de erros aparentemente lógicos nunca ocorrem. Isto deve acontecer, segundo Chomsky, porque as crianças estão a empregar um mecanismo puramente geral (isto é, baseado em sua mente) e não específico (isto é, não baseado na língua que está sendo apren- dida). As ideias de Chomsky influenciaram fortemente alguns pesquisadores que investigavam a aquisição de linguagem pelas crianças, muito embora a maioria de pesquisadores que traba- lham nesta área atualmente não apoia suas teorias. Frequentemente, alguns deles preferem teorias emergentistas ou teorias conexionistas que se baseiam em mecanismos de processamento geral no cérebro. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Os estudos científicos da linguagem 24 Entretanto, praticamente todas as teorias linguísticas são controversas de maneira que pesquisadores estão a trabalhar atualmente na área de aquisição de linguagem, com a utilização da abordagem de Chomsky. (Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Chomski#Gram.C3.A1tica_Gerativa>.) 1. Por muitas vezes ouvimos de diferentes pessoas e profissionais, quando falam de uma criança que ainda não fala, que devemos aguardar um período de tempo para que ela fique pronta e pos- sa falar. Com base nesse comportamento, podemos identificar se essa pessoa acredita em uma linguagem aprendida por comportamento ou em uma linguagem inata? Explique os motivos que levam você a afirmar sua resposta. 2. Em outras circunstâncias, costumamos achar bonito quando uma criança faz uma troca tipo bola – boínha (como em: “Mãe! Cê viu minha boínha di futibói!”) e rimosachando engraçadinho, ou até fazemos cafunés pelo erro de ingenuidade da criança. Essa atitude pode ser considerada um reforçamento? A criança pode continuar a falar errado só porque rimos e a afagamos? Como deve ser a nossa atitude? Discuta. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br As perspectivas interacionistas de linguagem A aquisição da linguagem nas perspectivas interacionistas O estudo científico tem buscado compreender a linguagem a partir de perspectivas de estado em que ora são privilegiados os aspectos pertinentes ao corpo, ao inato a capacidade gené-tica do indivíduo, ora ao caráter ambiental, comportamental, imitativo ou condicionado de sua manifestação. Porém, desde o momento em que estas perspectivas encontraram dificuldades para explicar o todo, ou seja, o fenômeno da linguagem em seus múltiplos aspectos, outros autores buscaram superar estas perspectivas ao proporem novas formas de entender esta manifestação cognitiva e socialmente humana. Dentro destas proposições, manifestam-se e destacam-se as perspectivas interacionistas, en- tendidas como aquelas nas quais o biológico e o ambiental assumem papel ativo na constituição do sujeito, ou seja, que não existe fator preponderante, mas as influências são corresponsáveis. Os repre- sentantes desta visão de sujeito são Piaget, com sua proposta de epistemologia genética, e Vygotsky, com a perspectiva sociocultural. Para entendermos como estas perspectivas veem a linguagem, temos de analisar alguns dos fundamentos colocados por elas para explicar o desenvolvimento humano. O ponto de vista de Piaget A ideia de Piaget para o desenvolvimento humano está centrada em três aspectos: o relativismo genético, cujo define que a transmissão dos genes determina parte daquilo que somos como humanos; a ação como fonte do conhecimento, que estabelece que a criança descobre o mundo pelas suas ações sobre os objetos; e o processo dialético da equilibração, em que a sucessão de esquemas que o sujeito constrói pela sua ação irá formar estruturas cognitivas de conhecimento que, cada vez mais abrangen- tes, serão a base da inteligência do ser humano. Se Piaget entende a construção a partir do período sensório-motor, no qual a criança vai cons- truindo referências do mundo físico, mediante o abandono das atividades reflexas para as atividades voluntárias e destas para as simbólicas, a linguagem, sendo um processo cognitivo simbólico para ele, se manifestará depois que estas representações já estiverem construídas. Ou seja, para que a criança desenvolva a sua linguagem, esta deverá ser construída sobre a atividade do pensamento, tornando a linguagem uma forma de representação e expressão do pensamento. Desta forma, durante o período pré-operatório, a linguagem manifestará o pensamento egocên- trico (característico desta fase), ou seja, ele é desprovido da lógica social e restrito aos modos e for- mas com que a criança entende o mundo. Isto pode ser exemplificado quando a criança, em sua fala, 25 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br As perspectivas interacionistas de linguagem 26 manifesta a ideia que o sol a acompanha enquanto ela se desloca, demonstrando a sua interpretação dos fatos sem a lógica social inerente ao fenômeno (PIAGET, 1964). A conclusão final de Piaget, quanto ao papel da linguagem e do pensamento na construção das operações lógicas da criança, remete à própria construção da inteligência pelos seguintes motivos: a linguagem em si não explica o pensamento, visto que o pensamento tem suas ramificações anteriores ao fato linguístico, ou seja, no período sensório-motor, no qual a ação sobre objetos envolve mecanismos senso- riais e de movimento; o pensamento à medida que se especializa necessita sobremaneira da linguagem, mas como complementar a essas estruturas complexas; no processo de construção das operações lógicas, a linguagem é impres- cindível, pois possui um sistema simbólico inerente que permite a inte- gração de sistemas (sem essa integração as ações sucederiam-se infinita- mente), mas ela não é suficiente. Piaget esclarece suas concepções sobre egocentrismo e linguagem egocên- trica. O termo egocentrismo, segundo o próprio Piaget (1990), gerou algumas celeumas, as quais o autor procurou esclarecer. Segundo ele, ao lançar mão dessa nomenclatura intentava demonstrar a incapacidade da criança pré-operatória em deslocar-se de certo ponto de vista cognitivo. Quanto à linguagem egocêntrica, já descrita anteriormente, ela é alvo de uma série de inquietações: Piaget (1999) procurou verificar se haveria ou não uma linguagem egocêntrica especial diferenciada da linguagem cooperativa. Segundo o próprio epistemólogo, houve uma má compreensão dessa obra pois, em seu entender, as críticas localizaram-se demasiadamente no primeiro capítulo, como que ignorando o segundo e terceiro capítulos, que, sob sua ótica, teriam levado a compreender o significado real do conceito linguagem egocêntrica. Assim Piaget (1990) entabula algumas constatações sobre a linguagem ego- cêntrica que são frutos de sua abrangente obra. A primeira diz respeito à diversi- dade inerente aos ambientes e eventos, o que, sem dúvida, interfere numa possível medição da linguagem egocêntrica. Em contrapartida ao que pensava inicialmen- te, Piaget (1990) admite não possuir um instrumento que valide fidedignamente tanto o egocentrismo intelectual como o egocentrismo verbal. A segunda consta- tação é de que a linguagem egocêntrica ainda não teria sido suficientemente estu- dada, necessitando pesquisa mais detalhada das discussões infantis, sobremaneira no que diz respeito ao comportamento vinculado e acompanhado da linguagem. Assim, para ele, a linguagem vai tornando-se social à medida que a criança vai construindo esquemas de representação do mundo físico e social e, mediante a interação com pessoas e com objetos, vai entendendo as formas e os modos de re- presentações trazidas por estes. Desta maneira, existe uma construção sucessiva de esquemas de representação (atividade do pensamento) e que o jogo simbólico e a interação social vão transformar nas formas de linguagem socialmente aceitas. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br alici Sublinhado As perspectivas interacionistas de linguagem 27 A perspectiva de Vygotsky Para Vygotsky, nascemos imersos em um mundo em que os sistemas de relações estão constituídos ao longo de um processo histórico, ou seja, nascemos em grupos sociais que, por necessidade de sobrevivência, criaram códigos que servem para comunicar os conhecimentos adquiridos pelos mesmos aos demais integrantes e àqueles que estão iniciando na vida social, ou como nas palavras de Leontiev (1977, p. 267): Podemos dizer que cada homem aprende a ser um homem. O que a natureza lhe dá quando nasce não lhe basta para viver em sociedade. É-lhe preciso ainda entrar em relação com os fenômenos do mundo circundante, através de outros homens, isto é, num processo de comunicação com eles. Desta forma, podemos nos imaginar sujeitos sociais, ou participantes de um determinado grupo social, na proporção em que tomamos posse dos sistemas de comunicação, o que revela a nossa inclusão neste sistema social. Graças a esta participação social é que nos identificamos e criamos consciência de nosso papel na sociedade e da forma como nós podemos fazer parte dela, ou seja, quando par- ticipamos de interações sociais e trocamos conhecimento com os sujeitos de nosso grupo social, estamos nos constituindo sujeitos desta participação. Para Bakthin, “não nascemos organismo biológico, nascemos camponeses, aristocrata, proletá- rio ou burguês” (BAKHTIN, 1980, p. 34 apud FREITAS, p. 127). Assim, enquanto constituímos nossos modos de representação, criamos a expressão destes modos mediante a coordenação dos gestos e dafala, utilizando assim a palavra como expressão deste processo. Vygotsky (1987, p. 132) nos diz: O pensamento e a linguagem, que refletem a realidade de uma forma diferente daquela da percepção, são a chave para a compreensão da natureza da consciência humana. As palavras desempenham um papel central não só no desenvolvimento do pensamento, mas também na evolução histórica da consciência como um todo. Uma palavra é um micro- cosmo da consciência humana. Neste processo, o sujeito controla a sua conduta por meio da linguagem, que são signos submetidos às normas sociais e às regras convencionais, e não à linguagem baseada no domínio arbitrário e autônomo do signo. As funções psicológicas superiores são mediadas, isto é, nascem e vivem por meio da mediação dos instrumentos psicológicos, dos signos; sendo assim, elas são quase sociais. Toda esta questão está relacionada com uma linguagem de caráter discursivo, ligada à perspectiva histórica pelo conceito de atividade social definida por Vygotsky e que então fortalece seu conceito de fala, porém deixa claro que esta fala ainda não está a serviço do pensamento. Ele diz: O balbucio e o choro da criança, mesmo suas primeiras palavras, são claramente estágios do desenvolvimento da fala que não têm relação com a evolução do pensamento. [...] Mas a descoberta mais importante é que, num certo momento, mais ou menos aos dois anos de idade, as curvas da evolução do pensamento e da fala, até então separadas, encontram-se e unem-se para iniciar uma nova forma de comportamento. (VyGOTSKy, 1999, p. 53) Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br As perspectivas interacionistas de linguagem 28 A apropriação do modo social de falar Desta forma, fica clara a posição da perspectiva sócio-histórica sobre a existência de uma fala que antecede a linguagem, visto que nesta fala ainda não existe “a curiosidade ativa e repentina da criança pelas palavras e suas perguntas sobre elas e a ampliação de seu vocabulário, que ocorre de forma rá- pida e aos saltos” (VyGOTSKy, 1999, p. 53). Assim, a criança vem aprenden- do com a fala a partir daquele repertório que não foi apreendido por ela, mas foi apreendido das pessoas que convivem com ela. A fala, então, encontra-se em um período pré-linguístico, ou seja, o pensamento é não verbal e a fala é não intelectual (p. 61). Porém, fazer uso da linguagem requer do sujeito a construção de um re- pertório de significações compatíveis com a possibilidade de discutir ideologias, fazer uso de metáforas e explicar suas relações com o mundo de uma maneira representacional, ou, na acepção de Morato (2001), “expressar a presença da cultura na língua e no discurso”. Assim, a criança deverá construir estas repre- sentações a partir desta fala obtida pela imitação da fala do outro e criar seu pró- prio discurso. Então, segundo Morato, “devemos compreender como a criança produz e constrói sentido”. Góes (2000, apud CEDES 24, p. 23) expressa este desenvolvimento ao analisar o papel da fala egocêntrica, descrito por Vygotsky, quando diz: No desenvolvimento inicial a fala do outro dirige a atenção e a ação da criança; aos poucos a criança também usa a fala para afetar a ação do outro. A partir desta fala multifuncional vem delinear-se uma diferenciação: ao mesmo tempo em que a criança compreende e usa melhor a fala na regulação de/pelo outro, ela começa a falar para si. Surge a fala egocêntrica, que abrange uma variedade de referências à situação presente e à ação em ocorrência. Tais referenciais passam, aos poucos, a corresponder a uma forma de descrição e análise da situação. Depois servem para organizar e guiar a ação; assumem uma função autorreguladora. A linguagem e o pensamento verbal A criança vai incorporando para si os modos e conceitos da fala dos ou- tros e pode fazer uso dela em situações de interação, opinando e discursando sobre suas referências organizadas na sua atividade. Podemos então, entender a linguagem como a apropriação, concebida pelo sujeito, de suas realidades in- teracionais, mediante o uso dos instrumentos sociais de comunicação (língua), em construções de formas de elocuções que tenham a finalidade de expressar sentimentos, opiniões e posicionamento sobre si, sobre o outro e sobre a reali- dade que o cerca. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br As perspectivas interacionistas de linguagem 29 A teoria de Piaget sobre a linguagem e o pensamento da criança Neste texto, descreve-se uma reflexão sobre o artigo de Vygotsky “A teoria de Piaget sobre a linguagem e o pensamento da criança”, no qual ele faz uma crítica em relação aos dois primeiros livros de Piaget. Procura descrever os pontos nos quais Vygotsky diverge em relação à teoria de Piaget, bem como aqueles que ele apoia e indica a razão. O que Vygotsky escreve no artigo sobre as primeiras formulações de Piaget não se aplica às obras posteriores. Nesse sentido, procura-se indicar os motivos pelos quais a crítica deve ser mensurada exclusivamente para as obras que Vygotsky teve acesso naquela época. Vygotsky inicia o texto descrevendo a importância de Piaget para a psicologia. Fica claro no texto que Vygotsky reconhece em Piaget diferenças fundamentais na postura de um grande pesquisador, indicando que uma das suas principais colaborações para a ciência é o estudo que ele realizou sobre o pensamento infantil. Vygotsky mostra-se preocupado pela situação com que a psicologia passava naquela épo- ca, ao enfatizar que todas as obras sofrem de uma dualidade. Entretanto, Vygotsky descreve que Piaget escapa dessa dualidade quando se preocupa em deter-se aos fatos, no lugar das premissas metodológicas e teóricas. Nesse sentido, parece que isso se deve ao método que Piaget usa para investigar – método clínico. A pedra angular da teoria de Piaget, segundo Vygotsky, é o egocentrismo do pensamento infantil, o qual ocupa “uma posição genética, estrutural e funcionalmente intermediária entre o pensamento autístico e o pensamento dirigido” (VyGOTSKy, 1998, p. 14). Vygotsky procura analisar os fatos que levaram Piaget a aceitar a hipótese do egocentrismo como ponto funda- mental de sua teoria, bem como coloca esses fatos à prova, comparando-os com os resultados que ele obteve em suas próprias pesquisas. Para Vygotsky, o ponto fundamental da teoria de Piaget é o uso que a criança dá para a linguagem, a qual pode ser dividida em fala egocêntrica e fala socializada. Ambos os autores descrevem que na fala egocêntrica a criança não tenta se comunicar, pois o que ela simplesmente faz é um comentário em voz alta do que está pensando. Entretanto, eles discordam em relação à função da fala egocêntrica no comportamento da criança, pois, para Piaget, a fala egocêntrica não cumpre nenhuma função verdadeiramente útil; já Vygotsky acredita que a fala egocêntrica assume um papel definido e importante. Outro ponto de discordância entre os autores refere-se ao desaparecimento ou transformação de fala egocêntrica, pois Piaget descreve que a fala egocêntrica simplesmente desaparece. Ao contrário de Vygotsky, que afirma: “a fala egocêntrica não se atrofia simplesmente, mas ‘se esconde’, isto é, transforma-se em fala interior” (VyGOTSKy, 1998, p. 22). Com relação à fala social, os dois pesquisadores discordam profundamente, pois, de acor- do com Vygotsky, para Piaget “a fala social é representada como sendo subsequente, e não anterior à fala egocêntrica” (1998, p. 22). Entretanto, nos estudos de Vygotsky, há uma inversão, Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br As perspectivas interacionistas de linguagem 30 pois, para Vygotsky, o desenvolvimento evolui da fala social para egocêntrica, uma vez que a “a função primordial da fala, tanto nas crianças quanto nos adultos, é a comunicação, o contato social. A fala mais primitiva da criançaé, portanto, essencialmente social” (1998, p. 23). Em outras palavras, o que Vygotsky descreve em suas pesquisas é que o desenvolvimento do pen- samento vai do social para o individual. Porém, segundo a interpretação de Vygotsky, os seus resultados divergem tanto do esquema de Piaget quanto do esquema behaviorista, pois, segundo Vygotsky, no esquema de Piaget o desenvolvimento do pensamento na criança “parte do pensa- mento autístico não verbal à fala socializada e ao pensamento lógico, por meio do pensamento e da fala egocêntricos” (1998, p. 24). Já no esquema behaviorista, o desenvolvimento parte da fala oral após utilizar o sussurro para chegar à fala interior. Para finalizar, o que se percebe ao analisar o texto é que Vygotsky considera as pesquisas de Piaget como fundamentais para a psicologia, porém, há divergências fundamentais nos re- sultados encontrados pelos dois autores. Entretanto, como foi dito anteriormente, as críticas de Vygotsky devem ser aceitas exclusivamente para as duas obras que ele analisou – o próprio Pia- get quando teve acesso ao texto escrito por Vygotsky concordou com as suas críticas. Por outro lado, ao se analisar as demais pesquisas desenvolvidas por Piaget, percebe-se que as críticas de Vygotsky não teriam mais fundamento. (PASQUALOTTI, Adriano. A Teoria de Piaget sobre a Linguagem e o Pensamento da Criança. Disponível em: <http://vitoria.upf.br/~pasqualotti/Vygotsky.htm>.) 1. Com base nas aulas, fica claro que, para Piaget, o pensamento da criança precede o desenvol- vimento da linguagem. Procure no texto em que situações isso fica claro e dê um exemplo, levando em consideração sua experiência de vida. 2. Para Vygotsky, nascemos imersos em um mundo de linguagem, ou seja, uma sociedade falante e simbólica da qual a criança já faz parte desde sua mais tenra idade. Esse fato, analisado den- tro da perspectiva dele, é motivo suficiente para entendermos que a criança será estimulada à apropriação da linguagem por interagir com sujeitos e significados dos falantes da comunidade em que ela está inserida, ou seja, a apropriação da linguagem será concomitante e estimuladora do pensamento infantil. Do seu ponto de vista, isto está coerente com o desenvolvimento da criança? Discuta com seus colegas. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br alici Sublinhado alici Sublinhado A linguagem e o cérebro humano Aspectos neurológicos da linguagem O entendimento dos processos que são subjacentes à linguagem e sua manifestação tem sido, ao longo dos anos, uma área de intenso debate dentro da psicologia. As questões pertinentes aos fatores educacionais e naturais da sua aquisição têm levado uma grande quantidade de teóricos a exporem diferentes tipos de posicionamento sobre esta categoria do comportamento humano. (D EL N ER O , 1 99 6) Mundo cultural consciência operações mentais sincronização cérebro aprendiza do percepção Linguagem mente pensamento emoção vontade Mundo natural Luria, a partir das vítimas que enfrentavam as mazelas e sequelas da Segunda Guerra Mundial, desenvolveu sua abordagem sobre a mente humana. Nela, Luria (1973) propõe os sistemas funcionais, de composição extremamente complexa, como forma de entendermos o funcionamento da base ce- rebral do processamento da linguagem. Nela acredita-se “na interação da linguagem com todos os processos psíquicos superiores, sobre sua localização dinâmica e sistêmica no cérebro e de seu papel organizador na formação e desenvolvimento destes processos” (SVIETKOVA, 1985). A neuropsicologia, disciplina que estuda as funções cognitivas mediante a análise de pacientes que apresentam lesão cerebral e, com base nestes sujeitos, segundo Eysenck e Keane (1994) “estabe- lece conclusões sobre o processo cognitivo normal a partir dos padrões das capacidades ilesas e com déficits observadas”. Por isto, seus estudos sobre a linguagem acabam por contribuir significativa- mente para o entendimento do processamento dela. Nos últimos anos, os estudos sobre esta função cognitiva têm levado a muitas publicações sobre as suas mais diferentes questões. Luria (1987, p. 11) ao desenvolver seus estudos neuropsicológicos dentro da abordagem sócio- -histórica, fundamentada nas ideias de Vygotsky, realiza um abrangente estudo com sujeitos afásicos, construindo um grande referencial sobre as funções da linguagem interna e sobre o processo enun- ciativo. Ele nos diz: 31 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br A linguagem e o cérebro humano 32 A análise de como se forma o reflexo imediato da realidade, de como o homem reflete o mundo real em que vive, de como elabora uma imagem do mundo objetivo, constitui parte considerável de todo o conteúdo da psicologia. Porém, o fato fundamental é que o homem não se limita à impressão imediata do que o circunda, está em condições de ultrapassar os limites da experiência sensível, de penetrar mais profundamente na essência das coisas. O homem pode abstrair características isoladas das coisas, captar os profundos enlaces e relações em que se encontram. A forma em que isto se torna possível constitui o capítulo mais importante da ciência psicológica. Desta forma, ele nos esclarece que se buscamos a análise das características humanas de comportamento devemos buscar algo mais que a experiência imediata e sensível, ele nos cita Vygotsky, quando este diz que “devemos buscar as origens desta vida consciente e do comportamento ‘categorial’, não nas profundidades do cérebro, mas nas condições externas da vida e, em primeiro lugar na vida social, nas formas histórico-sociais da existência do homem” (LURIA, 1987, p. 21). Assim, ao abordar as questões pertinentes ao processamento neuropsicoló- gico da linguagem, parte-se da análise dos processos imediatos, ou seja, aqueles determinados pela referência modular do processamento da informação e, poste- riormente, estabeleceremos a análise do pensamento categorial descrito por Luria, buscando as formas complexas de linguagem. A compreensão e expressão da fala Do ponto de vista do processamento neuropsicológico da informação, Eysenck e Keane (1994) analisam a proposta de Ellis e young (1988), que ao pesquisarem pacientes com dificuldades de repetir palavras faladas, utilizaram as conclusões para propor um modelo de processamento que consiste em cinco componentes: o sistema de análise auditivo, usado para extrair fonemas e outros sons da onda sonora da fala; o léxico de input auditivo contém as informações sobre as palavras que o ouvinte conhece, mas não contém informações sobre seus significados – seu objetivo é reconhecer palavras familiares por meio da ativação das unidades das palavras apropriadas; os significados das palavras são armazenados dentro do sistema semân- tico, sobre o qual pouco se conhece; o léxico de output da fala serve para fornecer as formas articuladas das palavras; os sons da fala estão disponíveis ao nível do fonema; estes componentes podem ser usados em várias combinações (p. 268-269). Este modelo do processamento da fala nos dá importantes considerações sobre a análise que um sujeito pode vir a fazer da fala do outro. Estes múltiplos processos tornam as fases do desenvolvimento infantil da linguagem como extremamente im- portante na construção dos referenciais de uma palavra, suas unidades fonológicas, e também coloca o papel do significado como uma construção complexa da qual esta abordagem ainda pouco sabe. Eysenck e Keane (1994, p. 271) relatam que: Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br A linguagem e o cérebro humano 33 As informações contidas nas palavras articuladas tendem a ser ambíguas, e que o padrão de som para qualquer fonema dado não é constante, a compreensão da fala envolve com frequência o uso de processos do tipo top-down, (das funções de decisão para
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