Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 Duplo papel de atuação do Ministério Público em segunda instância criminal: uma análise jurisprudencial. Nathália Santa Catharina Poester Sumário: 1 Introdução; 2 Apresentação do caso; 2.1 Solução dada pelo Tribunal; 3 Análise de decisões divergentes; 4 Entendimento Doutrinário; 5 Legislação aplicável à matéria; 6 Conclusão. Referências 1 INTRODUÇÃO Tema de grande relevância e, após anos de discussões nos Tribunais Superiores, ainda controvertido, é a natureza da atuação do Parquet em segunda instância criminal. Para boa parte da jurisprudência, atua o Ministério Público na condição estrita de custos legis, ao invés de parte propriamente dita. De outro norte, relevantes julgados relatam a impossibilidade de se distinguir a atuação como parte ou fiscal da lei seguindo como critério o desempenho das funções em primeira ou segunda instância. A importância da questão ora introduzida se perfaz ante a necessidade de saneamento da confusão entre os papéis de parte e fiscal da lei desempenhados pelo Ministério Público ao longo da persecução penal. Indo além e, de forma principal, latente a relevância da análise com fins de se evitar ofensas às garantias essenciais do sistema acusatório e prejuízos ou nulidades em julgamentos por toda extensão do território nacional. Diante desse quadro, em recente decisão proferida pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça, analisando, dentre outras perquirições, a atuação ministerial em segundo grau, o voto do Ministro Rogério Schietti Cruz retratou de forma esmiuçada a natureza dúplice da atuação do Parquet em segundo grau. Ressaltando inclusive que esta atuação, ao longo do processo crime, ora se confunde com a de parte, ora com a de custos iuris, porém nunca se 2 excluindo a representatividade ministerial no polo ativo da relação jurídica, enquanto titular da ação penal. Portanto, ainda que permaneça em parte controvertida a natureza da atuação ministerial, em face da existência de julgados em contraponto, o intento deste trabalho é traçar, ainda que de forma sucinta, uma análise, mediante estudo de caso jurisprudencial, pesquisa doutrinária e legislativa acerca da temática ora apresentada. 2 APRESENTAÇÃO DO CASO O caso que se passa a analisar decorre de acórdão proferido pela Sexta Turma do Colendo Superior Tribunal de Justiça, sob a relatoria do Ministro Nefi Cordeiro, em Habeas Corpus substitutivo, com pedido liminar, registrado sob o n° 208.015 - SP (2011/0122028-8), tendo como paciente, Orasil Paulino da Silva, impetrado em face de acórdão da 4ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, cujo julgamento se deu em 17 de novembro de 2015. Com fins de contextualização, cabe mencionar que o paciente, em 25 de junho 2006, na Comarca de São José do Rio Preto, mantinha em sua guarda e ocultava, com intuito de lucro, 140 cópias de peças fonográficas e 70 cópias de peças videofonográficas, não autorizadas, violando direito autoral. Em primeira instância, fora condenado como incurso no artigo 184, § 2º, do Código Penal, à pena de dois anos de reclusão e dez dias-multa, em regime aberto, a qual fora suspensa condicionalmente, por igual prazo, mediante o cumprimento das condições previstas no artigo 78, § 2º, “b” e “c”, do Código Penal, in verbis: Artigo 184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos: §2º Na mesma pena do § 1o incorre quem, com o intuito de lucro direto ou indireto, distribui, vende, expõe à venda, aluga, introduz no País, adquire, oculta, tem em depósito, original ou cópia de obra intelectual ou fonograma reproduzido com violação do direito de autor, do direito de artista intérprete ou executante ou do direito do produtor de fonograma, ou, ainda, aluga original ou cópia de obra intelectual ou fonograma, sem a expressa autorização dos titulares dos direitos ou de quem os represente. (BRASIL, 1940) 3 Artigo 78. Durante o prazo da suspensão, o condenado ficará sujeito à observação e ao cumprimento das condições estabelecidas pelo juiz. §2º Se o condenado houver reparado o dano, salvo impossibilidade de fazê-lo, e se as circunstâncias do art. 59 deste Código lhe forem inteiramente favoráveis, o juiz poderá substituir a exigência do parágrafo anterior pelas seguintes condições, aplicadas cumulativamente: b) proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do juiz; c) comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e justificar suas atividades. (BRASIL, 1940) Inconformado, interpôs recurso de apelação, alegando ofensa ao princípio da taxatividade e, no mérito, a viabilidade da absolvição por atipicidade da conduta, erro de proibição, insuficiência probatória e ausência de dolo além de, subsidiariamente, pugnar pela inconstitucionalidade do aumento da pena da infração dado pelo artigo 1º, da Lei n° 10.695/2003, veja-se: Artigo 1º. O art. 184 e seus §§ 1o, 2o e 3o do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940, passam a vigorar com a seguinte redação, acrescentando-se um § 4o: Art. 184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa. §1º Se a violação consistir em reprodução total ou parcial, com intuito de lucro direto ou indireto, por qualquer meio ou processo, de obra intelectual, interpretação, execução ou fonograma, sem autorização expressa do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor, conforme o caso, ou de quem os represente: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. §2º Na mesma pena do § 1o incorre quem, com o intuito de lucro direto ou indireto, distribui, vende, expõe à venda, aluga, introduz no País, adquire, oculta, tem em depósito, original ou cópia de obra intelectual ou fonograma reproduzido com violação do direito de autor, do direito de artista intérprete ou executante ou do direito do produtor de fonograma, ou, ainda, aluga original ou cópia de obra intelectual ou fonograma, sem a expressa autorização dos titulares dos direitos ou de quem os represente. (BRASIL, 2003) Por conseguinte, após manifestação do Ministério Público em segunda instância, consubstanciada no artigo 610, do Código de Processo Penal, sem que fosse dada oportunidade ao apelante de apresentar impugnação acerca de tal parecer, a Corte local negou provimento ao recurso. Em face desta possível ilegalidade, fora manejado referido mandamus, pretendendo, no que compete ao objeto analisado neste estudo, a declaração de nulidade absoluta do acórdão proferido pelo Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, ante a ausência de oportunização de vista à defesa para contraditar manifestação do Órgão Ministerial apresentada em segundo grau de jurisdição. 4 Aduziu o impetrante que a natureza de atuação do Ministério Público de forma exclusiva como custos legis, quando da sua atuação em segunda instância, é insustentável, razão pela qual deveria ser anulado o julgamento, sendo acerca deste ponto o principal questionamento que se pretende aclarar na análise ora realizada. 2.1 Solução dada pelo tribunal A Egrégia Sexta Turma do Colendo Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar o processo, proferiu julgamento, após apreciação antecipada do voto-vista do Sr. Ministro Rogério Schietti Cruz, não conhecendo o habeas corpus manejado, à unanimidade, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator Nefi Cordeiro. Constou, ainda, parcial ressalva de entendimento contido no voto do Ministro Revisor, que versava, especificamente, acerca da atuação dúplice do Ministério Público em segunda instância. Referido julgado contou com a ementa ora colacionada, veja-se: PROCESSO PENAL E PENAL. HABEAS CORPUS. SUBSTITUTIVO DE RECURSO ESPECIAL, ORDINÁRIO OU DE REVISÃO CRIMINAL. NÃO CABIMENTO. VIOLAÇÃO DE DIREITO AUTORAL. INTIMAÇÃO DA DEFESA APÓS PARECER MINISTERIALNO SEGUNDO GRAU. DESNECESSIDADE. CUSTOS LEGIS. INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 184, § 2º DO CP. AFASTADA. PRINCÍPIO DA TAXATIVIDADE. ATIPICIDADE. INOCORRÊNCIA. FALTA DE MATERIALIDADE REJEITADA. INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI 10.695/2001. PENA MÍNIMA. LEI 9.609/98. 1.Ressalvada pessoal compreensão diversa, uniformizou o Superior Tribunal de Justiça ser inadequado o writ em substituição a recursos especial e ordinário, ou de revisão criminal, admitindo-se, de ofício, a concessão da ordem ante a constatação de ilegalidade flagrante, abuso de poder ou teratologia. 2. É assente na jurisprudência desta Corte que o Ministério Público, em segunda instância, atua como custos legis, não havendo violação ao princípio do contraditório. 3. A jurisprudência desta Corte e do Supremo Tribunal Federal orienta-se no sentido de considerar típica, formal e materialmente, a conduta prevista no art. 184, § 2º do Código Penal, afastando, assim, a aplicação do princípio da adequação social, de quem expõe à venda CDs e DVDs "piratas". 4. Materialidade do crime comprovada não só pelos documentos anexados, mas, especialmente, por meio de perícia que atestou serem falsificados os CD's e DVD's apreendidos com o paciente. 5. Sendo o art. 184 do CP, especialmente após a redação que lhe foi dada pela Lei nº 10.695/2003, tipo penal bem mais abrangente que o disposto na Lei nº 9.609/98, mostra-se razoável o diferenciado apenamento cominado. 6. Habeas corpus não conhecido. (BRASIL, 2015) 5 O relator não conheceu do habeas corpus argumentando, no que consiste ao tema ora analisado, a inexistência de nulidade decorrente de violação ao princípio do contraditório, uma vez que a prévia manifestação do Ministério Público em segunda instância é decorrente de sua função como custos legis. Com fins de embasar referido decisum o Ilustre Ministro trouxe à baila julgados proferidos pela própria Corte Superior, dos quais se colaciona os seguintes excertos: PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO TENTADO. (1) IMPETRAÇÃO UTILIZADA COMO SUCEDÂNEO RECURSAL. IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA. (2) PARECER MINISTERIAL EM SEGUNDO GRAU. MANIFESTAÇÃO APÓS A OITIVA DA DEFESA. ATUAÇÃO COMO CUSTOS LEGIS. VIOLAÇÃO DA AMPLA DEFESA. AUSÊNCIA. ORDEM NÃO CONHECIDA. 1. É imperiosa a necessidade de racionalização do emprego do habeas corpus, em prestígio ao âmbito de cognição da garantia constitucional, e, em louvor à lógica do sistema recursal. In casu, foi impetrada indevidamente a ordem como substitutiva de recurso especial. 2. Após a manifestação do Ministério Público em segunda instância, na condição de fiscal da lei, não há contraditório a ser assegurado, pois o parecer não possui natureza de ato da parte. Documento: 1448534 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 10/12/2015 Página 4 de 6 Superior Tribunal de Justiça Precedentes. 3. Habeas corpus não conhecido. (BRASIL, 2014) AGRAVO REGIMENTAL. HABEAS CORPUS. ROUBO CIRCUNSTANCIADO. NULIDADE. VIOLAÇÃO DA AMPLA DEFESA. AUSÊNCIA DE INTIMAÇÃO DA DEFESA APÓS PARECER MINISTERIAL NO SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA. ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO COMO CUSTOS LEGIS. PRECEDENTES. 1. Deve ser mantida por seus próprios fundamentos a decisão monocrática que negou seguimento ao habeas corpus, porquanto é entendimento pacificado no Superior Tribunal de Justiça que o Ministério Público, ao apresentar parecer em segundo grau de jurisdição, salvo nos casos de ação originária, atua como custos legis (art. 610 do CPP) e, portanto, inexiste violação dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa. 2. Agravo regimental improvido. (BRASIL, 2013a) Todavia, prosseguindo no julgamento, com a antecipação do voto-vista, acordaram os Ministros da Egrégia Sexta Turma em externar especial ressalva de entendimento, acompanhando, no ponto relativo a atuação do Ministério Público em segunda instância, o voto divergente do Ministro Presidente da Sessão Rogerio Schietti Cruz. O voto em referência assentou entendimento de que o Parquet, por integrar a relação jurídica processual como parte autora, não perde esta natureza em grau recursal. Por ser titular privativo da ação penal pública e fiscal da ordem jurídica, conforme ditame dos artigos 129, inciso I, e 127, da Constituição Federal e artigo 257, do Código de Processo 6 Penal, acaba por atuar, seja qual for o grau de jurisdição, de forma dúplice. Nas palavras externadas no voto-vista: A natureza dessa atuação não se altera em grau recursal, no qual o parecer do Ministério Público é peça processual que exterioriza a convicção de uma das partes, em linguagem aparentemente mais imparcial se comparada às alegações finais ou às próprias razões do recurso – o que acaba por gerar confusão de que seu autor age tão somente como fiscal da lei – mas que, ressalte-se, provém de membro da mesma Instituição que, até então, promovera a ação penal, deduzindo a acusação contra o réu. (...) É, pois, d.m.v., superficial e simplista a distinção entre Ministério Público agente (parte) e Ministério Público consulente (fiscal), visto que, na ação penal condenatória, por mais que uma dessas funções se esconda por trás da roupagem verbal ou escrita da manifestação do membro do Parquet, estará ela presente. (BRASIL, 2015) Trouxe, ainda, com fins de sedimentar o entendimento expressado, relevante precedente do Supremo Tribunal Federal, proferido no julgamento do Habeas Corpus n° 87.926-SP, sob a relatoria do Ministro Cezar Peluso, elucidando com brilhantismo o papel do Ministério Público em segunda instância criminal, veja-se: [...] entendo difícil, senão ilógico, cindir a atuação do Ministério Público no campo recursal, em processo-crime: não há excogitar que, em primeira instância, seu representante atue apenas como parte formal e, em grau de recurso – que, frise-se, constitui mera fase do mesmo processo se dispa dessa função para entrar a agir como simples fiscal da lei. [...]. Invocar a qualidade de custos legis do Ministério Público perante os tribunais, em sede recursal, parece-me caracterizar um desses artifícios linguísticos (sic) que tendem a fraudar as garantias essenciais a sistema penal verdadeiramente acusatório ou de partes. [...]. Órgão uno e indivisível, na dicção do art. 127, § 1º, da Constituição da República, não há como admitir que o Ministério Público opere tão-só como custos legis no curso de processo onde, em fase diversa, já tenha funcionado, mediante outro órgão, como encarregado da acusação, sob pena de se violentar a própria sintaxe acusatória do processo penal. [...] Conclusão diversa levaria à concepção de processo de parte única, o acusado. (BRASIL, 2008) A decisão da Corte Superior citada se trata de verdadeiro leading case1 do direito brasileiro, a qual definiu, analisando situação jurídica semelhante ao do Habeas Corpus n° 208.015 - SP, a inadmissibilidade de apresentação de sustentação oral do membro do Parquet, após manifestação da defesa, haja vista o papel dúplice de atuação desse em segundo grau. 1Nas palavras de Guido Fernando Silva Soares em sua obra Common Law: Introdução ao Direito dos EUA (1ª ed., 2ª tir., RT, 1999, 40-42) o leading case é "uma decisão que tenha constituído em regra importante, em torno da qual outras gravitam" que "cria o precedente, com força obrigatória para casos futuros". 7 Veja-se a ementa: AÇÃO PENAL. Recurso. Apelação exclusiva do Ministério Público. Sustentações orais. Inversão na ordem. Inadmissibilidade. Sustentação oral da defesa após a do representante do Ministério Público. Provimento ao recurso. Condenação do réu. Ofensa às regras do contraditório e da ampla defesa, elementares do devido processo legal. Nulidade reconhecida. HC concedido. Precedente. Inteligência dos arts. 5º, LIV e LV, daCF, 610, § único, do CPP, e 143, § 2º, do RI do TRF da 3ª Região. No processo criminal, a sustentação oral do representante do Ministério Público, sobretudo quando seja recorrente único, deve sempre preceder à da defesa, sob pena de nulidade do julgamento. (BRASIL, 2008) Assim, concluíram os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, aplicando o precedente em referência, que o Parquet, no exercício de suas atribuições frente a ação penal pública atua de forma dúplice, ou seja, intervém como parte e fiscal da lei, em qualquer instância judicial, uma vez que se trata de Órgão uno e indivisível. Acrescentando, já em linhas conclusivas, que entendimento diferente poderia implicar o comprometimento a direitos do acusado, em desatendimento à igualdade das partes à ampla defesa e contraditório. 3 ANÁLISE DE DECISÕES DIVERGENTES Entendimento divergente, expressou a mesma Sexta Turma do Colendo Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Habeas Corpus n° 244.999, em 23 de abril de 2013, momento no qual entendeu que a atuação do Parquet em segundo grau, se dá de forma exclusiva como custos legis. Argumentou, para tanto, que a manifestação em segunda instância, contida no artigo 610, do Código de Processo Penal, decorre de sua função de fiscal da lei, não se confundindo com a atribuição de titular da ação penal pública. Versava o mandamus, acerca de possível nulidade de julgamento do recurso de apelação, em razão de ofensa ao contraditório e ampla defesa, por ausência de intimação do recorrente após manifestação ministerial. Elencou o impetrante que o membro do parquet, ao elaborar seu parecer, desdobrou de suas atribuições e apresentou verdadeiras novas contrarrazões para o recurso interposto pela defesa, sem que fosse dada oportunidade de 8 nova manifestação. Referido julgado contou com a ementa abaixo transcrita: PENAL E PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. REMÉDIO CONSTITUCIONAL SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. IMPOSSIBILIDADE. NÃO CONHECIMENTO. MINISTÉRIO PÚBLICO. PARECER EM SEGUNDA INSTÂNCIA. ATUAÇÃO COMO FISCAL DA LEI. INEXISTÊNCIA DE CONTRADITÓRIO. ATOS INFRACIONAIS ANÁLOGOS AO ROUBO CIRCUNSTANCIADO. MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAÇÃO. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. 1. À luz do disposto no art. 105, I, II e III, da Constituição Federal, esta Corte de Justiça e o Supremo Tribunal Federal não vêm mais admitindo a utilização do habeas corpus como substituto de recurso ordinário, tampouco de recurso especial, nem como sucedâneo da revisão criminal, sob pena de se frustrar a celeridade e desvirtuar a essência desse instrumento constitucional. 2. Entretanto, esse entendimento deve ser mitigado, em situações excepcionais, nas hipóteses em que se detectar flagrante ilegalidade, nulidade absoluta ou teratologia a ser eliminada, situação inocorrente na espécie. 3. A previsão de manifestação do Ministério Público em segunda instância, contida no art. 610 do Código de Processo Penal, decorre de sua função de fiscal da lei, o que não se confunde com a atribuição de titular da ação penal pública, a teor do que preconiza o art. 257 do referido diploma legal. 4. Assim, após a manifestação ministerial, não há falar em contraditório a ser exercido pela defesa, visto que, quando o Ministério Público atua como custos legis, não compõe nenhum dos polos da relação processual, ainda que se oponha às teses trazidas pelo réu. 5. A medida de internação é cabível quando o menor pratica atos infracionais análogos ao crime de roubo em concurso de agentes e mediante o emprego de arma de fogo, em razão do disposto no inciso I do art. 122 do Estatuto da Criança e do Adolescente. 6. Habeas corpus não conhecido. (BRASIL, 2013b) Com fins de lastrear o julgado, trouxe à tona extensa gama de precedentes, afirmando que o Ministério Público estadual atua, ao oferecer parecer, como fiscal da lei, conforme entendimento expresso no artigo 610, do Código de Processo Penal. Concluindo, assim, que inexistiu qualquer ofensa ao contraditório, uma vez que a manifestação do Ministério Público se deu como custos legis, não compondo nenhum dos polos da relação processual. 4 ENTENDIMENTO DOUTRINÁRIO A análise pormenorizada do papel do Ministério Público em segunda instância 9 perpassa por inúmeros institutos do direito processual. Em primeiro, necessário aclarar o entendimento doutrinário acerca da natureza jurídica da posição ocupada pelo parquet no processo penal. Apresentado pela Magna Carta como função essencial à justiça, a doutrina se subdivide no momento de definir, com rigor, sua posição processual. Dezem (2017, p. 700), esclarece as divergências existentes: Há, basicamente, posições sobre a posição exercida pelo Ministério Público no processo penal de natureza condenatória: Parte sui generis – para Helio Tornaghi, o Ministério Público é parte sui generis na medida em que, por ser fiscal da lei, deve atuar de maneira imparcial, podendo, inclusive, requerer absolvição do acusado. Parte imparcial – para Guilherme Nucci o Ministério Público é parte imparcial embora esteja vinculado ao polo ativo da demanda Parte – para José Frederico Marques o Ministério Público exerce o papel de parte nos processos em que possui o direito de acusar. Hugo Nigro Mazzili (2002, p. 05) também nos apresenta referida controvérsia: Também no âmbito do processo penal, a posição do Ministério Público é controvertida: parte sui generis (Vincenzo Manzini, Hélio Tornaghi); parte imparcial (Alfredo De Marsico, Magalhães Noronha); parte parcial (Francesco Carnelutti); parte material e processual (José Frederico Marques); parte formal, instrumental ou processual (Jorge Olmedo, Giovanni Leone, Fernando da Costa Tourinho Filho); não é parte (Otto Mayer, Biagio Petrocelli). Todavia, nos parece adequado acompanhar o entendimento de José Frederico Marques, considerando o Ministério Público como parte nos processos em que atua como titular da ação penal, não havendo que se falar em imparcialidade. Isso porque, sendo este o dominus litis, irrazoável pensar que o órgão acusador detém característica imparcial. Por óbvio, ao iniciar a segunda fase da persecução penal, com o oferecimento da denúncia, há muito inexistente condição de neutralidade. Isso porque, nesse momento processual, o Órgão Ministerial entendeu pela existência de materialidade e indícios da autoria do acusado suficientes para movimentar a máquina judiciária visando a sanção estatal. Também nessas linhas, concorda Dezem (2017, p. 701): "acompanhamos neste ponto a posição de José Frederico Marques. É preciso que se aceite integralmente a ideia do processo acusatório como processo de partes, em que uma delas acusa, a outra defende e a 10 terceira, esta imparcial, julga". Hugo Nigro Mazzili (2002, p. 06) acrescenta: Quando o Ministério Público inicia a ação penal pública, quando produz provas, quando recorre etc., é evidentemente parte, no sentido técnico e processual. Sua imparcialidade somente poderia ser compreendida no sentido não técnico, ou seja, no sentido moral (de objetividade, de serenidade, de fiscalização da lei). Mesmo quando pede a absolvição de um réu (para ser moralmente imparcial), continua sendo parte no sentido processual, pois continua tendo ônus e faculdades processuais, podendo influir no curso do processo; outro órgão do Ministério Público, que não está vinculado ao pedido de absolvição do primeiro, pode mesmo recorrer da sentença absolutória, contrariando a manifestação anterior. No ponto, entende-se que a iniciativa probatória rompe a imparcialidade, já que essa é uma tarefa que, conforme Geraldo Prado (2006, p. 141) "não é neutra, pois sempre se deduzirá a hipótese que pela prova pretenderá ver confirmada". Ademais, como recorda Diogo Rudge Malan (2003, p. 73), a prática forense demonstra que aspartes dificilmente requerem as mesmas diligências, isso porque elas pretendem "comprovar teses diametralmente opostas, já sabendo, de antemão e com elevado grau de certeza, qual o resultado que suas diligências probatórias trarão (ou poderão trazer) aos autos". Por outro prisma, não se pode ignorar o fato do Ministério Público deter a legitimidade ativa da ação penal pública, característica esta adstrita a quem atua como parte no processo, qualidade que não se modifica com a alternância de grau de jurisdição, veja-se: A legitimatio ad causam pode ser ativa e passiva. A legitimidade ativa é o “genuino” autor; a legitimidade passiva, o “genuino” réu. Detém a legitimidade ativa, nos crimes de ação pública, o Estado. O M.P. é o próprio Estado como genuino” autor. (VIANA, 1963) Continuando, Fredie Didier (2007, p. 196) esclarece que “parte processual é quem está na relação jurídica processual, assumindo qualquer das situações jurídicas processuais, atuando com parcialidade e podendo sofrer alguma conseqüência com a decisão final”. Ainda, Guilherme Marinoni (2011, p. 88) afirma: aquele que toma “parte” no litígio, ou dele faz “parte”, deve ser considerado parte; aquele que é estranho ao litígio, ou dele não faz “parte”, embora a sentença contra ele produza efeitos, deve ser considerado terceiro. 11 Logo, difícil outra conclusão a não ser a de que o Ministério Público, nos processos em que possui o direito de acusar, é considerado parte, inexistindo suposta imparcialidade, uma vez que a iniciativa probatória rompe esta característica2. Continuando a análise, em segundo lugar e, sob aspecto que paira certo grau de unanimidade - motivo pelo qual fazemos uma análise menos esmiuçada - o Ministério Público, além de atuar como parte, age no papel de custos legis, fiscalizando a ordem jurídica, por força constitucional. Nas palavras de Moreira (2009, p. 59) "o Ministério Público foi conceituado como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbida da defesa da ordem jurídica, dos interesses sociais e individuais indisponíveis e do próprio regime democrático". Portanto, inerente ao Órgão Ministerial as duas formas de atuação em processo criminal de sua iniciativa. Quando atua como parte, ainda é fiscal da lei, atuando, sempre, com as mesmas atribuições descritas no artigo 127, da Constituição Federal. Tais características não se desqualificam pela alteração da instância judicial. É o que, o terceiro item que passamos a analisar, nos revela. Regido pelo princípio da unidade, os membros do Ministério Público fazem parte de uma mesma instituição, inexistindo previsão que altere tal condição em razão da mudança de grau de jurisdição. É órgão uno, indivisível, na concepção de Norberto Avena (2012, p. 104): Unidade: significa que os seus membros fazem parte de uma mesma instituição. Esta chefiada por um Procurador-Geral. Essa unidade apregoada pela Constituição Federal é considerada dentro de cada Ministério Público. Hugo Nigro Mazzilli (2002) salienta que "unidade significa que os membros do Ministério Público integram um só órgão sob a direção de um só chefe”. E continua: Unidade é apenas o conceito de que os membros do mesmo Ministério Público (p. ex., os membros do Ministério Público Federal, ou, então, os membros do Ministério Público de determinado Estado) integram um só órgão (o respectivo Ministério Público) sob a direção administrativa de um só chefe (o respectivo 2 A iniciativa probatória rompe a imparcialidade, já que essa é uma tarefa que "não é neutra, pois sempre se deduzirá a hipótese que pela prova pretenderá ver confirmada". Ademais, como recorda MALAN, a prática forense demonstra que as partes dificilmente requerem as mesmas diligências, isso porque elas pretendem "comprovar teses diametralmente opostas, já sabendo, de antemão e com elevado grau de certeza, qual o resultado que suas diligências probatórias trarão (ou poderão trazer) aos autos". 12 Procurador-Geral). E indivisibilidade significa apenas que os membros do mesmo Ministério Público, no exercício da mesma função, podem ser substituídos uns pelos outros, não arbitrariamente, porém, sob pena de grande desordem, mas segundo a forma estabelecida na lei. (MAZZILI, 2002) Sendo assim, pelo fato dos membros integrarem um só órgão, dentro de cada ente federativo, entendemos desarrazoado o entendimento que afasta a atuação do primeiro grau (parte) com a em segundo grau (fiscal da lei – parecerista), mesmo porque, inexistente comando normativo a este respeito. Portanto, dos três itens aclarados, percebemos que o Ministério Público possui atuação no processo criminal, tanto como parte propriamente dita, quanto como fiscal da ordem jurídica, sendo órgão regido pelo princípio da unidade, conforme previsto pela Carta Magna. Partindo destas premissas, resta solucionarmos o seguinte questionamento: em segundo grau, atuaria o parquet estritamente como custos legis, mediante apresentação de parecer pelo Procurador de Justiça? Indica a doutrina, em análise ao artigo 610 do Código de Processo Penal - o qual discorre acerca da ordem de fala do Procurador de Justiça em sede de sustentação oral, e cuja temática o leading case supracitado analisa, que a interpretação da atuação em segundo grau de forma exclusiva como fiscal da lei, parece inadequada. Afirma Paulo Jacobina (1998), que “não é possível distinguir entre parte e fiscal da lei, porque, quando o Ministério Público é parte, é fiscal da lei, e quando é fiscal da lei, é parte”. Já Rogério Schietti (2002, p. 91) considera superficial e simplista a distinção entre Ministério Público agente (parte) e Ministério consulente (fiscal), eis que, na ação penal pública, por mais que uma dessas funções se esconda por trás da roupagem verbal ou escrita da manifestação do membro da instituição, ela estará sempre presente. Assinala ainda que o parecer do Ministério Público em segundo grau, que mais atende à tradição do que ao sistema acusatório, não é obrigatório, mas facultativo, devendo sobre ele se manifestar a defesa, a fim de assegurar o contraditório e a ampla defesa. De forma mais específica quanto a atuação em segundo grau de jurisdição, Tavora e Alencar lecionam: 13 No segundo grau de jurisdição pode atuar tanto como parte como fiscal da lei, especialmente quando exara parecer nos processos em grau de recurso. Conforme Rômulo de Andrade Moreira, o parecer do “Ministério Público, por intermédio do Procurador de Justiça” é de duvidosa constitucionalidade, pois, ainda que na condição de custos legis, soava estranho, mesmo porque fiscal da lei também é o promotor de justiça atuante à primeira instância e, no entanto, nunca se dispensou a ouvida da defesa”, razão pela qual “este privilégio fere o contraditório (ação versus reação), a isonomia (paridade de armas), o devido processo legal (a defesa fala por último) e a ampla defesa (direito do acusado de ser informado também por último)”. (TAVORA. 2016, p. 848) Nas palavras de Dezem (2017, p. 107): O Procurador de Justiça fala após a manifestação da defesa e, como parte, quer nos parecer que esta posição não é adequada. A parte acusadora (ainda que em segundo grau) fala neste ponto por último. Altera-se, desta forma, a prerrogativa decorrente do favor rei de que a defesa fala por último. Apesar desta crítica, insisto, a Procuradoria de Justiça continua a se manifestar após a defesa nos Tribunais de Justiça do País afora, não sendo aceiro este posicionamento. (DEZEM, 2017, p. 700,701) Já Alberto Zacharias Toron (2007, p. 91) propõe que, nas sustentações orais, se o Ministério Público figurar como recorrente, falará em primeiro lugar, falando em seguida a defesa, e não o contrário, como ainda ocorre. Esmiuçando o assunto e,indicando a ausência de imparcialidade do parquet no âmbito processual penal, bem como esclarecendo que a figura de parte não se extingue em segundo grau, Renato Brasileiro Lima (2016) nos diz: Recentemente, alguns julgados isolados dos Tribunais Superiores vêm demonstrando uma mudança de entendimento acerca da suposta imparcialidade do Ministério Público no âmbito processual penal. Importante exemplo nesse sentido diz respeito à interpretação jurisprudencial em torno do art. 610, parágrafo único, do CPP. Por força desse dispositivo, que cuida do processo e julgamento dos recursos nos Tribunais, o Ministério Público atuante na 2ª instância – Procurador de Justiça ou Procurador Regional da República – será sempre ouvido depois da defesa, sem que o dispositivo estabeleça qualquer ressalva quanto ao recurso em julgamento – exclusivo da acusação ou da defesa. Durante anos, esse preceito foi considerado válido, porquanto se partia da premissa de que, na 2ª instância, o Ministério Público atua como fiscal da lei e parte imparcial. Logo, devia se pronunciar após a defesa, ainda que se tratasse de recurso interposto exclusivamente pelo Promotor de Justiça atuante na 1ª instância. No entanto, esse entendimento acabou sendo modificado pelo plenário do Supremo, que passou a entender que, em recurso exclusivo da acusação, o representante do Ministério Público, ainda que invoque a qualidade de custos legis, deve se manifestar, na sessão de julgamento, antes da sustentação oral da defesa, haja vista que as partes têm direito à observância do procedimento tipificado na lei, como concretização do princípio do devido processo legal, a 14 cujo âmbito pertencem as garantias específicas do contraditório e da ampla defesa (CF, art. 5º, LIV e LV). Ressaltando a unidade e indivisibilidade do parquet, asseverou-se ser difícil cindir sua atuação na área recursal, no processo penal, de modo a comprometer o pleno exercício do contraditório. Aduziu-se, também, que o direito de a defesa falar por último é imperativo e decorre do próprio sistema, e que a inversão na ordem acarretaria prejuízo à plenitude de defesa. Portanto, na visão do Supremo, a sustentação oral do representante do Ministério Público no processo penal, sobretudo quando seja recorrente único, deve sempre preceder à da defesa, sob pena de nulidade do julgamento. Portanto, ao que indica a doutrina, chegamos à conclusão de que, por ser uma instituição dotada do atributo da indivisibilidade, inviável, muito embora comum, a distinção entre autor e fiscal da lei - parte ou interveniente - em segundo grau de jurisdição criminal. Em verdade, interpretamos a atuação do Ministério Público de forma dúplice, não podendo ser desconsiderado o fato de ser órgão acusador e, portanto, parte autora no processo crime, bem como fiscal da ordem jurídica, atribuições estas que não se alteram com a alternância de grau jurisdicional. Eventual entendimento contrário, ao nosso ver, acabaria por pressupor dualidade, em órgão uno e indivisível e levaria a atuações evidentemente esquizofrênicas ou totalmente parciais pelo Parquet, em latente prejuízo ao acusado. 5 LEGISLAÇÃO APLICÁVEL À MATÉRIA Confirmando a doutrina anteriormente colacionada, as atribuições do Ministério Público, embora múltiplas, estão sintetizadas no artigo 127 da Constituição Federal, in verbis: Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. § 1º São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional. (BRASIL, 1988) O artigo supra prevê os princípios da unidade e indivisibilidade aplicáveis ao órgão ministerial, bem como a sua atuação na forma de fiscal da ordem jurídica, argumentos utilizados pela doutrina especializada e na decisão paradigmática. 15 Em complemento, o artigo 129, da Carta Magna, nos diz: Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei. (BRASIL, 1988) Nas mesmas linhas, o Código de Processo Penal dispõe: Art. 257. Ao Ministério Público cabe: I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma estabelecida neste Código; e II - fiscalizar a execução da lei. (BRASIL, 1941) Pois bem, da interpretação dos comandos normativos se percebe a dupla forma de atuação do Ministério Público, seja como titular da ação da ação penal e como fiscal da Lei. Importa, neste ponto, destacarmos que a Constituição Federal não extingue uma função em detrimento da outra, mas sim, reforça que o órgão, como um todo – interpretação esta que se dá em face do princípio da indivisibilidade, detém referidas atribuições de forma concomitante. Por sua vez e, de onde nasce a controvérsia analisada pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça, o artigo 610, do Código de Processo Penal, prevê: Art. 610. Nos recursos em sentido estrito, com exceção do de habeas corpus, e nas apelações interpostas das sentenças em processo de contravenção ou de crime a que a lei comine pena de detenção, os autos irão imediatamente com vista ao procurador-geral pelo prazo de cinco dias, e, em seguida, passarão, por igual prazo, ao relator, que pedirá designação de dia para o julgamento. Parágrafo único. Anunciado o julgamento pelo presidente, e apregoadas as partes, com a presença destas ou à sua revelia, o relator fará a exposição do feito e, em seguida, o presidente concederá, pelo prazo de 10 (dez) minutos, a palavra aos advogados ou às partes que a solicitarem e ao procurador-geral, quando o requerer, por igual prazo. (BRASIL, 1941) Depreende-se da norma colacionada que, em grau recursal de processo crime, o Ministério Público é chamado a emitir parecer na condição custos legis, apesar de já figurar como seu autor. Embora não cumpra neste trabalho acadêmico discorrer acerca do que entendemos ser verdadeiro anacronismo processual3, essa possível distinção que legitimaria 3 No que condiz à extinção da atuação do Ministério Público como parecerista em processo criminal. 16 o parecer do Procurador de Justiça, ou seja a de atuação do Ministério Público como parte ou fiscal da lei, autor ou custos legis, é inconsistente, como já vimos4. Prosseguindo a análise legislativa, interessante trazer à baila o conteúdo da Recomendação n° 57, de 5 de julho de 2017, do Conselho Nacional do Ministério Público. Essa reservou capítulo exclusivo para tratar da interação e integração entre os membros com atuação em instâncias jurisdicionais diversas, o que, por si só, nos revela o duplo papel de atuação do ministério público em segunda instância. Em seu artigo 10, visando maior integração entre primeira e segunda instância, a recomendação prevê: Art. 10. É fundamental que as unidades do Ministério Público brasileiro adotem medidas e desenvolvam sistemas visando fortalecer o diálogo, a interação e a integração entre os membros do Ministério Público que atuem nas diversas instâncias jurisdicionais. § 1º É necessária e urgente adoção de medidas para o aperfeiçoamento dos canais de aproximação e de diálogo entre os membros com atribuição em primeiro grau de jurisdição e aqueles com atribuição junto aos Tribunais nas causas mais complexas e/ou nas de grande repercussão social. § 2º É recomendável a implantação de mecanismos e rotinas para a maior integração entre os membros do Ministério Público que atuem nas diversas instâncias, inclusive por meio de reuniões, contatos telefônicos e virtuais que facilitem a atuação conjunta, sendo importante a informação sobre os resultados dos julgamentos aos órgãos de primeiro grau. § 3º Recomenda-se,também, a instituição de sistema de integração entre os membros do Ministério Público de instâncias jurisdicionais diversas para o acompanhamento das ações judiciais, em todas as fases, desde a origem até o trânsito em julgado, sendo importante a implantação de sistemática que permita o envolvimento das coordenadorias de recursos e centros e apoio operacional. Ainda, o artigo 13, da citada Recomendação, demonstra a latente parcialidade existente, atribuindo a possibilidade de indicação de causas que demandem acompanhamento específico, pelos membros de atuação em primeiro grau, aos de atribuições nos tribunais, veja-se: Art. 13. Os membros do Ministério Público que atuam em primeiro grau de jurisdição, sempre que for necessário, comunicarão e indicarão aos membros que atuam nos tribunais as causas que suscitem específico acompanhamento e atuação mais proativa, sem prejuízo da existência e/ou da criação de outros canais de 4 A nosso ver, a separação entre ambos papeis acabaria na aceitação de dualidade em órgão uno, indivisível e na possível conclusão de que o Membro atuante em primeiro grau não atue como custos legis, apenas como parte, e o de atuação em segunda instância, apenas como fiscal da lei, conclusões estas são totalmente contraditórias às atribuições previstas na Magna Carta, aplicáveis a todos os integrantes do parquet. 17 mapeamento e comunicação que identifiquem hipóteses que mereçam atuação mais qualificada do Ministério Público. Por fim, o artigo 14, embasando-se nos princípios da unidade e indivisibilidade possibilita a atuação conjunta entre membros do Ministério Público com atribuição nos Tribunais e no primeiro grau: Art. 14. Os princípios da unidade e da indivisibilidade do Ministério Público, interpretados à luz do direito constitucional fundamental à tutela jurisdicional efetiva e adequada (art. 5º, XXXV, e § 2º, da CF/1988), impõem que, havendo a concordância do membro do Ministério Público com atribuição para atuar nos Tribunais, é admissível a atuação conjunta eventual com o membro do Ministério Público de primeiro grau, mediante a apresentação de sustentação oral ou outra manifestação processual. § 1º Em decorrência dos princípios da unidade e da indivisibilidade do Ministério Público, interpretados à luz do direito constitucional fundamental à tutela jurisdicional efetiva e adequada (art. 5º, XXXV, e § 2º, da CF/1988), havendo a concordância do membro do Ministério Público com atribuição para atuar em primeiro grau, é admissível a atuação conjunta eventual com o membro do Ministério Público com atribuições junto aos Tribunais, mediante a prática de atos processuais e extraprocessuais em primeiro grau. § 2º As disposições do caput e do § 1º deste artigo são aplicáveis também quando se tratar da atuação conjunta entre membros do Ministério Público da União e dos Estados. Ou seja, ainda que parte da doutrina e jurisprudência entenda que a atuação do parquet em segundo grau se dá de forma única e exclusiva como custos legis, após a manifestação da defesa, em face da disposição do artigo 610, do Código de Processo Penal, percebemos que tal entendimento afronta, de forma latente, o contraditório e se encontra em contradição com a Recomendação n° 57/2017. Órgão uno e indivisível, de atuação dúplice e, com previsão de seu órgão fiscalizador - Conselho Nacional do Ministério Público – acerca da integração entre primeira e segunda instância, irrazoável pensar em uma atuação estrita como custos iuris, existindo sim, um papel dúplice em sua atuação na segunda instância criminal. 6 CONCLUSÃO Ante o exposto, podemos observar que o Colendo Superior Tribunal de Justiça, ao 18 julgar o Habeas Corpus n° 208.015-SP, de forma assertiva, aplicando o precedente proferido no Habeas Corpus n° 87.926-SP, oriundo do Supremo Tribunal Federal, considerou como dúplice (parte e custos legis) a forma de atuação do Ministério Público em segundo grau de jurisdição, inexistindo, por conseguinte, a figura exclusiva de fiscal da lei. Entendimentos divergentes, como o contido na decisão proferida no Habeas Corpus n° 244.999, oriundo do próprio Superior Tribunal de Justiça, que considerou a atuação em segunda instância como sendo, exclusivamente, de custos legis, além de prejudicarem, por óbvio, o contraditório e colocarem o réu em posição de desvantagem, desconsideram a interpretação processual do conceito de parte e ignoram o princípio constitucional da unidade, aplicável ao Órgão Ministerial. Às vistas da extensa doutrina, restou evidenciado que a atuação do Ministério Público, em qualquer grau de jurisdição criminal, é de parte e fiscal da lei, uma não excluindo a outra, mas constituindo verdadeiro duplo papel, tanto de órgão titular da ação penal, como de fiscalizador da ordem jurídica. Inexistindo a separação pretendida em face do princípio da unidade, pelo qual o parquet é regido, segundo nossa Magna Carta. De mais a mais, não podemos ignorar o fato do próprio Conselho Nacional do Ministério Público, considerando os avanços jurisprudenciais existentes, regulamentar a integração e atuação conjunta entre membros da primeira e segunda instância visando um objetivo comum – qual seja, a defesa da ordem jurídica - e, portanto, regulamentando o duplo papel. O que mostra, mais uma vez, acertada a decisão que considera a dúplice atuação do parquet em segundo grau, extinguindo a figura exclusiva de custos legis. Portanto, a outra conclusão não podemos chegar, a não ser aquela que prevê a atuação do Órgão Ministerial em segunda instância criminal de forma dúplice, ou seja, agindo como parte e fiscal da lei, uma vez que se trata de órgão uno e indivisível. Cabendo acrescentar, já em linhas conclusivas, que entendimento divergente poderia implicar o comprometimento a direitos do acusado, em desatendimento à igualdade das partes, à ampla defesa e ao contraditório. 19 REFERÊNCIAS BRASIL, Presidência da República. Código Penal de 1940. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm>. Acesso em 05 out 2018. BRASIL, Presidência da República. Lei n° 10.695, de 1º de Julho de 2003. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2003/L10.695.htm>. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n° 208015-SP, da 6ª Turma do STJ, DF, 17 novembro de 2015. Disponível em: < http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=208015&b=ACOR&p=true&t=J URIDICO&l=10&i=2>. Acesso em 05 out 2018. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n° 227.414-MG, da 6ª Turma do STJ, DF, 05 de junho de 2014. Disponível em: < http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=227414&b=ACOR&p=true&t=J URIDICO&l=10&i=5>. Acesso em 05 out 2018. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Habeas Corpus n° 227.414-MG, da 6ª Turma do STJ, DF, 27 de agosto de 2013. Disponível em: < http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=195965&b=ACOR&p=true&t=J URIDICO&l=10&i=7>. Acesso em 05 out 2018. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n° 87926-8/SP, Tribunal Pleno do STF, DF, 20 de fevereiro de 2008. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=523321>. Acesso em 05 out 2018. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n° 244.999-SP, da 6ª Turma do STJ, DF, 23 de abril de 2013. Disponível em: < 20 http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=244999&b=ACOR&p=true&l=10 &i=3>. Acesso em 05 out 2018. DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de Processo Penal. 3ª ed., rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. MAZZILLI, Hugo Nigro. A natureza das funções do Ministério Público e sua posição no processo penal. In Revista dos Tribunais, 805/464, nov. 2002. Disponívelem: < http://www.mazzilli.com.br/pages/artigos/naturezamp.pdf>. Acesso em 05 out 2018. PRADO, Geraldo. O Sistema Acusatório: A conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006. MALAN, Diogo Rudge. A sentença incongruente no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. VIANA, Lourival Vilela. Partes no Processo Penal. Disponível em <https://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/download/690/650>. Acesso em 05 out 2018. DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de Processo Civil. Salvador: juspodium, 2007. MARINONI, Luiz Guilherme. Processo do Conhecimento. 9. ed. rev. atual.- São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. MOREIRA, Jairo Cruz. A intervenção do Ministério Público no Processo Civil à luz da Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. AVENA, Norberto Cláudio Pâncaro. Processo penal: esquematizado. 4ª ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2012. MAZZILLI, Hugo Nigro. Princípios institucionais do Ministério Público brasileiro. In 21 Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul, n. 731 jan./2013 – abr/2013. Disponível em: <http://www.mazzilli.com.br/pages/artigos/princinst.pdf>. Acesso em 05 out 2018. JACOBINA, Paulo. Ministério Público como fiscal da lei em ação penal pública. Boletim dos Procuradores da República, ano 1, n° 6, 1998. SCHIETTI, Rogério. Garantias Processuais nos Recursos Criminais. São Paulo: Atlas, 2002. TAVORA, Nestor. Curso de direito preocessual penal / Nestor Távora, Rosmar Rodrigues Alencar. 11ª ed., rev. ampl., e atual. Salvador: JusPodivm, 2016. TORON, Zacharias. O contraditório nos tribunais e o Ministério Público. In Escritos em homenagem a Alberto Silva Franco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único / Renato Brasileiro de Lima – 4. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2016. BRASIL, Presidência da República. Constituição Federal de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em 05 out 2018. BRASIL, Presidência da República. Código de Processo Penal de 1941. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3689.htm>. Acesso em 05 out 2018. BRASIL, Conselho Nacional do Ministério Público. Recomendação n° 57 de 05 de julho de 2017. Disponível em: <http://www.cnmp.mp.br/portal/images/Recomendacoes/Recomenda%C3%A7%C3%A3o- 057.pdf> Acesso em 05 out 2018. http://www.mazzilli.com.br/pages/artigos/princinst.pdf
Compartilhar