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1 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 Cardiologia INSUFICIÊNCIA CARDÍACA Introdução e Definição: - A insuficiência cardíaca é uma síndrome clínica definida por disfunção cardíaca que causa suprimento sanguíneo inadequado para as demandas metabólicas dos tecidos. - Aproximadamente 60% dos casos de insuficiência cardíaca ocorrem devido a um déficit na contratilidade ventricular (disfunção sistólica) e 40% dos casos ocorrem devido a um déficit no relaxamento ventricular (disfunção diastólica). - A disfunção sistólica é definida como a insuficiência cardíaca em que o paciente apresenta função sistólica diminuída, ou seja, fração de ejeção reduzida (FE ≤ 40%). - A disfunção diastólica é definida como a insuficiência cardíaca em que o paciente apresenta função sistólica normal, ou seja, fração de ejeção preservada (FE ≥ 50%). - Os pacientes com FE entre 40 e 50% não são definidos como tendo FE aumentada ou reduzida. Entretanto, alguns estudos apontam que eles apresentam prognóstico e quadro clínico semelhante ao dos pacientes com FE preservada. - O termo insuficiência cardíaca congestiva (ICC) é muito utilizado na prática clínica para descrever uma consequência muito comum da IC, o aumento da pressão hidrostática nos capilares sanguíneos do organismo, resultando em extravasamento de líquido para o interstício e, portanto, congestão e edema. Epidemiologia: - A insuficiência cardíaca apresenta alta prevalência e grande impacto na morbimortalidade em todo o mundo, sendo considerada hoje um grave problema de saúde pública. - A insuficiência cardíaca descompensada representa a principal causa de internação no SUS em pacientes com 65 anos ou mais. - 23 milhões de casos em todo o mundo e 6,5 milhões de casos no Brasil. - A ICFEP parece apresentar mortalidade menor que a ICFER, devido à função sistólica preservada. - A incidência de IC tem aumentado no mundo e no Brasil. Ela está altamente relacionada com o envelhecimento da população, os hábitos de vida sedentários e o aumento da prevalência de doenças como HAS, DM e obesidade. - A cardiopatia isquêmica ultrapassou a Doença de Chagas como etiologia mais frequente de IC no Brasil. - Muitos avanços ocorreram no tratamento clínico e cirúrgico da doença cardiovascular. Etiologias: - Cardiopatia isquêmica (principal causa). - Cardiopatia hipertensiva. - Valvulopatias. - Cardiomiopatia dilatada (idiopática em 47% dos casos). - Cardiomiopatia alcoólica. - Doença de Chagas. OBS.: Na maioria dos pacientes com IC, há sobreposição entre diferentes etiologias. Fatores de Risco: - Doença Arterial Coronariana (DAC). - Diabetes. - Tabagismo. - Valvulopatias. - Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS). - Obesidade. Fisiopatologia: - Na cardiopatia isquêmica, a perda da perfusão coronariana causa a morte de cardiomiócitos, resultando em disfunção diastólica nos estágios mais iniciais e, principalmente, disfunção sistólica, devido à hipocinesia ou à acinesia da parede dos ventrículos, especialmente após episódios de IAM. - A HAS causa aumento da pós-carga sobre o ventrículo esquerdo. Isso causa sobrecarga de pressão sobre o ventrículo esquerdo, que necessita de força e pressão 2 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 maior para vencer a resistência ao fluxo sanguíneo e ejetar sangue para a aorta. - Até certo ponto, a sobrecarga de volume sobre o ventrículo esquerdo, traduzida pelo aumento da pré-carga, resulta em distensão dos sarcômeros das fibras miocárdicas (cardiomiócitos) e aumento de sua força de contração para aumentar o volume sistólico de ejeção em resposta ao aumento do volume diastólico final para, assim, manter a fração de ejeção preservada. - Entretanto, quando as fibras miocárdicas são exageradamente distendidas, a sua força de contração torna-se reduzida, fazendo com que o volume sistólico de ejeção e a fração de ejeção diminuam. A diminuição do débito cardíaco resulta em hipotensão, que é detectada por barorreceptores, localizados principalmente no arco aórtico e no seio carotídeo. Esses receptores ativam mecanismos que buscam aumentar o cronotropismo (frequência cardíaca) e o inotropismo (contratilidade miocárdica) cardíacos. - Os dois principais mecanismos que são ativados são o sistema nervoso autônomo simpático, com liberação de adrenalina e noradrenalina na circulação sanguínea, e o sistema renina-angiotensina-aldosterona, que é ativado em resposta à diminuição da perfusão renal devido à hipotensão, o que resulta em diminuição da filtração de sódio. O sistema renina-angiotensina-aldosterona causa vasoconstrição, aumentando a resistência vascular periférica, e aumento da reabsorção de sódio e água nos rins, causando aumento da volemia e, consequentemente, do retorno venoso, do débito cardíaco e da pressão arterial. - Inicialmente, esses mecanismos adaptativos auxiliam o sistema cardiovascular a manter o débito cardíaco e a perfusão tecidual. Entretanto, com a persistência das alterações que reduziram a função cardíaca e a ativação persistente do sistema renina-angiotensina-aldosterona, ocorre um processo de remodelamento cardíaco, que pode causar a sua hipertrofia. A hipertrofia ventricular esquerda pode ser concêntrica, quando há aumento da espessura da parede ventricular sem aumentar a cavidade ventricular, como ocorre em resposta à HAS, em que há aumento da pós-carga. A hipertrofia ventricular esquerda pode ser excêntrica, também sendo chamada de dilatação ventricular esquerda, como ocorre em resposta às insuficiências valvares, em que há aumento pré-carga. Os remodelamentos cardíacos causam inicialmente disfunção diastólica, aumentando a suscetibilidade a isquemias e arritmias, e posteriormente disfunção sistólica. - Apesar da ativação do sistema simpático e do sistema renina-angiotensina-aldosterona ser importante para as adaptações fisiológicas do corpo e as alterações do débito cardíaco quando a IC pode ser compensada, a sua ativação crônica é prejudicial ao sistema cardiovascular e o aumento da pré-carga e da pós-carga influencia na progressão da IC quando a doença não pode mais ser compensada. - Todo paciente com IC grave apresenta algum grau de insuficiência mitral, pois a dilatação do ventrículo esquerdo também causa dilatação da valva mitral e consequente insuficiência mitral. A insuficiência mitral diminui ainda mais a fração de ejeção, agravando os sintomas do paciente. Fatores Precipitantes: - Infecção. - Interrupção de medicamento(s). - Ingestão excessiva de sódio ou água. - Isquemia miocárdica. 3 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 - Embolia pulmonar. - Insuficiência renal. - Anemia. - Crise hipertensiva. - Arritmias. - Abuso de álcool. - Drogas. Quadro Clínico: - IC esquerda: aumento do represamento de sangue na circulação pulmonar, causando congestão pulmonar e resultando em sintomas como: → Dispneia aos esforços. → Dispneia paroxística noturna. → Ortopneia. → Edema agudo de pulmão. → Derrame pleural. OBS.: O derrame pleural na ICC ocorre bilateralmente ou isoladamente à direita, mas nunca isoladamente à esquerda, havendo a necessidade de investigação de outra etiologia para o derrame pleural caso ele ocorra dessa forma. - IC direita: aumento do represamento de sangue na circulação sistêmica, causando congestão sistêmica e resultando em sintomas como: → Edema periférico (membros inferiores). → Turgência jugular. → Hepatomegalia e esplenomegalia, devido à congestão hepática e esplênica. → Ascite. → Crepitações em bases pulmonares, devido à congestão pulmonar. - A principal causa de IC direita é a IC esquerda prévia, que causa represamento de sangue na circulação pulmonar, aumentando a resistência vascular pulmonar e a pós-carga do ventrículo direito. Entretanto, existem outras causas de IC direita, que também aumentam a pós-carga do ventrículo direito,como estenose mitral, cor pulmonale, hipertensão pulmonar primária e TEP. - Os casos extremos de IC, relacionados principalmente com a sua apresentação aguda, como ocorre após um IAM extenso, podem cursar com choque cardiogênico, caracterizado por hipoperfusão tecidual e PA média ≤ 65mmHg, que não responde à reposição volêmica, exigindo o uso de drogas vasoativas. Esse quadro apresenta altíssima mortalidade. - De acordo com a apresentação clínica da IC, ela pode ser classificada em 4 perfis: → Perfil A: quente e seco; bem perfundido e sem congestão; alvo terapêutico do paciente com IC. → Perfil B: quente e úmido; bem perfundido, porém congesto; apresentação mais comum dos pacientes hospitalizados por IC. → Perfil L: frio e seco; hipoperfusão tecidual sem congestão; apresentação menos comum da IC. → Perfil C: frio e úmido; hipoperfusão e congestão; apresentação de maior mortalidade da IC. - Há também a classificação funcional da New York Heart Association (NYHA), que classifica os pacientes de acordo com as suas limitações para desempenhar atividades: → Classe I: sem sintomas (dispneia) aos esforços. → Classe II: sintomas aos esforços habituais. → Classe III: sintomas aos mínimos esforços. → Classe IV: sintomas em repouso. - Há também a classificação da IC quanto ao estágio da doença (ACC-AHA): → Estágio A: ausência de sinais e/ou sintomas de IC; ausência de cardiopatias estruturais; risco elevado de desenvolver IC. → Estágio B: ausência de sinais e/ou sintomas de IC; presença de cardiopatia estrutural correlacionada à IC. → Estágio C: presença de sinais e/ou sintomas de IC; presença de cardiopatia estrutural. 4 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 → Estágio D: cardiopatia estrutural avançada; presença de sinais e/ou sintomas refratários ao tratamento. Exame Físico: - Avaliar fenômenos que indiquem congestão pulmonar ou sistêmica, como: → Estertores crepitantes em bases pulmonares e no terço médio do pulmão. → Turgência jugular. → Hepatomegalia. → Esplenomegalia. → Reflexo hepatojugular. → Ascite. → Edema de membros inferiores. - Na ausculta cardíaca, podemos observar: → Hipofonese de B1 (redução da função sistólica). → Hiperfonese de B2 (hipertensão pulmonar). → Presença de B3 (desaceleração do enchimento rápido ventricular em ventrículo com muito volume residual). → Presença de B4 (contração/galope atrial). Diagnóstico: - O diagnóstico é essencialmente clínico. Entretanto, vários exames complementares podem auxiliar no diagnóstico e na avaliação da gravidade da doença. - Os critérios de Framingham são critérios clínicos que possibilitam o diagnóstico de IC. - Diagnóstico de IC: 1 critério maior e 2 critérios menores ou 2 critérios maiores. - ECG: sinais de sobrecarga de câmaras cardíacas, bloqueios ou atrasos da condução do estímulo elétrico, alterações da repolarização ventricular e até arritmias cardíacas (pacientes com dilatação atrial podem desenvolver fibrilação atrial, por exemplo). - Radiografia de tórax: cardiomegalia (índice cardiotorácico > 50%), hipertrofias de câmaras cardíacas, sinais de congestão pulmonar (cefalização dos vasos sanguíneos pulmonares e linhas B de Kerley), edema 5 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 intersticial (infiltrado), edema alveolar (consolidação) e derrame pleural. - Ecocardiograma transtorácico: exame indicado para todos os pacientes com diagnóstico de IC; avalia a dimensão das câmaras cardíacas e a presença de valvulopatias; calcula a fração de ejeção, permitindo classificar os pacientes em ICFEP e ICFER. - Peptídeo Natriurético Cerebral (BNP): peptídeo produzido em resposta à dilatação das câmaras cardíacas com o objetivo de aumentar a excreção de sódio e água nos rins e, assim, diminuir a pré-carga. A dosagem dos níveis plasmáticos de BNP é útil para o diagnóstico diferencial de pacientes que apresentam quadros de dispneia e tosse seca e há dúvida entre etiologia cardíaca e etiologia pulmonar. Quando os níveis de BNP estão acima de 35 pg/mL, a causa dos sintomas é cardíaca e o paciente provavelmente apresenta ICC. Manejo dos pacientes com IC: - Identificar etiologia. - Identificar possíveis fatores precipitantes. - Definir se a disfunção é sistólica ou diastólica. - Identificar pacientes que possam se beneficiar de terapêuticas específicas (cirurgia, marcapasso). - Exames Laboratoriais de Avaliação Inicial: → Hemograma completo. → Creatinina. → Potássio. → Sódio. → Glicemia. → Perfil lipídico. → TSH. → Função hepática: TGO, TGP, bilirrubinas, fosfatase alcalina. - Exames Laboratoriais de Seguimento: → Creatinina. → Potássio. - Exames Complementares de Seguimento: → ECG. → Radiografia de tórax. → Ecocardiograma. Tratamento: Objetivos: - Aliviar os sintomas. - Melhorar a função sistólica ventricular. - Regular as alterações neuro-humorais da IC (hiperativação do sistema simpático e do sistema renina-angiotensina-aldosterona). - Reduzir o fenômeno de remodelamento ventricular. - Minimizar complicações como arritmias e tromboembolismos. Mudanças de Estilo de Vida: - Indicadas para todos os pacientes com IC, independentemente da fração de ejeção. - Redução da ingesta de água (< 1,5 L de H2O por dia). - Redução da ingesta de sal (< 5 g de NaCl por dia). - Cessação do etilismo e do tabagismo. - Tratamento da obesidade. - Vacinação contra influenza (anual) e pneumococo (a cada 5 anos), devido à morbimortalidade aumentada dos pacientes com IC. 6 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 Medicamentos que aumentam a sobrevida: - Medicamentos que diminuem a pressão arterial e o remodelamento cardíaco nos pacientes com ICFER. - IECA: captopril, enalapril, lisinopril; a principal reação adversa é a tosse. - BRA: losartana, valsartana; indicados em pacientes que apresentam reações adversas aos IECA. - Valsartana + Sacubitril: BRA + inibidor da neprilisina, enzima que degrada ANP e BNP, aumentando os níveis plasmáticos de ANP e BNP e seus efeitos natriuréticos; indicados em substituição aos IECA ou BRA em pacientes que mantêm PAS > 100 mmHg; a principal reação adversa é o angioedema. - Beta-bloqueadores: bisoprolol, carvedilol e succinato de metoprolol; indicados em todos os pacientes com disfunção sistólica, desde que não apresentem contraindicações como asma grave e bradicardias. - Antagonistas do receptor da aldosterona ou diuréticos poupadores de potássio: espironolactona; redução da pré-carga; indicados em pacientes com IC e disfunção sistólica classes III e IV da NYHA; a principal reação adversa é a hipercalemia, principalmente quando utilizados em associação com IECA ou BRA. - Hidralazina + nitrato: redução da mortalidade em pacientes negros com IC classes II, III e IV da NYHA; indicados para pacientes com IC sintomáticos mesmo em tratamento com beta-bloqueadores, IECA/BRA e antagonistas do receptor da aldosterona. Medicamentos para alívio dos sintomas: - Medicamentos indicados em pacientes com ICC principalmente em episódios de descompensação. Entretanto, essas drogas não apresentam redução comprovada da mortalidade. - Diuréticos de alça: furosemida; indicados no tratamento da congestão pulmonar e/ou sistêmica dos pacientes com IC; podem piorar a função renal dos pacientes, principalmente daqueles que já apresentam doença renal crônica. - Diuréticos tiazídicos: hidroclorotiazida, clortalidona; indicados no tratamento da congestão dos pacientes com IC, geralmente em associação com diuréticos de alça; as principais reações adversas são hiponatremia e hipocalemia. - Digitálicos: digoxina; aumenta o inotropismo cardíaco (contratilidade miocárdica); indicada para o tratamento de pacientes com ICFER sintomáticos mesmo em terapia clínica otimizada; apresentam janela terapêutica estreita; as principaisreações adversas são náuseas, vômitos, alterações visuais e arritmias cardíacas (taquiarritmias ou bradiarritmias). - Drogas vasoativas: noradrenalina e dobutamina; indicadas em pacientes muito graves, que estão em choque cardiogênico, por exemplo. Anticoagulantes: antagonistas da vitamina K, como varfarina, e novos anticoagulantes; indicados para a prevenção de trombose venosa profunda (TVP) e tromboembolismo pulmonar (TEP), principalmente em pacientes com ICC internados e com mobilidade reduzida. Outros tratamentos: - Tratamentos indicados para pacientes com IC refratários ao tratamento clínico otimizado. 7 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 - Ressincronização biventricular: marcapasso que sincroniza a sístole dos ventrículos; indicado em pacientes refratários ao tratamento clínico otimizado, apresentando FE ≤ 35% e bloqueio completo de ramo direito ou esquerdo. - Cardiodesfibriladores implantáveis (CDI): dispositivo que identifica arritmias como taquicardia ventricular (TV) e fibrilação ventricular (FV) e realiza cardioversão elétrica, reduzindo o risco de morte súbita cardiovascular; indicados para pacientes de alto risco para morte súbita cardiovascular e/ou com história prévia de TV ou FV. - Transplante cardíaco: indicado em casos selecionados. Tratamento da IC com fração de ejeção preservada: - Controle dos fatores de risco: → HAS. → DM. → Obesidade. - Drogas que resultaram em redução do número de internações: → BRA. → Espironolactona.
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