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1 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 Neurologia MANIFESTAÇÕES NEUROLÓGICAS DE DOENÇAS SISTÊMICAS Introdução: As manifestações clínicas neurológicas podem estar presentes em várias doenças sistêmicas. As principais doenças sistêmicas associadas a sinais e sintomas neurológicos são: - Doenças metabólicas e nutricionais: diabetes mellitus, dislipidemias, hipertireoidismo, hipotireoidismo, alcoolismo, anemia, deficiência de vitamina B12, insuficiência hepática, insuficiência renal. - Doenças infecciosas: pneumonia, ITU, HIV, sífilis, hepatite B, hepatite C, tuberculose. A neurossífilis cursa com demência, cefaleia, doenças cerebrovasculares, tabes dorsalis, etc. - Psiquiátricas: ansiedade, depressão, esquizofrenia. As doenças psiquiátricas, como ansiedade e depressão, simulam quadros de demência, com possibilidade de alterar o resultado do MEEM, distúrbios do sono, cefaleia, etc. As doenças psiquiátricas também podem causar sintomas neurológicos, inclusive motores. - Doenças cardiovasculares: HAS, tromboembolismo venoso. - Doenças oncológicas: síndromes paraneoplásicas. - Doenças reumatológicas: artrite reumatoide, LES, vasculites sistêmicas. Caso Clínico 1: Paciente feminina, 52 anos, professora, procura atendimento médico por quadro de fraqueza nos pés, com início há 2 semanas, com piora progressiva, associada a sensação de queimação e edema de membros inferiores. Apresenta febre baixa, artralgia e astenia. Nega infecção recente. Apresenta urina mais concentrada e espumosa. Ao exame neurológico, apresenta hiporreflexia dos membros superiores (MMSS) e arreflexia dos membros inferiores (MMII), com força grau V nos MMSS, grau IV proximal e grau II distal nos MMII, hipoestesia álgica e tátil dos MMII. Também há empastamento de panturrilha esquerda, com Sinal de Homans positivo. A paciente também apresenta dor, eritema, edema e aumento de temperatura de grandes e pequenas articulações de forma simétrica bilateralmente. A paciente apresenta sintomas consumptivos (febre, astenia e perda de peso). Diagnóstico Sindrômico: - Trombose venosa profunda (TVP). - Polineuropatia motora e sensitiva. - Síndrome inflamatória sistêmica (síndrome consumptiva). - Síndrome infecciosa. - Artrite. - Síndrome nefrítica. - Síndrome nefrótica. Hipóteses de Diagnóstico Etiológico: - Artrite reumatoide. - Síndrome de Sjögren. - LES. - Vasculites sistêmicas. - Infecções virais (dengue, HIV, hepatite B, hepatite C). Exames Complementares: - FAN, FR, anti-CCP, PCR, VHS, anti-DNA, anti-SSA, anti-SSB, ANCA, anticoagulante lúpico, anticardiolipina IgM e IgG, proteínas do complemento. - Creatinina e ureia. - Albumina, bilirrubinas, TGO, TGP, GGT, fosfatase alcalina. - Hemograma e plaquetas. - EQU e urocultura. - Sorologias (HIV, sífilis, hepatite B, hepatite C). - Exame do líquor. - Radiografia de tórax. - Ecografia de rins e vias urinárias. 2 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 Resultados de Exames Complementares: - Hemograma: Hb 10,2 I Leucócitos 6.400 I Plaquetas 210.000. - Marcadores inflamatórios: PCR 30 I VHS 82. - Função renal: Cr 3,5 mg/dL. - Eletrólitos: Na+ 138 I K+ 4,2. - Função hepática: TGO 22 I TGP 25 I GGT 40 I FA 62 I BT e frações normais. - EQU: Hb + I proteínas +++ I cilindros granulosos I eritrócitos 3/campo I leucócitos 15/campo. - Proteinúria de 24 horas: 2.800 mg. - Autoanticorpos: FAN reagente I FR não reagente I anti-CCP não reagente I anti-SSA não reagente I anti-SSB não reagente I anti- DNA não reagente I ANCA reagente I anticardiolipina IgM e IgG não reagentes I anticoagulante lúpico não reagente. - Exame do líquor: 2 células/mm3 I proteínas 48 mg/dL I glicose 60 mg/dL I lactato 1,0 mg/dL I VDRL não reagente I BAAR não reagente I exame bacteriológico e micológico negativos. - Radiografia de tórax sem alterações. - Ecografia de rins e vias urinárias sem alterações. Diagnóstico: Vasculite sistêmica com manifestações articulares (artrite), neurológicas (neuropatia motora e sensitiva) e renais (síndrome nefrítica). Realizada biópsia renal, que indicou a presença de glomerulonefrite esclerosante com presença de crescentes fibroepiteliais e infiltrado linfocítico. Tratamento: - Corticoides: pulsoterapia com metilprednisolona 1,0 g EV em bomba de infusão contínua por 5 dias. - Anti-helmínticos antes da pulsoterapia: prevenção de superinfecção por Strongyloides estercoralis; ivermectina 12 mg VO em dose única. - Imunossupressores: ciclofosfamida EV por 6-12 meses. - Anticoagulante: heparina EV ou enoxaparina SC por 5-7 dias, seguindo de varfarina VO por 3-6 meses. Manifestações Neurológicas de Doenças Reumatológicas: As doenças reumatológicas, tais como lúpus eritematoso sistêmico (LES), artrite reumatoide, síndrome de Sjögren, síndrome do anticorpo antifosfolipídio (SAAF), sarcoidose e vasculites sistêmicas (ANCA- positivas e ANCA-negativas), associam-se a várias manifestações clínicas neurológicas: - Mononeuropatia múltipla: LES, artrite reumatoide, síndrome de Sjögren, sarcoidose, vasculites sistêmicas. - Meningite asséptica: LES, artrite reumatoide, sarcoidose. - Trombose venosa cerebral: LES, SAAF, vasculites sistêmicas. - AVC isquêmico: LES, sarcoidose, vasculites sistêmicas. - Lesões da substância branca: LES, síndrome de Sjögren, sarcoidose. - Luxação atlantoaxial: artrite reumatoide. - Epilepsia: LES, síndrome de Sjögren, sarcoidose. - Demência e psicose: LES, artrite reumatoide, síndrome de Sjögren, sarcoidose. A avaliação diagnóstica baseia-se em dosagem de marcadores inflamatórios (PCR e VHS), autoanticorpos, que variam quanto às diferentes doenças reumatológicas (FAN, FR, anti-CCP, anti-SSA, anti-SSB, anti-DNA, ANCA, anticardiolipina IgM e IgG, anticoagulante lúpico, etc) e proteínas do sistema complemento (C3 e C4). O tratamento das manifestações clínicas neurológicas depende da doença reumatológica subjacente. Entretanto, o tratamento inicial das doenças autoimunes baseia-se em uso de corticoides sistêmicos, como prednisona VO ou metilprednisolona EV, e imunossupressores, como ciclofosfamida. Caso Clínico 2: Paciente feminina, 22 anos, grávida de 18 semanas, dá entrada à emergência obstétrica por quadro de vômitos incoercíveis 3 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 há aproximadamente 2 semanas, não sendo capaz de alimentar-se adequadamente. Ao exame inicial, encontra-se desidratada e pálida, com sinais de desnutrição crônica. Ao exame neurológico, apresenta rebaixamento do nível de consciência (GCS de 12), oftalmoplegia bilateral e arreflexia. Diagnóstico Sindrômico: - Hiperêmese gravídica. - Encefalopatia. - Hipertensão intracraniana. - Deficiências nutricionais. Hipóteses de Diagnóstico Etiológico: - Deficiência de Ácido Fólico. - Deficiência de Vitamina B12. - Distúrbio hidroeletrolítico. - Encefalopatia de Wernicke-Korsakoff: deficiência de Vitamina B1 (tiamina). Exames Complementares: - Hemograma e plaquetas. - EQU e urocultura. - Ácido Fólico. - Vitamina B1. - Vitamina B12. - TSH e T4 livre. - Creatinina e ureia. - Eletrólitos (sódio e potássio). - Albumina, bilirrubinas, TGO, TGP, GGT, fosfatase alcalina. - Sorologias (HIV, sífilis, hepatite B e hepatite C). - Exame de neuroimagem (TC de crânio). Os pacientes com alcoolismo, desnutrição crônica, hiperêmese gravídica, etc, apresentam risco aumentado de apresentar deficiência de tiamina (vitamina B1), resultando em desenvolvimento da encefalopatia de Wernicke-Korsakoff. A Síndrome de Wernicke é definida como a deficiência aguda de tiamina. A Síndrome de Korsakoff é definida como a deficiência crônica de tiamina. A reposição de tiamina (vitamina B1) deve ser realizada quando há suspeita clínica de deficiência aguda (Síndrome de Wernicke), não havendo necessidade de dosar os níveis séricos de tiamina antesde iniciar a reposição. Diagnóstico: Síndrome de Wernicke-Korsakoff, causada por deficiência de tiamina (vitamina B1). Tratamento: - Iniciar com reposição parenteral de tiamina (EV ou IM). - Seguir com reposição oral de tiamina. Manifestações Neurológicas de Doenças Nutricionais: As doenças nutricionais, tais como deficiência de tiamina (vitamina B1), niacina (vitamina B3), piridoxina (vitamina B6), ácido fólico (vitamina B9), cobalamina (vitamina B12), vitamina A, vitamina D e vitamina E, associam-se a várias manifestações clínicas neurológicas. As principais causas de hipovitaminoses e as principais manifestações clínicas neurológicas associadas são: - Tiamina ou Vitamina B1: → Causas: vômitos recorrentes, cirurgia bariátrica, alcoolismo, dietas e doenças graves em pacientes hospitalizados. → Manifestações Neurológicas: arreflexia, beribéri (neuropatia periférica motora e sensitiva simétrica que acomete principalmente extremidades distais), Síndrome de Wernicke (ataxia, oftalmoparesia/oftalmoplegia, nistagmo e confusão mental) e Síndrome de Korsakoff (confabulação e perda de memória recente). - Niacina ou Vitamina B3: → Causas: alcoolismo, síndromes de má- absorção intestinal, cirurgia bariátrica, dietas ricas em milho. → Manifestações Neurológicas: pelagra (alucinações, delírios, confusão mental, demência, perda de memória), encefalopatia e neuropatia periférica. - Piridoxina ou Vitamina B6: → Causas: alcoolismo, síndromes de má- absorção intestinal, medicações (penicilamina, isoniazida, hidralazina, levodopa + carbidopa). 4 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 → Manifestações Neurológicas: crises convulsivas/epilépticas e neuropatia periférica. - Ácido Fólico ou Vitamina B9: → Causas: alcoolismo, síndromes de má- absorção intestinal, medicações (metotrexato). → Manifestações Neurológicas: arreflexia, neuropatia periférica (motora e sensitiva, simétrica, acometendo principalmente membros inferiores), neuropatia óptica, disfunção autonômica, ataxia, mielopatia, fraqueza, demência, psicose, perda de memória, diminuição de atenção e concentração, irritabilidade, etc. - Cobalamina ou Vitamina B12: → Causas: alcoolismo, anemia perniciosa (gastrite atrófica), cirurgia bariátrica, envelhecimento, vegetarianismo e veganismo, parasitoses intestinais, medicações (metformina, omeprazol, anticonvulsivantes). → Manifestações Neurológicas: arreflexia, neuropatia periférica (motora e sensitiva, simétrica, acometendo principalmente membros inferiores), neuropatia óptica, disfunção autonômica, ataxia, mielopatia, fraqueza, demência, psicose, perda de memória, diminuição de atenção e concentração, irritabilidade, etc. - Vitamina A: → Causas: alcoolismo, síndrome de má- absorção intestinal, dietas. → Manifestações Neurológicas: cegueira noturna e retinopatia. - Vitamina D: → Causas: baixa exposição solar, síndrome de má-absorção intestinal. → Manifestações Neurológicas: miopatia e tetanismo. - Vitamina E: → Causas: colestase crônica, insuficiência pancreática exócrina, nutrição parenteral total. → Manifestações Neurológicas: ataxia, hiporreflexia, oftalmoplegia, neuropatia periférica, com perda de sensibilidade proprioceptiva e vibratória, e miopatia. Caso Clínico 3: Mulher, 68 anos, em tratamento para neoplasia maligna de mama (em quimioterapia), é trazida à emergência do hospital devido a quadro de confusão mental com piora progressiva há 15 dias. Inicialmente, os familiares a perceberam mais lenta e mais irritada, além de queixa de cefaleia holocraniana de moderada intensidade em aperto, associada a náuseas e vômitos, há aproximadamente 1 semana. Ao exame neurológico, apresenta-se sonolenta, desperta com estímulos verbais, desorientada em tempo e espaço. Nervos cranianos, motricidade e reflexos sem anormalidades. RM de crânio com impregnação difusa das leptomeninges, mais evidente em cerebelo, sem evidência de metástases cerebrais intraparenquimatosas. Hipóteses Diagnósticas: - Reações adversas à quimioterapia. - Síndromes paraneoplásicas. - Carcinomatose meníngea. - Infecções do SNC. - Distúrbios hidroeletrolíticos. Exames Complementares: - Hemograma e plaquetas. - EQU e urocultura. - PCR e VHS. - Creatinina e ureia. - Eletrólitos (sódio, potássio, cálcio). - Albumina, bilirrubinas, TGO, TGP, GGT e fosfatase alcalina. - Sorologias (HIV, sífilis, hepatite B e hepatite C). - Exame do líquor. - Radiografia de tórax. Resultados dos Exames Complementares: - Exame do líquor: 140 células/mm3 (90% de linfócitos), proteínas 50 mg/dL, glicose 90 mg/dL, lactato 3,2 mg/dL, exame bacteriológico e micológico negativos, BAAR negativo, PCR para HIV, tuberculose, CMV e EBV negativos, ADA 8,0 UI/L, citopatológico positivo para células neoplásicas. 5 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 Diagnóstico: Carcinomatose meníngea (metástase do câncer de mama em leptomeninges). Tratamento: - Quimioterapia intratecal. Manifestações Neurológicas em Oncologia: As manifestações clínicas neurológicas podem estar presentes em pacientes oncológicos. As principais causas de sinais e sintomas neurológicos em pacientes oncológicos são: - Complicações associadas ao tratamento oncológico (quimioterapia, radioterapia): reações adversas às drogas quimioterápicas, imunossupressão, etc. - Metástases cerebrais intraparenquimatosas. - Carcinomatose meníngea: infiltrado difuso das leptomeninges, de evolução subaguda, causando cefaleia, confusão mental, crises convulsivas/epilépticas, mononeuropatia múltipla de nervos cranianos, etc; associa-se a mau prognóstico da neoplasia maligna; diagnóstico confirmado por presença de exame citopatológico do líquor positivo para células malignas. - Síndromes paraneoplásicas: o tratamento da síndrome paraneoplásica baseia-se em ressecção cirúrgica do tumor; em casos de impossibilidade de ressecção cirúrgica do tumor, deve-se administrar imunoglobulina ou realizar plasmaférese; em casos refratários, recomenda-se o uso de rituximabe. Caso Clínico 4: Homem, 68 anos, com diagnóstico de Doença de Parkinson há 2 anos, apresentando sintomas depressivos. Primeiro episódio depressivo maior aos 30 anos, após demissão. Os sintomas resolveram-se espontaneamente após alguns meses, sem tratamento. Segundo episódio depressivo maior aos 40 anos, após morte do pai. Os sintomas permaneceram durante algumas semanas, fazendo o paciente procurar atendimento psiquiátrico. Prescrição de fluoxetina 20 mg/dia com boa resposta em 6 semanas. Suspendeu o tratamento após 1 ano, permanecendo assintomático. Desde o diagnóstico da Doença de Parkinson, os sintomas motores foram bem controlados com levodopa/carbidopa 100mg/25mg 3x/dia. No último mês, iniciou quadro de cansaço ao despertar, com perda do interesse em conviver com os filhos e os netos. Nega ideação suicida, mas relata sentir-se inútil. Relata que os sintomas são diferentes dos episódios depressivos prévios. A esposa relata apatia e irritabilidade. Hipóteses Diagnósticas: - Transtorno depressivo maior. - Depressão associada à Doença de Parkinson. A depressão representa manifestação clínica comumente prodrômica da Doença de Parkinson e pode manifestar-se ao longo de todo o curso da doença, havendo benefício do uso de antidepressivos. Continuação: Durante as férias de seu neurologista assistente, o paciente recebeu a prescrição de pramipexol. Um mês depois, a esposa relata preocupação, pois o paciente perdeu 10.000 reais em apostas online. Nega comportamentos semelhantes previamente. Passou também a acumular objetos como garrafas vazias e jornais antigos. Exame físico e exames complementares (laboratoriais e neuroimagem) sem anormalidades. Hipótese Diagnóstica: O paciente apresentou virada maníaca, aumentando a suspeita de transtorno de humor bipolar. Entretanto, como o paciente tem 68 anosde idade, a probabilidade de iniciar quadro de transtorno de humor bipolar é baixa. A adição do pramipexol (agonista dopaminérgico) ao tratamento da Doença de Parkinson provavelmente causou os sintomas maníacos/psicóticos. O pramipexol pode causar síndrome de desregulação 6 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 dopaminérgica, resultando em sintomas de humor. A conduta baseia-se em suspender o uso de pramipexol. Continuação: Considerando as queixas dos familiares, foi suspensa a prescrição de pramipexol e iniciado biperideno. Na mesma semana, o paciente iniciou quadro de alucinações visuais (vê animais e pessoas que não existem em sua casa). Familiares retornam ao neurologista assistente e questionam se estes sintomas são atribuídos à Doença de Parkinson. Hipótese Diagnóstica: A Doença de Parkinson pode cursar com sintomas psicóticos, mas não em fases tão precoces da doença e nem de forma tão abrupta. Neste caso, os sintomas psicóticos do paciente devem-se a efeito adverso do biperideno (anticolinérgico) recentemente iniciado. A conduta baseia-se em suspender o uso de biperideno.
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