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Universidade de Brasília-UnB Faculdade de Educação- FE Mestrado em Educação O preconceito da deficiência nas relações afetivas: a constituição subjetiva de um deficiente físico DISSERTAÇÃO DE MESTRADO Bianor Domingues Barra Junior Brasília, DF junho 2005 Universidade de Brasília-UnB Faculdade de Educação- FE Mestrado em Educação Orientando : Bianor Domingues Barra Junior O preconceito da deficiência nas relações afetivas: a constituição subjetiva de um deficiente físico Orientadora: Profª. Drª. Elizabeth Tunes Dissertação apresentada à Faculdade de Educação da Universidade de Brasília como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação, na área de: Aprendizagem e Trabalho Pedagógico. Brasília, DF junho 2005 2 O preconceito da deficiência nas relações afetivas: a constituição subjetiva de um deficiente físico Dissertação defendida sob a avaliação da Comissão Examinadora constituída por: Profª. Drª. Elizabeth Tunes Orientadora Prof. Dr. Fernando Gonzaléz Rey Examinador Profª.Drª. Maria Carmen Villela Rosa Tacca Examinadora Profª. Drª. Maria Helena da Silva Carneiro Suplente 3 Se o si - mesmo da pessoa é o “si - mesmo de fora para dentro”, o si - mesmo histórico é “si - mesmo do passado para o presente”. (Bruner J.) 4 Agradecimento Mais uma vez, como um dos soldados pertencente ao exército de Deus, agradeço a Ele pela missão que me foi concedida e por ter me dado forças para conseguir vencer mais essa etapa. Agradeço também à minha mãe por mais uma vez ter demonstrado ser parceira e escudeira nos nossos desafios diários. À Beth, minha orientadora e agora amiga, por ter aceitado compartilhar este desafio comigo e ter acreditado na minha proposta incomum a uma tese de mestrado. Ao professor Fernando por ter sido um dos idealizadores teóricos que deu base a este trabalho. A Carmem por incentivar o início da escrita deste trabalho valorizando minhas concepções em detrimento das minhas dificuldades ortográficas. À Maria Helena pela objetividade, segurança e coesão que me proporcionou ao indicar caminhos mais claros. À amiga parceira de luta Andréa Vasconcelos, a principal (ir) responsável pela minha entrada no programa da pós-graduação. À Neide, Nicéia Mara e Leila que, como as quatro mosqueteiras, estavam sempre dispostas a ajudar e dividir as angústias, os medos e outros sentimentos. Ildamar amiga do coração fiel não somente em seus princípios da Fé, mais sim, no seu amor incondicional aos amigos verdadeiros. E também por compartilhar comigo os pequenos momentos cheios de detalhes e as conquistas dentro da nossa caminhada. Meu agradecimento bem carinhoso para minha equipe de apoio que sempre estava de prontidão nas horas mais difíceis: Amanda, Bianca, Breno, Carol, Cris, Jana, Paula. Que foram, várias vezes, as vozes e as escritas, e deram seu tempo para me ajudar. À Denise, minha amiga gaúcha, assessora particular com muito carinho especial pelo constante incentivo. E aos que não estão citados aqui, mas que incentivaram de alguma forma essa conquista. 5 Sumário Resumo.........................................................................................................................07 Abstract.........................................................................................................................09 Seção 01 – Por que estou fazendo este trabalho?.......................................................11 Seção 02 – Fundamentação teórica............................................................................25 2.1 O conceito de preconceito ................................................................................... 25 2.2 A concepção de subjetividade ...............................................................................31 2.3 Descrição da metodologia......................................................................................35 Seção 03 – A As crônicas e seu exame analítico- interpretativo:..............................41 A Opção pela escolha da máscara................................................................................43 A deficiência como cartão de visita dentro da sociedade............................................44 A Angústia de um educador........................................................................................46 As Conseqüências de uma queda................................................................................47 A Primeira e a última vez............................................................................................48 A Força impactante de um olhar.................................................................................49 A Revolta do Sapo......................................................................................................53 Dádiva ou Castigo dos Céus?......................................................................................59 Minha relação direta com Deus...................................................................................60 A Análise critica da Revolta do Sapo..........................................................................65 O Conceito de Imagem................................................................................................68 Uma Pequena lição......................................................................................................73 Eu, Eu mesmo e o outro..............................................................................................73 Da Conscientização da deficiência ao seu uso na inclusão social .............................75 O Preconceito deste dia..............................................................................................76 Que falta me faz à escrita............................................................................................77 Análise Pessoal visão depois do estudo das teorias de Vigostski ..............................80 Seção 04 – Considerações finais sobre o trabalho ...................................................83 Referenciais Bibliográficos .......................................................................................87 6 Resumo: Este trabalho é uma oportunidade de mostrar que um deficiente não se determina e não é determinado pela sua própria deficiência. Eu tive o privilégio de encontrar espaço e de demonstrar isso no meio acadêmico. Como esse assunto pode e deve ser discutido, não sendo conteúdo exclusivo de um grupo de pessoas socialmente rotuladas pela sociedade, para o alcance e conhecimento de todos, propus-me aqui a expor os meus próprios sentimentos, tais como: meus medos, minhas possíveis rejeições e toda a raiva que isso veio a gerar, exorcizar meus próprios fantasmas e reavaliar meus objetivos como educador e como pessoa situada num mundo em processo de inclusão social constante, dia após dia. Nesta dissertação de mestrado em educação, mostro a possibilidade de conciliar em um mesmo trabalho um Estudo de Caso que é autobiográfico, relatos de várias situações vividas sob a ótica da subjetividade nas relações humanas, aproveitando para me incluir como parte da ação, como um narrador-personagem. Analiso e categorizo em três eixos ou agrupamentos as minhas histórias de vida (crônicas), mais especificamente, dentro das relações ligadas à ação preconceituosa das pessoas e do próprio deficiente físico em relação à deficiência física, e à subjetividade individual e social, bem como suas conseqüências diretas nas relações afetivas do cotidiano. A estrutura do trabalhotem sua divisão em quatro seções: a primeira seção é um histórico. Um relato para que a leitura possa ser entendida, mostrando o desenvolvimento físico e social da pessoa deficiente, atendendo a ordem dos fatos. Na segunda seção, consta a fundamentação teórica, as conceituações de Preconceito e de Subjetividade. Já na terceira seção temos as crônicas que estão agrupadas em três núcleos, com os eixos temáticos, e em seguida há uma síntese pessoal do fato, comentando o conjunto das crônicas. Na quarta seção, apresento e faço as minhas considerações finais, procurando sempre estabelecer a ligação direta das vivências sociais embasadas nas teorias de suporte e procurando 7 compreender, analisar, justificar ou simplesmente tentando explicar a maioria das ações e reações do meu cotidiano. 8 Abstract This work is an opportunity to show that a deficient one do not determinate yourself and is not determined by its proper deficiency. I had the privilege to find space and to demonstrate it in the university. As this subject can and must be argued, and as it is not an exclusive content of a group of people socially friction by the society, for the reach and knowledge of all I considered here to expose my proper feelings, such as: my fears, my possible rejections and all the anger that this lode to generate, to banish my proper ghosts and to reevaluate my objectives as educator and as a situated person in a world in process of constant social inclusion, day after day. In this master dissertation in education I show the possibility to conciliate in the same work a Study of Case that is an autobiography, stories of some situations lived and analyzed under the optics of the subjectivity in the human relationships using to advantage to include me as part of the action as a narrator- personage. I analyze and I categorize in three axles or groupings my histories of life (chronicles), more specifically inside of the relations to the prejudiced action of the people and proper the deficient physicist in relation to the physical deficiency, and to the individual and social subjectivity, as the direct consequences in the affective relations of the daily one. The structure of the work has its division in four sections: The first section is a description. A story that the reading can be understood, showing the physical and social development of the deficient person, taking care of the order of the facts. The second section consists in the theoretical framework, the conceptualizations of Preconception and Subjectivity. In the third section, there are all the chronicles that are grouped in three nuclei with the thematic axles. After that, it has a personal synthesis of the fact, commenting the set of the chronicles. Finally, in fourth section I present and I make the final considerations, trying to settle a direct relation of the social experiences based on theoretical framework in 9 order to understand, to analyze, to justify or just trying to explain the majority of the actions and reactions of my daily one. 10 1º Seção Por que estou fazendo este trabalho? Era uma vez... Não! Não! Isso não é uma história qualquer; são fatos reais da vida que quero agora dividir com os leitores dessa dissertação de mestrado que me propus a fazer. Essa é uma história que precisa ser estudada e analisada por muitos por ser um vitorioso exemplo de vida que está dando certo, pessoa que é um deficiente físico, mais acima de tudo uma pessoa. (Domingues) Isso é o que acontece na maioria dos relatos, livros, artigos, revistas, reportagens e documentários sobre a área dita educação especial. É uma história na qual o protagonista é um sujeito que tem sempre alguma desvantagem, uma incapacidade do tipo bio-psico-social, de quaisquer ordens. Enfim, essa é uma das formas de categorização das pessoas. Neste caso específico, podemos chamar de visão “Pollianista”, uma referência a essa história pela sua forma e maneira puritana e ingênua de pensar e agir nas relações que se estabelecem dentro do mundo em que se vive. Mas, no caso em questão, isso jamais poderá acontecer, pois seria incompatível e não caberia com esta proposta de trabalho principalmente pela proximidade do objeto de estudo em questão, minha história de vida. Uma visão “Pollianista” como exposta acima, não está de acordo com a concepção de vida adotada por mim e também pela minha amiga, e agora, orientadora deste trabalho. Esta trajetória foi e está sendo cheia de vitórias e derrotas. Passa por perdas e ganhos dentro das variadas circunstâncias da vida, mas, às vezes, bem próximas umas das outras. Vejo isso como formas, maneiras e possibilidades de aprendizagem; logo, o protagonista, mesmo em seus melhores dias, não pode perder de vista o outro lado, sendo que ao conhecer a dor estará pronto para a hora das quedas. As conquistas e fracassos 11 dependem do ponto de vista e dos objetivos de cada um, pois na vitória existe perda assim como na derrota também há um ganho. Quando se tem coragem de ir atrás dos ideais para alcançar determinados objetivos e quando se usam as estratégias certas para tais conquistas, arrebata-se o espaço social e consolida-se o Eu como pessoa. Um dos grandes entraves da pessoa humana é o sentimento chamado ‘medo’. Este sim é um limitador, um regulador natural necessário dos seres humanos. Mas ao mesmo tempo ele tira muitas vezes as chances, as oportunidades de tentar algo. Independentemente do erro tente de novo, com outras estratégias. Entendo ainda que o erro nada mais é do que a tentativa que não saiu da maneira que você idealizou para uma ação específica. Não deixei que a possibilidade do meu erro me reprimisse. Essa inércia poderia acabar comparando-me com mais um atributo qualquer, mais um objeto do interesse humano ou de uma maneira coisificada de algo, do outro para o outro. A sociedade impõe modos de agir e de ser, e assim acabamos, de certa forma, permitindo esta imposição, deixando que isso aconteça. Mas também tem o outro lado da moeda, que é o de respeitar bastante os próprios medos, os limites, chegando bem perto das fronteiras entre os desafios pessoais e sociais, arriscando-se mais, e sempre com muito bom senso e responsabilidade. No entanto, ao final, a gente é que estabelece no dia-a-dia nossos próprios limites. E, como diz o velho ditado popular, “na mistura de herói com o louco, cada um de nós tem um pouco”. Talvez cada um de nós tenha mesmo uma parte de loucura dentro da nossa composição humana. Já que isso é, com certeza, um dos ingredientes principais na nossa constituição, essa inquietação geral, essa busca incessante por algo novo, a procura constante dos significados e dos sentidos para cada coisa, ação, reação, posição, estados ou situação, enfim, quaisquer que sejam o fenômeno e a manifestação que acontecem no nosso cotidiano. Desde o início, esse sujeito que pensa e sente é como um ser cheio de limites, incapaz de diversos feitos esperados para pessoas tidas como 12 normais. Daí a denominação de “dia de luto” ao dia em que a mãe recebe o diagnóstico de seu filho deficiente. Apenas com o tempo é que ela descobre as diversas possibilidades de seu filho, antes escondidas pelas palavras limitadoras do médico. Com a minha mãe não foi diferente. Segue um dos trechos iniciais dessa história de significados e de sentidos. O primeiro relatório que trazia o diagnóstico. Esta criança iniciou o tratamento neste hospital da rede Sarah em 23/06/72 (2 anos 5 meses), com queixas de atraso de maturação motora. Paciente filho único, nascido a termo, parto cesáreo por sofrimento fetal. Ao nascer, necessitou de reanimaçãoe permaneceram 06 dias em hospital. A mãe só percebeu que a criança não era normal, aproximadamente, aos 08 meses, pois a criança não mantinha a cabeça. Na ocasião, examinado por Dr. Paulo Melo, o paciente se mantinha sentado com dificuldade, apresentando reações de endireitamento para ambos os lados. Dentro da nossa caminhada de vida, podemos dizer que algumas ações e situações de dificuldade as quais passamos servem de estímulo pessoal e como um desafio constante ao longo do tempo. O que quero dizer é que, no meu caso particular, uma das principais forças positivas veio da própria resistência e luta de minha mãe. Enquanto eu era criança, foi ela a minha consciência e teve a percepção para o desenvolvimento das melhores estratégias e ações para um ganho mais próximo da realidade nas conquistas dos objetivos. (...) a criança com seu desenvolvimento comprometido por um defeito não é uma criança menos desenvolvida, mas sim, desenvolvida de outra maneira. (...) o defeito por si só não determina o desenvolvimento, (...) (Vygotski, 1997, p.39) Na verdade, o que eu sempre quis foi somente ser eu mesmo, Bianor Domingues Barra Júnior, com vários adjetivos vindo da própria condição 13 como super-herói ou coitadinho, um sujeito que queria apenas fazer algo um tanto diferente do comum, acabou fazendo algo improvável aos olhos da nossa sociedade. Dona Geyza é uma mãe comum, igual a todas outras, mas que teve como o seu maior mérito sempre ser o alicerce do caráter e a responsável, muitas vezes, pelas vitórias e conquistas do Bianor. Ela que sempre foi, e é até os dias de hoje, sua maior aliada, e certamente a cúmplice nesta longa caminhada de desafio pessoal que é viver sendo um deficiente físico. Ela foi minha maior incentivadora nas conquistas e vitórias pessoais e, por vários momentos, a única. Um verdadeiro escudo humano em forma de mãe. Um tipo de “o outro lado da moeda”, minha principal cúmplice nas ações do dia-a-dia. Uma mulher humilde, com poucas oportunidades de estudo, de trabalho e de ascensão social em sua vida que teve uma aceitação do filho em sua inteireza. Vivenciou as conseqüências pejorativas que uma avaliação diagnóstica precoce possa trazer. É o que eu chamo neste texto de “Kit do Deficiente recém-nascido”. É mais ou menos assim: O médico para a mãe: “Seu filho não vai fazer... isso... aquilo... ele nunca vai andar, falar, correr, brincar por conta própria, sorrir...” entre outros tantos absurdos mais. Enfim este especialista, da área da medicina, acaba de matar, de alguma forma, essa criança e, provoca nessa mãe, nesse momento, o que chamamos do ‘dia do luto’ que pode se estender por tempo indeterminado, dependendo muito da forma e das circunstâncias em que as palavras foram ditas para a mãe. Aqui, não posso deixar de dar a minha opinião sobre o diagnóstico médico. Essa seria uma das fontes de avaliação mais importantes. O corpo clínico dos especialistas passaria as informações mais relevantes e substanciais para o melhor desenvolvimento desse paciente. Orientaria principalmente a equipe na área de educação, de forma simples, clara, objetiva e direta, conforme as condições futuras desse paciente. No entanto, não é o que acontece. O diagnóstico torna-se um entrave, um limitador na trajetória escolar daquela pessoa. Uma marca, um rótulo, um 14 estigma, um atestado de incapacidade, de incompetência humana. Eu só não sei ao certo se é de quem é avaliado ou de quem avalia! Sempre falo que um diagnóstico mal feito ou precipitado pode acabar de vez com a esperança de qualquer criança que tenha uma deficiência física. O diagnóstico nada mais é do que o IS0 9001 da categorização e classificação de uma pessoa, com os seus desatributos físicos. E graças às combinações de situações favoráveis que foram acontecendo ao longo da minha vida, entendendo isso como as oportunidades que foram dadas, eu pude aproveitar a sua grande maioria. Dona Geyza soube esperar e investir mantendo sempre umas das regras mais básicas da maioria das mães perante os seus filhos: “persistir sempre, desistir jamais”. Acreditava ainda que nunca devemos deixar de buscar nossas conquistas, nossos objetivos. O que eu tenho é uma deficiência física neuro-motora, ou seja, paralisia cerebral do tipo tetraplegia mista coreoatetose e distonia, evoluindo para o atraso do desenvolvimento motor da pessoa. “O termo coreoatetose é usado para definir a associação de movimentos involuntários contínuos, uniformes e lentos (atetósicos) e rápidos, arrítmicos e de início súbito (coreicos), também é usado distonia é o termo para descrever um grupo caracterizado por espasmos musculares involuntários”. (disponível em: http://www.sarah.br/paginas/doencas/htm acessado em 29/05/05) . Fischinger, (1972, p.12) na sua definição apresenta como um dos conceitos para a paralisia cerebral: “um distúrbio sensorial e senso-motor causado por uma lesão cerebral, a qual perturba o desenvolvimento normal do cérebro”. Em mim, foi causada na hora do parto, através de enrolamento pelo cordão umbilical, o que causou anóxia, quer dizer, falta de oxigenação em uma determinada parte do cérebro. A Paralisia Cerebral como movimentos involuntários está freqüentemente relacionada com lesão dos gânglios da base (núcleos localizados no centro do cérebro, formados pelos corpos dos neurônios que compõem o trato extra-piramidal). Afetou, neste 15 caso, especificamente a coordenação motora fina, o equilíbrio em marcha e a articulação de alguns sons da fala, devido à alteração na motricidade (dificuldade na coordenação dos movimentos de lábios, língua e bochechas). Mas o cognitivo, a visão e a audição se mantiveram totalmente preservados. A minha deficiência, porém, não modificou certas atitudes e fatos. É bem verdade que eu era danado. Fui uma criança sapeca? Sim! Fui um adolescente chato? Sim! Sou um homem feito? Sim! Serei um velho com manias? Sim!...como qualquer pessoa que pertence a este mundo. Eu trago sempre comigo a convicção de ter o compromisso moral e ético como prioridade de vida. O que está em primeiro lugar, ao se tratar de um ser humano, deficiente ou não, é a pessoa como ela é, que possui antes de tudo um nome, uma personalidade, um caráter, um comportamento, um corpo, um espírito, uma certidão de nascimento, um registro geral, um cadastro de pessoa física. Se isso não acontece, a pessoa despersonaliza-se e transforma-se em “coisa” ou mais uma sigla qualquer que passa a substituí-la como: PC (Paralisia Cerebral), DA (Deficiência Auditiva), DM (Deficiência Mental), DV (Deficiência Visual), DF (Deficiência Física), DOWN (Síndrome de Down), entre tantas outras. Isto é entidade virtual com existência real que legitima o fato da exclusão. (...) a deficiência está associada àquilo que falta, àquilo que faz a pessoa diferente precisamente pelo que não tem pelo que é deficitário em relação a “todos os outros” (...) ( Martinez, 2003, p.74). Minha trajetória acadêmica no Ensino Fundamental e Médio foi absolutamente normal, em todos seus aspectos como um aluno de ensino regular. No aspecto acadêmico, em relação aos conteúdos, não houve tanta diferenciação, foi muito mais uma questão de adaptações por parte dos 16 professores e colegas dentro da sala de aula e fora dela. Sempre aproveitei ao máximo todas as fases e etapas pelas quais passei, aproveitei da melhor forma possível as oportunidades que a vida me ofereceu. Minha própria postura dentro e fora de sala de aula, de certa forma muito natural à frente dos colegas, foi um dos fatos determinantes para a minha inclusão social. Não tinha um sentimento de inferioridade perante osoutros alunos da turma por conta da deficiência, nem percebia atitudes assistencialistas para comigo. Nossa convivência transcorria naturalmente. A deficiência era, por diversos motivos, uma porta de entrada para novas amizades. As diferenças, fossem elas quais fossem, eram amenizadas através do convívio diário. No meu caso em particular, por muitas vezes, usei a própria condição de deficiente físico para estabelecer novas relações sociais por querer sempre me relacionar com as outras pessoas. Normal! Eu era uma peste! Usei minha deficiência centenas de vezes em benefício próprio entre os colegas ou adversários. Manipulei aqueles professores que tinha sobre mim a visão de “coitadinho ou de super herói”. Fazia praticamente todas as travessuras impossíveis e ficava olhando para o professor com a cara de anjo mais deslavada! E ele caía como um pato! Nossa! Era tão fácil “enganar” os professores! Também encontrei outros que eram bem mais espertos para com as minhas tentativas de controle dessas situações vividas. Os colegas sabiam desse esquema para manipular os professores, e eram coniventes, pois já sabiam que eu não iria deixá-los na mão, senão eu perderia a confiança deles. Não tinha nenhum tipo de arrependimento ou de culpa, somente aquela sensação muito gostosa de criança esperta e sapeca, de que foi mais um bobo que eu consegui enganar naquele instante, pura molecagem dessa fase da idade. “Eu sou senhor de mim mesmo, e de minhas próprias circunstâncias”. A defectologia possui o seu próprio e particular objeto de estudo. Os processos do desenvolvimento infantil -que ela estuda -apresentam uma enorme diversidade de formas, uma quantidade quase 17 ilimitada de tipos diferentes. A ciência deve estabelecer os ciclos e a metamorfose do desenvolvimento, descobrir as leis da diversidade e como dominar as leis deste desenvolvimento. (Vygostski, 1989 p.12) Assim, cheguei às portas do terrível vestibular, então muito mais próximo do que nunca. Surgia por fim, uma nova possibilidade, uma chance, que chamei de “O grande desafio”. Mais um, entre tantos outros! Mas este era um pouco excitante pela própria incompatibilidade, à primeira vista. A possibilidade de fazer algo novo me motivou a ser um profissional da Educação Física. Tive vários outros motivos pessoais para essa conquista e inúmeros incentivadores para atingir o objetivo desta formação profissional. Um deles é uma pessoa muito incrível como ser humano: Domingos, um professor de Educação Física do Ensino Médio. Um verdadeiro mestre. Alguém que, pela primeira, vez teve a sensibilidade para me perguntar se eu gostaria de praticar uma aula de educação física junto aos colegas ditos “normais”. A partir daí, essa experiência passou de uma simples aula para uma nova meta de vida. O grupo encarou a minha participação nas aulas como mais uma lição de vida e respeito ao próximo, assim como ensinava nosso mestre, resguardando suas diferentes características físicas. Domingos é mais conhecido como Mingo; acima de tudo, fez de seus alunos, meninos- homens. Orientava-nos para a vida utilizando o atletismo como instrumento para enfatizar a questão dos princípios éticos nas relações humanas. Valorizo esta postura desse professor por acreditar na importância de se trabalhar com respeito à diversidade do ser humano, pois é nessa fase da adolescência que esses valores se consolidam. Mingo significou para mim, além de um exemplo profissional, um exemplo de vida. Foi ele que motivou, mesmo sem saber, minha escolha pelo curso de Educação Física. 18 Ao mesmo tempo em que Mingo me incentivou a entrar no curso, observei que as qualidades de um professor de Educação Física que eu admirava nele iam além de seu aspecto físico. Incentivou-me, portanto, a romper com a visão que se tem de um professor de Educação Física quanto ao seu corpo, com um biótipo avantajado, com músculos bem definidos, ou seja, um tipo físico que em nada se parece com uma pessoa com paralisia cerebral. Hoje, encontram-se na Educação Física, de modo geral pessoas de variados biótipos como gordo, magro, baixo, alto, negro, índio. E, também, (por que não?) uma pessoa com deficiência física! É essa pessoa que, daqui para frente, será o foco da discussão. Isso acaba desencadeando em mim várias perguntas básicas e questionamentos cruciais a serem discutidos, tais como: Por quê? E, para quê? Como desafio pessoal, valeu a pena cursar Educação Física mesmo sendo um deficiente físico? Faço reflexões e indagações até hoje sobre esse assunto. Eu faço aqui uma análise pessoal bem serena e ponderada sobre essa situação, como também alguns questionamentos bem mais críticos, uns posicionamentos fortes e insistentes, uma inquietação acerca do meu real papel na sociedade em determinadas atividades produtivas ou da função social do deficiente. Isso deixou marcas quando percebi qual era a minha atribuição, o que a sociedade queria para mim, ou tentou induzir em mim. Por meio do discurso clássico e bastante demagógico de alguns educadores da educação especial de plantão, “o exemplo que deu certo”. Eu, Bianor, fui citado como um “símbolo de vitória”, um “herói em prol da inclusão” perante o sistema tão seletivo imposto pela própria sociedade. Contrariado com essa visão romântica e assistencialista, sou indicado para algo que não sou e não pedi para ser e, muito menos, fui consultado a respeito do assunto. A sociedade bem que gostaria e até tentou me controlar, como uma espécie de marionete, para me usar como referência de seu compromisso com a questão da aceitação da diversidade humana. Ou, melhor dizendo, 19 dessa inclusão de pessoas biologicamente diferentes e de grupos marginalizados que destoam do padrão chamado de “normalidade” do qual estão exilados. Isso fica bem evidente no final das palestras sobre o deficiente e nas questões referentes a assuntos como: processo de alfabetização, como está à educação especial, acessibilidade de modo geral, colocação no mercado de trabalho, vida social e outras, que sou convidado a fazer, sejam dentro da Universidade de Brasília, nas faculdades particulares na rede pública e privada de ensino fundamental e médio, instituições ou centros de educação especial e outras entidades de ensino. Para uma resposta concreta aos questionamentos da sociedade acerca do meu ingresso no mestrado tenho a dizer que passei pelo mesmo processo de seleção que os demais candidatos. Tenho agora a oportunidade de trabalhar com a concepção histórico-social da pessoa deficiente, visando à pessoa em si, como um verdadeiro ser humano e não apenas sua deficiência ambulante, uma espécie de ser com um acúmulo de movimentos discordes natos de ordem estritamente biológica. O espaço acadêmico encontra-se hoje com uma estrutura bastante padronizada e engessada. Sinto-me preso às couraças de conceituações com poucas oportunidades de ações ousadas para mudá-lo, vivendo imerso em ciclos de modismos no qual grande parte da educação, e, mais especificamente, a educação especial, está envolvida no nosso País. O ponto mais importante que me levou a fazer este trabalho liga-se ao fato de ser um tema bastante real, atual, sólido, tão específico, cheio de detalhes, que me leva a operar teoricamente sem distanciar-me da realidade concretamente vivida. Assim posso falar do assunto de uma maneira ímpar, com um outro enfoque, sendo este de “dentro pra fora”, ou seja, algo que já foi e está sendo vivenciado por mim. Este trabalho tem como objetivo examinar questões ligadas à exclusão/inclusão de um deficiente físico tais como as vividas e as pensadas por ele mesmo. O foco temático principal será a relação entre preconceito e20 relações afetivas para que se possa compreender o contexto em que se vive o preconceito e que sentidos ele pode carregar para aquele a quem é dirigido. É bem verdade que foram muitos fatores pessoais e profissionais que me incentivaram a fazer este trabalho como tema tão desafiador. Mas, um dos que me chamou mais atenção foi justamente a possibilidade de falar sobre um assunto tão controverso: o preconceito da deficiência nas relações afetivas. Por ter um defeito físico carrego um rótulo, um título formalmente padronizado na sociedade como um ser diferenciado dos demais, um “deficiente físico”. O que interfere na maneira como a pessoa deficiente se constitui. Apesar de interferir na constituição da pessoa, o preconceito pode não ser um fator determinante que impeça o deficiente físico de manter uma relação afetiva com as pessoas. Não podemos nos deixar apegar apenas a atributos visíveis aos nossos olhos, ou deixar que a sociedade de modo geral determine as nossas condutas em relação ao outro pelo fato da nossa diferença. Tunes (comunicação pessoal 2004) afirma que: Onde há vida, há desenvolvimento. Logo, não se pode dizer que uma pessoa não se desenvolva de algum modo. As dimensões biológicas e sociais constituem uma relação intrínseca e de interdependência. Daí eu me questiono sobre o motivo da existência de oposição entre os dois, o biológico e o social. Deve-se saber que há um ponto de mediação entre o biológico e o social que supera essa abordagem dual do homem, e que este processo é compreendido como único. Não se deve entender que a dimensão biológica possa ser mais importante do que a social, ou vice-versa, ou que são processos distintos com características próprias para a aquisição de alguma coisa, e da aprendizagem em si, pois não seria essa leitura a mais adequada. Logo, a posição que adoto é 21 trabalhar estes dois processos unidos na busca do desenvolvimento pleno e contínuo da pessoa. Temos que levar em conta que tanto o desenvolvimento biológico quanto o social estão intimamente interligados na constituição dos seres humanos, de tal forma que o “não desenvolvimento” de um destes acarretaria algum tipo de efeito no outro. Não se pode analisar o aspecto biológico sem analisar conjuntamente os fatores de cunho cultural, porque ambos se interconectam, facilitando a nossa compreensão sobre a complexidade biológica e a complexidade sociocultural. As visões do preconceito sejam elas quais forem, assistencialista, fatalista, religiosa, biológica, educacional ou filosófica, não podem ser as únicas a determinar a conduta de uma pessoa. (em sala de aula Tunes, 2º semestre 2003) considera que: A presença de visões eussêmicas [otimistas] sobre o fenômeno social da deficiência propicia condições de possibilidade para a realização de uma inclusão verdadeira. Este trabalho procura mostrar implicações do preconceito da deficiência nas relações afetivas. Enfim, é uma relação complexa, e para se tentar entendê-la, é necessário analisar o preconceito e o processo de transformação que ocorre nas ações que o determinam. O preconceito de hoje parece não ser o mesmo de anos atrás. Só não sabemos se ele modificou por completo ou se somente está com uma nova roupagem, ainda mais dissimulado. 22 Vejo o preconceito como uma ação que se auto-alimenta. O seu combustível nada mais é do que uma espécie de falsa razão que as pessoas divulgam como verdadeira, perpetuando um ciclo infeliz, que tem conseqüência direta nas relações afetivas da pessoa deficiente. O presente estudo sobre a questão do preconceito da deficiência nas relações afetivas baseia-se na busca da própria identidade pessoal de uma pessoa deficiente física. Na descoberta das suas limitações e das restrições sociais impostas culturalmente, estas acabam sendo, na maioria das vezes, fator negativo no comportamento do deficiente físico, influenciando o seu relacionamento com outras pessoas. O preconceito pode provocar no sujeito que tem uma deficiência física uma retração social. Uma perda do seu pleno poder de tomar as decisões necessárias diante das outras pessoas. Pode fazê-lo deixar de lado as suas mínimas conquistas, ambições e os seus mais simples desejos. Pode causar incertezas quanto à sua imagem e insegurança. Reflete negativamente no seu próprio “eu”, no seu comportamento, em sua conduta, na auto-estima, podendo agravar ainda mais o seu exílio social. É possível que as análises e as discussões sobre o tema do preconceito da deficiência e suas conseqüências nas relações afetivas já estejam bem avançadas e consolidadas na literatura. Mas o fato é que a junção dos três conceitos em um só enfoque pode, por vezes, permitir revelarem-se cenários e episódios interessantes para análise e interpretação. É bem verdade que as relações humanas em geral, principalmente as afetivas, andam meio desgastadas, as pessoas perderam o real valor do sentimento, sua sensibilidade e afeto uns pelos outros. A meu ver, parece existir nestes tempos uma espécie de “Boom”, uma explosão anti-social. Um misto de desencontro, um descontentamento, uma desconfiança geral que revela descrédito no ser humano e nas relações que ele estabelece com os seus pares. Por conta disso, a essência da pessoa, a face do encontro verdadeiro com o outro parece ter se perdido. Então, nesse mundo de hoje, 23 seria correto atribuir o fracasso de uma relação, seja de qualquer natureza, somente a uma deficiência física? Hoje em dia, pode-se dizer que estaria havendo um desencontro geral das pessoas. Algumas pessoas têm até mais ou menos a idéia do que querem fazer e do que mudar para conseguir. Mas não têm iniciativa nem coragem para tal ação. O que chamo atenção nas relações afetivas e o que classifico como importante em minha vida seria, então, que uma relação afetiva é o encontro verdadeiro e real com o outro. O principal enfoque deste trabalho são relações compostas de dois termos: eu - deficiência, professor-aluno deficiente, família-deficiente, sociedade-deficiência. Cada uma delas constitui um núcleo de estudo cheio de particularidades, fatores ímpares a serem analisados. Entretanto, o eixo norteador deste trabalho segue para a análise dos relacionamentos em geral vivenciados. Faz, ainda, interfaces com outras nuances de uma relação, considerando tanto as relações afetivas como os demais sentimentos: amor, carinho, ternura, romance, amizade, namoro, paixão, sexo. O que melhor ilustra, neste momento, são as minhas vivências e as experiências relatadas por outros colegas deficientes, experiências estas que envolvem mitos a respeito dos deficientes. A minha hipótese originada também da minha vivência é que a própria natureza da deficiência física, em qualquer grau, serve de causa e impede ou dificulta para o deficiente a possibilidade de se relacionar afetivamente por conta do seu defeito biológico. Essa constatação foi feita em várias situações e circunstâncias sociais de minha experiência de vida. Seria ingenuidade acreditar que, escondendo a deficiência ou negando-a, o problema estaria resolvido. Encará-la como um fato e tentar transpor suas barreiras talvez fossem atitudes mais corajosas. 24 Seção 2 Fundamentação teórica 2.1 O conceito de preconceito: O preconceito de hoje parece não ser o mesmo de 30, 40 e 50 anos atrás. Só não sabemos se modificou-se por completo ou se somente está com uma roupagem nova. Interessa-me, o preconceito da deficiência porque o preconceito de que estamos falando encontra-se exatamente entre as pessoas. Está justamente nas relaçõesdiretas, no instante exato de interação entre elas. Pretendo também, com este trabalho, promover uma espécie de inquietação, um desconforto, uma desobediência em relação à conduta geral das pessoas causada pela minha maneira direta, despojada e informal de relatar. Irei falar sem nenhum tipo de restrição institucional de expressar minhas idéias e as formas peculiares para mostrar todas as dificuldades pessoais do indivíduo deficiente físico. Vou procurar, dentro de minhas concepções pessoais, ser o mais fiel e realista possível a todos os fatos aqui detalhados. Dificilmente irei consegui- lo em toda sua plenitude, visto que são questões muito subjetivas para serem analisadas sem ter nenhum tipo de julgamento próprio. Tentarei através deste trabalho desmistificar alguns conceitos, demonstrando que não há diferença nos interesses de uma pessoa deficiente e outra que não o é, quando se trata de relações sócio-afetivas comuns a todo ser humano. 25 A constituição da pessoa se dá de acordo com suas condições de existência. O meio social e a cultura constituem as condições, as possibilidades e os limites de desenvolvimento para o organismo. (em sala de aula Tunes, 1º semestre de 2004) Mas qual seria o conceito de deficiência com o qual irei trabalhar? Seria um dos conceitos “clássicos” da literatura? Adotarei uma nova conceituação unindo a experiência vivida com a teoria existente sobre o assunto. Cavalcante (2004) analisou de forma aprofundada os conceitos atuais sobre o preconceito da deficiência. Nesse trabalho, criticou a matriz de pensamento de Allport, que afirma: (...) Se uma pessoa é capaz de retificar seus conceitos errôneos à luz de novos dados, não alimenta preconceitos. Apud (1962, p.15). O conceito de preconceito em sua matriz analítica tradicional enfatiza o primado da razão. Como se o conhecimento fundamentado sobre alguém pudesse eliminar o preconceito. Para a autora, o preconceito não se justifica pela falta de conhecimento ou de conceitos errôneos, mas pelo não compromisso com o outro. Na verdade, o que temos certeza é que há preconceito em relação à deficiência e que este interfere direta e indiretamente nas relações afetivas. A ação do preconceito acaba estabelecendo limitações, restrições ou até outras possibilidades de relações interpessoais, na medida em que o preconceito se torna uma ação de negação e anulação do outro. Isso acaba dificultando ainda mais as formas de estabelecer algum tipo de vínculo afetivo com alguém. O preconceito significa atribuir uma característica ao indivíduo e reduzi-lo a isso. Cria condições para afastar o outro, cria o exílio relacional. (Cavalcante, 2004, p.31). 26 Essa anulação, negação ou coisificação do outro diminui drasticamente a possibilidade de ele expor sua verdadeira face. Por que isso acontece justamente nas relações afetivas? Numa relação afetiva autêntica, em que uma pessoa tenha que se mostrar como ela é, ou seja, ser ela mesma, como uma pessoa inteira e não como um atributo que lhe é dado, o que determina o sucesso ou o que constitui a sua essência maior, é se você consegue “despir-se” de seus preconceitos e se consegue revelar-se ao outro de forma autêntica. Isso vai muito mais além das questões como paixão ou sexo, e onde você passa a encontrar o seu “porto seguro”. Inicialmente, o preconceito foi analisado no campo da razão, entretanto o mesmo não pode ser pensado fora da sua manifestação concreta, fora da vida vivida. Assim, sua análise deve ser primordialmente realizada no campo da ética. Pretendo descrever as minhas reações diante das mazelas sofridas e de atos agressivos ensejados pela ação do preconceito tal como vivido cotidianamente nas relações interpessoais. Por ter um defeito físico, carrego um rótulo, um título formalmente padronizado na sociedade que interfere na maneira como me constitui. Apesar de interferir na constituição da pessoa, o preconceito pode não ser um fator determinante que impeça o deficiente físico de manter uma relação afetiva. Não é muito preciso analisar o aspecto biológico sem também analisar em conjunto os fatores de cunho sócio- cultural, porque ambos se conectam, facilitando a nossa compreensão sobre a complexidade biológica e a complexidade sócio-cultural. Vygotsky (1997) acredita que a educação das pessoas deficientes deve abandonar a lei do menor esforço, sob pena de agravar ainda mais as conseqüências sociais, causada erroneamente pela percepção do defeito. Para ele, a ação do defeito não aparece de maneira direta como uma imagem refletida num espelho, mas de forma secundária. Portanto, o que decide o rumo da aprendizagem do 27 sujeito, em última instância, não é o defeito em si, mas as conseqüências sociais que derivam dele. Brito (2005) chama a atenção para a educação orientada pela lei do menor esforço é a prática de educação que exige o menor esforço por parte do professor e por parte do aluno. Essa prática caracteriza-se por ser uma educação minimalista, ou seja, ensina-se o mínimo para a pessoa e exige-se o mínimo dela. Ao ensinar e exigir o mínimo, o professor não cria expectativas de sucesso em relação ao aluno ou à sua prática. Já no início do século passado, Vygotsky fazia referência à necessidade de se abandonar à linha da menor resistência dentro das instituições escolar que atendem pessoas com um tipo biológico incomum, pois, segundo ele, essas práticas não permitem lutar contra o defeito, mas tão somente acentuá-lo. Não exigir o mesmo pode significar não criar expectativa de que a pessoa integrada aprenda as mesmas coisas que seus coetâneos normais, com a mesma qualidade, ou ainda, que as suas possibilidades de desenvolvimento fiquem limitadas e determinadas pelo defeito. Fica evidente que se está minimizando a educação da pessoa instituída como deficiente. Vygotsky (1997) critica a postura adotada pela educação especial de escolher a linha da menor resistência. Para ele, as diferenças no desenvolvimento precisam sim ser consideradas, mas ao mesmo tempo, é necessário guiar-se pelas regularidades encontradas tanto no desenvolvimento da pessoa com um tipo biológico comum como naquela com um tipo incomum. “O preconceito como o primado do eu reduz o outro a um atributo, a uma característica de seu diagnóstico ou ao próprio diagnóstico, transformando-o numa coisa e identificando-o pelo que se julga que deveria estar lá e que não está; transformando-o num sujeito de falta. O preconceito encerra o indivíduo nos limites do estigma, mesmo que este seja uma prisão sem grades. Esse encarceramento acaba banindo o outro para o exílio relacional. É, pois, uma barreira 28 que impede o acolhimento do outro em sua inteireza e o relacionamento com ele. O não acolhimento do outro promove o desencontro mediado. Esse desencontro pode ser justificado pela alegação da ausência de preparo técnico ou pode ser mediado pelo próprio diagnóstico, usado como blindagem que impede a relação direta com o outro.” (Brito, I.F. 2005, p.88 ) Cavalcante (2004) demonstrou que, do ponto de vista da ética humana, o preconceito pode ser compreendido em seis elementos principais que são eles: a redução do outro, o descompromisso, o exílio relacional, a negação da diversidade, a afirmação do sujeito de falta e o desencontro mediado. 1. A redução do outro “ocorre quando o outro é reduzido a um atributo, a um funcionamento deficitário, a um rótulo”. 2. A afirmação do sujeito de falta “A pessoa rotulada como deficiente é vista como incompleta, inferior e deficitária em relação a todas as outras pessoas”. 3. A negação da diversidade “existe uma comparação com o padrão,à pessoa com defeito perde o direito de ser diferente, aquele que não possui um determinado atributo passa a ser comparado com aquele que possui”. 4. O desencontro mediado “o Eu recorre ao preparo técnico como requisito indispensável para tentar conhecer esse outro que é despersonalizado, ou seja, o deficiente”. 5. O descompromisso “uma característica que incomoda ao Eu, que vai de encontro aos padrões aceitos, por exemplo, um defeito, então, justifica-se o descompromisso com esse outro rotulado como deficiente”. 6. O exílio relacional “na medida em que o outro é rotulado, visto como um conceito, como um isso, não há condições de possibilidade para o encontro verdadeiro com o outro, desembocando em uma situação de exílio relacional” (Cavalcante, 2004, p.77). 29 Na prática vivencial, a ação do preconceito é bastante presente e seu núcleo central está na desresponsabilização pessoal com a alteridade, o que cria um vazio, um vácuo nas relações inter-pessoais. Este trabalho procura mostrar implicações do preconceito da deficiência nas relações afetivas. E como essa é uma relação bastante complexa, para se tentar entendê-la, é necessário analisar o preconceito e o processo de transformação que ocorre nas ações que o determinam. Todos nós estamos sujeitos a manifestações de preconceitos sejam elas visíveis, conscientes, justificáveis ou não. São todas elas ações e movimentações do nosso comportamento humano e estão profundamente enraizadas nas relações sociais que estabelecemos diariamente. A ação do preconceito pode parecer até uma ação imutável que em alguns momentos e determinadas circunstâncias torna-se natural aos olhos do senso comum, e usada em favor do movimento da exclusão do sujeito, do grupo de pessoas, servindo como um instrumento de segregação/exílio relacional entre as pessoas por conta da diferença, acentuando ainda mais esta condição social. Essa movimentação do preconceito é uma ação que se retro-alimenta e acaba produzindo o seu próprio combustível de tal forma que a sua discussão torna-se interminável. Assim, o preconceito continua achando campo fértil e espaço dentro da sociedade e, por conseqüências em nossas vidas, para sua perpetuação e disseminação. Ele vem se fortalecendo até ser justificado, por incrível que pareça, em determinados casos, e cada vez mais vem resistindo ao longo do tempo, busca cada vez mais força para resistir dentro de inúmeros buracos e brechas do desequilíbrio do comportamento humano mediante as frágeis relações sociais estabelecidas. Ele tem diversas formas de se apresentar e de ser percebido, mas, como ação agressiva, acarreta prejuízo incalculável, com a perda da sensibilidade entre as pessoas, causando diversos danos negativos ao outro. Uma das novidades da proposta deste trabalho é que poucas vezes a própria pessoa com deficiência física pode expressar de forma bastante peculiar as 30 questões do preconceito vivido por ela mesma, em todas as ações e situações vividas, possibilitando assim, nesse estudo de caso, uma nova leitura da visão de preconceito. 2.2 A concepção de subjetividade: A subjetividade representa um amplo conceito orientado à compreensão dos processos psicológicos como sistema complexo, que de forma simultânea se apresenta como processo e como organização. A subjetividade nos conduz a colocar a pessoa e a sociedade numa relação indissociável em que ambos aparecem como espaço estabelecido na subjetividade social e na subjetividade individual. González Rey (2003), ao introduzir a categoria da subjetividade social, tinha a intenção de estabelecer uma nova visão do que é o fenômeno individual dessa subjetividade, mostrando toda a sua complexidade enquanto sistema produzido de forma simultânea no nível individual e social, de forma que os dois momentos reconheçam sua face histórico-social. A subjetividade social e individual atuam interdependentemente, assim, dentro desta perspectiva, a pessoa que aprende expressa a subjetividade social dos espaços sociais em que convive no processo de aprender. Nenhuma atividade da pessoa resultará numa atividade isolada do conjunto de significados que caracterizam a existência histórico - social . No tema da subjetividade existe uma complexidade de vários sistemas interligados ao emocional de cada pessoa. E como um sistema complexo exibe formas de organização igualmente complexas, ligadas aos diferentes processos de institucionalização e ação dos sujeitos nos diferentes espaços da vida social, dentro dos quais se articulam elementos de sentido procedentes de outros espaços sociais. E começa a se juntar numa única conceituação que passa a ser não a somatória das partes, mas sim, o 31 entendimento pela junção, uma nova concepção entre diversos fatores emocionais. Ainda fica distante dessa subjetividade do sujeito uma difícil compreensão e da própria aceitação dentro das teorias do desenvolvimento humano. González Rey (2003) nos diz que as necessidades devem estar; “objetivamente preenchidas”, ou seja, sem status referente a ele mesmo. Sob a perspectiva da subjetividade social, os processos sociais deixam de ser vistos como externos em relação aos indivíduos, ou como um bloco de determinantes consolidados, que adquirem o status do “objetivo” diante do subjetivo individual, para serem vistos como processos implicados dentro de um sistema complexo, a subjetividade social, da qual o indivíduo é constituinte e, simultaneamente, constituído. Portanto, a subjetividade individual representa os processos e maneira de organização pessoal dos indivíduos. Nela aparece constituída a história particular de cada pessoa a qual, dentro de uma cultura, se constitui em suas relações pessoais, o processo de influência sofrido e realizado pelo sujeito e pela motivação, ou seja, o processo é realimentado. Nesse sentido, a categoria sujeito permite compreender os sentidos e o indivíduo, pertencente a essa categoria, assume, então, maiores responsabilidades dentro dos diferentes espaços de sua experiência social, gerando novas zonas de significação e realização, ou seja, as sensações vivenciadas pelos indivíduos. Já a motivação se origina a partir dos sentidos, logo, são configurações subjetivas da personalidade. Todavia, não se pode afirmar que defina de forma direta o sentido subjetivo de uma ação ou a atividade do sujeito, uma vez que o sentido associado a uma ação integra elementos de sentido que aparecem no curso da mesma. Portanto, as atividades não têm motivação que atuam como causa, os próprios motivos se organizam de forma a fazer parte do desenvolvimento dos sentidos. Assim, a motivação pessoal apresenta definições relativamente estáveis de sentidos subjetivos associados a certas atividades, representações e sistemas de significação do 32 sujeito. Portanto, a subjetividade é desenvolvida por meio da relação dialética processual e de organização do sujeito. Entretanto, a constituição do indivíduo dentro da subjetividade social não é um processo que siga uma trajetória universal, definida de forma unilateral pelas características dos espaços sociais dentro dos quais os indivíduos vivem. E segundo a conceituação de González Rey: A partir dessa aproximação do tema da subjetividade, a psique aparece constituída também por complexos sistemas emocionais, e começa a traçar um sistema conceitual que permite a construção desse aspecto do desenvolvimento humano que continua ausente até hoje nas principais teorias do desenvolvimento. (2003, p.89). O deficiente perde todos os seus atributos e valores como pessoa e passa a ser somente um conjunto de significadosou representações sociais da deficiência que tem. Em minha opinião, trata-se de compreender que a subjetividade não é algo que aparece somente no nível individual, mas que a própria cultura dentro da qual se constitui o sujeito, e da qual este é também constituidor, representa um sistema subjetivo, gerador de subjetividade. Afinal, ele, enquanto sujeito, está inserido em vários contextos diferentes como agente ativo que, de alguma forma, atua conforme as situações vão aparecendo para ele; até mesmo em situação de não ação. Melhor dizendo, nenhuma ação é uma forma de resposta desse sujeito. Os indivíduos, convertidos em sujeitos de suas ações sociais, podem tornar-se núcleos centrais do 33 processo de subjetivização social que conduzam a mudanças sociais. (González Rey 2003, p.95) Utilizando esta linha do pensamento de González Rey (2003) a afetividade, assim como a subjetividade, é individual e evolui conforme as condições de cada pessoa. Ao longo da vida, o indivíduo recebe influências do meio, da cultura e das relações sociais como formas de expressões diferenciadas que se configuram como um conjunto de significados. González Rey enfatiza o lugar dos indivíduos nos processos de transformação das vivências, como quem assume em toda a sua complexidade a questão tanto a nível individual como também social, o que o leva a compreender melhor os processos de subjetividade da pessoa que estão associados a tais mudanças sociais, tanto numa instância externa (a social) como interna (a individual). Os significados representam para cada pessoa as diferentes situações e experiências vivenciadas num determinado momento e ambiente social. Exatamente por isso, a afetividade não permanece imutável ao longo da trajetória da pessoa. Poderíamos afirmar que esse tecido subjetivo é um nível qualitativo, essencialmente humano, das sínteses de todos os aspectos da vida social nos quais o homem está imerso. Essa síntese, porém, organiza-se de forma simultânea em dois níveis diferentes: pela história individual, em uma configuração única em cada indivíduo concreto (subjetividade individual), e pela história da sociedade, abrangendo todos os indivíduos na qualidade de constituintes dessa trama social, dentro da qual, por sua vez, os indivíduos são constituídos no nível da subjetividade social. (González Rey 2003, p.107) 34 Também temos que destacar de maneira bastante sucinta que González Rey demonstra a forma explícita que um sujeito em sua concretude é singularmente diferenciado, que, na sua fala, aparece sempre como: uma pessoa real que será capaz de revelar seus fantasmas como verdadeiramente fantasmas, e não se deixa dominar por eles - a menos que assim o deseje ou queira. Uma pessoa que não fica presa a nenhuma realidade coisificada ou aprisionada, que tem uma reação, ou ao menos ela tem o poder de escolha, se vai se deixar aprisionar ou não, o que ficou bem explícito na metáfora sobre os fantasmas que emprega acima. Em minha percepção, a compreensão da subjetividade da pessoa dificilmente é visível apenas em termos individuais. Ou seja, as suas próprias raízes históricas, agem ativamente na sua constituição como pessoa e apresentam uma complexa engrenagem subjetiva, que cria a subjetividade humana: a capacidade de gerar significados e sentidos para um indivíduo que pensa, sente e também produz, dentro do contexto pessoal de uma história de vida que aparece em uma diversidade de maneiras, estando constituído em uma diversidade de conjunturas vigentes. Os sentidos subjetivos aparecem de forma gradual e diferente dentro do espaço de expressão do sujeito, pelo qual o investigador deve transitar na experiência do sujeito através de espaços conversacionais e de expressão, dentro dos quais os sujeitos estudados passe a ser "sujeito de suas construções", as quais neste processo irão comprometer novas zonas de sua experiência, e facilitarão a emergência dos elementos do sentido comprometidos com o estudado, via essencial para estudar as configurações subjetivas implicadas nesses sentidos. (González Rey 2003, p.267) 2.3 Objetivo do trabalho e descrição da metodologia: 35 Este trabalho procurará mostrar as particularidades da vida de um deficiente através de passagens (crônicas) reais de sua vida. Buscarei relatar com clareza, objetividade e sem constrangimento. Pretendo descrever as minhas reações diante das mazelas sofridas e de atos agressivos ensejados pela ação do preconceito tal como vivido cotidianamente nas minhas relações interpessoais. O caminho definido que encontrei, junto com a orientadora foi através da interpretação de crônicas que escrevi. As dificuldades que são os fatos reais em minha vida, e por ter receio de contar às pessoas, decidi escrevê-las em forma de crônica. Antes, tinha uma série de motivos para não querer colocar esse assunto em público, mas agora, estou convencido de que isto servirá para desvencilhar-me das amarras vindas do meu passado. Sendo a minha maneira particular de contribuir para combater a exclusão social que vivemos. Enfim, a luta diária que nem sempre traz necessariamente um final feliz ou esperado. Vou procurar, dentro de minhas concepções pessoais, ser o mais fiel e realista possível a todos os fatos aqui detalhados. Dificilmente irei consegui- lo em toda sua profundidade, visto que são questões muito subjetivas, ou seja, apenas quem as vivencia será capaz de sentir esse momento em toda a sua plenitude. Procurarei, através desse trabalho, desmistificar alguns conceitos, demonstrando que não há diferença nos interesses de uma pessoa deficiente e outra que não o é, quando se trata de relações sócio-afetivas comuns a todo ser humano. A forma de exposição deste trabalho é um pouco diferenciada das demais, por conter em sua estrutura, para serem analisados, os vários tipos de crônicas-narrativas bem mais subjetivas - e a própria liberdade da sua criação. Tivemos 17 crônicas (episódios) do meu cotidiano, que aconteceram ao longo da minha trajetória de vida como deficiente físico. As diversas situações vivenciadas e colocações presentes nessas crônicas possibilitarão 36 compreensões e as resoluções bem diferentes de acordo com o ponto de vista também de cada um dos leitores. As fases de elaboração deste trabalho foram muito ricas. Desde quando começamos a escrever as crônicas, sentíamos que cada uma delas teve um peso, uma reação, uma característica própria diante dos fatos relatados, sendo bem diferenciadas uma das outras. Mas de agora em diante, trata-se, contudo, de uma análise muito mais crítica dos fatos; cada crônica condiz com uma recriação daquele momento vivido por nós, cheio de detalhes e percepções sutis de como acontece a inclusão ou exclusão social do deficiente físico no seu cotidiano. À medida que fomos escrevendo as crônicas, as lembranças e sensações foram exteriorizadas. A releitura destes mesmos episódios se tornou um dos elementos de maior importância, pois possibilitou uma melhor investigação dos conteúdos sobre os diversos temas a serem analisados e interpretados de acordo com os objetivos do trabalho. Cada crônica foi produzida seguindo uma estrutura narrativa bem peculiar, bem mais próxima da realidade do fato propriamente dito do que amarrada a alguma forma de texto escrito que segue determinada regra literária. Dessa maneira, conseguimos escrever as crônicas como se fossem poemas livres, um tipo de produção mais solta, livre dos limites das criteriosas fórmulas gramaticais, sem medo das palavras, importando-nos muito mais com o compromisso de expressar o conteúdo real do que com quaisquer outros fatores.Tentamos não perder de vista, porém, regras básicas de ortografia e gramática que são essenciais na maioria dos textos escritos: a leitura em seu sentido mais amplo, que envolve compreensão e criação por parte do leitor. A escolha do relato de situações cotidianas na forma de crônicas foi o que melhor atendeu à proposta desse trabalho. Nas crônicas está presente toda a carga da deficiência física, todas as amarras, as prisões sem grades, causadas por um conjunto de fatores internos e externos ao meu defeito físico. O leitor terá a chance de ver mais adiante os fatos da vida no meu 37 cotidiano, tendo o diferencial da deficiência como coadjuvante nessa história de vida. Na construção desta investigação pessoal, tivemos que transformar nossas experiências do cotidiano, as que são cheias de detalhes sutis que nenhuma bibliografia completa pode superar, em uma espécie de experimento ao ar livre com regras preestabelecidas pela própria sociedade em que vivemos. Para isso, temos aqui a narrativa de vida, realizada por meio das crônicas seqüenciadas para, somente depois, fazer uma interpretação. Não somente crítica aleatória às situações vividas, mas sim, críticas ao conjunto de estratégias, das posturas, do comportamento em diversas situações, das variações de respostas ou soluções aplicadas em determinados momentos adversos, tudo que houve no processo da minha inclusão social. Posso fazer das minhas próprias ações um laboratório vivo e ambulante das diversas maneiras ou condutas minhas e de como as outras pessoas me tratam devido ao meu defeito físico. Mas qual é a importância deste trabalho? Este trabalho é um relato autobiográfico. Tentamos dar um outro direcionamento a estes assuntos, interpretações muito mais subjetivas na realidade concreta de nossas vidas. Diferente dos conteúdos e objetivos de outros trabalhos desta natureza, que são apenas descrições de métodos e procedimentos para análises teóricas dos dados. ... Nós estamos eternamente contando histórias sobre nós mesmos. Ao contar essas auto-histórias para os outros, tendo em vista muitos propósitos, pode-se dizer que estamos desempenhando ações narrativas diretas. Ao dizer que nós também as contamos para nós mesmos, no entanto, estamos embutindo uma história dentro de outra. Esta é a história de que há um si - mesmo para quem contar algo, um alguém mais servindo como público que é um si - mesmo ou o nosso próprio si - mesmo. Quando as histórias que contamos para os outros 38 sobre nós mesmos dizem respeito a esses outros si - mesmo, quando dizemos, por exemplo, “Eu não sou senhor de mim mesmo”, nós novamente estamos incluindo uma história dentro de outra. Neste ponto de vista, o si - mesmo é um narrador. De tempo em tempo, e de pessoa a pessoa, essa ação narrativa varia no grau em que é unificada, estável e aceita por observadores informados como confiáveis e válidos. (Bruner, 2002, p.98) Usaremos a metodologia escolhida, pela sua ousadia de criação do texto pelo autor naquele momento, e por ser o método de produção mais apropriado para esse estudo. É um estudo autobiográfico que terá um enfoque sobre as relações afetivas envolvendo a investigação com relação ao preconceito da deficiência vivenciado no meu cotidiano. Estão presentes também as minhas indagações sobre as minhas próprias ações e até mesmo minhas contradições, de relato, numa série de crônicas descritivas e narrativas sobre vários aspectos vivenciados nas relações humanas. Chamo a atenção do leitor para as datas em que as crônicas foram escritas. É possível ver a mudança da minha maneira de pensar e até mesmo a forma de agir. Essa mudança fica evidente nas etapas da elaboração das crônicas, no seu entendimento e na ordem cronológica dos acontecimentos, por meio da narrativa. As crônicas não são lineares nem tampouco seqüenciais. Isso pode dificultar um pouco a compreensão de quem está lendo, mas, ao mesmo tempo, é um tipo de quebra-cabeça que o leitor vai montando em sua própria lógica de raciocínio. O leitor utiliza-se, portanto, das crônicas e de suas próprias concepções para compreender o que aqui se coloca. Esta investigação pessoal está baseada na minha história de vida em todos os seus âmbitos: como pessoa, homem, filho, professor e deficiente. É evidente que houve vários momentos de resistência e mesmo crises na decisão pelo tema. Diversas coisas que estavam apagadas ou escondidas a 39 sete chaves vieram à tona, de uma hora para outra; fatos muito íntimos que, agora, eu divido com o leitor. Agrupei as crônicas em três núcleos conceituais, conforme o que mais sobressai em cada uma. É claro que esses núcleos interpenetram-se, no momento mesmo em que se vive os episódios. A separação, contudo, pode oferecer ao leitor um guia para a identificação da ênfase que está sob exame. São, assim, os (3) três núcleos analítico-interpretativos : 3.1 – o medo do fracasso pessoal, a raiva e a rejeição da diferença individual; 3.2 – a elaboração subjetiva da realidade a partir da fantasia; 3.3 – a afirmação do si mesmo como objeto e não como autor da própria ação. 40 Seção 3 As crônicas e seu exame analítico-interpretativo: 3.1. O medo do fracasso pessoal, a raiva e a rejeição da diferença individual. No meu entendimento, tenho um ponto de vista em relação ao assunto colocado, do medo e da raiva. O indivíduo que tem a visão predominantemente preconceituosa na suas ações cotidianas em relação à outra pessoa diferente, fora dos ditos “padrões ou modelos de normalidades”, acaba gerando também o medo da pessoa que tem uma deficiência. E na outra ponta, a pessoa que recebe essas ações preconceituosas sente, cada vez mais, esta exclusão, o que gera uma outra reação negativa que recai sobre o próprio deficiente, ou seja, o indivíduo deficiente interioriza esse medo externo e este preconceito que acabam se refletindo na sua própria subjetividade individual, gerando baixa estima e a negação de si mesmo. Este tipo de ação e pensamento são bastante prejudiciais, pois cria um ciclo vicioso entre medo e raiva, mantendo-se ambos fortalecidos reciprocamente e criando as condições para a auto-imposição de um exílio social. Quando se fala em tentar entender as reações humanas que envolvem sentimentos de raiva e de medo, nem sempre encontramos alguma lógica presente ou conseguimos estabelecer algo que justifique essas emoções, Podemos dizer, então, que essas emoções, juntas ou separadas, podem gerar várias situações novas e proporcionar a cada um de nós uma condução diferenciada em situações adversas do nosso cotidiano. E sempre se constituíram naturalmente como elementos básicos e essenciais no desenvolvimento humano. Não quero entrar no exame teórico da questão sobre medo e raiva em nível funcional ou biológico propriamente dito. O que estou querendo dizer é 41 que o preconceito em relação à deficiência passa também por estas duas emoções tão comuns a qualquer pessoa. Todavia, no caso do deficiente, essas emoções participam de modo peculiar na sua constituição subjetiva. Vejamos alguns exemplos: • ‘A deficiência gera raiva em mim’. • ‘Eu fico com raiva daqueles que têm preconceito contra os deficientes’. • ‘ Meu medo é das limitações que a deficiência impõe-me’. • ‘Eu tenho medo das pessoas se afastarem ou se aproximarem de mim, por conta da deficiência’. Enfim, existem inúmeras situações que podemos examinar. Entretanto, o certo é que parece um tipo de armadilha muitas das vezes imposto por nós mesmos. Fica, assim, bem mais fácil atribuir ao destinocomo se ele fosse o único responsável pelo que nem sempre é favorável na vida. Dentro da categoria raiva e medo, uso uma pequena escala das projeções para conseguir indicar em que direção o sentimento da raiva atua. Podemos dizer que a raiva externa é uma tendência a agredir outros ou o ambiente; a raiva interna, uma tendência inconsciente a culpar a si próprio, podendo levar à depressão em alguns casos extremos, à tentativa da anulação da pessoa. Por isso, temos a necessidade do controle dessa raiva, uma tendência consciente de criar instrumentos e parâmetros sociais, estabelecer e controlar a raiva ou suprimi-la. O medo é um sentimento que ajuda a regular a nossa ação. Sobre ele todos nós acabamos demonstrando algum ponto da vulnerabilidade, que não gostamos muito de admitir e confirmar diante de outras pessoas, pois isso passaria a ser uma decepção social, nossa fraqueza ao mostrar tal fragilidade humana. Quando trago esta questão do medo, quero mostrar que o medo passa a ser um instrumento a favor do próprio preconceito com relação à deficiência. Para mim, o medo se fez presente 42 dentro do meu “eu” participando das minhas estratégias e maneiras de agir, a favor ou não do preconceito da deficiência. Acredito que um dos erros clássicos que as pessoas deficientes cometem é estabelecer uma ligação entre o sentimento de medo do fracasso pessoal, que é inerente a qualquer pessoa, à sua deficiência, às suas dificuldades motoras e físicas. O medo do fracasso é próprio da condição humana e não uma emoção ligada exclusivamente à presença de um defeito biológico. 3.1.1 Crônicas: A opção pela escolha da máscara (2003) A máscara de que tanto falo nada mais é do que um instrumento pelo qual se disfarça, se modifica, se ilude com a realidade para fugir dela. Talvez você se pergunte: quem foge? Quem se ilude? Eu digo para você que sou eu este ser que, ao usar a máscara, busca ludibriar a própria realidade que vivencia. Ao longo da minha história de vida, fiz a opção por usar uma máscara, e a máscara escolhida foi a de sapo. Escolhi o sapo consciente do que fazia, de que aquela era a escolha certa para aquele momento. Então, me assumi como um sapo e comecei a agir como tal. Isto me trouxe diversas conseqüências. Em nome deste sapo, me escondi. Quando percebia que as pessoas começavam a perceber-me e não mais ao sapo, me afastava, pois tudo o que queria era permanecer escondido atrás desta grande couraça, a máscara de sapo. A couraça na qual me escondi por tanto tempo é opaca para quem me olha, ou seja, ninguém me via, era transparente para que eu pudesse ver as pessoas. Assim, eu percebia tudo ao meu redor sem deixar que as outras pessoas me percebessem, somente era possível que elas percebessem o sapo. 43 E por muito tempo, para muitas pessoas, o sapo e eu éramos a mesma pessoa, éramos um só. Certo dia, quando a máscara caía, questionei-me porque havia escolhido o sapo e não um tigre. Percebi que viver como um sapo seria mais fácil, menos doloroso, porque o tigre é aquele que busca lutar por tudo em sua vida e não desistir, porque isto não faz parte de sua natureza. Porém, ao mesmo tempo, pude notar que, qualquer que fosse a máscara escolhida, esta um dia cairia, porque, afinal, nenhuma delas seria eu mesmo. A deficiência como cartão de visita dentro da sociedade (2004) Nesta narrativa vamos ‘brincar’ mostrando um lado da deficiência ainda muito pouco explorado por nós que a temos. Deixa de ser uma marca, um rótulo, um peso, e passa a ter através da deficiência um enfoque diferenciado como qualquer outro atributo físico pessoal; como olhos verdes, sorriso fácil, belas pernas, cabelo liso e tanto outros mais. A deficiência física agora passa a ser uma espécie de cartão de visita desta pessoa que a tem e agora passará a ser apresentada e demonstrada para a sociedade. Como ela é de verdade, sem nenhum tipo de maquiagem, usando a própria imagem da deficiência física, ou melhor, dizendo, o defeito no físico para o deficiente físico que passará a constar na sua conceituação dele mesmo, como uma parte integrante do seu corpo, da sua auto-imagem, um pedaço que pertence somente a você. Por isso não adianta muito esconder, disfarçar, ignorar, ou renegá-lo. Esta característica física é somente sua, sendo assim, você tem que ser o mais autêntico, seja você mesmo; pois não tem jeito e nem para onde escapar desse fato, esta responsabilidade é sua e de mais ninguém. Mas por que eu estaria falando tudo isso, uma coisa que parece ser tão óbvia?! Dessa forma, com um tom de repressão e querendo que cada um assuma a sua parcela de 44 responsabilidade por este posicionamento em relação à deficiência física de quem a tem? Vamos exemplificar em alguns casos já vivenciados por nós, para facilitar o nosso entendimento dessa questão. Dentro do processo de conquista, na relação afetiva com alguém, não adianta absolutamente nada o deficiente físico, seja homem ou mulher, querer esconder, amenizar, camuflar, disfarçar sejam quaisquer das suas prováveis dificuldades por um período maior de tempo. Isso não quer dizer que eu tenha que mostrar todas as minhas dificuldades logo de cara para a pessoa que estou desejando. Mas sendo o processo de encontro com o outro o mais natural possível, com isso os resultados podem ser ainda mais positivos ou servindo também de boas experiências para outras ocasiões, novas possibilidades e muito menos dolorosas e traumáticas. Usar a própria deficiência como cartão de visita pessoal. Essa atitude nada mais é do que quebrar, romper, derrubar, explodir a ação do preconceito por conta da diferença física. Tentar deixar para trás todas as barreiras visíveis ou não sendo esses obstáculos de caráter físicos e sociais ou de qualquer outra natureza. Isso até parece ser uma visão meio utópica, meio sonhadora, mas não é. Pois é muito mais uma questão de atitude para mudar, uma predisposição para enxergar a diferença do outro, uma postura pessoal no sentido de novas possibilidades de entendimento da diversidade humana. Quando você deseja e permite-se expor ao outro, assim como você é de verdade, sai de cena, desaparece, deixa de ter tanta importância a deficiência física, essa diferença passa a ser um mero atributo físico. O outro começa a enxergar você igual a ele mesmo na sua inteireza como pessoa, dentro de suas condições e possibilidades, e não apenas pela falta de algo, sem restringir-se ao biológico, sem ficar preso a uma visão distorcida do deficiente físico que é dada através de um conceito errôneo sobre a incapacidade humana do fazer algo. 45 A Angústia de um educador (2002) Qual é a representação social feita da deficiência pela presença da pessoa com defeito físico quando de sua exposição diante do público? O que isso significa? Será que a simples presença de uma pessoa deficiente pode determinar a conscientização das pessoas da sociedade pelas percepções dessa imagem, ou seja, conceitos bem enraizados e solidificados e atitudes comportamentais podem ser mudados através do contato direto com essa alteridade? Até que ponto a minha exposição como pessoa deficiente vai determinar um novo paradigma sobre esse conceito, ou será o contrário? Será que a exposição reforçará ainda mais esses conceitos, preconceitos em relação à pessoa? A dúvida que persiste sobre a nossa participação em palestras, seminários, congressos é válida? Ou serve apenas para reforçar uma
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