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Creio em Jesus Cristo - João Batista Libanio

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2
Índice
INTRODUÇÃO
PERGUNTAS MAIS COMUNS
2. Existe ainda uma linguagem tradicional sobre Jesus que se atém à
interpretação literal de sua pessoa, vida, mensagem e obras?
3. Nos tempos atuais pós-modernos, voltaram interpretações de Jesus
que se afastam das posições dos teólogos e exegetas modernos. Por
quê?
4. Como entender historicamente a vida de Jesus?
5. A partir de tal compreensão da história na vida de Jesus, como crer
em Jesus Cristo?
6. A fé em Jesus não é ato vazio, sem conteúdo. Como a pessoa de
Jesus em que cremos adquire contornos concretos na fé cristã?
7. Que projeto teológico sobre Jesus elaborou São Mateus?
8. E Marcos, como nos apresenta Jesus?
9. Qual é a face do Jesus de Lucas?
10. E, finalmente, que figura de Jesus nos pinta o evangelho de João?
11. Em resumo, que tipo de linguagem tecemos a respeito de Jesus a
partir dos evangelhos?
12. Como a fé cristã sobre Jesus Cristo foi-se elaborando?
13. Como a fé bíblica se traduziu na cultura grega?
14. Como os Padres da Igreja e os primeiros Concílios de Nicéia e
Constantinopla expressaram a fé em Jesus, Filho de Deus?
15. Como este Credo relaciona Jesus Cristo com Deus Pai?
16. Por que essa preocupação tão forte de afirmar a relação íntima entre
Jesus, Filho de Deus, e Deus Pai? Seria uma curiosidade sobre a vida
interna de Deus?
17. Com a clareza da definição da natureza divina de Jesus no Concílio
de Nicéia (325) e de Constantinopla (381) deu-se por terminado o
percurso dos ensinamentos dos Concílios sobre a pessoa de Jesus?
18. Em que momento os Padres definiram com maior clareza a relação
entre a natureza divina e humana em Jesus Cristo?
19. Com o passar do tempo, o conceito de pessoa, por influência da
psicologia e filosofia modernas, modificou-se. Como entender que
Jesus é uma única pessoa divina, se ele tem liberdade, consciência e
vontade humana?
20. Como pensar a realidade humano-divina de Jesus na perspectiva da
3
maneira moderna de entender?
21. Se Jesus foi humano, aceitou todas as nossas limitações, podemos
dizer que não sabia tudo?
22. Outras perguntas intrigantes: Jesus tinha fé? Que significa o fato de
que ele rezava a Deus?
23. Cresce no momento atual a preocupação pela ecologia. A fé em
Cristo ilumina tal situação?
24. A figura complexa e paradoxal de Jesus permitiu interpretações que
fizeram dele certos movimentos do mundo jovem. Até onde é válida tal
tentativa?
25. Ampliando a pergunta, as novas espiritualidades em curso não
terminam por deformar a figura de Jesus?
26. Na perspectiva da vida de Jesus no interior da sociedade de seu
tempo, alguns autores apresentam-no como verdadeiro marginal. Que
significa tal leitura tão radical?
27. Pode-se ir mais longe ainda e chamar Jesus de revolucionário?
28. Do conjunto da vida social, política e religiosa de Jesus conclui-se
que ele se mostrou extremamente livre. Qual o alcance teológico dessa
atitude?
29 Na América Latina se trabalhou a imagem de Jesus Cristo
Libertador. Como entendê-la no conjunto da vida e mensagem de Jesus?
30. A pluralidade de expressões de fé em Jesus Cristo não confunde o
fiel?
31. Que reter de fundamental de toda a reflexão sobre a fé em Jesus
Cristo?
32. Para terminar, como a liturgia reza em relação a Jesus?
4
Por que creio
...
!
5
INTRODUÇÃO
. . .
Símbolo da fé niceno-constantinopolitano
Creio em um só Deus, Pai onipotente, criador do céu e da terra, de todas as
coisas visíveis e invisíveis. E em um só Senhor Jesus Cristo, unigênito Filho de
Deus e nascido do Pai antes de todos os séculos, Deus de Deus, luz da luz, Deus
verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não feito, consubstancial ao Pai; por
meio do qual tudo foi feito; o qual, em prol de nós homens, e de nossa salvação,
desceu dos céus, e se encarnou do Espírito Santo, “do seio” de Maria Virgem, e
se fez homem; que também foi crucificado por nós, sob Pôncio Pilatos, padeceu e
foi sepultado, ressuscitou no terceiro dia, segundo as Escrituras, subiu ao céu,
está sentado à direita do Pai e virá novamente para julgar os vivos e os mortos;
cujo reino não terá fim. E no Espírito Santo, Senhor e vivificador, que procede do
Pai e do Filho, que com o Pai e o Filho ao mesmo tempo é adorado e conglorificado,
que falou por meio dos profetas. E na Igreja una, santa, católica e apostólica.
Confesso um só batismo para a remissão dos pecados. E espero a ressurreição dos
mortos e o século vindouro. Amém.
Sem entrar em pormenores sobre o percurso de sua redação, desde o século XVII
este símbolo é conhecido com o nome de niceno-constantinopolitano. De fato, ele
retrata a fé expressa nos dois Concílios de Nicéia (325) e de Constantinopla (381). O
Concílio de Nicéia acentuou a identidade de natureza entre Deus Pai e Nosso Senhor
Jesus Cristo, Filho de Deus. Apenas afirma que crê no Espírito Santo sem nenhuma
explicitação. O Concílio de Constantinopla definiu, por sua vez, a divindade do
Espírito Santo. No século VI, foi adotado, em grande parte do Oriente, como Símbolo
batismal. Foi introduzido também na liturgia eucarística. E até antes da reforma
litúrgica do Concílio Vaticano II, era a única forma de Credo que se rezava.
Atualmente continua forma optativa juntamente com o Símbolo chamado apostólico.
A diferença entre os dois Símbolos acena para duas perspectivas teológicas. O
símbolo apostólico, romano, mais sucinto, acentua os aspectos históricos e concretos
da vida de Jesus. O texto foi fixado no século IX, oriundo das catequeses batismais
do século II. Santo Ambrósio (séc. IV) atribuiu-lhe o nome de Símbolo dos
Apóstolos, por refletir a fé da Igreja dos apóstolos. O Símbolo niceno-
constantinopolitano espelha a mentalidade grega, filosófica, abstrata. Responde com
posição dogmática às heresias que ameaçaram a Igreja nos quatro primeiros séculos.
6
Para entendê-lo, apresento breve indicação das principais heresias.
Teorias gnósticas e maniquéias afirmavam que a matéria era criada por um
princípio do Mal; o Símbolo afirma que todas as coisas visíveis (materiais) e
invisíveis (os anjos) foram criadas por Deus.
Triteísmo afirmava que havia três naturezas divinas, portanto três deuses; o
Símbolo afirma a fé em um só Deus (Pai, Filho e Espírito Santo).
Monarquismo: Deus é único e não admite outras pessoas em Deus; o Símbolo
confessa a fé em três pessoas divinas.
Modalismo ou Sabelianismo (de Sabélio, seu defensor): a Trindade são
manifestações ou modalidades de uma única pessoa divina; o Símbolo professa a
distinção entre as três pessoas divinas.
Macedônios: aceitavam a divindade de Jesus, mas não a do Espírito Santo; o
Símbolo afirma a divindade do Espírito Santo.
Ebionismo: defendia que Jesus era um puro homem, negando-lhe a realidade
divina; o Símbolo afirma a divindade de Jesus.
Docetismo: Jesus tinha só aparência de homem, negando-lhe a humanidade; o
Símbolo afirma a verdadeira humanidade de Jesus.
Arianismo ou subordinacionismo: Jesus foi criado, como primeira criatura, não
sendo da mesma natureza que o Pai, portanto, subordinado a Ele; o Símbolo afirma
que ele foi gerado e não feito (criado), consubstancial, isto é, da mesma natureza que
o Pai.
Marcião: Defendia que o Deus do Antigo Testamento não era o mesmo Deus do
Novo Testamento; o Símbolo afirma que Javé é a mesma pessoa que Deus Pai de
Jesus.
Monofisismo: Afirma a única natureza divina de Jesus enquanto a humanidade se
funde com ela; o Símbolo afirma a dupla natureza de Jesus.
Nestorianismo: Afirma que Jesus tinha duas pessoas: uma humana e outra divina
de modo que Maria seria só mãe de Jesus e não Mãe de Deus; o Concílio de Éfeso
define que Maria é Mãe de Deus a partir da unidade da pessoa divina de Jesus e o
símbolo afirma que Jesus é um só Senhor.
1. Na carta aos hebreus lê-se a afirmação forte: “Jesus
Cristo ontem e hoje é o mesmo também pelos séculos” (Hb
13,8). Que significa?
Aí temos a expressão clara e máxima da afirmação da transcendência de Jesus que
7
atravessa os tempos na identidade da pessoa. No entanto, tal asserção merece maior
reflexão para evitar o imobilismo e fixismo das formulaçõesda fé. O núcleo da
verdade permanece definitivo. A expressão Jesus Cristo traduz a confissão de fé em
Jesus, o nazareno, o filho de Maria, chamado filho do carpinteiro, que foi concebido,
nasceu, viveu e morreu. Ele é o mesmo que o Cristo ressuscitado, o Kyrios, o Senhor
glorificado. Temos a união que nunca pode ser separada nem negligenciada. O Jesus
da história é o mesmo que o Cristo glorioso, divino, introduzido pelo mistério da
ressurreição, de modo definitivo, no seio do Pai, de onde veio. É o núcleo básico da
fé em Jesus Cristo. O autor da carta aos hebreus afirma que ele, ontem, nas
afirmações de fé da longa tradição cristã e, hoje, em nossa interpretação, é o mesmo e
o será por todos os séculos. Nada abalará a identidade de Jesus, o Cristo, o Ungido, o
Messias, o Ressuscitado. É um lado da verdade.
8
PERGUNTAS MAIS COMUNS
...
Se afirma a identidade – é o mesmo –, reconhece-se que há um ontem, um hoje e
haverá um amanhã. E que, portanto, Jesus Cristo necessita ser vivenciado, entendido,
interpretado em cada nova situação. Cada época espelha-se nele em duplo
movimento. O espelho permanece firme na sua realidade. As figuras diante dele se
sucedem. E o resultado são sempre novas imagens projetadas na face lisa especular.
Contra o espelho da vida de Jesus, perguntamo-nos pelo significado dele e de nossa
vida, de sua história e da nossa, de sua pessoa e do impacto dela sobre nós, de sua
mensagem e de nossa interpretação, de sua obra salvífica e de nossa participação nela.
É o trabalho de cada geração.
Dois extremos se equivocam. Fixar os fatos históricos da vida de Jesus como
determinante da nossa história no aspecto literal e a projeção sobre Jesus,
dependurando no cabide de seu nome, de modo arbitrário, todas as vestes que
quisermos. Ele não é receptáculo de qualquer idéia inventada. Do jogo da
consistência de sua pessoa, mensagem e obra e de nossa realidade surge a verdadeira
compreensão de Jesus, como o Cristo.
2. Existe ainda uma linguagem tradicional sobre Jesus que
se atém à interpretação literal de sua pessoa, vida,
mensagem e obras?
A compreensão ao pé da letra da Escritura existiu e existe ainda onde não se
levam em consideração as descobertas da exegese moderna. Rejeita-se o estudo
científico do texto bíblico. Ele é de tal modo sacralizado que se considera ofensa
aplicar-lhe as regras de interpretação dos escritos puramente humanos. Por trás se
oculta a compreensão quase mecânica da inspiração bíblica. Imagina-se o Espírito
Santo a ditar as mesmíssimas palavras que o hagiógrafo, isto é, o autor sagrado,
consigna por escrito. Ora, se a Escritura é mero ditado de Deus, como ousamos com
recursos humanos alterar-lhe o sentido literal?
Não se tolera que a Palavra de Deus seja controlada, submetida a análises literárias
que chegam até a modificar-lhe o sentido literal. Retém-se, portanto, a leitura ao pé
da letra dos textos sobre Jesus. Assim se escreveram muitas vidas de Jesus.
Alimentaram, sem dúvida, a piedade de inúmeros fiéis. Prestaram enorme serviço
espiritual. No entanto, no momento em que surge uma geração crítica que já não
9
consegue digerir tal tipo de vida de Jesus, cabe-nos escrever outras diferentes para
responder às novas perguntas levantadas pelas ciências modernas, especialmente as
da linguagem.
3. Nos tempos atuais pós-modernos, voltaram
interpretações de Jesus que se afastam das posições dos
teólogos e exegetas modernos. Por quê?
Fenômeno interessante. Os fiéis tradicionais seguiam o texto ao pé da letra por
respeito e veneração à Palavra de Deus. Temiam interpretá-la a seu bel-prazer. Hoje
existem cristãos que também interpretam a Escritura como soa. Mas já não por causa
do literalismo tradicional, mas de atitude, por assim dizer, pós-moderna. Funciona a
pura subjetividade e a parte emocional. Em clima de oração ou em determinada
situação difícil, acreditam que, abrindo arbitrariamente a Bíblia e lendo o primeiro
versículo que caia sob os olhos, encontram aí uma resposta de Deus. Transformam a
Escritura em receituário de soluções para qualquer problema. Não submetem nenhum
texto bíblico a algum estudo exegético ou teológico. A Escritura assume para eles a
função quase mágica de trazer-lhes soluções de problemas pontuais. Desconhecem
qualquer objetividade do texto. Emerge-lhes de tal leitura bíblica uma figura de Jesus
Cristo de forte arbitrariedade. Moldam-na a partir de interesses alheios à teologia e
usam as passagens bíblicas sem nenhum rigor exegético e teológico. Antes
desconfiam de tais instrumentos de estudo. Situados em plena pós-modernidade, tais
fiéis se assemelham aos mais tradicionais. No entanto, a motivação e o clima são bem
diferentes. Os atuais pós-modernos já passaram pela crítica científica e a
desacreditaram e preferem entregar-se aos desejos e problemas existenciais.
Elaboram uma imagem de Jesus fluida, sem consistência, adaptada às necessidades
em questão. A historicidade do homem de Nazaré cede lugar à criação subjetiva do
fiel pós-moderno.
4. Como entender historicamente a vida de Jesus?
Antes de tudo, importa manter a atitude fundamental de respeito ao Jesus da
história, tal qual a comunidade primeira nos transmitiu. Estão em jogo dois elementos
básicos. Existe um Jesus que viveu na Palestina e pregou o Reino de Deus, como
anúncio salvador para a humanidade. Ele é a fonte última de nossa fé. No entanto,
não temos acesso direto a ele pelos escritos dos atuais evangelhos e cartas
apostólicas. O Jesus histórico nos é relatado pela comunidade cristã que o interpreta à
luz do evento da ressurreição. Temos o seguinte paradoxo: o Jesus antes da Páscoa
nos é narrado depois e sob o ângulo da experiência que a comunidade fez da sua
10
ressurreição.
O termo histórico aplicado a Jesus tem dois sentidos. Histórico quer dizer algo que
aconteceu tal qual se narra. Temos o aspecto factual. Por exemplo, Jesus morreu
crucificado sob Pôncio Pilatos. Este dado apresenta-nos com a mesma certeza
histórica que temos sobre acontecimentos semelhantes como a morte de Tiradentes,
enforcado. A morte de Jesus goza de provas de historicidade de tal valor que
razoavelmente não temos condição de negá-la. Assim na vida concreta de Jesus
chegamos a mais ou menos dados objetivos e incontroversos que aconteceram como
foram narrados. Para obter tais resultados se construiu o método crítico-histórico e
literário. O termo histórico significa mais. Mesmo que determinado evento não seja
provado no rigor histórico descritivo do fato, no entanto, estabelece-se a certeza do
significado que ele contém no interior da revelação apesar dos pormenores incertos.
Este aspecto é o mais importante para a fé cristã.
Um exemplo elucida tal tensão. Tomemos o caso da ressurreição de Lázaro. Não
temos condição de provar que os pormenores da doença, morte e ressurreição de
Lázaro, narrados por João, signifiquem descrição rigorosa dos fatos. Leva-nos a pôr
em questão o aspecto literal do milagre a natureza do próprio evangelho de João. Ele
se dá liberdade teológica e simbólica em muitas passagens para transmitir a verdade
última de Jesus e não os pormenores da vida concreta. A qualquer conclusão que o
estudo crítico-histórico literário chegue sobre a ressurreição ou não de Lázaro,
permanece, como centro da revelação, a verdade definitiva e fundamental da
confissão de fé de Marta: “Sim, Senhor – respondeu ela – creio que és o Cristo, o
Filho de Deus, que devia vir a este mundo” (Jo 11,24). Ela confirma a revelação que
o próprio Jesus fizera antes: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda
que esteja morto, viverá. E quem vive e crê em mim jamais morrerá” (Jo 11,25s). A
verdade inabalável da afirmação teológica sobre Jesus é a intenção primeira de João
e, portanto, independente da veracidade factual do milagre. Reflexão semelhante
pode-se fazer sobre o milagre de Caná, do cego de nascença, que encerram verdadeira
catequese teológica sobre algum possível núcleo factual. O mais importante
permanece válido, que é o ensinamento teológico de João sobre a abundância de vidaque Jesus trouxe (Caná) e sobre a cura de toda cegueira pela fé nele (cura do cego).
5. A partir de tal compreensão da história na vida de Jesus,
como crer em Jesus Cristo?
Antes de tudo, a fé em Jesus não depende dos estudos exegéticos e teológicos.
Eles estão a serviço do aprofundamento da fé, mas não são condição indispensável.
Tornam-se muito importantes à medida que as pessoas letradas levantam questões
11
oriundas dos textos as quais lhe perturbam a fé. A exegese vem-lhes em auxílio. A fé
em Jesus conjuga três elementos básicos.
A pessoa de Jesus é anunciada na qualidade de Filho de Deus. Um mínimo de
dados bíblicos faz-se necessário para tal proclamação (querigma). Os evangelhos de
Marcos e Mateus terminam precisamente enviando os apóstolos e discípulos à missão
de anunciar o evangelho. “Ide, pois, fazei discípulos meus todos os povos, batizando-
os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a observar tudo
quanto vos mandei. Eis que eu estou convosco, todos os dias, até o fim do mundo”
(Mt 28,19s). Marcos afirma que “os discípulos partiram e pregaram por toda parte”
(Mc 16,2). Há uma realidade objetiva em que crer. E ela nos é transmitida pela
pregação da Igreja desde os inícios.
Ao anúncio corresponde a acolhida. O fiel aceita o dado fundamental de que Deus
realizou o plano de salvação na pessoa do Filho Jesus. É o ato propriamente de fé.
Poderia parecer à primeira vista que a fé dependeria de nós em última análise. Mas
não. Aceitar a verdade da pregação e deixar-se batizar acontecem pela ação do
Senhor ressuscitado. Os textos citados o dizem de duas maneiras. Mateus, após o
mandato de Jesus, acrescenta que ele estará conosco até o final dos tempos. Que
significa? Atuará em nós com a graça, com a força da presença de ressuscitado,
chamando-nos à fé, dando-nos o poder de crer, e mantendo-nos na fidelidade da fé.
Marcos formula a mesma coisa de outra maneira: “O Senhor cooperava com eles (os
apóstolos) e confirmava a Palavra com os sinais que a acompanhavam” (Mc 16,20).
A cooperação de Jesus significa a ação da graça na aceitação da fé nele. Portanto, crer
em Jesus significa ouvir o anúncio de que ele é o salvador e aderir a ele sob a ação da
graça.
6. A fé em Jesus não é ato vazio, sem conteúdo. Como a
pessoa de Jesus em que cremos adquire contornos
concretos na fé cristã?
Dizer que Jesus nos salvou pode transformar-se em frase vazia e, por conseguinte,
não ter nenhuma força salvífica. Mas quem é este Jesus? Que coisa significa que ele
nos salvou? Como a salvação se traduz na vida concreta? Desafia-nos responder a
essas perguntas. Entre os dois extremos de crer em Jesus sem nenhuma outra
implicação e a curiosidade de conhecer-lhes os pormenores da vida, situa-se o papel
da pregação, da catequese, da teologia.
A seriedade da realidade de Jesus obriga-nos a não ser superficiais em conhecê-lo,
não se contentando com uma leitura ingênua dos evangelhos. Para chegar o mais
perto que podemos do Jesus da história, a exegese moderna e a teologia empenharam-
12
se laboriosamente em desenvolver métodos de pesquisa.
De maneira simples, o método mais usado compreende a redação dos evangelhos
da seguinte maneira. Os evangelistas, inspirados por Deus, procuraram transmitir às
suas comunidades a tradição de fé que conheciam e receberam. Eles redigiram os
textos em várias mãos até um último redator. Os nomes dos evangelistas referem-se à
comunidade a que os textos foram dirigidos. Não quer dizer que eles os tenham
redigido tais quais os temos hoje. Mas a tradição que eles transmitiram esteve na base
dos evangelhos. A presença do Espírito Santo garantiu a autenticidade e verdade da
redação.
Como eles redigiram? Os redatores encontravam-se diante de fontes diversas,
orais e escritas. A partir de um projeto que tinham estruturaram os textos. Não
seguiam nenhuma ordem estritamente cronológica, como fazem os historiadores de
hoje, mas o plano teológico que arquitetaram. As pregações de Jesus, os milagres, as
ações missionárias, acontecidas, em tempo e lugares bem diversos, iam sendo
compostos num todo orgânico.
7. Que projeto teológico sobre Jesus elaborou São Mateus?
São Mateus organizou a mensagem de Jesus em torno de grandes sermões, como
eixos a ordenar e estruturar o material disperso. Ele o fez a partir de cinco blocos: as
bem-aventuras, a ação missionária, as parábolas, a temática da Igreja, os
ensinamentos sobre o fim dos tempos. No primeiro sermão, chamado também de
evangélico, Mateus deixa-nos a imortal página sobre o Sermão da Montanha, seguido
de maravilhosa série de ensinamentos sobre a conduta do cristão, atingindo as alturas
do amor aos inimigos, além da clássica trilogia quaresmal da esmola, oração e jejum.
No sermão da missão traça o perfil e o comportamento do missionário de então e de
sempre até o heroísmo de suportar perseguições. As parábolas giram principalmente
em torno do tema do Reino de Deus com imagens simples e profundas. O sermão
eclesial desenha a vida da comunidade cristã, frisando o amor à criança e o cuidado
com a ovelha perdida. E para fechar o conjunto de sermões estão os ensinamentos a
respeito do final dos tempos. Aí o evangelista mistura escritos que recolhem
descrições da destruição de Jerusalém, já acontecida, com previsões sobre o final dos
tempos. Exige-se muito cuidado na leitura do sermão escatológico para não se ser
induzido a conclusões apressadas e ameaçadoras. O ensinamento central se resume na
vigilância arguta diante dos acontecimentos e na confiança total no amor salvador de
Deus.
Refletindo a vida da comunidade judaico-helenista, provavelmente da Síria,
Mateus trabalha a figura de Jesus em comparação com a prototípica e gigantesca
13
personalidade de Moisés. Para o judeu era o grande libertador. E Mateus mostra
como Jesus, o grande Mestre, supera o próprio Moisés. Com freqüência,
especialmente nos sermões do capítulo 5, põe nos lábios de Jesus a frase: Os antigos
disseram (entenda-se a lei de Moisés), eu, porém, vos digo. Aí aparece a força da
autoridade de Jesus que não veio abolir a lei de Moisés, mas levá-la à plenitude (Mt
5,17).
8. E Marcos, como nos apresenta Jesus?
É o exemplo do catequista. Na linguagem de Bento XVI, ele nos ensina a fazer o
“itinerário pessoal da fé”. Conduz o leitor a duplo ato de fé, um simbolizado por
Pedro e o outro pelo centurião romano. Pedro, modelo do cristão, interpelado por
Jesus sobre o que os discípulos pensam dele, responde: “Tu és o Cristo” (Mc 8,29). E
no final do evangelho, após percorrer toda a vida de Jesus, o cristão clama, como o
centurião romano: “Verdadeiramente, este homem era Filho de Deus” (Mc 15,39). A
vida de Jesus, como a do cristão, processa-se como drama atravessado pela luta
contra o mal. Marcos descreve-nos Jesus a desdemonizar o mundo. Usa a linguagem
do tempo em que o demônio era visto como personagem quase físico. Hoje a mesma
luta prossegue. O demônio veste-se de milhares de formas sutis do consumo e do
prazer exagerados, do sexo desvairado, da dominação, da injustiça social. Daí a
imensa atualidade da figura marcana de Jesus.
Marcos escolhe três cenários fundamentais da vida de Jesus, que ilustram a
existência cristã: deserto, mar e caminho. Três realidades altamente simbólicas e
carregadas de sentido. O deserto da intimidade com Deus, da provação e tentação; o
mar da vida, da beleza, das pescas, mas também das tempestades, dos riscos, dos
perigos e vigílias perdidas; o caminho do seguimento, das agruras, do contínuo andar.
Todos traços da vida cristã.
As viagens não simbolizam menos. Jesus transita continuamente entre dois
mundos: Galiléia e Jerusalém, a Galiléia judaica e pagã. De novo, que beleza
simbólica! Na Galiléia, Jesus irradia vida, pregação, milagres. Na Judéia, tramam-lhe
a morte. A ida da Galiléia judaica para a pagã revela o zelo missionário de Jesus. De
novo, retrato do ser cristão.
9. Qual é a face do Jesus de Lucas?
Lucas escolheu o eixo de Jerusalém para pensar a vida de Jesus e a irradiação da
fé. Tudo converge para Jerusalém. Jesusinicia, na segunda parte da vida pública (Lc
9,51), uma única viagem para lá e no caminho tece ensinamentos, faz milagres, põe
as exigências do seguimento. Nessa cidade, morre, ressuscita, faz todas as aparições,
14
envia o Espírito Santo e dela saem os missionários para levar pelo mundo a fé cristã.
O sentido teológico do caminhar para Jerusalém oferece sobejo alimento à meditação
cristã. Além desse eixo aglutinador, Lucas desenha a figura de Jesus à base de
contrastes. De um lado, sobressai a face humana, misericordiosa e acolhedora. De
outro, aparecem os traços exigentes a propor o seguimento radical e o
desprendimento dos bens materiais. Jesus oscila entre caminhar no meio do povo e
silenciar-se em orações nos momentos decisivos da vida: no batismo, na véspera de
pronunciar o Sermão da Montanha e da escolha dos doze apóstolos, no contexto da
interpelação aos discípulos sobre sua identidade, na transfiguração, antes de ensinar a
oração do Pai e, finalmente, no momento da dramática noite da agonia no horto. Todo
o conjunto da vida de Jesus insere-se no projeto salvífico. Como em nenhum outro
evangelho, Jesus fulge como salvador misericordioso.
10. E, finalmente, que figura de Jesus nos pinta o
evangelho de João?
Paradoxal é o mínimo que se pode dizer da figura de Jesus na pena de João. Há
traços estritamente históricos que remontam à memória do jovem João que seguiu
bem cedo ao Mestre. Recorda-se ele da hora do primeiro encontro com Jesus: “Eram
quase quatro horas da tarde” (Jo 1,39). Ao longo dos escritos, semeia pequenos dados
bem historiográficos. Doutro lado, alça vôos teológicos. Pensa Jesus à luz da
transcendência de Deus. Ele o faz caminhar na Terra com o resplendor da eternidade
nas palavras, nos gestos, nas atitudes. Tudo se explica a partir do prólogo em que
Jesus é identificado com o Logos eterno, divino, junto do Pai. E, em dado momento,
tomou carne, habitou entre nós. O lado escondido, frágil. Mas, continua focalizando o
lado glorioso de Jesus, “vimos a sua glória, a glória de Filho único do Pai, cheio de
graça e verdade” (Jo 1,14). Jesus é o Filho único de Deus, a quem ninguém jamais
viu, mas ele sim, que está junto do Pai, pode dar-nos a conhecer (Jo 1,18). Temos aí a
chave cristológica de João. Sendo o Filho, conhece perfeitamente o Pai e no-lo revela.
Longas narrativas de milagres (Caná, cura do paralítico, multiplicação dos pães,
cura do cego de nascença, ressurreição de Lázaro), conversas (com Nicodemos, com
a Samaritana, com os discípulos na Ceia) e discussões com os judeus constituem
reflexões teológicas profundas sobre o ser último de Jesus. João propôs-se desvendar
para os cristãos onde residia o segredo maior de Jesus: ser o Filho que vive em
comunhão com Deus Pai e que assumiu a carne para habitar entre nós.
A cristologia de João fecha com imensa riqueza as figuras que os sinóticos tinham
desenhado do Senhor. O cristão pode, enfim, compreender em profundidade o
mistério da pessoa de Jesus. E daí para a frente virão os Concílios e a teologia para
15
caminhar na linha de traduzir a centralidade do querigma nas linguagens culturais dos
diversos tempos.
11. Em resumo, que tipo de linguagem tecemos a respeito
de Jesus a partir dos evangelhos?
Criando uma palavra nova, os evangelhos constroem uma teonarrativa do Jesus
histórico. Predomina neles o gênero literário da narração. Mas não como as narrações
históricas que conhecemos que se restringem a descrever o que aconteceu. E
mostram-se tanto mais fidedignas quanto mais exatamente retratam os pormenores
factuais. Os evangelhos pertencem ao gênero literário maior do “querigma”, isto é,
visam a anunciar a Jesus Cristo como salvador universal. E em função de tal intenção
principal, tudo o mais é pensado, organizado, dito. Portanto, a narrativa é teológica –
teo+narrativa. Assim nasceu e assim deve ser entendido e explicado. Deixar tal
perspectiva falseia-lhe a intelecção. Não tem sentido, portanto, apontar imprecisões
historiográficas de Lucas como comprometedoras da verdade do evangelho. Nem
deter-se em discussões abstrusas de pormenores que não afetam o sentido teológico
salvífico dos evangelhos. O Concílio Vaticano II expressou-se com precisão, ao
referir-se ao conjunto da Escritura: “E assim como tudo quanto afirmam os autores
inspirados ou hagiógrafos deve ser tido como afirmado pelo Espírito Santo, por isso
mesmo se deve acreditar que os livros da Escritura ensinam com certeza, fielmente e
sem erro, a verdade que Deus, para nossa salvação, quis que fosse consignada nas
sagradas Letras” (Dei Verbum, n. 11). O inciso importante é “para a nossa salvação”.
12. Como a fé cristã sobre Jesus Cristo foi-se elaborando?
Jesus Cristo foi anunciado inicialmente em duas grandes culturas: semita e grega.
Para definir a Jesus no meio judeu, os cristãos serviram-se das categorias bíblicas.
São inúmeros os títulos usados para Jesus no Novo Testamento. Percorrer alguns
deles permite-nos penetrar na fé da comunidade em relação a Jesus. Os títulos
ultrapassam o simples adjetivo. Revelam substantivos da pessoa, missão e prática de
Jesus. Eles interpretam a pessoa de Jesus e o caminho que assumiu. O próprio nome
de Jesus, aliás muito espalhado, na Palestina e na diáspora pré-cristã, remonta à raiz
semita que significa “aquele de quem Javé é socorro”, “Deus ajuda”, “salvação do
Senhor”. Significa o mesmo nome que Josué, aquele que sucedeu a Moisés na
epopéia da conquista da Palestina. Associou-se ao de Cristo nas duas formas de Jesus
Cristo e de Cristo Jesus. Dá-se-lhe então significação teológica cultual depois da
ressurreição, quando se lhe conferiu o título de Senhor, Kyrios, Filho de Deus. Com o
título de Cristo, reconhece-se Jesus como o Ungido, o Messias. Por ocasião de
16
Pentecostes, Pedro prega à multidão: “Todo Israel saiba, portanto, com a maior
certeza, que este Jesus, por vós crucificado, Deus o constituiu Senhor e Cristo” (At
2,36). A ligação entre Jesus e Cristo se faz por causa do caráter carismático da
aparição de Jesus. Espírito e Unção (daí ungido, Cristo) estão unidos na tradição
bíblica. E revela a identidade messiânica de Jesus, já não como quem vence os
inimigos políticos de Israel, mas as forças do pecado, da morte, do mal. Quando a
compreensão messiânica já não era familiar aos pagãos, o nome Jesus Cristo passou a
significar o Senhor. Por isso, hoje tão espontaneamente falamos: Jesus Cristo Nosso
Senhor. Ligamos num só nome a pessoa histórica que viveu na Palestina (Jesus),
reconhecido como Messias (Cristo) em função de sua glorificação (Senhor e Filho de
Deus) e como tal a comunidade cristã o reconhece (nosso).
Iríamos longe se nos detivéssemos em cada título. Elenco alguns para que os
meditemos. O povo na Palestina o chamou várias vezes de Filho de Davi, que soava
então como sinônimo de Messias esperado. O Novo Testamento, ao usar tal título,
relaciona Jesus com a profecia de Natã segundo a qual Deus promete que a casa de
Davi e sua realeza subsistirão para sempre e o trono ficará estável para sempre (cf.
2Sm 7,16), mas acrescenta a superioridade transcendente de Jesus por ser Filho de
Deus (Mc 12,35s).
Jesus é designado também como Servo de Deus, seja por alusão ao Servo sofredor
de Isaías, seja para indicar que Jesus se pôs a serviço do projeto salvador de Deus.
Com freqüência, chamam-no de “o profeta”, pela função de pregador, de
taumaturgo na linhagem dos profetas do Antigo Testamento. Esperava-se um profeta
dos últimos tempos. E reconheceram em Jesus essa missão. No meio do povo dizia-se
que era João Batista, Elias ou um dos profetas (Mt 16,14). Alusão à expectativa final.
Jesus é visto como o profeta escatológico, anunciando e realizando os últimos
tempos. Na verdade, Jesus realiza a missão de profeta, tanto no sentido da pregação
como no de ser rejeitado. Mas ele a supera, ao anunciar a verdadeira remissão dos
pecados e o início da realização do reino.
Filho do homem, condensa em si vários aspectos da pessoa e missão de Jesus.
Acentua o lado de humanidade em contraste com a expressão Filhode Deus. “Não
tem onde repousar a cabeça (Mt 8,20), vai sofrer na mãos dos homens (Mt 17,21),
será entregue aos sumos sacerdotes e escribas, o condenarão à morte e o entregarão
aos pagãos; será zombado, açoitado e crucificado” (Mt 20,18-19). Em certos
momentos, o Filho do homem aparece com poder divino de perdoar os pecados; “Pois
bem, para que saibais que o Filho do homem tem na terra poder de perdoar os
pecados – disse ao paralítico – eu te digo: levanta-te, toma a tua cama e vai para casa”
(Mc 2,10s). Carrega toque apocalíptico de quem ressuscitará no terceiro dia (Mt
17
20,19), de quem virá das nuvens para julgar (Mt 16,27; 25,31). Não lhe falta também
viés messiânico. As duas afirmações – Filho do homem e Filho de Deus – fazem a
verdade de Jesus.
À guisa de complementação, cito mais alguns dos bonitos títulos de Jesus,
empregados pelo Novo Testamento: o Filho, Luz, Verbo ou Palavra, Verbo da Vida,
Vida, Caminho, Salvador do mundo, Mestre, Rabi, Justo, Santo de Deus, Rei, Rei dos
reis, Homem segundo vindo do céu, Adão último, Príncipe de nossa redenção, Autor
de nossa vida, O que virá, Nazareno, Cordeiro de Deus, Redentor, O Crucificado, O
Ressuscitado, Alfa e Ômega, Primeiro e Último, Princípio e Fim, Verbo vindo na
carne, Esposo, Testemunha fiel, Primogênito entre os mortos, Príncipe dos reis da
terra, Aquele que nos ama, Aquele que é, que era e que vem, O Todo-Poderoso, O
Vivente, O que estava morto e voltou à vida, Aquele que tem a espada afiada, O
Santo e O Verdadeiro, Aquele que tem as chaves de Davi, Princípio da criação de
Deus, Leão da Tribo de Judá, Raiz de Davi, Senhor dos Senhores, Emanuel ou Deus-
conosco, Irradiação da glória do Pai, Glória de Deus, O Santificador, Sumo
Sacerdote, Juiz Universal, Cabeça da Igreja, Imagem de Deus invisível, Mediador da
nova e eterna aliança, Porta do redil, Bom Pastor e tantos outros títulos.
Resumindo a fé do Novo Testamento: o homem Jesus é o Cristo, o Filho de Deus
Pai, a sua última e definitiva revelação. Nada há mais a revelar além de Jesus
enquanto projeto salvador de Deus. O Paráclito, o Espírito Santo, que o Pai enviará
em nome de Jesus sobre os discípulos, como ele disse na ceia, cumprirá a missão de
ensinar e lhes trazer à memória tudo quanto ele ensinara (Jo 14,26). O caminho da
vida terrestre de Jesus, consumada na cruz, recebe na ressurreição a aprovação
definitiva de Deus de modo que ele se tornou para nós caminho, verdade e vida além
de toda outra manifestação histórica. Todos os sinais de revelação de Deus no
passado, no presente e no futuro encontram em Jesus a chave última de interpretação
e referência. Por meio dele participamos da plenitude de humanidade. Aquilo que ele
realizou em plenitude é o que existe em nós em forma embrionária que tende para ele.
Por isso, ele é o Princípio e o Fim, Alfa e Ômega.
13. Como a fé bíblica se traduziu na cultura grega?
Esta foi a obra dos Padres da Igreja e dos Concílios. Tentaram responder à
pergunta: Que significa a fé bíblica, com tantos títulos dados a Jesus, para o contexto
da cultura helenística à qual se quer anunciar o evangelho? Estavam os
evangelizadores em face de profunda e rica tradição filosófica que configurava a
cultura grega. Como falar da verdadeira realidade de Jesus aí dentro? Havia vários
riscos: tomar algum caminho errado, não traduzir bem a fé bíblica, encurtar a
18
realidade de Jesus. Buscava-se um resultado que não fosse a traição da fé bíblica,
tornando-a puramente grega, nem ensinamentos paralelos a modo de dois credos, mas
a novidade de manter o fundamental da revelação da Escritura, não só exprimindo-se
em categorias gregas como também convertendo por dentro a própria cultura grega.
Aconteceu a primeira e talvez a única verdadeira inculturação da fé cristã. Modelo
para o diálogo inter-religioso de hoje. Tudo isso se fez possível por causa da
convicção profunda de que a revelação de Deus era capaz de ser expressa em
qualquer cultura humana, convertendo-a em profundidade.
O conceito de natureza era, para os gregos, muito importante para identificar a
ligação dos seres entre si. Todos os seres humanos pertencem a uma mesma natureza.
É a espécie humana. A relação entre Jesus e Deus Pai deveria ser diferente. Não é
possível pensar uma natureza específica divina de que muitos deuses participassem.
Há um só Deus. Há uma só natureza divina. E então? Em geral, os adversários
ajudam-nos a pensar melhor. O diácono Ario não queria aceitar que Jesus pertencesse
à mesma natureza numérica de Deus. Julgava-o inferior, embora fosse a primeira e
mais importante criatura e como tal teria participado como intermediário na criação.
Para a fé cristã, era pouco afirmar isso de Jesus. Então os padres gregos para
traduzirem a real divindade de Jesus, como Filho, usaram várias expressões.
O filho é da mesma natureza do Pai, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado
e não criado. Mais adiante explicaremos tais expressões.
14. Como os Padres da Igreja e os primeiros Concílios de
Nicéia e Constantinopla expressaram a fé em Jesus, Filho
de Deus?
Hoje, para nós, o apelativo Filho de Deus soa natural e muito claro. Mas nos
tempos antigos, os romanos acreditavam em muitos filhos de Deus. Se Jesus tivesse
sido um filho de Deus entre tantos nunca teriam perseguido os cristãos. A ousadia
cristã ia mais longe e necessitava ser explicitada. Jesus era Filho de Deus de maneira
diferente de como se atribuía este título até mesmo na Bíblia. Ela aplica-o ao justo:
“Se o justo é filho de Deus, Deus o defenderá e o livrará das mãos de seus
adversários” (Sb 2,18). A originalidade de Jesus exigia cuidado com os termos para
expressá-la. E a teologia dos Santos Padres e Concílios esmerou-se em fazê-lo.
Para elucidá-lo, tomemos o Credo niceno-constantinopolitano que rezamos na
liturgia como alternativa ao Credo chamado dos apóstolos. É a fórmula longa que
antigamente era a única usada. Hoje, infelizmente, raras vezes o fazemos aqui no
Brasil. Vale a pena retomá-la e ver no que se refere a Jesus Cristo.
19
“Creio em um só Senhor, Jesus Cristo”. O verbo crer em latim aceita duas
regências que têm sentidos teológicos bem diferentes. Em português não há
diferença, de modo que não é fácil perceber o peso teológico da expressão. Credere
in com acusativo significa crer no sentido pleno de nossa entrega total como criatura
ao Criador. Só a Deus podemos credere in. Começamos o Credo empregando tal
expressão para o Pai, depois o fazemos em relação ao Filho e ao Espírito Santo. Desta
maneira já confessamos a divindade das Três pessoas. Quando falamos da Igreja, da
comunhão dos santos, da remissão dos pecados, da ressurreição da carne e da vida
eterna, deixamos de lado a preposição in para dizer que não são Deus, mas realidades
que participam de Deus.
O Credo continua dizendo “em um só Senhor”. Mais um pormenor que só aparece
bem no latim. Esta língua não conhece o artigo indefinido “um”, que apenas indica
tratar-se de qualquer ser da espécie. Mas quando usa o termo “unus”, refere-se ao
número um em oposição a qualquer outro número. Portanto, o credo faz questão de
enfatizar a unicidade do Senhor Jesus Cristo usando o “um”. A tradução portuguesa
para manter tal significado acrescentou o adjetivo “só”, evitando assim qualquer
dúvida quanto à singularidade divina de Jesus. O termo Senhor, que também em
português perdeu enormemente a força significativa, em grego e latim (Kyrios e
Dominus) é título divino. Como já se diz acima, é a tradução do hebraico Javé.
Coloca, portanto, Jesus no mesmo nível de natureza que Javé. E este Senhor é Jesus
Cristo.
15. Como este Credo relaciona Jesus Cristo com Deus Pai?
Chama-o de filho unigênito de Deus. Com isso exclui que Deus Pai tenha outro
filho, já que ele é o único gerado por Deus. Como alguns hereges consideravam que
houve um tempo em que Deus ainda não tinha gerado o Filho, o Credo exclui tal erro
ao dizer: nascido do Pai antes de todos os séculos, isto é, antes do tempo já o Filho
existia. O máximo que os hereges concediam era que o Filho fosse criado antesde
todas as outras criaturas e atuasse como mediador da criação. A fé cristã não aceitou
tal concessão. Quis ir mais longe. Introduziu distinção sutil entre gerado e criado. O
Filho foi gerado e não criado. A geração acontece desde toda eternidade e a criação se
faz no tempo ou no máximo com o tempo. Pela geração eterna, o Filho é Deus de
Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro. Soa-nos um exagero tal
conjunto de expressões do Credo. Mas tudo converge para o ponto central: o Filho é
da mesma natureza que o Pai. Criou-se em grego uma palavra nova, não bíblica, de
colorido filosófico, para expressar a novidade da fé: omoousios = omos (mesma,
igual), ousia (natureza). Aí temos o final da especulação grega: o Filho é da mesma
natureza que Deus Pai. Por isso, o Credo continua dizendo que por ele foram feitas
20
todas as coisas.
16. Por que essa preocupação tão forte de afirmar a relação
íntima entre Jesus, Filho de Deus, e Deus Pai? Seria uma
curiosidade sobre a vida interna de Deus?
Não. O interesse se dirigia fundamentalmente à obra salvadora de Jesus. O
Concílio temia que, enfraquecendo a realidade de Jesus na sua natureza de igual ao
Pai, tal posição redundasse na dúvida da obra da redenção, da salvação da
humanidade. Não estaríamos salvos, mas ainda mergulhados no pecado, já que aquele
que morreu por nós seria mero homem. Afirmar a divindade de Jesus equivale a
garantir a nossa salvação. Santo Atanásio disse-o muito bem: “Se o Filho fosse
criatura, o ser humano seguiria sendo o que é, sem vinculação com Deus. Uma
criatura não pode unir as criaturas com Deus; ela teria que buscar alguém que o
fizesse. Uma parte da criação não pode ser salvação para toda a criação, pois ela
mesma teria necessidade de salvação”. Por isso, só sendo Filho de Deus, portanto,
Deus verdadeiro, Jesus pôde remir toda a humanidade. Estava em jogo nenhuma
especulação ou discussão teórica, mas a dura realidade humana carente da ação
salvadora de Deus por meio do Filho, em quem participamos da própria natureza
divina.
17. Com a clareza da definição da natureza divina de Jesus
no Concílio de Nicéia (325) e de Constantinopla (381) deu-
se por terminado o percurso dos ensinamentos dos
Concílios sobre a pessoa de Jesus?
Parecia tudo muito claro. O Filho de Deus encarnou-se, se fez homem, sofreu,
ressuscitou. No entanto, nós, seres humanos, diante de uma tensão entre duas
realidades, temos a tendência de exagerar ora uma, ora outra. Assim, no mistério de
Jesus, estavam em jogo a divindade e a humanidade. No início, aqueles que
conheceram Jesus na carne tiveram a tentação de atestar-lhe com firmeza a
humanidade e de duvidar sobre a divindade. Assim, alguns ebionitas ensinavam que
Jesus era “puro ser humano”. À medida que os fiéis se afastavam do Jesus histórico
nos séculos e se enveredavam pela reflexão e defesa da divindade de Jesus, como
constatamos nos Concílios, aconteceu o contrário. A humanidade de Jesus se
encurtava cada vez mais a ponto de ensinar-se que Jesus tinha só aparência humana
(docetismo). Ele era de pura natureza divina, de uma única vontade que era divina. Se
negar a divindade comprometia a obra salvadora, porque um mero homem não teria
21
condição de unir toda a humanidade com Deus nem, portanto, de salvar-nos, agora
sucede o mesmo. O Filho de Deus sem humanidade não nos salvaria. A grande Igreja
da tradição dos primeiros séculos formulou o axioma teológico: “quod non est
assumptum, non est sanatum” (“o que não foi assumido, não foi curado”). Ora, a
natureza humana só será sanada, salva, curada na sua totalidade, se ela for assumida
também na totalidade pelo Verbo. Se ele não tem corpo humano verdadeiro, nem
liberdade nem vontade humana, então o ser humano continuaria sem redenção no
corpo, na liberdade, na vontade. Mais uma vez o argumento salvífico pesou para
defender a humanidade completa de Jesus.
18. Em que momento os Padres definiram com maior
clareza a relação entre a natureza divina e humana em
Jesus Cristo?
No Concílio de Calcedônia (451), os padres conseguiram o equilíbrio entre as
duas cristologias antagônicas. Uma cristologia acentuava de tal maneira a divindade
de Jesus que a humanidade parecia espécie de prótese que a divindade manipulava a
seu dispor. Quando Jesus queria dormir, a divindade comandava o sono; acordar,
despertava-o; e assim por diante. Ele poderia andar sobre as águas quando quisesse,
teria podido descer da cruz, conhecia tudo o que iria acontecer. Quando escolheu
Judas como apóstolo, já sabia que ele o iria trair. A humanidade de Jesus não passava
de instrumento hábil e dúctil da divindade de Jesus. A outra corrente valorizava de tal
maneira a humanidade de Cristo que chegava a ser duas pessoas, dois sujeitos, um
duplo eu, um humano, outro divino. Então os padres de Calcedônia decidiram pelo
equilíbrio. Jesus era verdadeiramente Deus. Tinha perfeita natureza divina. Jesus era
verdadeiro homem. Tinha uma natureza humana completa com corpo humano
perfeito, com liberdade humana, com vontade humana, com sensibilidade humana. E
como não cindi-lo em dois? A unidade lhe vinha da pessoa, do último sujeito, do eu.
Nele as duas naturezas possuíam existência. Tinha de ser, portanto, um único eu
divino, uma única pessoa divina.
19. Com o passar do tempo, o conceito de pessoa, por
influência da psicologia e filosofia modernas, modificou-
se. Como entender que Jesus é uma única pessoa divina, se
ele tem liberdade, consciência e vontade humana?
No momento em que concebemos a pessoa como o sujeito da liberdade, da
consciência, da vontade, Jesus seria nesse caso uma pessoa humana. E assim o
22
entendemos hoje. Mas quando o Concílio ensinou que não era pessoa humana, mas
somente divina, que quis dizer?
Pessoa aí tem outro sentido. Com essa palavra, ensinou-se que Jesus encontra a
sua última realidade, o seu ser como aquele que o recebe de Deus Pai. Ele, em última
análise, não é mera criatura, puro ser humano. Sua natureza histórica é humana e
criada, mas seu ser é gerado desde sempre pelo Pai. Isso é a sua pessoa. Ele assumiu a
natureza humana completa em tudo, menos no pecado. Paulo formula de maneira
plástica: “Ele, subsistindo na condição de Deus, não pretendeu reter para si ser igual a
Deus. Mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo, tornando-se
solidário com os homens. E, apresentando-se como simples homem, humilhou-se,
feito obediente até a morte, até a morte na cruz” (Fl 2,6-8). O Filho continuou
existindo como Deus, como Pessoa divina. Mas, ao encarnar-se, não escolheu para si
mesmo, de maneira ciumenta, caminhar entre nós com modo divino, igual ao Pai,
mas esvaziou-se de tal direito, de tal maneira de andar entre nós, assumindo a forma
humana bem frágil até ser condenado à morte na cruz. Aí está o mistério maior de
Jesus, a extrema humanidade subsistindo na condição divina, sem que nenhuma delas
– humanidade e divindade – sofresse detrimento.
20. Como pensar a realidade humano-divina de Jesus na
perspectiva da maneira moderna de entender?
K. Rahner foi, sem dúvida, um dos teólogos que nos ajudou a fazê-lo. Responde a
duas perguntas, que vale a pena repetir: que é o ser humano à luz de Jesus Cristo? E
quem é Jesus Cristo a partir da compreensão do ser humano?
O ser humano deixa-se compreender na totalidade e profundidade unicamente a
partir da criação e do destino que Deus lhe deu. Fora daí qualquer visão dele
permanece incompleta, carente. Deus que o criou é puro amor. O ser humano nasce
de um Ser-amor e de um ato, portanto, de amor. Marca-lhe o mais profundo do ser a
realidade do amor. Mais! Deus o fez para privar da própria amizade com Ele em
profunda comunhão na Terra a caminho da plenitude para além da morte. A abertura
do ser humano para o amor de Deus é, por assim dizer, infinita. E o Logos divino foi
o único capaz de encher-lhe totalmente essa abertura pelo mistério da Encarnação.
Assim Jesus Cristo é a realização última, perfeita, total de tudo o que o ser humano
tem de potencialidade, de acolhida e de realização do divino presentenele mesmo.
Todos caminhamos para essa plenitude que nunca conseguiremos realizar, pois só
Jesus o fez por ser o próprio Deus encarnado. Portanto, o ser humano perfeito chama-
se Jesus Cristo.
O contrário também nos encanta. A partir do Verbo encarnado entendemos quem
23
é o ser humano. Ele mostrou historicamente como o infinito se manifesta. E o fez por
meio da humanidade. Quanto mais humano Jesus se mostrava, mais revelava o
divino. Assim o divino plenamente revelado para nós chama-se Jesus Cristo. Daí a
bela frase de L. Boff: “Humano assim só pode ser Deus mesmo!”.
A conseqüência de tal reflexão para a prática cristã é fantástica. Corrige um dos
erros mais perniciosos de certas pregações tradicionais. Pessoas que queriam ser
perfeitas, imitar a Jesus, renunciavam e negavam o que tinham de humano,
procurando viver o mais afastado de toda realidade humana. Enquanto o mistério da
Encarnação ensina o contrário. Quanto mais humanos formos, mais contemporâneos
e iguais a Cristo seremos. Assumir a humanidade em toda amplitude é cristificar-nos,
divinizar-nos. Terminaram os dualismos. O desafio do cristão é ser humano como os
humanos. Nisso se faz e se revela cristão. Toda dimensão humana, por ser humana,
em virtude do plano salvador de Deus levado à plenitude no mistério da encarnação,
é, ao mesmo tempo, crística, divina. Concluindo: o humano de Jesus revela o divino e
o divino, de Jesus se atinge e se conhece pelo humano.
21. Se Jesus foi humano, aceitou todas as nossas
limitações, podemos dizer que não sabia tudo?
A reflexão sobre o fato de Jesus desconhecer, ignorar certas coisas tem produzido
perplexidade nos fiéis. Há extremos que são exagerados e deturpam a figura de Jesus.
Uma posição tradicional muito difundida, e, digamos, com autoridades importantes
da tradição a seu favor, defendia que Jesus tinha visão face a face de Deus aqui na
terra. Gozava da visão beatífica, própria dos que já morreram e estão no céu. Privara-
se unicamente dos efeitos colaterais de glória e felicidade decorrentes de tal visão
sobre o corpo, de modo que podia sofrer. Do contrário, estaria aqui na terra em pleno
gozo. Quanto ao conhecimento, sabia de tudo detalhadamente. Na realidade, ele não
precisava perguntar nada, porque já sabia de antemão. E se nos relatos evangélicos
Jesus pergunta, é simplesmente para efeito pedagógico. Essa posição chegou a
fantasiar a vida de Jesus como o desenrolar de um filme já visto. O menino Jesus já
sabia que iria morrer na cruz. Ao convidar Judas para apóstolo, o fazia com o
conhecimento de que ele o trairia.
Teólogos, já influenciados pela psicologia e filosofia modernas, começaram a
questionar tal doutrina. Neste caso, Jesus não seria livre. Porque quem já tem tudo
conhecido e sabido até os mínimos pormenores, executa unicamente o projeto. Não
tem nada a escolher nem empenha a própria liberdade no risco da aventura humana.
A vida de Jesus deixaria de ser humana como a nossa. E o hino aos filipenses ensina
claramente que ele se esvaziou da maneira divina de proceder que seria precisamente
24
esta.
O outro extremo faria de Jesus um ser que só aprenderia e saberia aquilo que os
pais terrestres, os mestres, a cultura da época lhe ofereceram. E nada mais. Tem a
vantagem de levar a humilhação e esvaziamento de Jesus ao extremo. No entanto,
não responde a muitas afirmações dele a respeito da vontade do Pai. Como conhece
tal vontade?
A posição intermédia afirma que Jesus conhecia tudo o que dizia respeito a sua
missão, incluindo o sentido salvífico de sua morte na cruz, por ação misteriosa de
Deus Pai. As orações noturnas, a intimidade original e única dele com Deus
deveriam, sem dúvida, proporcionar-lhe algo que os outros seres humanos não têm. A
experiência de místicos e santos nos permite entender melhor e ampliar tal esfera de
conhecimento. Na autobiografia, Santo Inácio descreve que, estando sentado com o
rosto voltado para o rio Cardoner, nas imediações de Manresa, “começaram a abrir-
se-lhe os olhos do entendimento. Não tinha visão alguma, mas entendia e penetrava
muitas verdades, tanto em assunto de espírito como de fé e letras. Isto, com uma
ilustração tão grande que isto lhe parecia coisas novas”. “Recebeu uma intensa
claridade no entendimento. Em todo o decurso de sua vida, até os 62 anos de sua
idade, coligindo todas as ajudas recebidas de Deus e tudo o que aprendera por si
mesmo, não lhe parece ter alcançado tanto quanto só daquela vez”. Ora, se isto
acontece com um santo nos inícios de sua vida espiritual, imaginemos o que terá sido
a intimidade de Jesus com Deus.
Jesus tinha experiência pessoal, imediata e humana da relação profunda com o Pai,
haurida de sua própria vida divina. Ela não lhe dava os conhecimentos detalhados da
realidade, nem mesmo conseguia formular tal experiência em palavras humanas. À
medida que aprendia com os humanos, com a cultura circundante, traduzia nas
pregações, nas atitudes o seu último mistério de união com Deus. “Eu e o Pai somos
um” (Jo 10,30). O conhecimento que tinha do Pai é de outra natureza. Jesus precisou
conviver conosco para poder exprimir em palavras humanas aquilo que era e
experimentara diante do Pai. Daí Lucas vem nos dizer: “Jesus crescia em sabedoria,
idade e graça diante de Deus e das pessoas” (Lc 2,52). À medida que a
autoconsciência de Jesus aflorava pelo desenvolvimento psicológico e cultural, ia-se-
lhe tornando mais clara a relação de intimidade com Deus Pai e podia então
comunicá-la aos outros. Não se pode aceitar que Jesus tenha tido uma
autoconsciência de ser simples ser humano, sem nenhuma relação de intimidade e
comunhão com Deus, e com o tempo foi adquirindo a autoconsciência de filho de
Deus por influência do ambiente, como pensam certos racionalistas. Há uma
originalidade, para nós misteriosa, da consciência de Jesus em relação a Deus.
25
22. Outras perguntas intrigantes: Jesus tinha fé? Que
significa o fato de que ele rezava a Deus?
O mistério de Jesus une em si a humanidade e a divindade. Sendo Deus, dirige-se
aos seres humanos pelo Verbo em movimento descendente de salvação,
autocomunicando-se, autodoando-se. E sendo também humanidade, volta-se para
Deus, em movimento ascendente de adoração. Os atos humanos de Jesus adquirem,
portanto, duas direções. Revelam o amor e o poder de Deus. No humano, aparece
Deus poderoso, salvador. Mas também ele representa a humanidade: ora por nós,
adora por nós, crê em Deus Pai, a quem se dirige. Se ele é um com o Pai, também diz
que o Pai é maior do que ele (Jo 14,28). Na condição de Filho feito humanidade, reza
e crê no Pai, entregando-se a ele. Torna-se nosso modelo de fé e de oração. Na
condição de Verbo divino, comunica a nós a vida divina, que recebeu eternamente do
Pai.
Parece um pouco complicado, mas, para nossa piedade, basta reter duas coisas:
Jesus, o Filho de Deus, comunica-nos tudo o que o Pai lhe concedeu. Jesus, homem
como nós, experimenta o gesto de entrega ao Pai na oração e na fé. E daí extrai
conhecimento, clareza para agir em prol de nossa salvação.
23. Cresce no momento atual a preocupação pela ecologia.
A fé em Cristo ilumina tal situação?
A interpretação literal do relato da criação gerou entre cristãos a mentalidade de
que Deus criou tudo já no ponto em que está. No máximo se admitiam, ao longo da
história, limitadas transformações das espécies vegetais, animais e do ser humano sob
o aspecto cultural. As teorias darwinistas (Ch. Darwin: 1809-1882) e outros cientistas
forjaram a atual mentalidade evolucionista. A partir da explosão inicial gigantesca,
chamada Big Bang, o cosmos chegou à presente forma através de 15 bilhões de anos
de evolução. E nele a Terra. E na terra a vida. E na vida os animais. E entre os
animais o ser humano. Tudo sob e na força do poder de Deus criador. A cosmovisão
evolucionista tornou-se o esquema mental comum do homem moderno. Ele entende o
cosmos como sistema em movimento, em processo, dotado de vigoroso dinamismo.
Está em contínua cosmogênese, isto é, está ainda sendo gerado. E como entender
Jesus Cristo aídentro?
O cientista, filósofo e teólogo Teilhard de Chardin iniciou a bela tarefa de
construir uma visão cósmica de Cristo. Não se trata de nenhuma invenção abstrusa.
As bases se encontram na Escritura. São Paulo, no hino aos Colossenses, afirma com
toda a clareza: “Ele é a imagem do Deus invisível, primogênito de toda criatura;
26
porque nele foram criadas todas as coisas, nos céus e na terra, as visíveis e as
invisíveis: tronos, dominações, principados, potestades; tudo foi criado por ele e para
ele. Ele é antes de tudo e tudo subsiste nele” (Cl 1,15-17). Cristo é o ícone de Deus
Pai. Mostra visivelmente para nós a invisibilidade de Deus. É a face externa do
mistério interno da santidade de Deus. Nisso ele manifesta a glória de Deus. Paulo, ao
lançar o olhar para a criação, em maravilhosa visão teológica, vê Cristo como o
primogênito – o primeiro gerado – em relação a todo criado. E então todas as coisas
sem exceção foram criadas por ele e para ele. Alfa e Ômega, começo e fim. Pois
existia antes de tudo. E o que mais impressionou a Teilhard é o breve inciso paulino:
“nele tudo subsiste”. Em termos evolucionistas: tudo arranca dele, tende para ele e
nele encontra a força subsistente para evoluir.
O cristão encontra-se bem aparelhado na fé para assumir o processo evolutivo e
identificar o Cristo histórico do mundo mediterrâneo com o Cristo que afeta o vasto
Universo engrandecido em contínua evolução. Acredita na presença irradiante de
Cristo até os confins do Universo. O processo de evolução se rege pela dupla lei de
crescente complexidade e de sempre maior centralidade. Isso significa que as
realidades ao tornarem-se mais complexas, em vez de serem dispersivas, geram, ao
mesmo tempo, um pólo de maior centralidade e coesão. A planta é mais complexa
que a pedra, no entanto, pelo princípio vital é mais centrada. O mesmo acontece com
o animal em relação à planta, com o ser humano em relação ao animal. Ora, a
realidade mais complexa que existe é Cristo. Pois ele é o infinito feito história. E
nada é mais centrado do que ele. Ele é o próprio Deus feito cosmos, feito natureza
humana, feito história. Então nele realiza-se em plenitude a lei do evolucionismo,
segundo o pensar de Teilhard de Chardin. Infinitamente complexo, infinitamente
centrado.
Assim, na fé, contemplamos a Cristo como centro físico de todo o mundo
material. O mundo convergente postula um centro pessoal, preexistente, capaz de
ativar o amor-energia do mundo e o conduzir pela evolução ao seu último termo. Ele
é Cristo. O Cristo Universal, ponto transcendente sempre presente; ponto terminal,
ponto ômega. Ele é o grande “evoluidor”, cuja ação criativa não só sustenta o cosmos
material, mas também carrega redentoramente os pecados do mundo em progresso.
Aí entra o mistério da cruz e ressurreição.
A cruz de Cristo no processo evolutivo adquire sinal de crescimento, como
símbolo da face conquistadora e luminosa do Universo em gênese e símbolo do
progresso e da vitória através das faltas, decepções e esforços. Como a cruz terminou
na ressurreição, o Cristo ressuscitado é o cume da antropogênese, fechando o grande
processo evolutivo cósmico e da história. Em outras palavras mais simples, o Cristo
27
ressuscitado é o máximo que o humano pôde e pode atingir. Ele é o ponto ômega, não
só da evolução do cosmos, como da história humana. O crescimento coletivo de
consciência humana termina no Ultra-humano do Cristo glorioso. Toda a criação –
cosmos e história – atinge o ponto máximo de maturação coletiva na Parusia, o
momento de glorificação de todos os seres humanos e do cosmos pela força da
ressurreição de Cristo. Ao criar o mundo e o ser humano, Deus Pai colocou nele a
semente da ressurreição, que, por primeiro, desabrochou no Filho Jesus e depois irá
atingir sucessivamente todos os humanos e o cosmos material. O mesmo nos ensina o
Concílio Vaticano II, de maneira discreta, mas clara: “Todos estes valores da
dignidade humana, da comunhão fraterna e da liberdade, fruto da natureza e do nosso
trabalho, depois de os termos difundido na terra, no Espírito do Senhor e segundo o
seu mandamento, voltaremos de novo a encontrá-los, mas então purificados de
qualquer mancha, iluminados e transfigurados, quando Cristo entregar ao Pai o reino
eterno e universal: ‘Reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça, reino
de justiça, de amor e de paz’. Sobre a terra, o reino já está misteriosamente presente;
quando o Senhor vier, atingirá a perfeição” (Gaudium et spes, n. 39).
24. A figura complexa e paradoxal de Jesus permitiu
interpretações que fizeram dele certos movimentos do
mundo jovem. Até onde é válida tal tentativa?
No final da década de 60, atravessando a de 70, para terminar no início dos anos
80, assistimos ao desabrochar do Jesus movement. Criou-se a imagem de um Jesus
rebelde diante da Lei. De dentro do movimento de contracultura dos hippies, surgiu
reação religiosa de cristãos, desencantados com o comportamento desregrado de
muitos jovens. Usando a terminologia da contracultura, introduzem valores cristãos.
Conservam o acento de liberdade, de rebeldia diante da religião das igrejas,
criticando-as de terem domesticado a Jesus. Interpretavam a liberdade crítica de Jesus
diante da Lei, do Templo, dos sacerdotes, agora em relação às próprias igrejas.
Expressões do Jesus Superstar, a peça-filme Godspell, a figura do Cristo arlequim
(H. Cox), quebravam a sacralidade da figura hierática de Cristo. Um teólogo
americano constatava “a personificação da festividade e da fantasia, numa idade que
já perdera ambas há tempo. Agora, sim, esse Cristo, chegando em arrebiques e jatos
de luz, está habilitado a tocar nossa atribulada consciência moderna, capacidade que
foge às outras imagens de Cristo (H. Cox)”.
Entre nós, no Brasil, Roberto Carlos popularizou tal onda com a música “Jesus
Cristo”, cheia de rasgos românticos a ponto de chamá-lo de meu Pai:
“Jesus Cristo, Jesus Cristo, eu estou aqui.
28
Olho pro céu e vejo uma nuvem branca que vai passando.
Olho pra terra e vejo uma multidão que vai caminhando.
Como essa nuvem branca essa gente não sabe aonde vai.
Quem poderá dizer o caminho certo é você meu Pai”.
E outro cantor, Antônio Marcos, deu à imagem de Jesus toque jovial e de ternura
com a “Oração de um Jovem Triste”:
“Cabelos longos
Iguais aos meus
Tu é o Cristo,
Filho de Deus.
Tanta ternura
Em teu olhar:
Tua presença
Me faz chorar”.
Naturalmente o esforço de traduzir a realidade de Jesus para a subcultura jovem é
válido. Cabe, porém, guardar o sentido profundo e profético da pessoa, vida e
mensagem de Jesus, evitando edulcorá-lo, banalizá-lo. Jesus tem por onde falar ao
jovem e tocar-lhe o coração até a conversão interior.
25. Ampliando a pergunta, as novas espiritualidades em
curso não terminam por deformar a figura de Jesus?
Há uma corrente que valoriza os milagres. Sem dúvida, eles ocupam relevância na
vida de Jesus. Se os retirarmos dos textos evangélicos com tudo o que se refere a eles,
resta pouco. Só sob o aspecto estatístico numérico em termos de versículos eles
impressionam. A exegese moderna mudou a direção da interpretação. Antes eram
vistos, em perspectiva apologética, como prova do poder e divindade de Jesus.
Valorizava-se-lhes o lado maravilhoso. Definia-se como milagre só aquela ação que
superasse todas as forças da natureza, e, portanto, que só podia ser provocada por
Deus. Evidentemente tal perspectiva desconhecia os gêneros literários e a cultura da
época. Na teologia crítica, os milagres são interpretados como sinais do Reino de
Deus. Não valem tanto por eles mesmos, mas pelo que eles significam de anúncio da
ação salvífica de Deus. O teor teológico sobressai sobre o aspecto de poder.
Por sua vez, a atual corrente espiritualista recua à compreensão do milagre como
ação poderosa de Cristo. E orienta os fiéis para que rezem a fim de o Senhor hoje
29
repeti-los com a mesma força. A palavra “poder de Jesus” se repete à saciedade,
especialmente em meios neopentecostais. Em ambientes intimistas, apela-separa o
poder de cura interior, psíquica, física e espiritual. Assim se perde o sentido maior do
milagre que não se refere a mudanças extraordinárias da realidade, mas que sinaliza a
vocação do cristão de atuar sobre a sociedade, ao transformá-la por todos os meios de
que dispõe. Jesus não supre a ação humana, mas a incentiva, anima, fortalece. Na
visão espiritualista, a fé em Jesus Cristo nos dispensaria de agir e apresenta a Jesus
fazendo tudo até no sentido material de modificar o curso das coisas. Esvazia o Jesus
da história para circundá-lo de uma aura no estilo da Nova Era. Ele fica reduzido a
alguém cercado de desejos de paz, amor, harmonia. E, na realidade, ele pede
seguimento que implica amor efetivo, envolvido com o sofrimento e a luta dos irmãos
para ajudá-los a superá-los. Jesus não é nenhum terapeuta nem guru, mas Mestre
divino que nos ensinou pela vida, mensagem e ações. Falta ao Jesus das novas
espiritualidades uma dose do Cristo libertador que impele as pessoas para o
compromisso transformador da realidade social em vista da libertação dos pobres.
26. Na perspectiva da vida de Jesus no interior da
sociedade de seu tempo, alguns autores apresentam-no
como verdadeiro marginal. Que significa tal leitura tão
radical?
O termo marginal permite significados diferentes. Por trás está a imagem espacial
de margem em oposição a centro. A pessoa marginal habita à margem do grupo, do
povo, das profissões comuns, do território. Centro, por sua vez, diz: o que é usual,
claro, estável, salvo, normal. Marginal soa estranho, inusual, ambíguo, instável,
perigoso, empobrecido, excêntrico, gauche. Hoje quase se identifica com associal;
que mora na periferia, na favela; que está desempregado ou subempregado; que
migrou do campo para algum canto da cidade; que pertence à minoria racial ou étnica
com dificuldade de integrar o grupo étnico dominante; que possui alguma patologia
física ou psíquica que o isola.
No caso de Jesus, em que sentido foi marginal? Em relação à história profana e
religiosa judaica da sua época. Nela apenas foi mencionado. E a referência a ele se
fez por causa dos seguidores e não tanto por ele mesmo. Foi submetido a um processo
de condenação e forma de execução de marginal. Literalmente o evangelho de
Marcos diz: “Depois conduziram-no para fora a fim de o crucificarem” (Mc 15,20).
Portanto, fora dos muros de Jerusalém. Morrer fora da cidade tornou-se símbolo de
quem se comportou à margem das normas em vigor na sociedade. Fato suficiente
para classificá-lo como marginal.
30
Jesus era dotado de extraordinários dons milagrosos. Em seu tempo, tais pessoas
permaneciam em casa e os doentes vinham a elas e disso viviam, e até folgadamente.
Era a profissão de curandeiro. Jesus marginaliza-se em relação a tal maneira de viver.
Adota vida de peregrino, andarilho, fugindo de multidões que o buscavam
simplesmente pelo interesse do milagre físico e não por ser sinal do Reino.
Interpelou-as: “Na verdade eu vos digo: vós me procurais, não porque vistes os
sinais, mas porque comestes o pão e ficastes saciados” (Jo 6,26). Define a própria
maneira de viver como marginal: “As raposas têm tocas e os pássaros do céu, ninhos,
mas o Filho do homem não tem onde repousar a cabeça” (Mt 8,20). E referente ao
próprio ensinamento, afastou-se, em muitos pontos, da doutrina comum na questão do
divórcio, da compreensão da lei e dos costumes. O ponto decisivo da escolha
“marginal” de Jesus se deu na ruptura com o grupo de apoio da família e no fato de
ter assumido como seguidores pessoas de pouco ou nenhum relevo social. A família o
considerou louco (Mc 3,21), muitos dos judeus diziam que tinha demônio, que era um
samaritano, que tinha perdido o juízo (Lc 7,33; Jo 8.48.52; 10,20). Fato invulgar no
Oriente Médio era fundar algum movimento religioso fora da família e pior ainda
baseado sobre pessoas sem influência social. Ele mesmo reconheceu que os
seguidores eram pouco entendidos e insignificantes. Entretanto, considerou isso graça
do Pai. “Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos
sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos” (Lc 10,21). E quem o seguia eram
os pobres, doentes, pecadores de tal modo que quando foi condenado à morte não
houve ninguém que o defendesse. João dá interpretação teológica ao fato sociológico
do fracasso de Jesus por não ter defensores com a resposta de Jesus a Pilatos: “Meu
reino não é deste mundo. Se fosse deste mundo, os meus ministros teriam lutado para
que eu não fosse entregue aos judeus” (Jo 18,36).
Indo ao fundo da consciência de Jesus, não lhe importavam as instituições da
sociedade, as propriedades, o dinheiro, o poder mundano, o prestígio social, mas a
missão que recebeu do Pai. “Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e
completar a sua obra” (Jo 4,34). Em resumo, Jesus se comportou na sociedade em
que viveu como alguém à margem por causa da vocação que assumira de anunciar o
Reino de Deus. A marginalidade de Jesus traduzia a opção radical que fizera. Por ela,
pagou o preço de morte muito violenta, em idade bem jovem, abandonado, depois de
breve atividade missionária. Tal fim só se explica histórica, sociológica e
culturalmente pelo gigantesco escândalo provocado pelo comportamento de Jesus em
flagrante contraste com a Sociedade.
27. Pode-se ir mais longe ainda e chamar Jesus de
revolucionário?
31
De fato, vários autores assim o chamaram. Ficaram conhecidos o livro de M.
Hengel, Foi Jesus revolucionário? (Petrópolis: Vozes, 1971) e o artigo de Cl. Boff:
“Foi Jesus um revolucionário?” (REB 31 (1971), p. 97-118).
Viviam-se anos de turbulência sociopolítica. Tanto as rebeliões juvenis do final da
década de 60, quanto as tempestades das repressões militares na América Latina
provocaram os cristãos a pensarem a figura de Jesus na perspectiva da revolução. De
novo, estamos diante de tarefa legítima de atualização do mistério de Cristo. Isso não
significa que ela tenha sido cumprida, em todos os pontos, de maneira satisfatória.
O lado positivo da imagem de Cristo revolucionário vem do fato de desvinculá-la
do seu tradicional uso conservador para justificar o sistema dominante. Infelizmente,
ao longo da história, sobretudo depois da conversão do Império romano, a figura de
Cristo, o pantocrator, o todo-poderoso, serviu para legitimar e sacralizar o poder dos
imperadores. E em outros momentos posteriores, recorreu-se ainda a Cristo para
justificar regimes violadores dos direitos humanos. O golpe militar no Chile,
desencadeado pelo Gen. Pinochet, contra Allende, vestiu-se de defesa da fé cristã. A
figura de Jesus revolucionário veio quebrar essa tradição conservadora e tristemente
associada à opressão dos pobres e camadas populares.
Avançou-se o sinal para além da teologia e da fé, quando se transformou a figura
de Jesus em mero revolucionário político, abonando estratégias concretas de luta
armada contra regimes dominantes. Confundiu-se a força revolucionária do
evangelho que não tolera injustiça, opressão dos pobres, fracos e marginalizados, com
programa concreto de luta política. Em alguns casos, o Cristo revolucionário vinha
sanar a má consciência burguesa de militantes diante da própria situação privilegiada
em relação aos pobres, elaborando discurso compensatório. A figura de Jesus dava
cobertura religiosa a ações revolucionárias. Não se fez a justa interpretação da
radicalidade da revolução de Jesus que foi muito além de simples libertação do jugo
militar dos romanos e poder sacerdotal. Os ditos e atitudes zelotas de Jesus foram
retirados do contexto maior de sua vida e assumidos como leitmotiv para jogadas
militares. Beirou-se, em certos casos, a uma caricatura de Jesus, reduzindo o alcance
revolucionário maior e universal da sua pessoa, mensagem e prática.
28. Do conjunto da vida social, política e religiosa de Jesus
conclui-se que ele se mostrou extremamente livre. Qual o
alcance teológico dessa atitude?
Sem dúvida, a liberdade constitui-se marca fundamental da vida de Jesus. O fato
salta aos olhos numaprimeira e rápida leitura dos evangelhos. O povo judeu se
constituiu social e politicamente a partir da experiência religiosa da libertação do
32
Egito por obra de Deus. Construíra-se, ao longo do tempo, especialmente por obra
dos sacerdotes, fariseus, levitas, escribas e outros líderes religiosos e políticos,
determinada imagem de Deus. Identificava-se com a própria consciência nacional do
povo. Tocá-la afetava o mais profundo da alma israelita. Ninguém ousava fazê-lo. E
Jesus mostrou-se livre diante dela, questionando-a e considerando-a deturpação por
parte dos líderes religiosos. No evangelho de João, as longas discussões entre Jesus e
os judeus (fariseus) giram em torno do fato de eles não aceitarem a Jesus, por não
conhecerem verdadeiramente quem é Deus (Jo 8,19), são filhos do diabo e não de
Deus (Jo 8,44). A reflexão joanina recolhe, em forma de resumo teológico, a missão
de Jesus, anunciando outra imagem de Deus em choque com a que os judeus tinham.
A mesma liberdade mostrou diante da família. Instituição sacratíssima e poderosa na
tradição semita. Diante de Maria e José, angustiados e perplexos pela atitude do
Menino permanecer no Templo sem nada dizer-lhes, ele afirma a liberdade: “Por que
me procuráveis? Não sabíeis que eu devia estar na casa do meu Pai?” (Lc 2,49). E na
vida pública, reafirma a mesma atitude livre ao chamar de mãe e irmãos àqueles que
“ouvem a palavra de Deus e a põem em prática” (Lc 8,21).
Pairava sobre todos a Lei de Moisés, absolutamente indiscutível na sua
literalidade. E Jesus ousou mudá-la, ao confrontar sua própria interpretação com a
dos antigos (5,21ss, passim). Considerou-se senhor do sábado, o dia sagrado por
excelência (Mc 2,28). Desafiou as multidões que buscavam sinal e sabedoria,
dizendo-lhes que ele era mais que Jonas e Salomão (Mt 12,38-42). A coreografia de
Mateus no sermão da Montanha e nas atitudes de Jesus, apresenta-o com poder
superior a Moisés. Relativizou as instituições sociais em geral e em particular,
sobrepondo as necessidades das pessoas a elas. Curou em dia de sábado, não
discordou dos apóstolos que não observavam as abluções rituais antes da comida.
Não se interessou pelo prestígio social e pelo que diriam dele, ao comer com
publicanos, ao deixar-se tocar pela prostituta, ao andar com a arraia-miúda. Superou o
preconceito a respeito da mulher. Desprezou dinheiro, posses. Mostrou-se livre em
face das autoridades religiosas judaicas e políticas da Palestina.
A pergunta teológica vai mais longe. Onde se funda a liberdade de Jesus?
Evidentemente só pode ser na consciência que tem de ser o Filho de Deus. A
autoconsciência e íntima comunhão com Deus Pai dá-lhe clareza sobre o significado
último do Templo, da Lei, dos costumes, das festas religiosas, das relações sociais. E
a partir daí assume assombrosa liberdade todas as vezes que percebe que as realidades
sociais contradizem o plano salvador de Deus. A realidade do Reino de Deus era
central na sua vida e a partir dela interpretava todas as outras.
29 Na América Latina se trabalhou a imagem de Jesus
33
Cristo Libertador. Como entendê-la no conjunto da vida e
mensagem de Jesus?
Jesus Cristo é universal. Pertence a todos os tempos e lugares. E cada tempo e
lugar tem o direito de apropriar-se dele, não com exclusividade, mas interpretando-o
para o próprio contexto. Isso fizemos na América Latina. É sempre o mesmo Jesus,
Filho de Deus, nascido de Maria virgem que realizou a obra salvífica, como
recitamos no Credo.
Mas a pergunta assumiu conotação diferente em nosso Continente. Que significa
ser Filho de Deus num contexto de dominação e opressão, ao lado de movimentos
libertadores? A resposta soou: é ser libertador.
Nessa perspectiva, fez-se a releitura da pessoa, vida e mensagem de Jesus. Chama
atenção em Jesus a relação com o Reino de Deus. Não pregou a si mesmo, mas o
Reino. E este se fazia presente por meio de sinais libertadores físicos e espirituais.
Curava doenças, expulsava demônios, perdoava pecados, consolava aflitos. Em cada
gesto desses o Reino se realizava de maneira profundamente libertadora. A própria
imagem de Reino, que o Antigo Testamento assume, não tem nada a ver com nosso
conceito moderno. Origina-se da figura do Rei no Antigo Próximo Oriente. Ele se
constituía protetor dos indefesos, fracos, viúvas, órfãos, estrangeiros, pobres. Em
texto da época lemos: “é dever do Rei de uma cidade ir de manhã à porta da cidade,
onde os cidadãos costumavam estabelecer suas disputas legais. Aí ele ajuda a viúva a
obter seus direitos, e faz justo juízo em favor do órfão”. A base ética do cuidado dos
pobres era a convicção comum de que os deuses, particularmente o deus sol, tinham
especial cuidado com o pobre. Os ricos defendem-se por si. Os pobres necessitam do
rei. E sobre tal imagem se constrói a de Javé como, também ele, defensor dos
injustiçados e marginalizados da sociedade. Escolhe precisamente povo pequeno de
que se constitui Rei, libertando-o da escravidão do imenso poderio egípcio. E, em
várias passagens da Escritura, Javé assume a defesa dos necessitados, ditando leis que
os protegem. No livro do Êxodo, aparece a ternura de Javé que se preocupa com o
frio da noite do pobre: “Se tomares como penhor o manto do próximo, deverás
devolvê-lo antes do pôr-do-sol. Pois é a única veste para o corpo, e coberta que ele
tem para dormir. Se ele recorrer a mim, eu o ouvirei, porque sou misericordioso” (Ex
22,25s).
Jesus, ao assumir a categoria de Reino, insere-se em tal tradição de defesa dos
pobres por meio de sua pessoa, mensagem e obras. Atualiza para seu tempo a
realidade do Reino, reinterpretando-o a partir da experiência de Deus como Pai que
perdoa os pecadores e ama os pobres em perspectiva escatológica. É real perspectiva
34
da libertação. Jesus pessoalmente vive como pobre, no meio dos pobres e privilegia-
os como destinatários do Reino. Chega a ponto máximo de identificar-se com eles no
dia do juízo de tal modo que todo serviço prestado a eles, Jesus os considera como
feitos a si mesmo (Mt 25,40) e quando se negaram tais obras de amor, foi a ele que
deixaram de fazer (Mt 25,45).
A proposta de Jesus a respeito do Reino contrapôs-se a todas as outras existentes
pela dupla originalidade da fonte inspiradora e das práticas. Hauria o último
significado do Reino da sua experiência filial em relação a Deus Pai. E de tal
intimidade brotou a característica fundamental do Reino de amor até o heroísmo de
amar os inimigos e de doar a própria vida, como ele exemplarmente o fez. A imagem
de Jesus Cristo libertador resume-se na autoconsciência de ser Filho e de exprimi-la
pelo amor universal, mas preferencialmente para os abandonados da sociedade e da
história.
30. A pluralidade de expressões de fé em Jesus Cristo não
confunde o fiel?
Se o objeto da fé fosse simplesmente conhecimento, talvez a pluralidade de
expressões nos desnorteasse. No caso de Jesus Cristo, o mais importante da fé não
são as expressões dogmáticas, os ensinamentos, mas o seguimento de sua pessoa. E
podemos segui-lo em qualquer momento da história, em qualquer lugar, em qualquer
idade ou situação existencial que nos encontramos. Mas que vem a ser seguir a Jesus
Cristo?
Não se trata de imitar as virtudes de Jesus, nem de copiar literalmente o que ele
fez, nem simplesmente interiorizar-lhe as atitudes. Há verdade em tudo isso, mas o
seguimento vai mais longe.
Consiste em conhecer o real caminhar de Jesus em seu tempo, penetrar-lhe o
sentido profundo e recriá-lo com novidade, originalidade em nosso tempo.
O processo de Jesus se resume a duas experiências fundamentais. Com a oração e
com a profunda consciência de sua comunhão e intimidade com Deus Pai, nutriu a
atitude de doação de si aos irmãos. Este é o primeiro passo também para nós. A
experiência de sermos filhos de Deus, porque irmãos de Jesus, fundamenta o
seguimento. Um segundo olhar de Jesus se voltou para a realidade social, cultural,
política e religiosa de seu tempo. Confrontando a experiência do amor do Pai e as
interpelações da realidade, traçou o

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