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Inteligência artificial - João de Fernandes Teixeira

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2
Índice
Agradecimentos
Três modos de jogar xadrez
Entre o passado e o futuro
O teste de Turing
Dos símbolos à parabiose
O que dizem os filósofos
Epílogo
Sugestões de leitura
Bibliografia
3
Agradecimentos
Aos meus amigos Gustavo Leal Toledo e Paulo Henrique Fernandes Silveira, que
leram a primeira versão deste livro.
Aos meus alunos André Sathler Guimarães e Alessandro Bender Verrone.
A Marco Carlucci, pela sugestão do título.
À minha esposa Malu.
À Lizilda, minha assistente.
À Suely Molina, pela ajuda com a última versão e com as correções finais.
4
O homem criou o homem à sua imagem e semelhança.
Agora o problema é seu.
Autor desconhecido
5
1.
Três modos de jogar xadrez
A inteligência artificial é uma tecnologia que fica a meio caminho entre a ciência e
a arte. Seu objetivo é construir máquinas que, ao resolver problemas, pareçam pensar.
Um bom exemplo é a máquina de jogar xadrez.
Jogo de xadrez
Há três modos de construir um dispositivo que jogue xadrez: fazer com que um ser
humano imite uma máquina, construir uma máquina que imite um ser humano ou
conseguir que uma máquina ultrapasse a mente humana. Esses três modos
correspondem a máquinas que foram construídas nos séculos XIX, XX e XXI.
O primeiro modo tem a ver com uma história que já andei contando por aí, de um
certo barão von Kempelen, que tinha inventado uma máquina de jogar xadrez no
século XIX. Esse tal de Kempelen – que não se sabe exatamente se era um barão ou
se o título era uma fraude – construiu uma grande caixa e nela escondeu um anão
enxadrista. No topo desta, havia um tabuleiro construído com disponibilidade tal que
o anão poderia, olhando-o por baixo, ver toda a movimentação das peças. O anão
podia arrastá-las pelo tabuleiro sem ser visto fazendo as jogadas necessárias. Quem
olhasse para a máquina nunca suspeitaria do que estava acontecendo de fato. Tudo se
passava realmente como se Kempelen tivesse criado, pela primeira vez na história da
humanidade, uma máquina que pudesse jogar xadrez – uma máquina, como ele
proclamava, que imitava o pensamento humano. Ninguém jamais imaginaria que,
dentro da caixa, ocultava-se um ser humano.
Kempelen e seus auxiliares exploraram muito sua invenção. Levaram-na para
circos, percorreram toda a Europa, ganhando fortunas com aquilo que deixava todo
mundo espantado. A notícia da existência da máquina de jogar xadrez chegou aos
ouvidos de Napoleão, que imediatamente quis conhecê-la e, de fato, ela foi levada até
ele. Mas o anão cometeu um erro fatal: começou a ganhar a partida, deixando o
imperador para trás. Este, de temperamento irritadiço, desferiu um forte chute contra
6
a máquina. As portinholas se abriram e o anão apareceu. Kempelen foi
desmascarado!
A máquina de von Kempelen era uma forma primitiva (e talvez patética!) de
inteligência artificial e não apenas um truque, afinal, não deixava de ser uma tentativa
de construir uma máquina pensante. Mas, que coisa curiosa! Um dos primeiros
dispositivos para jogar xadrez de que se tem notícia foi um humano que imitava uma
máquina, quando se esperava justamente o inverso...
Só nos séculos seguintes é que começaram a aparecer máquinas de jogar xadrez
que tentavam imitar os humanos, ou seja, o segundo modo. Na metade do século XX
– quando surgiram os computadores digitais e, com eles, a inteligência artificial
propriamente dita – apareceram os primeiros programas de computador capazes de
“raciocinar”.
Nas décadas de 1950 e 1960, havia três grandes pesquisadores envolvidos na
construção de um enxadrista artificial: Newell, Shaw e Simon. O programa que eles
inventaram tentava imitar a mente humana, simulando seus raciocínios e
desenvolvendo estratégias de jogo. Era um programa baseado numa estratégia
chamada “heurística”.
Suponha que você queira descobrir a senha bancária do seu vizinho e tudo o que
sabe é que ela tem quatro dígitos. Há duas maneiras de fazer isso. Uma é a chamada
“força bruta”: percorrer todas as possibilidades, todas as combinações possíveis. Será
um trabalho imenso, poderá levar sua vida inteira. Mas algum dia você chegará, com
certeza, no resultado desejado. (Se não morrer antes, é claro...)
A outra maneira é tentar encontrar algum tipo de atalho para adivinhar essa senha.
Você começa a perguntar ao seu vizinho o dia em que ele nasceu, casou etc., e tenta
números próximos a esses. Em seguida pergunta a ele o nome de seu cachorro, e
assim por diante. Nesse caso, você tenta diminuir as possibilidades: isso é a
heurística. Heurística é uma busca através de raciocínio seletivo.
No caso do xadrez, para se responder corretamente a uma jogada do oponente,
seria necessário percorrer todas as possibilidades que se seguiriam dela – se você
estivesse usando força bruta, é claro. Isso poderia levar centenas de anos! Mas com a
heurística, você tenta reduzir essas consequências desenvolvendo algum tipo de
estratégia. É assim que nós, humanos, jogamos xadrez – e foi baseando-se na mente
humana que Newell, Shaw e Simon desenvolveram seu programa para jogar xadrez.
Infelizmente, os primeiros programas de jogar xadrez, que apareceram na década de
1960, perdiam para crianças de dez anos.
O terceiro modo de fazer uma máquina jogar xadrez aparece quase no final do
século XX. Em 1997, ocorreu um evento marcante na história da inteligência
artificial: Deep Blue, um computador construído pela IBM, venceu o então campeão
mundial de xadrez Gary Kasparov. Esse fato mostrava que uma nova era na
inteligência artificial (que chamarei, daqui para frente, também de IA) estava para
7
começar. Deep Blue em nada se parecia com a mente humana, pois não raciocinava
nem desenvolvia estratégias. Seu princípio de funcionamento é a “força bruta”. A
ideia era que, usando a força bruta, Deep Blue não poderia perder a partida de
xadrez, pois esse método sempre levaria aos resultados desejados. O que se precisava
era de um supercomputador, com uma enorme capacidade de realizar bilhões de
computações por segundo, que escolhesse a melhor jogada, percorrendo o maior
número de caminhos possíveis e auxiliado por um imenso banco de memória onde
estivessem contidas as jogadas dos grandes mestres enxadristas das últimas décadas.
Para escolher uma delas, também seria necessário usar a força bruta. O Deep Blue
não é uma máquina que pensa, pois o que causa suas jogadas nada tem a ver com o
cérebro ou com a mente humana. Mas seu poder computacional é tamanho que, para
quem o observa, ele parece pensar. Aliás, esse é o ponto em comum entre as três
máquinas que descrevemos aqui. As três são simuladores. Inteligência humana e
inteligência mecânica resultam no mesmo, pois não se distingue entre original e
imitação perfeita. Basta que a simulação aparente o mesmo que o original. Não há
uma diferença entre ser e parecer. Uma imitação pode ser tão perfeita que não mais
possamos distingui-la do original e pode até tornar-se mais perfeita que o próprio
original. Isso é o que aconteceria se a BMW usasse imitações chinesas de peças de
carro e as instalasse nos seus modelos originais de fábrica. Não há limites para a
imitação. Esse é um dos princípios filosóficos fundamentais da IA.
Isso também ocorre com a IA do século XXI. Não se busca construir uma
máquina que pense, basta que ela pareça pensar. A imitação do comportamento
humano torna-se cada vez mais uma camuflagem sob a qual se abriga uma máquina
totalmente diferente de nós. Queremos máquinas cujo comportamento seja igual ao
de um ser humano, mas, se elas chegarão a isso da mesma forma que os humanos, já
não importa mais. As duas primeiras máquinas de que falamos baseavam-se na
imitação da inteligência humana. Já a máquina que se busca construir agora, pouco
ou nada precisa ter de humano. Ela produzirá inteligência de maneira completamente
diferente de como nós produzimos. O raciocínio humano não é mais o modelo para
construir máquinas que reproduzam a inteligência do homem. Podemos até acoplá-las
a um corpo com uma forma humana – aquilo que habitualmente chamamos de robô –,
mas isso pouco importa. Umamáquina pensante poderá ser como uma máquina de
hemodiálise, que faz as funções do rim, mas que em nada se parece com ele.
8
Máquina de calcular antiga
Antes se achava que inteligência era a capacidade de raciocinar. Agora,
inteligência é poder computacional. A hipótese é que nosso cérebro tem um tremendo
poder computacional que lhe permite resolver muitos problemas através da força
bruta. No final do século passado, a força bruta era encarada com desdém, pois ela
era sinônimo de processos muito lentos. Por causa da lentidão, construir máquinas
pensantes obrigava a imitar o raciocínio humano como única estratégia possível.
Mas isso vem se alterando neste início do século XXI à medida que
supercomputadores estão superando o problema da lentidão e aumentando sua
capacidade de processamento de dados. Vários tipos de estratégia para superar o
problema da lentidão começam a ser usados. Um deles é usar a arquitetura paralela,
supostamente utilizada por nosso cérebro em algumas tarefas. É como se, ao resolver
um problema, ele fosse dividido em várias partes e cada uma delas resolvida
simultaneamente por vários dispositivos trabalhando ao mesmo tempo. Nesse caso,
imitamos parcialmente nosso cérebro e teríamos máquinas mistas, parcialmente
inspiradas na natureza. Seria uma situação parecida com a que temos na aviação, na
qual aeronaves têm asas como os pássaros, mas voam com turbinas, ou seja, são
apenas parcialmente inspiradas no design natural.
Queremos alcançar o poder computacional do cérebro humano, usando máquinas.
Em seguida, num futuro próximo, tentaremos ultrapassar nosso próprio cérebro,
através de nossa mistura com as máquinas. Nas próximas décadas, não haverá uma
linha divisória nítida entre robôs e humanos. Seremos nós mesmos os robôs que
inventarmos, o que permitirá à inteligência artificial superar a natural.
A busca por igualar-se ao cérebro humano, usando máquinas, significa aumentar o
poder computacional – velocidade e memória – dos computadores que temos hoje. O
poder computacional do cérebro humano será ultrapassado quando existir uma
máquina capaz de efetuar mais de 200 computações por segundo. Novos materiais,
além do silício, com o qual são construídos os computadores atuais, precisarão ser
desenvolvidos para que possamos ter máquinas mais potentes. Disso depende a IA do
século XXI, que aposta cada vez mais na “força bruta”.
Novas tecnologias para a construção de hardwares e para o aumento da
velocidade dos computadores estão sendo desenvolvidas. Uma delas é o computador
9
de DNA, o material com o qual nossos genes são feitos, ou seja, moléculas que
podem transportar uma imensa quantidade de informação genética. Essa informação é
necessária para a organização e o funcionamento das células vivas e para o controle
da forma pela qual as características genéticas são herdadas de uma geração para a
outra. O inventor desse tipo de computador, Gerald Adelman, partiu da ideia de que o
DNA é muito semelhante ao HD de um computador, pois ele estoca muita
informação permanente acerca de nossos genes. Além disso, o DNA, além de
transportar enorme quantidade de informação, pode realizar cálculos muito mais
rapidamente do que qualquer supercomputador que temos hoje.
Imagem DNA
Outra alternativa é o computador quântico. A computação quântica é um novo
campo da ciência da computação que surge da mecânica quântica. Nos computadores
que temos hoje, a unidade básica de informação é o bit ou “dígito binário”. Um dígito
binário é um “0” ou um “1”, e todos os números são feitos a partir de cadeias de zeros
e uns. O bit usado nos computadores de hoje só pode estar em um desses estados.
Nos computadores quânticos, a unidade de informação será o bit quântico ou o
qubit, que poderá estar em ambos os estados ao mesmo tempo. Uma partícula
subatômica pode estar em vários estados diferentes simultaneamente para vários
observadores dependendo de quando se mede seu “momento” (o produto de sua
massa pela sua aceleração). Como a partícula subatômica pode estar em estados
diferentes simultaneamente, uma combinação de qubits transporta muito mais
informação do que a mesma quantidade de bits. Na medida em que muitas
computações ocorrem simultaneamente, o computador quântico pode executar uma
vasta quantidade de operações em paralelo, o que aumenta muito sua velocidade.
O computador quântico poderá ser utilizado sempre que for necessário processar
grande quantidade de informação, como é o caso, por exemplo, de reconhecimento de
imagens ou de voz. Mas esse projeto ainda caminha lentamente, pois oferece um
grande perigo: uma grande facilidade para decifrar senhas – o que apavora os
banqueiros.
Outro tipo de máquina que tem sido estudada é o computador ótico. Esse parece
ser o mais promissor. Ele usa luz ou feixes de raios laser, em vez de sinais elétricos,
para transportar informação. Nos computadores atuais, a velocidade de transmissão
de informação é metade da velocidade da luz. O computador ótico não será apenas
muito mais rápido do que os atuais; espera-se que, em poucas décadas, ele se torne
também muito barato.
Porém, por menor que seja a área de um chip, e por maior que seja a velocidade de
10
um computador, há um limite fundamental: a velocidade da luz, que a física nos
ensina ser a maior velocidade possível em nosso universo. Essa é a velocidade do
computador ótico. Não poderemos construir supercomputadores mais velozes do que
isso. Esse é também o limite da força bruta.
A força bruta, que tinha sido praticamente abandonada no final do século XX, é
agora uma das mais fortes tendências da IA. O Deep Blue é um exemplo de sua
aplicação. Ele mostra também que a heurística pode errar. A força bruta não. Será que
foi por causa disso que Kasparov perdeu para ele?
11
CONTINUAR A PENSAR
Será que o Deep Blue representa uma das primeiras vitórias de um computador sobre a razão humana? Ou
uma vitória da própria razão sobre si mesma – pois, afinal, não foi ela própria que construiu esse
computador? Ou teria o Deep Blue, ao usar sua força bruta, superado o poder computacional do cérebro
humano?
12
2.
Entre o passado e o futuro
O sonho de construir máquinas pensantes é muito antigo. Os primeiros registros
de criaturas artificiais com habilidades humanas têm uma forma mítica ou por vezes
lendária, tornando difícil uma separação nítida entre imaginação e realidade. Isso faz
com que a IA seja uma disciplina com um extenso passado, mas com uma história
relativamente curta.
Um dos episódios mais interessantes do passado mítico da IA é a lenda do Golém.
Joseph Golém era um homem artificial que teria sido criado no fim do século XVI
por um rabino de Praga, na Tchecoslováquia (hoje República Tcheca). Esse rabino
resolvera construir uma criatura inteligente, capaz de espionar os inimigos dos
judeus, que, na época, estavam confinados no gueto de Praga. Diz o mito que Golém
era, de fato, um ser inteligente, mas um dia se revoltou contra seu criador, que então
lhe tirou a inteligência e o devolveu ao mundo inanimado.
Alguns registros mais recentes mostram que, nos séculos XVII e XVIII,
proliferaram mais mitos e relatos acerca de criaturas artificiais. Falou-se de um
flautista mecânico que teria sido capaz de tocar seu instrumento com grande per-
feição, e que teria sido construído lá pelos fins do século XVII. Há registros também
do célebre “pato de Vaucanson”, que teria sido construído por um artífice homônimo.
A grande novidade dessa criatura teria sido sua capacidade de bater as asas, andar,
grasnar, comer grãos e expeli-los após a digestão – uma perfeita imitação das funções
biológicas.
A existência passada dessas criaturas artificiais até hoje não está definitivamente
comprovada. Sabe-se apenas que seus projetos estão registrados em alguns museus da
Europa e que sua arquitetura interna teria sido extremamente complexa. Sua possível
construção sempre deu margem a muitas discussões filosóficas acerca da
possibilidade de as máquinas se igualarem aos seres humanos.
No século XIX, o tema reaparece naliteratura. Nessa época, é publicado o famoso
romance Frankenstein, que explora o mito de um ser criado a partir de membros e
órgãos de outras criaturas artificialmente reunidos. Mas Frankenstein era um monstro.
Um monstro que, como costuma acontecer nesse tipo de ficção, logo em seguida se
revoltou contra seu criador.
A inteligência artificial propriamente dita só aparecerá no século XX, a partir de
projetos militares. A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) trouxe pressões decisivas
para a comunidade científica dos países aliados. Os bombardeios aéreos feitos pelos
nazistas sobre as cidades europeias pressionaram o desenvolvimento de canhões
antiaéreos dotados de um sistema de pontaria que corrigisse os eventuais desvios
13
causados pelo deslocamento do alvo e do próprio canhão no momento do disparo.
Esse tipo de mecanismo de autocorreção começou a ser visto como uma incipiente
imitação de um comportamento humano. Para um observador leigo, tudo se passava
como se o comportamento do canhão, ao perseguir seu alvo com precisão, estivesse
sendo guiado por propósitos ou intenções semelhantes aos de um ser humano. Essa
era a cibernética, uma das precursoras da inteligência artificial.
No fim da Segunda Guerra Mundial, os cientistas já tinham registrado importantes
invenções na área eletrônica, além de pesquisas sobre mecanismos que imitavam
ações humanas e estudos sobre o cérebro desenvolvidos por médicos e por
psicólogos. Isso os levou a programar um encontro nos Estados Unidos, onde
pesquisadores dessas áreas apresentaram suas descobertas, numa primeira tentativa de
reuni-las e compor algo parecido com uma ciência geral do funcionamento da mente
humana. Esse encontro ficou conhecido como o Simpósio de Hixon, e aconteceu em
1948.
Os resultados do Simpósio de Hixon não teriam sido tão surpreendentes se não
levassem, através de uma intuição verdadeiramente criadora, a estabelecer uma
analogia entre o cérebro humano e os computadores. Essa analogia certamente foi
produto do encontro entre psicólogos, neurofisiólogos e engenheiros eletrônicos que
perceberam que o modo como estão dispostas as células do nosso cérebro
(neurônios), ligadas através de fios nervosos minúsculos, é semelhante ao circuito
elétrico de um computador. Isso abriu o caminho para se dizer que a mente humana
poderia ser imitada por um computador.
As décadas seguintes foram marcadas por novas invenções e descobertas
surpreendentes. Na década de 1950, dois cientistas americanos desenvolveram um
programa de computador capaz de demonstrar teoremas matemáticos. Esse programa
foi chamado de “O Teórico da Lógica” (Logical Theorist ou simplesmente LT) e sua
inovação estava no fato de ele poder realmente gerar demonstrações de teoremas, e
não simplesmente apresentá-las através de um artifício de memória.
Os dois cientistas, Newell e Simon, estavam convencidos de que sua máquina era
uma autêntica simulação do pensamento humano. Quando o programa de
computador, o LT, demonstrou um teorema que estava em aberto, os cientistas
escreveram um texto e o enviaram para publicação em uma importante revista de
matemática da época, como se o artigo fosse de autoria do próprio LT. O conselho
editorial da revista recusou-se a publicá-lo, alegando que isso era um insulto contra a
espécie humana.
No final da década de 1960, apareceu um programa de computador capaz de
imitar um psicanalista. Esse psicanalista mecânico, que foi chamado “Doctor”, era na
verdade uma variação de outro programa, batizado de “Eliza”. Eliza foi um programa
originalmente desenvolvido para simular diálogos.
O princípio de funcionamento desse tipo de programa era simples: a sentença
enviada pelo parceiro humano era decomposta, e suas partes enviadas para um script
14
armazenado no interior do computador. O script era um conjunto de regras
semelhantes àquelas que são dadas para um ator quando se requer que ele improvise
acerca de um tema qualquer. Eliza podia receber vários tipos de script e, dependendo
do conteúdo deles, desenvolver conversas acerca de vários temas.
Quando Eliza trabalhava com um script especial chamado Doctor, ele se
transformava num psicanalista mecânico. O script era cuidadosamente elaborado para
que as respostas simulassem o comportamento verbal de um psicanalista ao receber
um paciente pela primeira vez.
Hoje em dia, programas como o Eliza são considerados obsoletos, apesar de terem
sido de grande importância histórica. As contribuições da IA para a psicologia e para
a psiquiatria estão agora centradas no estudo do comportamento de robôs com
múltiplas personalidades, ou psicoses, que servem de ponto de partida para a
observação da evolução desses tipos de transtornos. A robopsiquiatria e a
robopsicologia ampliarão o conhecimento da doença mental humana.
O final dos anos 1970 foi marcado por algum desânimo nas tentativas de simular a
mente humana através do computador. O grande problema eram as máquinas de
tradução, que não estavam tendo sucesso. Na verdade, até hoje ainda não temos um
software satisfatório para realizar traduções. A tecnologia de tradução telefônica – em
que você fala em português e seu amigo chinês escuta em chinês e vice-versa – ainda
não está desenvolvida, provavelmente por razões militares. (Você já imaginou que
tipo de ameaça isso poderia representar para um país como, por exemplo, os Estados
Unidos? Já imaginou o quanto isto poderia facilitar o terrorismo internacional?)
Nas décadas de 1980 e parte da década de 1990, a inteligência artificial seria
ofuscada pela neurociência, que estava tomando a dianteira nos estudos da mente.
Computadores não seriam modelos da mente humana, mas apenas ferramentas a
partir das quais a neurociência podia cada vez mais investigar o cérebro.
Mas, no fim do século XX e no começo do novo século, a inteligência artificial
reaparece com nova força. Pesquisas na área de robótica começam a ganhar destaque,
rapidamente superando esse insucesso temporário.
O laboratório de inteligência artificial do MIT, nos Estados Unidos, inicia o
projeto COG. Esse projeto, que ainda não está concluído, traz grandes inovações. A
ideia é construir um robô com forma humana, pois isso facilitará sua convivência
conosco. Os engenheiros do COG não apostam na possibilidade de prever todos os
eventos e situações pelos quais ele vai passar e que serviriam de base para elaborar
um programa que estaria no seu “cérebro” como algo “inato”. Eles apostam na ideia
de que o COG adquirirá conhecimento à medida que for interagindo com seu
ambiente e com seres humanos, da mesma maneira que uma criança vai aprendendo
aos poucos.
O robô COG não será, desde o início, um adulto; ele foi projetado para passar por
um período de infância artificial, na qual aprenderá com a experiência e se
15
ambientará com o mundo. Ele “nascerá” com um software de reconhecimento facial
− e isso será fundamental para o seu desenvolvimento. O COG terá uma “mãe”, a ser
escolhida entre as estudantes que trabalham no projeto. Ele reconhecerá a sua mãe e
fará de tudo para que ela não saia de seu lado, como faz uma criança. Tudo o que não
for desde o início estabelecido como inato, mas for aprendido com a experiência, será
programado como inato na sua segunda versão, o COG-2. Assim, as várias versões do
COG percorrerão os milhões de anos de evolução do homem em poucos anos de
laboratório.
Outro grande projeto da IA do século XXI é o Blue Brain. Esse é um projeto que
começou em 2005 e que está sendo realizado em conjunto pela IBM e pelo Brain
Mind Institute, na Suíça. A ideia desse projeto é construir uma simulação completa
do cérebro humano. O Blue Brain começará com a simulação computacional dos
neurônios e suas conexões – as sinapses –, para depois passar para a simulação do
cérebro em nível molecular.
Como outros projetos da IA do século XXI, esse também segue o estilo da “força
bruta”. Nesse caso, busca-se a simulação da totalidade do cérebro, neurônio por
neurônio, conexão por conexão, para saber se, com isso, serão reproduzidas também a
mente e a consciência.É um projeto que tem previsão para durar em torno de 15
anos.
Paralelamente ao Blue Brain, há o programa Jini, em desenvolvimento pela
empresa Sun Microsystems. A ideia é aproveitar a computação não utilizada na
internet. É possível imaginar que, a qualquer momento em que acessamos a internet,
há uma quantidade imensa de computadores que não está sendo usada. E que, dentre
os que estão em uso, pouco mais de 1% de sua capacidade de computação está sendo
utilizada. Se for possível coordenar esse potencial ocioso, verificaremos que a
quantidade de computação não utilizada na internet já é maior que a capacidade
computacional do cérebro humano. Ou, em outras palavras, já teríamos uma
simulação potencial de um cérebro humano na internet. A replicação do cérebro
humano estaria muito mais ao nosso alcance do que podemos imaginar...
Quando o cérebro humano estiver totalmente replicado num supercomputador,
teremos respostas para muitas perguntas. Saberemos, por exemplo, as causas de
muitos transtornos mentais. Poderemos conversar com ele, seja através de um teclado
ou de algum outro periférico. Essa conversa nos dará pistas para sabermos se essa
simulação será consciente ou não. Responder a essa pergunta será muito importante
para os filósofos e psicólogos do século XXI.
Os filósofos têm tentado, por séculos a fio, dizer o que é o pensamento sem
conseguir chegar a uma conclusão final. No século XX, apareceu uma disciplina
filosófica específica que busca uma resposta para essa questão: a filosofia da mente.
Ela investiga se o pensamento é produto do cérebro ou se este é só o hospedeiro
biológico da mente. Esse é o problema mente-cérebro, que divide os filósofos entre
materialistas e dualistas. Para os materialistas só existe matéria, e a mente é, na
16
verdade, apenas um efeito colateral do metabolismo do cérebro. O dualista diz que
mente e cérebro são coisas distintas, apesar de se comunicarem. Só saberemos quem
tem razão nessa discussão milenar depois que o projeto Blue Brain estiver concluído.
Nesse dia, grande parte da filosofia da mente desaparecerá, pois a IA tomará seu
lugar. Se o cérebro do Blue Brain pensar e for consciente, os materialistas terão razão,
pois pensamento e consciência só dependerão da matéria, e nenhum espírito, ou alma,
será necessário. Teremos, entretanto, de “pagar para ver” para saber se isso é
verdadeiro...
Um dos maiores impactos da IA recairá sobre o modo como nos concebemos:
criar uma máquina pensante significa desafiar uma velha tradição que coloca o
homem e sua capacidade racional como algo único e original no universo. A IA acaba
sendo uma forma de sugerir que é possível a existência de vida consciente além da
que se instala sobre os seres vivos.
17
CONTINUAR A PENSAR
Você acredita que a replicação artificial do cérebro humano em projetos como o Blue Brain levará à
replicação da consciência? Será a consciência do Blue Brain (se ela surgir) igual à consciência humana?
18
3.
O teste de Turing
A inteligência artificial no século XX começou com as descobertas do genial
matemático inglês Alan Turing (1912-1954). Há mais de 50 anos, ele formulou a
seguinte pergunta: “Pode uma máquina pensar?”.
A pergunta é estarrecedora. Melhor seria, talvez, questionar: o que impediria a
construção de uma máquina que pensa? Uma máquina que tivesse consciência de
seus pensamentos? Ela poderia ser algo como o célebre Hal do filme “2001: uma
odisseia no espaço” ou a rede Skynet do filme “O exterminador do futuro”, que se
tornou autoconsciente no dia 15 de agosto de 1997.
Turing sabia os desafios que essa pergunta colocava. Se um dia pudermos
construir uma máquina que pense e seja consciente, como poderíamos saber isso?
Haveria algum teste que pudesse nos revelar se uma máquina é consciente? Uma
máquina pode chegar à sofisticação de fazer tudo o que um ser humano faz, mas nem
por isso seria possível dizer que ela é consciente. Se um papagaio fosse treinado para
imitar o longo discurso de um político, seria isso suficiente para concluir que essa ave
é consciente? Haveria, enfim, algum teste que pudesse nos revelar se uma máquina é
consciente?
Turing imaginou um teste formidável para descobrir se máquinas são conscientes.
Ficou conhecido como teste de Turing. Eis o princípio geral de seu teste: “Uma
máquina se iguala a um humano se seu comportamento for indistinguível deste”. Ou
seja, uma máquina torna-se humana quando não podemos mais distinguir seu
comportamento do de um ser humano.
Hoje em dia, temos várias máquinas que passam no teste de Turing nesse sentido
amplo. No campo da música, por exemplo, já foi feito um teste no qual se pediu para
que uma plateia determinasse, entre três peças, qual havia sido escrita por um
computador e qual havia sido escrita, há dois séculos, por Johann Sebastian Bach.
Num desses testes, realizado na Universidade de Oregon, em 1997, a plateia escolheu
a peça escrita pelo computador como sendo a composta pelo ser humano. A máquina
passou no teste de Turing.
Mas o teste de Turing, no sentido amplo, pode ser impreciso. Suponhamos que
você tenha um vizinho que toca piano esplendidamente. Um dia você passa pela sua
rua e ouve sons de um piano, magnificamente executados. Você quer entrar para
cumprimentá-lo, bate à porta e verifica que não havia ninguém tocando piano: era um
aparelho de CD ligado. Contudo, a imitação era perfeita, produziu-se um
comportamento indistinguível daquele de um ser humano que sabe tocar piano. Ora,
se Turing estiver certo, então seria legítimo atribuir pensamento ao aparelho de CD.
19
Mas terá isso sentido? Certamente não.
Contudo, há uma aplicação específica do teste de Turing que não deixa dúvidas.
Ela, ainda hoje, desafia nossas máquinas digitais. É o teste de Turing aplicado à
linguagem. Para saber se um computador pensa, bastaria conversar com ele por longo
tempo, através de um teclado, e se, ao final da conversa, não for possível concluir se
o interlocutor era uma máquina ou um ser humano, poder-se-ia concluir que ele
pensa. Para Turing, pensar seria passar nesse teste, pois, supostamente, todos os seres
humanos pensam e todos os seres humanos passam no teste, ou seja, são capazes de
conversar.
Turing imaginou uma ilustração de seu teste, que ele chamou de Jogo da Imitação.
No Jogo da Imitação, há três jogadores: uma mulher (A), um homem (B) e um
interrogador (C), que pode ser de qualquer sexo. O interrogador fica num quarto
separado do homem e da mulher, e seu objetivo é determinar o sexo dos outros dois.
Como o interrogador fica num quarto separado, ele conhece seus parceiros apenas por
X ou Y e, no final do jogo, tem de dizer que X é A (uma mulher) e que Y é B (um
homem), ou vice-versa. Para determinar o sexo de X e de Y, o interrogador deve
formular uma bateria de questões bastante capciosas, uma vez que X e Y podem
mentir.
Por exemplo, C pode começar perguntando: “O senhor ou a senhora poderia me
dizer o comprimento de seu cabelo?”. Se Y for de fato um homem, ele pode dar uma
resposta evasiva e dizer: “Meu cabelo é ondulado, o fio mais comprido deve ter uns
20 centímetros”. X também pode tentar tumultuar o jogo, despistando o interrogador
com sentenças do tipo: “Ouça, eu sou o homem! Não ouça Y, ele está tentando criar
confusão”.
Para jogar, é preciso que seus participantes fiquem isolados uns dos outros, isto é,
nenhum contato que permita a identificação do sexo de X ou de Y deve ser permitido.
Ou seja, C não poderá vê-los, tampouco ouvir suas vozes. A comunicação entre C, X
e Y deve ser feita por meio de um teclado de computador e das perguntas e respostas
que aparecem numa tela.
Suponhamos que, em vez de um homem (B, ou, no caso, Y), o jogo esteja sendo
jogado por uma máquina. É possível que C nunca venha a descobrir o sexo
convencionado de Y, tampouco perceber que não estava jogando com um ser
humano, e sim com uma máquina. Se essa situação ocorrer, podemos dizer que essa
máquina passou no teste de Turing, pois seu comportamento, na conversa, foi
indistinguível daquele exibido por um ser humano.Não há razão para deixar de
atribuir a essa máquina a capacidade de pensar.
Se uma máquina puder conversar, ela deverá ser consciente (e ter uma mente),
pois não é possível conversar sem a consciência do que se fala. O ser humano é uma
matraca consciente. Pense um pouco nisso e verá que Turing tem razão. Conversas
são indícios de mente e de consciência. Mesmo que conversemos dormindo,
inconscientes, é preciso que pelo menos nosso interlocutor esteja consciente.
20
Isso responde nossa questão inicial: o papagaio pode recitar o discurso inteiro de
um político, mas ele não pode conversar. Até hoje somente seres humanos passaram
nessa versão forte do teste de Turing.
O prêmio Loebner, no valor de cem mil dólares (hoje em dia é pouco!), foi
instituído para quem construísse uma máquina que passasse nesse teste. Todos os
anos há uma grande competição em Boston, mas ninguém levou o prêmio ainda.
Estima-se que somente em torno de 2029 seremos capazes de construir uma máquina
que possa conversar como um ser humano. Será uma máquina muito diferente
daquelas que temos hoje. Provavelmente será um computador híbrido, ou seja,
metade orgânico e metade de silício, ou de algum outro material que o suceda, como,
por exemplo, o arseniato de bário.
21
CONTINUAR A PENSAR
Pesquise na internet o que é um chatterbot. Alguns deles, como Eliza e Alice, só falam inglês. Mesmo
assim, vale a pena tentar conversar com eles. Se você não conseguir, tente o brasileiro Ed. Será que algum
dia esses robôs passarão no teste de Turing?
22
4.
Dos símbolos à parabiose
Desde seu início, há mais ou menos cinco décadas, a IA assumiu diversas formas,
dependendo do modo como se concebeu a inteligência e a mente humanas. Elas
determinaram diferentes etapas pelas quais a IA passou nas últimas décadas.
Podemos dizer que cada uma dessas etapas corresponde a uma diferente tentativa de
simular a mente humana. Nenhuma delas foi superada ou desapareceu. Nesses
episódios, a história da tecnologia assemelha-se à história da evolução: espécies
passadas e presentes convivem, e às vezes algumas delas demoram muito para
desaparecer. Outras parecem que nunca serão extintas.
Imagem da obra
O homem, de Descartes
Entre os anos 1960 e 1990, predominaram duas espécies de IA: a inteligência
artificial simbólica e a inteligência artificial conexionista. A primeira sonhava em
construir grandes solucionadores de problemas (máquinas de jogar xadrez, de fazer
cálculos de engenharia, de fazer demonstrações matemáticas etc.); e a segunda, em
construir imitações do cérebro.
Nas décadas de 1960 e 1970, predominou a inteligência artificial simbólica, a
primeira onda da IA. Naquela época, achava-se que a inteligência humana estava
ligada a duas características: a capacidade de manipular símbolos e a memória. O
homem produz símbolos e tem uma poderosa memória. Os outros animais não. É aí
que reside a inteligência humana. Portanto, um dispositivo qualquer, para simular
símbolos e ter memória, não precisava ter a mesma composição biológica e química
do cérebro humano. Uma máquina poderia fazer isso se apenas emulasse as funções
do cérebro. Essa foi a hipótese com a qual os pesquisadores da IA dessas duas
décadas trabalharam.
Nós pensamos com linguagem (você já tentou pensar sem ela?), ou seja, com
23
símbolos sonoros ou escritos que são manipulados pela nossa mente. Essa operação
de manipulação simbólica pode ser descrita através de um programa de computador.
A mente é um programa computacional: sua replicação depende da descoberta de um
programa adequado que permita simulá-la. Se entendermos como esse programa
funciona, compreenderemos como funcionam a mente e a inteligência. Foi a partir
dessas ideias que os pesquisadores da IA, nos anos 1970, concentraram seus esforços
no aperfeiçoamento de softwares inteligentes.
Para eles, a mente era distinta do cérebro da mesma maneira que o aparelho de
rádio é diferente da música que ele toca. Não se pode reduzir a música às peças do
rádio. Mente e cérebro são diferentes – embora ambos pertençam ao mundo material
(sons e peças) – da mesma maneira que software é diferente de hardware. A mente é
o software do cérebro. Essa era a filosofia dos pesquisadores da IA nas décadas de
1960 e 1970.
Um dos grandes produtos da IA simbólica foram os sistemas especialistas. Eles
são solucionadores de problemas acoplados a imensos bancos de memória, nos quais
o conhecimento humano acerca de determinada área ou disciplina encontra-se
estocado. Esse acoplamento permite ao sistema especialista responder a consultas,
fornecer conselhos para leigos (sobre determinado assunto), ajudar os especialistas
humanos e até mesmo auxiliar no ensino de uma disciplina ou área de conhecimento
específica.
Alguns sistemas especialistas ficaram famosos na década de 1970, como foi o
caso do Mycin e do Prospector. O Mycin foi um sistema especialista desenvolvido
para receitar medicação para pacientes com infecções bacterianas. O Prospector foi
um sistema especialista construído para auxiliar os geólogos. Ele foi muito bem-
sucedido: em 1980, possibilitou a descoberta de uma reserva de um metal raro num
local próximo a Washington, que até então tinha sido apenas parcialmente explorado.
Mesmo assim o interesse pela IA simbólica não durou muito. Foi até meados da
década de 1980, quando, como já dissemos, começaram os problemas com as
máquinas de tradução. Muitos teimam em dizer que essa espécie de IA está superada,
mas isso é errado. Convivemos com ela no nosso dia a dia. Ela deixou muitas
heranças das quais usufruímos: programas computacionais para efetuar cálculos de
engenharia, para jogar xadrez (os enxadristas de Newell e Simon foram uma grande
realização da IA simbólica) etc. Muitas dessas aplicações tornaram-se tão cotidianas
que sequer sabemos que elas se originaram de estudos de inteligência artificial
iniciados na década de 1960 e 1970. Todas elas incorporavam – e ainda incorporam –
a estratégia da força bruta, que, como dissemos, está ressurgindo neste início de
século.
Passando também a ser saudosamente chamada de GOFAI (Good and Old
Fashioned Artificial Intelligence, ou Velha e Boa Inteligência Artificial, em tom às
vezes pejorativo ou às vezes carinhoso), a IA simbólica foi, no final dos anos 1980,
duramente criticada. Achava-se que esse modelo de inteligência, baseado na
24
manipulação de símbolos e na memória, estava incorreto. Muitos pesquisadores – que
identificavam a GOFAI com a totalidade da IA – chegaram a acreditar que qualquer
pesquisa visando a simulação da inteligência humana estaria fadada ao fracasso. Mas
a história prosseguiu.
Se primeiro veio a máquina de manipular símbolos, depois veio a tentativa de
imitar o cérebro humano. O segredo da nossa inteligência estaria na fisiologia de
nosso cérebro. Nele predominam neurônios e ligações entre eles, as conexões
sinápticas. É no número delas que está a chave da inteligência. O cérebro do elefante
pode ser muito maior do que o nosso, mas tem muito menos conexões sinápticas.
Essa é a explicação de por que somos muito mais inteligentes do que esses animais.
Dessa ideia surgiu, no começo dos anos 1980, a inteligência artificial
conexionista, a segunda onda da IA. Não mais se pensava em imitar a mente por meio
de símbolos. Tratava-se agora de criar um modelo simplificado de cérebro,
construindo redes neurais a partir de neurônios artificiais ou neuron-like units.
Tanto computadores quanto cérebros são sistemas cuja função principal é
processar informação; portanto, a utilização de redes artificialmente construídas para
simular o processamento cerebral possibilitaria a criação artificial de um modelo
bastante aproximado do cérebro humano. Esse tipo de rede constitui um intrincado
conjunto de conexões entre esses neurônios artificiais, os quais são dispostos em
camadas. Os neurônios artificiais estão conectados entre si, podendo ser ativados ou
inibidos através das conexões. A rede funciona como um sistema dinâmico, ou seja, o
estímulo inicial espalha excitações e inibiçõesentre os neurônios artificiais. Dado
determinado estímulo, diferentes estados podem ocorrer como consequência de
mudanças nas conexões, variando de acordo com a interação do sistema com o meio
ambiente e com seus outros estados internos. Em alguns tipos de rede, esse processo
não para até que um estado estável seja atingido.
Os conexionistas têm uma visão de mente, inteligência e memória muito diferente
da dos partidários da IA simbólica. Para eles, não há distinção entre mente e cérebro,
pois o mental emerge do cerebral; a inteligência surge do aumento da conectividade
entre os neurônios, e a memória é algo distribuído na rede artificialmente construída.
Uma analogia que nos ajuda a entender como a mente pode emergir do cérebro
vem da observação do que ocorre com a água. Sabemos que a água, se refrigerada a
uma temperatura inferior a 0 grau centígrado, torna-se gelo. Passa do estado líquido
para o sólido. As propriedades da água no estado sólido são diferentes das da água em
estado líquido. A solidez e a impenetrabilidade são exemplos de propriedades que
ocorrem quando ela se encontra em estado sólido – propriedades que não são comuns
ao estado líquido. Será “ser sólido” o resultado da alteração de cada um dos átomos
da água? É bem provável que, para produzir a solidez, cada um dos átomos da água
tenha de sofrer uma alteração. Entretanto, “ser sólido” não parece ser uma
propriedade que poderia ser aplicada individualmente a cada um dos átomos da água,
pois não parece fazer sentido dizer que “um átomo é sólido”, embora cada um deles
25
concorra para a produção da propriedade “ser sólido”. Neste sentido específico,
solidez é uma propriedade emergente da água quando esta é transformada em gelo.
Outra inovação introduzida pelos conexionistas é sua concepção de memória
distribuída. Uma lembrança consiste de vários elementos que estão espalhados numa
rede. Quando se invoca um, vários elementos da rede também são invocados, até a
lembrança completa se formar. A plausibilidade da memória distribuída torna-se
evidente no célebre caso da “memória da vovó”: se todas as minhas memórias acerca
de minha avó estivessem estocadas localmente, ou seja, em apenas um neurônio no
meu cérebro, e se por acaso esse neurônio desaparecesse ou se degenerasse, no dia
seguinte eu seria incapaz de reconhecer minha avó. Tal fato não ocorreria se minhas
memórias acerca de minha avó estivessem distribuídas numa rede; no máximo, eu me
tornaria incapaz de me lembrar de alguma característica específica de minha avó ou
de algum evento relacionado com a sua vida.
A terceira onda da IA, ainda no século XX, foi a robótica. Ela teve um grande
desenvolvimento a partir dos anos 1990 no laboratório de inteligência artificial do
MIT. Havia um grupo de pesquisadores que estava preocupado em criar máquinas
que se locomovessem e interagissem com o meio ambiente, sem que fossem
inteiramente pré-programadas, algo bem diferente do que se dispunha na época. Eles
desenvolveram toda uma geração de minúsculos robôs-insetos com essa finalidade e,
mais recentemente, dedicaram-se à produção do COG, o robô humanoide completo.
A robótica, além da GOFAI, tornou-se o outro movimento forte na IA do século
XXI. Robôs são máquinas que não apenas pensam, mas que também agem. A ideia
geral da robótica é a de que não haveria inteligência sem corpo.
Há quem acredite que a robótica e a GOFAI são movimentos opostos, pois quem
defende a GOFAI acha que a inteligência não precisa de um corpo. Mas isso ainda
não foi resolvido. Há robôs que não têm corpo e outros que só têm corpos virtuais.
Por exemplo, chamamos de robôs algumas ferramentas de busca de dados (web bots
ou knowbots) na internet, que certamente não têm corpo. Robôs que só têm corpos
virtuais são avatares, que encontramos em salas de bate-papo ou mesmo na TV. Esse
é o caso de Eva Byte, um avatar da rede Globo, muito popular, e que só tem um
corpo virtual.
Modelo de robô
26
Na última década, a robotica deu passos gigantescos. A construção de robôs
permitiu que se superassem alguns problemas tradicionais da IA como, por exemplo,
a ausência de emoções nas suas simulações. Durante anos, a IA havia sido acusada de
não dotar computadores de emoções, o que marcaria uma diferença essencial entre
máquinas e humanos.
Os robôs Oz e Kismet vieram preencher essa lacuna. Eles são experimentos
notáveis na área de computação afetiva. Oz vem sendo desenvolvido na Universidade
Carnegie Mellon, nos Estados Unidos, desde o final da década de 1980. Ele foi criado
para apresentar comportamentos intencionais, emocionais e ser capaz de usar a
linguagem comum. Oz tem um módulo de controle das emoções que avalia o quanto
um evento pode ser prazeroso para ele, o quanto uma ação sua ou de outra
pessoa/robô pode ou não ser prazerosa e, finalmente, ele tem também condições de
desenvolver relações sociais básicas.
Kismet, que foi desenvolvido no MIT, toma como ponto de partida que as
emoções são um instrumento fundamental que servem de guia para facilitar a
sobrevivência dos organismos. Emoções negativas são uma forma de evitar eventos e
comportamentos prejudiciais e as positivas indicam um caminho para o bem-estar.
Kismet trabalha com seis emoções básicas: ódio, nojo, medo, alegria, desgosto e
surpresa. Um dos aspectos mais interessantes desse robô é sua capacidade de interagir
com humanos e gerar uma espécie de empatia mútua.
Há outras novidades em desenvolvimento na robótica neste início de século,
como, por exemplo, Klaus, o robô motorista. Nas próximas décadas, robôs motoristas
virão como opcionais nos carros, e Klaus é o modelo que está sendo desenvolvido
pela Volkswagen. Ele é um robô humanoide com três pernas e quatro braços. Há uma
perna para cada pedal, dois braços para controlar a direção, um para trocar as marchas
e um para a ignição. O itinerário do carro é previamente estabelecido por um GPS, e
Klaus deve fazer o percurso evitando outros carros e possíveis obstáculos. No caso de
ele falhar, há um copiloto virtual que imediatamente assume o comando, o que
impede que acidentes aconteçam.
Além de Klaus, outra grande novidade esperada são as robôs Repliee
desenvolvidas no Japão. Elas pertencem a uma série de robôs humanoides, projetados
para servir de “companheiras”, em substituição às mulheres. As Repliee serão
dotadas de emoções, linguagem, personalidade própria e conviverão conosco no dia a
dia. Haverá também robôs homens, que se tornarão companheiros das mulheres.
Nossa vida sexual com os robôs precisará ser estudada e novos campos de pesquisa
em psicologia se abrirão, pois nosso envolvimento emocional com essas novas
criaturas será também inevitável. O amante transexual poderá ser um problema para a
IA, pois nele há um descompasso entre software e hardware, em matéria de
identidade. Nesse caso, parecer não é ser, o que significa romper com um dos
princípios fundamentais da IA.
Ainda assim, viveremos, nesse estágio, em mundos separados: ainda não nos
27
misturamos efetivamente com as máquinas. Essa mistura começa quando a IA se alia
com a engenharia genética. Quando se percebeu que o código genético é binário, ou
seja, que é o mesmo tipo de código utilizado pelos computadores, entramos na quarta
onda da IA.
A junção da IA com a engenharia genética está nos levando para a época do pós-
humano, com o aparecimento de androides e cyborgs. Androides serão aqueles nos
quais a parte biológica prevalece e eles poderão ser controlados (alguns
comportamentos e QI, por exemplo), interferindo-se no seu código genético. Suas
diferenças com os humanos serão imperceptíveis. Cyborgs são os híbridos, ou seja,
aqueles nos quais se misturam partes orgânicas e inorgânicas. Nos cyborgs, ocorre a
parabiose ou mistura do humano com a máquina, quase sempre algum tipo de
computador. Em geral, são os corpos humanos que servem de base para as máquinas,
mas há alguns casos nos quais os humanos podem até tornar-se parasitas do
computador, dependendo da proporção entre orgânico e inorgânico.
Há duas maneiras de nos misturarmoscom as máquinas: expandindo nosso
cérebro através de implantes de chips e nanochips ou transformando nossos circuitos
cerebrais em supercomputadores. Poderíamos fazer isso modificando as ligações
entre nossos neurônios (sinapses), transformando-as em circuitos de um
supercomputador. Mas há outra estratégia. Para usar um termo mais familiar para
quem sabe um pouco de ciência da computação: podemos montar uma máquina
virtual mais poderosa, usando como base o cérebro humano. Para montar uma
máquina dessa espécie, a partir do cérebro, talvez possamos usar algum vírus
semelhante aos vírus de computador, que se apossam das máquinas das pessoas, para
depois fazer com que elas executem determinadas tarefas sem que seus donos
percebam. Esses vírus invadiriam o cérebro, modificando-o, ou poderiam também
tomar a forma de micromáquinas invasoras que modificariam nosso cérebro em nível
molecular. Um enxame dessas micromáquinas, ou nanomáquinas, poderia invadir
nosso corpo.
Nanomáquinas
Dessa mistura com máquinas, resultarão dois tipos de cyborgs: um primeiro mais
inteligente que os humanos e outro tipo quase humano, menos capaz do que nós.
28
Ambos serão construídos sobre “plataformas humanas” – cérebros/corpos humanos
modificados. O homem torna-se o melhor modelo do humano. No caso do primeiro
cyborg, isso significa expansão de memória e aumento de velocidade do cérebro.
Serão aperfeiçoamentos importantíssimos, pois o cérebro humano não evolui há 200
mil anos. Ele é o mesmo cérebro de quando vivíamos em bandos pelo planeta,
caçando e fugindo de animais ferozes. Com esse cérebro obsoleto, não conseguimos,
hoje em dia, processar a enorme quantidade de informação necessária para sobreviver
na sociedade pós-moderna.
O segundo tipo de cyborg é o humano com um cérebro simplificado, ou seja, um
cérebro subutilizado porque uma parte dele foi tornada um computador programado
para realizar tarefas simples. Esses cyborgs têm cérebros parcialmente humanos
(híbridos, meio orgânico meio máquina) ligados a corpos complexos como os nossos.
Nosso corpo é um dos melhores robôs já produzidos pela natureza, além de existir em
relativa abundância. Talvez a melhor palavra para designar esse tipo de cyborg seja
semi-humano. Eles serão bons para realizar tarefas de alto risco. Eles também
resultariam da invasão de cérebros humanos por vírus ou nanomáquinas. Contudo,
para construí-los, o melhor processo seria, pelo menos no estágio inicial de obtenção
da plataforma, a clonagem, para evitar problemas éticos que surgiriam da utilização
de cérebros humanos vivos.
Há uma previsão de que nos tornaremos cyborgs antes do fim do século XXI. Será
difícil nos distinguirmos dos robôs que nós mesmos construiremos, pois homem e
robô já estarão muito misturados. A associação entre corpo e máquina já começou há
décadas, quando começamos cada vez mais a usar próteses. Mas também começou a
associação entre máquinas e corpos, ou seja, máquinas que se estendem para o mundo
do orgânico. Na verdade, máquinas biológicas nas quais ocorre essa associação
inorgânico/orgânico começaram a ser construídas já há algum tempo.
Na década passada, na Universidade da Geórgia, nos Estados Unidos, uma
máquina desse tipo já tinha sido desenvolvida utilizando-se o cérebro de larvas.
Microeletrodos foram introduzidos nos neurônios das larvas e o resultado de sua
atividade elétrica foi conectado às portas lógicas de um chip. Inicialmente esse tipo
de máquina, chamado de leechulator só podia realizar operações matemáticas
simples. Contudo, outros projetos de máquinas biológicas, que usavam bacilos ou
micróbios para realizar computações, começaram a aparecer.
Há ainda um tipo mais radical de máquina biológica que está sendo desenvolvido
na Science Applications International Corporation, nos Estados Unidos. Lá estão
sendo feitas culturas de neurônios humanos em superfícies lisas e espera-se que elas
comecem a se ramificar, formando conexões sinápticas. A pergunta é quanto tempo
esse processo levaria até formar um cérebro, mas os pesquisadores não acreditam que
essa seja uma questão importante. A maior parte do genoma do cérebro humano é
redundante e alguns acreditam que os principais algoritmos dos quais ele se utiliza
para pensar cabem num arquivo do tamanho do Microsoft Word. Se tivermos sorte e
29
as partes relevantes logo forem formadas, em breve teremos um cérebro pensante o
qual poderemos acoplar a uma máquina ou a um corpo humano.
Mas, neste começo de século, enquanto os androides e cyborgs ainda não
aparecem, a tendência da IA é a volta aos grandes manipuladores de símbolos. Deep
Blue parece marcar o início dessa era, que talvez seja curta na história da IA. É a
força bruta aliada ao hardware poderoso. A eficiência superando o raciocínio. A
inteligência vista como memória e processamento rápido/eficiente de informação. Era
esse o modelo de inteligência de nossos trituradores de símbolos nos anos 1960 e
1970. Uma inteligência que, na época, não foi tão brilhante quanto o Deep Blue.
Senhoras e senhores, a GOFAI está de volta, e desta vez com super-hardwares ou
Super-Crunchers!
30
CONTINUAR A PENSAR
Peça para o seu professor passar o filme Blade Runner: o Caçador de Androides. Ele narra uma história de
amor entre um humano e uma androide. Em seguida, discuta: por que não poderíamos amar um robô? Será
tão estranho amar uma máquina se, afinal, já sentimos ciúmes de carros e de máquinas fotográficas?
31
5.
O que dizem os filósofos
Os intelectuais nunca viram com bons olhos a IA. Talvez porque humanistas e
filósofos prezem muito o pensamento e achem que ele deva ser propriedade exclusiva
da espécie humana. Eles parecem não ter percebido que máquinas pensantes são, na
verdade, grandes realizações da razão humana e que, quando jogamos xadrez com um
dispositivo como, por exemplo, Deep Blue, não confrontamos uma máquina, mas
temos, de fato, um grande desafio que o ser humano se pôs a si mesmo.
Por causa dessa resistência à IA, apareceram vários argumentos tentando mostrar
que ela é impossível e que robôs nunca replicarão completamente os humanos. Há
dois deles que se destacaram: o argumento do quarto chinês, de John Searle, e o
argumento do insight, de Roger Penrose.
No início da década de 1980, o filósofo americano John Searle fazia uma viagem
de avião para uma cidade da Califórnia, na costa oeste dos Estados Unidos, quando
teve uma intuição acerca de um dos problemas mais importantes que os teóricos da
IA tinham deixado passar despercebido.
Searle preparava, a bordo do avião, uma palestra que seria apresentada em um
simpósio de IA. Ele estava muito impressionado com uma série de programas
computacionais que estavam sendo desenvolvidos em algumas universidades
americanas. Esses programas tinham sido projetados com uma finalidade específica:
compreender estórias.
Assim, por exemplo, se alguém fornecesse o seguinte relato a um programa de
computador projetado para compreender estórias: “Um homem entra num restaurante,
pede um sanduíche e sai sem pagar nem deixar gorjeta porque notou que o pão estava
amanhecido” – o programa era construído de tal maneira que o computador
“responderia” coerentemente a questões elaboradas com base no texto da estória. Ou
seja, tudo se passava como num exercício de interpretação de textos daqueles que
costumam cair em exames vestibulares. A diferença era que a interpretação do texto
era efetuada por um computador, convenientemente programado para fornecer
respostas adequadas.
Tudo isso não teria nada demais se os autores deste tipo de programas não
sustentassem que essas máquinas eram capazes de compreender as estórias que lhes
eram fornecidas, e que tais programas funcionam exatamente como seres humanos:
eles podem compreender textos.
Searle não se conformou com esse tipo de afirmação e elaborou um argumento
filosófico – o Chinese Room Argument (Argumento do Quarto Chinês) – para mostrar
que a ideia de que tais programas simulavam a atividade humana de compreender
32
estórias e textos era completamente equivocada.A ideia central do argumento é
inverter a situação de simulação e imaginar a tarefa executada pelo computador sendo
realizada por um ser humano.
Imaginemos então uma pessoa trancada num quarto que não tem portas nem
janelas, apenas duas portinholas em paredes opostas. Esta pessoa fala apenas
português, mas alguém lhe fornece um texto em chinês e uma espécie de tabela com
regras e truques (escritos em português) para que ela, a partir de sentenças escritas em
chinês, gerasse novas sentenças em língua chinesa. De vez em quando, abre-se uma
das portinholas do quarto e alguém fornece a essa pessoa um novo texto escrito em
chinês.
O ocupante do quarto, a partir do texto inicial escrito em chinês e dos novos textos
que foram introduzidos, gera um terceiro texto em chinês usando as regras de
transformação que estão na tabela. Como o processo é repetido regularmente, ele vai
adquirindo uma habilidade muito grande no manejo das regras de transformação.
Ora, essa situação corresponde ao que ocorre no interior de um computador
dotado de um programa para compreender estórias: o texto inicial, que está com a
pessoa trancada no quarto, corresponde à estória que é fornecida ao computador. As
novas sentenças que são geradas com base nas regras de transformação podem muito
bem ser as respostas às perguntas que foram feitas com base no texto.
Ocorre que a pessoa que está no interior do quarto, manipulando a tabela com as
regras de transformação, embora produza sentenças que são respostas adequadas às
perguntas sobre o texto em chinês, não compreende chinês. A pessoa não
compreende o texto inicial em chinês, tampouco as repostas que são geradas. Tudo se
passa de maneira parecida ao incidente do macaco que penetrou numa fábrica de
máquinas de escrever e, apertando teclas ao acaso, acabou produzindo o texto do
Hamlet de Shakespeare. Diz-se que o macaco não tinha a menor ideia do texto que
estava produzindo. À diferença da tabela com as regras de transformação, o mesmo
acontece na situação da pessoa trancada no quarto – uma situação imaginária que
nada mais faz do que ilustrar, de forma mais didática, o que ocorre no interior dos
computadores com seus programas.
Da mesma maneira que uma câmara de televisão não vê nada, mas apenas
reproduz imagens às quais nós atribuímos interpretações, os programas elaborados
para compreender estórias na verdade nada compreendem. Eles apenas manipulam
símbolos – símbolos que não têm nenhum significado para a máquina. Trata-se de
uma manipulação de símbolos inteiramente cega. Dizer que uma máquina
compreende ou enxerga é, no entender de Searle, um grande equívoco. É o mesmo
que dizer que um papagaio fala, quando ele na verdade apenas emite sons que são
imitados após muitas repetições.
Mas o que faz com que nós, seres humanos – à diferença das máquinas –
possamos compreender, enxergar e gerar significado para nossa linguagem, nossos
pensamentos e nossas ações? Os filósofos chamaram a essa faculdade de
33
intencionalidade – uma propriedade que caracteriza nossos estados mentais. A
intencionalidade se manifesta à medida que sabemos a que se referem nossos estados
mentais. Quando falamos, não estamos apenas emitindo sons: sabemos do que
estamos falando e que nossas palavras se referem a coisas que estão no mundo. Todos
os nossos pensamentos – sejam expressos em palavras ou não – têm conteúdos que
apontam para coisas ou situações do mundo. É impossível estar pensando sem estar
pensando em alguma coisa. E quando estamos pensando, sabemos selecionar, entre
nossos estados mentais, aqueles que apontam para objetos que estão à nossa volta e
aqueles que são mais distantes, como, por exemplo, os conteúdos da nossa
imaginação. De qualquer maneira, há sempre uma direcionalidade, algo como um
apontar para fora de nós mesmos que faz com que nossos pensamentos adquiram
significado ou sentido.
Dizer que o significado é um produto da intencionalidade não ajuda muito se não
sabemos como e por que nossos pensamentos têm essa propriedade. Sobre esse ponto,
sempre martelaram os pesquisadores da IA que nunca aceitaram o argumento do
quarto chinês. Além disso, eles tinham várias outras objeções.
Quem me garante que sempre compreendo o que falo? Por acaso muitos de nossos
processos mentais cotidianos não são tão rotineiros que os fazemos por associação tão
mecânica e cega como as do computador? Não serão as operações que ocorrem no
meu cérebro, quando compreendo algo, tão cegas quanto as que ocorrem no
computador? Por acaso tenho acesso ao que se passa no meu cérebro quando estou
compreendendo alguma coisa?
E como podemos saber se alguém está realmente compreendendo o que faz? Pelas
suas declarações? “Sim, eu compreendo o que faço quando respondo a uma pergunta
sobre o texto”. E uma máquina não poderia ser programada para fornecer essa
declaração? O que nos resta é a observação do comportamento, seja ele o de um ser
humano ou de uma máquina. A vida interior de um outro ser humano é algo a que
temos um acesso muito limitado. Aliás, nossa própria vida interior é algo sobre o que
pouco sabemos.
Essas objeções nunca conseguiram refutar inteiramente o argumento de Searle.
Mas ele nunca foi inteiramente aceito.
A segunda objeção, a do insight, feita por Penrose, não é muito diferente. Se
concebermos insight como uma compreensão instantânea entenderemos o motivo.
Penrose diz que um computador não pode ter insight. Ele pode até gerar informações
novas, a partir do cruzamento de informações que tem na sua memória, mas nunca
uma informação nova acompanhada de um insight. A partir daí, ele afirmou que
certos problemas matemáticos, por requererem insight, nunca poderiam ser resolvidos
por máquinas.
Penrose toma como modelo de insight os “Eurecas!” que ocorrem nas
demonstrações matemáticas. Esse seria um privilégio humano que uma máquina
nunca poderia igualar. Seu exemplo predileto são os teoremas descobertos na década
34
de 30 pelo matemático austríaco Kurt Gödel (1906-1978). Mas Penrose parece se
esquecer de que insight não é coisa apenas de matemáticos, embora, aparentemente
eles os tenham mais. Filósofos também têm insights.
Tome a frase “Penso, logo existo”. Você já deve ter ouvido falar dessa frase. Ela é
considerada um dos maiores insights da filosofia ocidental. Foi proferida pelo
filósofo francês René Descartes em 1641. Descartes era um homem que se pôs a
duvidar de tudo. A dúvida é a primeira grande expressão do poder da razão. Pode-se
duvidar de tudo, a começar daquilo que nos é transmitido pelos sentidos, por nossas
sensações. A dúvida vai demolindo as certezas habituais, num processo progressivo.
Posso duvidar das minhas sensações, duvidar até mesmo se o mundo que me é dado
pelas sensações seria realidade ou apenas uma fantasia da minha mente. A dúvida
sistemática, ou a dúvida hiperbólica, como diria Descartes, seria o instrumento da
minha razão para combater um gênio maligno, uma figura alegórica que simbolizaria
a tentativa persistente e habilidosa de meus sentidos e de meus próprios raciocínios,
que poderia levar-me ao engano ou ao falso conhecimento.
René Descartes
Por exemplo, minhas sensações, quando estou acordado, são tão vívidas como
quando estou sonhando. Assim sendo, como poderia eu distinguir entre sonho e
vigília? Não haveria nenhuma marca que me permitiria saber se as impressões que
tenho estão ocorrendo durante minha vigília ou durante um sonho. Nada me garante
que eu esteja acordado quando penso que estou; meu sonho teria o poder de me
convencer até mesmo de que eu estaria acordado quando sonho. Ou seja, quando
penso que estou acordado, poderia estar sonhando um sonho no qual tudo se passaria
como se eu estivesse acordado.
Poderíamos imaginar esse gênio maligno como um neurocientista perverso que,
através de um implante cuidadoso de eletrodos no meu cérebro, poderia produzir em
mim vários tipos de sensações, a começar por sensações visuais ou experiências de
estar percebendo alguma coisa diante de mim, mesmo que eu estivesse
momentaneamente cego. Eu perceberia coisas, adespeito de elas não estarem diante
de mim e eu não poder enxergá-las. Esse neurocientista tornar-se-ia um verdadeiro
gênio maligno se, através do implante desses eletrodos, ele reproduzisse o modo
35
como as sensações são encadeadas numa sequência que imitasse perfeitamente uma
percepção real e ordenada do mundo. Certamente esse neurocientista teria de
desenvolver uma técnica bastante sofisticada, para determinar com precisão o local e
a sequência em que os eletrodos teriam de ser implantados em meu cérebro, de modo
a produzir uma alucinação tão bem estruturada que eu nunca pudesse saber se estaria
alucinado ou não.
Ora, o grande insight de Descartes é que não posso duvidar que duvido; disto ele
infere sua frase mais célebre, o “Penso, logo existo” ou o “Cogito ergo sum”. Esse é o
grande insight, a certeza que ninguém pode me arrancar. Penso, logo existo. Isso
porque podemos duvidar de qualquer coisa, até mesmo se o mundo existe ou se 2 + 2
= 4, mas não podemos duvidar que estamos duvidando, ou seja, não podemos duvidar
que pensamos ao formular nossas próprias dúvidas, pois dúvidas são pensamentos.
Assim sendo, é impossível pensar que não pensamos, pois neste caso estaríamos
incorrendo numa contradição. Penso, logo existo é uma proposição única e peculiar,
na medida em que não é possível negá-la.
Ora, o argumento de Penrose poderia ser reescrito mais ou menos da seguinte
forma: será que um robô poderia ter esse insight semelhante ao que Descartes teve em
1641? Um insight cuja força mudaria toda a história da filosofia que veio depois
dele? Bem, contra Penrose, poderíamos imediatamente alegar: será que a algum de
nós poderia ocorrer novamente esse insight ao ler os textos que Descartes escreveu
em 1641?
Suponhamos que você esteja andando pela rua e encontre um robô que lhe diz:
“Penso, logo existo!”. Certamente você não acreditaria que ele estava tendo um
insight. Mas isso não parece ser muito diferente no caso dos humanos. Será que
precisamos ter um “Eureca” para entender Descartes quando o lemos? Ou precisamos
que um robô tenha um insight igual a um que ocorreu há quase 500 anos para se
igualar a um ser humano?
Da mesma maneira, poderíamos perguntar: será que toda vez que um matemático
demonstra pela primeira vez os teoremas de Gödel ocorre necessariamente um
insight?
Penrose acha que os humanos têm vários tipos de insights, principalmente quando
estão resolvendo problemas matemáticos. Mas ele nunca nos disse o que seria esse
insight. Uma boa hipótese é que ele poderia ser o processamento de informação a
uma velocidade altíssima, quase instantânea, próxima à da luz, que ocorreria no
cérebro humano, pois nele ocorreriam fenômenos quânticos. As máquinas digitais
que temos hoje não seriam capazes desse processamento em velocidade altíssima.
Nesse ponto Penrose está certo. Elas não têm insight, da mesma forma que não têm
compreensão (segundo Searle). Mas talvez Penrose tenha de rever seu argumento
quando a construção de computadores quânticos estiver aperfeiçoada. Pois ele mesmo
acredita que humanos têm insight porque no nosso cérebro ocorrem fenômenos
quânticos...
36
Mas há ainda as objeções levantadas contra a IA por alguns biólogos. Eles
tentaram traçar uma linha divisória entre máquinas e seres vivos, buscando
características dos seres vivos que não poderiam ser replicadas pelas máquinas.
Inicialmente supôs-se que essa característica poderia ser a autorreplicação. Mas essa
hipótese teve logo de ser abandonada. Os vírus se autorreplicam e podem se
multiplicar rapidamente pela internet. Além de se autorreplicar, eles têm também a
capacidade de mudar de forma, como os vírus dos seres vivos.
Mas há alguns biólogos que acreditam que existiria uma propriedade dos seres
vivos que as máquinas nunca poderão replicar: a morfogênese. Os organismos,
quando nascem e crescem, “sabem” qual a forma que irão tomar. A mesma coisa
acontece no processo de regeneração. Ao olharmos o conteúdo de um ovo, se não
soubermos de que tipo de organismo ele é, não poderemos ter nenhuma ideia de qual
animal crescerá a partir daquelas células. O código genético de todos os animais é
praticamente igual.
Tudo se passa como se suas partes soubessem sua finalidade e fossem se ajustando
aos poucos. Nas máquinas, as partes que são montadas permanecem separadas, não
ocorre nenhum tipo de interação entre elas após a montagem. Tampouco poderíamos
imaginar uma máquina cujas partes se desenvolvessem de acordo com algum plano
que não estivesse em alguma parte dessa máquina ou tivesse sido fornecido a ela de
antemão. Uma máquina não cresce. Ela não assimila material do meio ambiente.
Além das partes não interagirem, o desenvolvimento dessa máquina estaria sujeito ao
acréscimo externo de peças de acordo com o plano de algum engenheiro, e não de
acordo com algum plano da própria máquina. Essa seria uma das diferenças
fundamentais entre máquinas e seres vivos.
Essa propriedade dos seres vivos – a morfogênese – sempre foi um tema que
fascinou os biólogos e até mesmo Turing, que não era biólogo, mas se ocupou dela no
final de sua vida. Como é possível a morfogênese? Será que o crescimento, a
assimilação e o metabolismo são propriedades únicas dos seres vivos que marcam
uma linha divisória com as máquinas? Essas são perguntas que alguns biólogos têm
formulado nas últimas décadas.
Pouco se sabe sobre a morfogênese e se ela realmente ocorre “de dentro para
fora”. É possível que as formas que temos agora não tenham sido conseguidas por
nenhum plano interno dos organismos, mas por milhões de tentativas e erros que
foram selecionadas pela evolução, e em seguida passaram a ser transmitidas para
outras gerações a partir do código genético. Mas, nesse caso, isso poderia ser imitado
num computador. Há programas que simulam a evolução biológica e que podem
fazer com que as melhores formas sejam herdadas pelas gerações seguintes. Nesse
caso, a morfogênese perderia grande parte de seu mistério e deixaria de ser uma
característica exclusiva dos seres vivos.
37
CONTINUAR A PENSAR
Faça uma pesquisa na internet sobre o tema “vida artificial”. Em seguida reflita: se os processos vitais são
processos físico-químicos que podem ser simulados por um programa de computador, você acredita que
um computador possa replicar a vida? Ou será que a vida é propriedade exclusiva de seres cuja base
química é o carbono, ou seja, o tipo de vida que encontramos na Terra? Se admitirmos que uma máquina
pode pensar, porque não podemos admitir que ela adquira vida?
38
Epílogo
Quando digo que a GOFAI está de volta não estou afirmando que a IA está
voltando aos anos 1970. Estou dizendo não apenas que os pesquisadores estão
reconsiderando a inteligência artificial simbólica, como também que uma de suas
hipóteses centrais está sendo retomada: a de que será possível replicar a mente
humana em dispositivos artificiais. Essa é a chamada hipótese da inteligência
artificial no sentido forte (Strong AI) na qual se acreditou muito nos anos 1970 e
1980. A volta da IA forte nos dias de hoje se deve não apenas aos super-hardwares
da GOFAI, mas também à robótica, que cada vez mais nos leva a acreditar que a
replicação da inteligência humana e sua superação ocorrerá em menos tempo do que
imaginamos.
O desenvolvimento da IA trará mudanças dramáticas nos próximos anos. Uma de
suas fronteiras atuais é a nanotecnologia. Nanotecnologia é a construção de máquinas
do tamanho de um átomo. “Nano” significa um bilionésimo de metro, largura de
cinco átomos de carbono. A construção de nanorrobôs está sendo um passo decisivo
para a IA.
O impacto social da nanotecnologia será imenso. Máquinas do tamanho de uma
molécula poderão se reproduzir e produzir qualquer tipo de objeto. Elas precisarão
apenas de matéria-prima e de um software que descreva o objeto para que esse possa
ser montado. Com isso será possível produzir comida pronta, roupa, computadores e
assim por diante. O custo desses bens de consumo cairá muito. E cairá
vertiginosamente na medida em que essas máquinas de produzirobjetos forem se
reproduzindo a si mesmas.
Rapidamente, sairemos do mundo da escassez para o da hiperabundância. Haverá
mudanças sociais dramáticas: com a hiperabundância, os políticos muito pouco terão
a prometer; a própria política talvez desapareça. Teremos então ultrapassado a pré-
história da humanidade, na qual vivemos mergulhados até hoje. Muitas pessoas nas
sociedades hiperabundantes terão problemas psicológicos, pois a relação com o
trabalho ainda é complexa em nossas sociedades. O Terceiro Mundo terá de aguardar
o preço dessa tecnologia baixar ou apostar que seus terroristas virem hackers e que,
em vez de continuarem a explodir carros-bomba, pirateiem esses softwares pela
internet.
Num futuro próximo, a nanotecnologia possibilitará que várias ciências se
integrem entre si no estudo do ser humano. Nanorrobôs nos proporcionarão um
conhecimento muito maior do nosso cérebro, podendo mapeá-lo de dentro para fora.
Eles ampliarão também o conhecimento sobre nosso código genético e permitirão
eventualmente alterá-lo para que deixemos de ter certas doenças e de envelhecer.
39
Nosso código genético deve ser a base para que compreendamos as culturas
humanas. Elas são complexos sistemas simbólicos cujo mapeamento talvez possa,
algum dia, relacioná-los com as estruturas primordiais de nossas linguagens. Talvez
cheguemos à conclusão de que o código genético contém nossa gramática primordial,
de onde se derivaram todos os sistemas simbólicos que compõem nossa cultura, a
começar pela linguagem. Nosso código genético seria a matriz de todos os códigos
que utilizamos.
Mas precisaremos saber como esses símbolos se recombinam e mantêm seu
significado, estudo que é feito pela ciência cognitiva. A ciência cognitiva estuda as
estruturas de nosso pensamento e da nossa linguagem. É bem provável que, no futuro,
genética e ciência cognitiva se aproximem muito, chegando a uma explicação quase
completa da natureza humana.
Mas será preciso ainda acrescentar mais uma ciência para chegarmos à
compreensão da natureza humana. Os seres humanos interagem entre si e formam
sociedades. É preciso estudá-las. O caminho é construir simulações dessas sociedades
em computadores. Podemos simular a interação humana pelo estudo do
comportamento de bandos de microrrobôs. Já dispomos de sociedades experimentais
desenvolvidas em laboratório para testar teorias econômicas e políticas. Às vezes,
bandos de microrrobôs desenvolvem comportamentos criativos jamais vistos antes. A
IA já estuda esse tipo de fenômeno: como a inteligência surge da interação social.
Isso se chama inteligência artificial social. Ela substituirá, progressivamente, a
sociologia.
A filosofia voltará a ter um papel importante nas sociedades altamente
digitalizadas, apesar de ter criticado muito a IA nas décadas passadas. Os
pesquisadores da IA precisarão cada vez mais dos filósofos para desenvolver
disciplinas como a roboética. Ela faz algumas perguntas inquietantes: deverão as
máquinas ter princípios morais como nós? E quais deveriam ser eles? É bem provável
que, se embutirmos princípios éticos nos robôs, a ética se torne, pela primeira vez,
uma realidade para os humanos, deixando de ser algo que ocorre somente no mundo
encantado dos filósofos. (Por acaso princípios éticos foram vigentes em algum
momento da história da humanidade?)
As questões éticas serão inevitáveis, sobretudo na medida em que nos apegarmos
aos robôs tanto quanto nos apegamos aos animais domésticos. A interação afetiva e
sexual entre homens e robôs trará novas questões para o campo da relação entre
humanos e máquinas. Estaremos preparados para interagir com robôs dotados de
emoções? A julgar pelos nossos filmes de ficção científica, os humanos mal
conseguem lidar com a fúria dos robôs. O que dizer então de outras emoções?
Nos próximos 30 anos, as pessoas carentes irão se apaixonar por robôs. Alguns
terão corpos físicos, mas outros apenas corpos virtuais. Serão parceiros remotos,
encontrados na internet, em salas de bate-papo ou em outras situações. Em ambos os
casos, estaremos diante de robôs altamente sofisticados, que passam no teste de
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Turing, e muitas pessoas quererão se casar com esses robôs. Será necessário legalizar
o casamento de humanos com robôs e esta será uma batalha jurídica tão importante
quanto a que busca legitimar o casamento gay.
A sociedade hiperdigitalizada enfrentará um dilema moral: como classificar os
semi-humanos? Serão eles (ou elas?) pessoas ou serão apenas máquinas? Assim
como hoje se luta pelo direito dos animais, será preciso lutar pelo direito dos
androides e dos semi-humanos. Mas isso não bastará: eles precisarão também passar
no teste de Turing para saber se a eles podemos atribuir consciência, para então
podermos atribuir-lhes direitos semelhantes aos dos humanos. Qualquer coisa que
digamos agora será mera especulação. Precisamos ainda aguardar algumas décadas
até que essa fase do mundo pós-humano, ou, para usar a denominação de alguns
estudiosos, mundo do pós-biológico, torne-se uma realidade e possamos aplicar o
teste de Turing nessas criaturas.
Continuaremos incessantemente procurando por brechas que permitam nos
diferenciar das máquinas e manter nosso lugar privilegiado no universo. Uma delas,
que perdurará ainda por muitos anos, é nossa capacidade de fazer certas operações
matemáticas de divisão e multiplicação. Por exemplo, ao dividirmos 10 por 3,
encontramos 3,3333... Diremos, porém, que ao multiplicar o dividendo de 10 por 3
obtemos 10, e não 9,9999... Um computador não poderá fazer isso: para ele o
dividendo de 10 multiplicado por 3 será sempre 9,99999... (Você veria outra
possibilidade?)
Talvez isso nos distinga das máquinas para sempre. Roger Penrose percebeu esse
problema – que nada tem de inocente –, mas acabou se enredando quando escreveu
um livro de mais de 400 páginas para tentar explicá-lo. Antes dele, o matemático
Kurt Gödel, na década de 1930, já chamava a atenção para essa dificuldade e também
achava que ela marcava uma divisão profunda entre homens e máquinas.
Contudo, pretender estancar o progresso da IA é o mesmo que querer impedir a
decolagem de um Boeing com pedras e tacapes – algo que só se passa na cabeça de
alguns intelectuais arcaicos. Já houve quem dissesse que a anatomia do homem é a
chave da anatomia do macaco. Hoje seria melhor dizer, talvez, que a anatomia do
homem será desvendada pela anatomia do robô, construído pelo próprio homem. É
isso que faz da inteligência artificial uma verdadeira ciência humana, ou uma
psicologia que extrapola os limites da simples tecnologia. É quando se tenta
reinventar os mecanismos da visão, do raciocínio, da memória etc., que aprendemos
alguma coisa acerca de como funciona a mente humana.
Se a IA seduz é porque às vezes beira o mágico e até o encantamento. Não
podemos nos esquecer que a máquina de Kempelen era uma mágica – um truque
genial. Como nos disse uma vez o grande escritor Arthur C. Clarke, “qualquer
tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da mágica”.
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CONTINUAR A PENSAR
Você acha que a nanotecnologia pode causar danos irreparáveis ao meio ambiente? Será ela uma
tecnologia segura sobre a qual sempre poderemos manter o controle? Pesquise sobre esse assunto na
internet.
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Sugestões
de leitura
Há inúmeros sites na internet e livros sobre inteligência artificial, todos eles em
inglês. Limito-me, entretanto, a indicar uns poucos livros em português que, se lidos
na sequência deste, poderão auxiliar o leitor, aos poucos, a se aprofundar nesse tema
fascinante.
O primeiro livro que sugiro é o de Ray Kurzweil, A era das máquinas espirituais,
no qual o autor traça um quadro do que está acontecendo na IA agora e no seu futuro
próximo.
O segundo livro que indico é Turing e o computador em 90 minutos, de autoria de
Paul Strathern, que apresenta a obra do fundador da IA de maneira divertida, mas
precisa.
Quem quiser se aprofundar um pouco mais no tema da parabiose pode dar uma
olhada em alguns capítulos da coletânea O homem-máquina, organizada por Adauto

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