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2 SUMÁRIO Capa Folha de rosto APRESENTAÇÃO 1) O Rosário como oração cristológica, eclesiológica e escatológica 2) O legado de São Luís Maria Grignion de Montfort INTRODUÇÃO ROSA BRANCA (aos sacerdotes) ROSA VERMELHA (aos pecadores) ROSEIRA MÍSTICA (às almas piedosas) BOTÃO DE ROSA (às crianças) Primeira dezena | A EXCELÊNCIA DO SANTO ROSÁRIO EM SUA ORIGEM E EM SEU NOME Segunda dezena | A EXCELÊNCIA DO SANTO ROSÁRIO NAS ORAÇÕES QUE O COMPÕEM Terceira dezena | A EXCELÊNCIA DO SANTO ROSÁRIO NA MEDITAÇÃO DA VIDA E DA PAIXÃO DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO Quarta dezena | A EXCELÊNCIA DO SANTO ROSÁRIO NAS MARAVILHAS QUE DEUS OPEROU EM SEU FAVOR Quinta dezena | MODO DE RECITAR O ROSÁRIO APÊNDICE | MÉTODOS PARA RECITAR O SANTO ROSÁRIO Coleção Ficha catalográfica Notas 3 kindle:embed:0002?mime=image/jpg kindle:embed:0002?mime=image/jpg APRESENTAÇÃO TIAGO JOSÉ RISI LEME[1] 4 1) O Rosário como oração cristológica, eclesiológica e escatológica São João Paulo II, em sua Encíclica Rosarium Virginis Mariae, de 16 de outubro de 2002, na qual foram instituídos os mistérios luminosos, que contemplam os eventos da vida pública de Nosso Senhor, assim definiu o Santo Rosário: O Rosário da Virgem Maria (Rosarium Virginis Mariae), que ao sopro do Espírito de Deus se foi formando gradualmente no segundo Milênio, é oração amada por numerosos santos e estimulada pelo Magistério. Na sua simplicidade e profundidade, permanece, mesmo no terceiro Milênio recém-iniciado, uma oração de grande significado e destinada a produzir frutos de santidade. Ela enquadra-se perfeitamente no caminho espiritual de um cristianismo que, passados dois mil anos, nada perdeu do seu frescor original [...]. O Rosário, de fato, ainda que caracterizado pela sua fisionomia mariana, no seu âmago, é oração cristológica. Na sobriedade dos seus elementos, concentra a profundidade de toda a mensagem evangélica, da qual é quase um compêndio. Nele ecoa a oração de Maria, o seu perene Magnificat pela obra da Encarnação redentora iniciada no seu ventre virginal. Com ele, o povo cristão frequenta a escola de Maria, para deixar-se introduzir na contemplação da beleza do rosto de Cristo e na experiência da profundidade do seu amor. Mediante o Rosário, o crente alcança a graça em abundância, como se a recebesse das mesmas mãos da Mãe do Redentor (n. 1). Na mesma encíclica, São João Paulo II se refere ao presente livro como “uma preciosa obra sobre o Rosário” (n. 8)[2] e homenageia seu autor situando-o no rol da “multidão sem conta de santos que encontraram no Rosário um autêntico caminho de santificação” (n. 8). O Rosário como oração cristológica é uma definição que já se encontra bem fundamentada por São Luís Maria, pois se trata de uma oração que nos leva a meditar sobre os mistérios da vida, da Paixão e morte, e da ressurreição e glória de Nosso Senhor Jesus Cristo, mistérios dos quais a Santíssima Virgem Maria participou plenamente como aquela que aceitou ser a Mãe do Filho de Deus. E Maria Santíssima foi a Mãe do Deus Encarnado desde Nazaré, onde o Espírito Santo a cobriu com sua sombra, até Belém, onde viu seu filho nascer na simplicidade de um estábulo, onde os pastores, os reis e os anjos se fizeram presentes, como prefiguração daqueles que, através dos séculos, veriam naquela criança o Príncipe da paz, Deus forte e Conselheiro admirável. Ela também foi a Mãe do Filho de Deus na fuga para o Egito, levando na memória e no coração o grito de dor das mães que choravam seus bebês massacrados por Herodes. Ela foi a Mãe no momento da perda do menino Jesus em Jerusalém, e não deixou de procurá-lo até o encontrar. Com o Filho, a Mãe estava nas bodas de Caná; e foi pela intercessão dela que Ele antecipou sua manifestação gloriosa ao mundo, transformando a água em vinho (água que simboliza, nesse caso, nossos pecados, que são transformados pelo sangue de Cristo – sangue que Ele verteu por nós no madeiro da cruz e que hoje Ele nos dá nas espécies do pão e do vinho eucarísticos). A Mãe também se encontrava com o Filho em Jerusalém, quando estava para se consumar sua missão neste mundo. Ela sofreu com o Filho a dor 5 infinda da agonia mortal no horto, da flagelação sangrenta, da coroação de espinhos, da subida dolorosa ao Calvário e de sua crucificação e morte. Foi do alto da cruz que o Filho a entregou a nós como nossa Mãe: agora que sua missão redentora se consumava no sacrifício perene e universal da cruz, quando o próprio Deus entregava a própria vida, Ele também entregava sua Mãe ao discípulo amado, que simbolizava e já prefigurava todos os batizados. Por estar com o Filho na vida e na morte, Maria Santíssima também está com Ele na glória e, por graça d’Ele, também ela está hoje conosco, cumprindo, junto com o Filho, a promessa que Ele nos deixou antes de voltar para o Pai: “Eis que estarei convosco todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28,20). Por tudo isso, a oração do Rosário é verdadeiramente uma oração cristológica, pois tem como ponto de partida e fundamento o mistério da Encarnação do Senhor Jesus, e como finalidade última prestar um louvor agradável a Deus Pai pela encarnação, ressurreição e ascensão de seu Filho, em virtude das quais a assunção e a coroação de Maria Santíssima como Rainha do céu e da terra são também motivo de grande alegria para todos os cristãos batizados, que cantam igualmente as glórias de Maria a cada Saudação angélica recitada com amor e gratidão. A repetição da Ave-Maria na recitação do Rosário tem, além da capacidade de nos predispor à contemplação, colocando-nos em atitude de meditação – por meio da qual nos esvaziamos de nós mesmos para sermos abrasados e preenchidos pelo Espírito de Deus –, a virtude de honrar não apenas a Santíssima Virgem, mas primordialmente e, acima de tudo, a Santíssima Trindade, no louvor à Encarnação do Verbo, uma vez que, pela Saudação do anjo, inaugurou-se o tempo da salvação. Nesse sentido, o Rosário também consiste numa oração trinitária, conforme São Luís Maria argumenta, ao definir a Ave-Maria como o “cântico novo” dos que professam a fé em Cristo e já prefigurado pelo cântico antigo do povo hebreu ao sair da escravidão do Egito: O cântico novo é aquele que os cristãos cantam em ação de graças pela Encarnação e pela Redenção. Como esses prodígios foram realizados mediante a Saudação do anjo, repetimos essa mesma saudação para agradecer a Santíssima Trindade por seus benefícios inestimáveis. Louvamos Deus Pai por ter tanto amado o mundo que lhe deu seu Filho único para o salvar. Bendizemos o Filho por ter descido do céu à terra, por ter-se feito homem e por nos ter resgatado. Glorificamos o Espírito Santo por ter formado no seio da Santíssima Virgem esse corpo tão puro, que foi a vítima por nossos pecados. É nesse espírito de reconhecimento que devemos recitar a Saudação do anjo, produzindo atos de fé, esperança, amor e ações de graças pela grande obra de nossa salvação (n. 46). Em tal perspectiva de uma oração cristológica e, portanto, cristocêntrica, mas também trinitária, São Luís Maria enumera como cinco os objetivos principais do Santo Rosário: 1) honrar as três Pessoas da Santíssima Trindade; 2) honrar a vida, a morte e a glória de Jesus; 3) imitar a Igreja triunfante, auxiliar a Igreja militante e aliviar a Igreja padecente; 4) imitar as três partes dos Salmos, 6 sendo a primeira relativa à via purgativa, a segunda à via iluminativa e a terceira à via unitiva; 5) encher- nos de graças durante a vida, de paz na hora da morte e de glória na eternidade (n. 23). Como podemos ver no terceiro ponto acima elencado, o Santo Rosário possui ainda uma dimensão eclesiológica, e mesmo escatológica. Eclesiológica porque nos une a toda a Igreja, principalmente à Igreja militante, dos fiéis que ainda caminham neste mundo de incertezas e tribulação, muitas vezes passando pelo vale de lágrimas e fazendo de fato a experiência do desterro. Para ambas as experiências – a do desterro e a do vale de lágrimas –, a oração que coroa e conclui o Santo Rosário representa um alento, umrefrigério, uma força, fundamentada no amor maternal da Rainha da Consolação e Nossa Senhora do Desterro. O Santo Rosário também nos une à Igreja padecente, dos fiéis que se purificam no Purgatório.[3] São Luís Maria se refere com muita insistência, munido de relatos historicamente documentados, dentre os quais as crônicas da vida de São Domingos, à eficácia do Rosário para conduzir as almas do Purgatório à Luz Eterna. A dimensão escatológica por excelência do Santo Rosário está ligada ao fato de também nos unirmos à Igreja dos que já se encontram na glória, como o Bom Ladrão, a quem o Senhor prometeu, do alto da cruz, o festim dos redimidos quando estivesse em seu Reino (cf. Lc 23,43). Assim, São Luís Maria insiste na importância de rezar o Rosário em família, ou em comunidade, apoiado nas próprias palavras do Senhor, que prometeu estar presente entre nós quando estivermos reunidos em seu nome, de modo que, estando Ele presente entre nós – Ele que será Tudo em todos (cf. 1Cor 15,28) –, também o céu se faz presente em nosso meio. A história do Santo Rosário e sua configuração como a conhecemos hoje estão ligadas à aparição de Nossa Senhora a São Domingos de Gusmão (1170-1221), o pai fundador da Ordem dos Frades Pregadores e grande apóstolo do Rosário: A Santíssima Virgem ensinou a São Domingos esse excelente método de oração, ordenando-lhe que o propagasse, a fim de despertar a piedade dos cristãos e fazer o amor de Jesus Cristo reviver em seus corações. Ela também o ensinou ao bem-aventurado Alain de la Roche (n. 61). São Domingos pregou o Rosário particularmente na região Sul da França, onde o movimento dos cátaros, adeptos da heresia albigense, era muito forte, representando um risco para a unidade da Igreja. A heresia albigense professava um dualismo maniqueísta a partir do qual se rejeitava a matéria e o corpo como sendo do âmbito de um mal ontológico equivalentemente em oposição ao bem. Uma das implicações dessa visão de mundo era a desconfiança em relação a tudo o que fosse corpóreo, inclusive aos sacramentos. Muitos dos frutos e prodígios da pregação de São Domingos (como conversões, curas e exorcismos) que São Luís Maria cita na presente obra foram narrados pelo bem-aventurado Alain de la Roche (1428-1475, dominicano como São Domingos e bretão como São Luís Maria Montfort) na obra De dignitate psalterii, em que ele 7 designa o Santo Rosário como o Saltério da Santíssima Virgem, numa referência ao Saltério de Davi, que é o Saltério da Liturgia das Horas, rezado por todo o clero e pelas pessoas consagradas. O Saltério de Nossa Senhora passa a ser a oração de todo o povo cristão. A propósito, São Luís Maria vai ainda mais longe, afirmando a excelência do segundo Saltério em relação ao primeiro, e justifica sua posição mediante três razões: 1) Pois o Saltério angélico tem um fruto mais nobre, qual seja: o Verbo encarnado, enquanto o Saltério de Davi nada mais faz do que predizê-lo; 2) Assim como a verdade ultrapassa a figura e o corpo a sombra, assim também o Saltério da Santíssima Virgem ultrapassa o Saltério de Davi, que dele não foi senão a sombra e a figura; 3) Pois a Santíssima Trindade imediatamente constituiu o Saltério da Santíssima Virgem ou o Rosário do Pai-nosso e da Ave-Maria (n. 22). São poucos os trechos em que São Luís Maria fala de sua própria experiência como pregador do Rosário. Num deles, ele se refere à virtude do Santo Rosário para obter a conversão: Quanto a mim, que escrevo, constatei, por experiência própria, a força dessa oração para converter os corações mais endurecidos. Encontrei pessoas sobre as quais nenhuma das mais terríveis verdades pregadas numa missão havia surtido efeito, mas que, seguindo meu conselho, adotaram a prática de recitar todos os dias o Rosário, depois do que se converteram e se entregaram a Deus. Pude constatar a diferença infinita entre os costumes das pessoas de paróquias onde fiz missões, pois uns, tendo deixado a prática do terço e do Rosário, voltaram a cair no pecado, enquanto os outros, por tê-la conservado, mantiveram-se na graça de Deus e cresciam todos os dias na virtude (n. 113). Outros frutos do Rosário são referidos por São Luís Maria. Não podemos deixar de citar os que ele transcreve em latim, a partir de Alain de la Roche, sem tradução na edição francesa: 1) Os pecadores obtêm o perdão; 2) Os sedentos de perfeição crescem na graça; 3) Os prisioneiros veem quebrarem seus grilhões; 4) Os que choram encontram consolo; 5) Os que são tentados encontram paz; 6) Os necessitados recebem ajuda; 7) Os religiosos se reformam; 8) Os ignorantes se instruem; 9) Os vivos triunfam sobre a vaidade; 10) Aos defuntos chega, sob a forma de sufrágio, a aguardada misericórdia. É importante ressaltar que Nossa Senhora, em sua mais célebre aparição no século XX – Fátima, Portugal, em 1917 –, insiste sobre a importância de se rezar o Rosário – ou pelo menos o terço – todos os dias, sobretudo em família, como um meio para se alcançar a paz, não apenas a paz mundial, mas também a paz consigo mesmo, com Deus e com o próximo. Quatro dos últimos sucessores de Pedro[4] estiveram em Fátima como peregrinos, corroborando essa importante mensagem da Mãe de Deus. Outra importante aparição de Nossa Senhora intimamente ligada à devoção ao Santíssimo Rosário ocorreu em Lourdes, na França, em 1858, a Santa Bernadette Soubirous, tanto que a basílica construída em honra de Nossa Senhora em Lourdes recebeu o nome de Basilique Notre-Dame du Rosaire de Lourdes (Basílica Nossa Senhora do Rosário de Lourdes).[5] 8 2) O legado de São Luís Maria Grignion de Montfort Em seu Discurso aos peregrinos reunidos em Roma para a canonização de Luís Maria Grignion de Montfort, de 21 de julho de 1947, o Papa Pio XII assim se refere ao grande missionário do Santo Rosário: A característica própria a Luís Maria, e pela qual é um autêntico bretão, é sua tenacidade perseverante em perseguir o santo ideal, o único ideal de sua vida: ganhar os homens para dá-los a Deus. Na busca desse ideal, ele lançou mão de todos os recursos que poderia receber da natureza e da graça, de modo que pôde ser verdadeiramente, em todos os campos, o apóstolo do Oeste da França. [...] A caridade: eis o grande, ou mesmo o único segredo dos resultados surpreendentes da vida tão breve, tão múltipla e movimentada de Luís Maria Grignion de Montfort. [...] A cruz de Jesus, a Mãe de Jesus: os dois polos de sua vida pessoal e de seu apostolado. E eis como essa vida, em sua brevidade, foi plena; como esse apostolado, exercido durante apenas doze anos, se perpetua já há mais de dois séculos e se estende sobre muitas regiões! O fato é que a Sabedoria, à qual ele se entregou, fez frutificar seus labores, coroou seus trabalhos, que a morte certamente não interrompeu. A obra é toda de Deus, mas também traz consigo a marca daquele que foi seu fiel cooperador.[6] São Luís Maria nasceu em Montfort, próximo a Rennes (França), em 31 de janeiro de 1673, filho mais velho de um advogado bretão. Sua primeira educação esteve a cargo dos jesuítas. Aos 19 anos, entrou no seminário Saint-Sulpice, em Paris, onde brilhou por sua inteligência e profunda piedade. Foi na escola de Saint-Sulpice que pôde se desenvolver sua grande devoção à Virgem Maria e à cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, dois pilares de sua missão, como acenou Pio XII por ocasião de sua canonização. Foi ordenado sacerdote em 1700, aos 27 anos de idade, tornando-se capelão do hospital de Poitiers, onde divide a mesa com os doentes e reúne, em torno de Marie- Louise Trichet, filha de um alto magistrado, um grupo de moças que desejavam se dedicar aos pobres. Assim nasceu a congregação das Filhas da Sabedoria. As reformas que ele propõe e o embate de ideias com os Jansenistas incomodam a burguesia local, que consegue retirá-lo do hospital. Ele então se dirige ao papa, a fim de ser enviado em missão. O papa o envia de volta à França, como pregador das missões paroquiais, o que também o faz atrair a simpatia de alguns e a cólera de outros. Também foram fundadaspor ele duas outras congregações: uma conhecida como Companhia de Maria, dos Padres Missionários Montfortinos, que só terá início após sua morte, e a congregação dos Irmãos de São Gabriel. Sua incansável atividade missionária de pregação pelas dioceses do Oeste da França também o colocou em conflito com as autoridades eclesiásticas. Porém, o bispo de La Rochelle, dom Etienne de Champfour, tornou-se para ele um protetor eficaz. A partir de 1711, o padre Luís Maria pregou em sua diocese três missões: uma para homens, outra para soldados e uma terceira para mulheres. Tendo sido alvo de 9 uma tentativa de envenenamento, precisou fugir da cidade, indo pregar em outras dioceses, como Aunis, Thairé, Saint-Vivien, Esnandes e Courçon. Em 1714, pregará na diocese de Saintes. Sua atividade apostólica se desenrolou no período de dez anos, por meio de sua palavra poderosa e a chama de seu zelo, sendo inclusive acompanhada de milagres. Sua vida espiritual foi alimentada por uma oração contínua e vivificada em retiros prolongados. Uma série de cantos populares completa os frutos de sua pregação. Plantando a cruz de Cristo por inúmeros povoados e semeando a devoção ao Rosário, a Divina Providência se serviu dele para preparar os fiéis da parte ocidental da França para a resistência contra as perseguições que se seguiram à Revolução Francesa. Após dezesseis anos de apostolado, em 1716, morre em plena atividade missionária, em Saint-Laurent-sur-Sèvre (Vendée), com apenas quarenta e três anos. É considerado um dos maiores santos dos tempos modernos e o grande promotor da devoção à Santíssima Virgem de nosso tempo. Foi beatificado pelo Papa Leão XIII, em 22 de janeiro de 1888, e canonizado por Pio XII, em 20 de julho de 1947. Entre suas obras principais, destacam-se: L’Amour de la Sagesse éternelle (O amor da Sabedoria eterna); Traité de la vraie dévotion à la Sainte Vierge Marie (Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem Maria); Le Secret de Marie (O segredo de Maria); Lettre circulaire aux Amis de la Croix (Carta circular aos amigos da cruz); Le Secret admirable du très saint Rosaire pour se convertir et se sauver (O segredo admirável do Santíssimo Rosário para se converter e se salvar); La Prière embrasée (A oração abrasada) e Les Cantiques (Os cânticos). 10 INTRODUÇÃO ROSA BRANCA (aos sacerdotes) 1. Ministros do Altíssimo, pregadores da verdade, trombetas do Evangelho, permitam-me apresentar-lhes a rosa branca deste pequeno livro para colocar em seus corações e em suas bocas as verdades nele expostas diretamente, sem floreios. Em seus corações, para que vocês próprios sejam adeptos da santa prática do Rosário e saboreiem seus frutos. Em suas bocas, para que preguem aos outros a excelência dessa prática e os convertam por meio dela. Peço-lhes o favor de estarem atentos para não considerar – como fazem muitas pessoas, inclusive alguns eruditos orgulhosos – esta prática como insignificante e de pouca consequência; de fato, ela é verdadeiramente grande, sublime e divina. Foi o céu que a deu a nós, e a deu para converter os mais endurecidos pecadores e os mais obstinados hereges. Deus associou-lhe a graça nesta vida e a glória na outra. Os santos a praticaram e os papas a autorizaram. Oh! Quão feliz é um presbítero e um diretor espiritual a quem o Espírito Santo revelou esse segredo desconhecido pela maioria das pessoas ou que se conhece senão de um modo superficial! Se ele receber o conhecimento prático do Santo Rosário, o recitará todos os dias e levará os outros a recitá-lo. Deus e sua Santíssima Mãe derramarão abundantes graças em sua alma, para que ele se torne um instrumento de sua glória; e ele dará mais frutos por sua palavra, embora simples, em um mês, do que os outros pregadores em muitos anos. 2. Portanto, meus caros confrades, não nos contentemos em simplesmente recomendá-lo aos outros. Devemos também praticá-lo nós mesmos. Poderemos ser convencidos em teoria da excelência do Rosário; contudo, se não o praticarmos, pouca gente dará importância ao que aconselharmos, pois ninguém pode dar aquilo que não tem: Coepit Jesus facere et docere (“Jesus fez e ensinou”, At 1,1). Imitemos Jesus Cristo, que começou fazendo aquilo que ensinou. Imitemos o Apóstolo, que não conhecia e não pregava a não ser Jesus Cristo crucificado. É o que faremos ao pregar o Santo Rosário que, como vocês verão adiante, não é somente uma composição de Pais-nossos e Ave-Marias, mas um divino compêndio da vida, da Paixão, da morte e da glória de Jesus e de Maria. Se eu soubesse que a experiência que Deus me concedeu da eficácia da pregação do Santo Rosário para converter as almas pudesse levá-los a difundi-lo, apesar da tendência contrária dos pregadores, eu lhes diria as conversões maravilhosas que vi acontecer ao pregar o Santo Rosário, mas me contento em referir-lhes adiante algumas histórias antigas e bem aprovadas. Só acrescentei, para beneficiar-lhes, alguns trechos em latim extraídos de bons autores, que provam aquilo que explico ao povo em vernáculo. 11 ROSA VERMELHA (aos pecadores) 3. É a vocês, pobres pecadores e pecadoras, que um pecador maior ainda que vocês oferece esta rosa tingida de vermelho pelo sangue de Jesus, para enfeitá-los e salvá-los. Os ímpios e pecadores impenitentes bradam sem cessar: Coronemus nos rosis (“Coroemo-nos com rosas”, Sb 2,8). Cantemos também nós: “Coroemo-nos com as rosas do Santo Rosário!”. Ah! Como são diferentes das nossas as rosas deles. As deles são os prazeres carnais, as honras vãs e as riquezas perecíveis, que logo serão corrompidas e apodrecerão. Mas as nossas, que são nossos Pais-nossos e nossas Ave-Marias bem rezados, junto com nossas boas obras de penitência, não perecerão, nem passarão jamais, e seu brilho será tão fulgurante em cem mil anos quanto agora. As pretensas rosas deles não têm senão a aparência de rosas, mas no fundo não passam de espinhos que espetam durante a vida, através dos remorsos da consciência, que furam na hora da morte, através do arrependimento, e que queimam por toda a eternidade, através da raiva e do desespero. Ainda que nossas rosas tenham espinhos, são espinhos de Jesus Cristo, que os transforma em rosas. Ainda que nossas rosas espetem, só espetam por um tempo, só espetam para nos curar do pecado e nos salvar. 4. Entremos em competição para coroar-nos com tais rosas do paraíso, recitando todos os dias um Rosário, ou seja, três[1] terços de cinco dezenas cada um ou três pequenos chapéus de flores ou coroas: ▪ uma para honrar as três coroas de Jesus e de Maria, a coroa de Jesus em sua encarnação, sua coroa de espinhos em sua Paixão e sua coroa de glória no céu, e a tripla coroa que Maria recebeu no céu da Santíssima Trindade; ▪ duas para receber de Jesus e de Maria três coroas: a primeira de mérito, durante a vida; a segunda de paz, na hora da morte, e a terceira de glória, no paraíso. Se você for fiel até a morte em rezá-lo devotamente, apesar da grandeza de seus pecados, acredite em mim: Percipietis coronam immarcescibilem (“Receberá a coroa de glória que não perece”, 1Pd 5,4). Estando quase à beira do abismo, com um dos pés no inferno, quase perto de vender sua alma ao diabo como um mago, de tornar-se um herege endurecido e obstinado como um demônio, você se converterá, cedo ou tarde, e se salvará, desde que – repito-o, e grave bem os termos e as palavras de meu conselho – recite todos os dias o Santo Rosário, com devoção, até a morte, para conhecer a verdade e obter a contrição e o perdão de seus pecados. Você conhecerá, por meio desta obra, várias histórias de grandes pecadores que se converteram pela virtude do Santo Rosário. Leia-as para meditá-las. Deus somente. 12 ROSEIRA MÍSTICA (às almas piedosas) 5. Vocês não acharão ruim, almas devotas e esclarecidas pelo Espírito Santo, que eu lhes dê uma pequena roseira proveniente do céu, a fim de plantá-la no jardim de suas almas. Ela não causará nenhum dano às flores odoríferas de suas contemplações. Ela é muito odorante e toda divina, incapaz de estragar nada na extençãode seu solo. Ela é muito pura e bem ordenada, levando tudo à ordem e à pureza: ela sobe a uma altura tão prodigiosa e se torna tão esparsa ao ser cultivada e regada todos os dias, como se deve fazer todos os dias, que não apenas não impede, como também conserva e aperfeiçoa todas as outras devoções. Vocês que são espirituais, sabem bem o que estou dizendo. Essa roseira é Jesus e Maria na vida, na morte e na eternidade. 6. As folhas verdes dessa roseira mística expressam os mistérios gozosos de Jesus e de Maria; os espinhos, os dolorosos; e as flores, os gloriosos. Os botões de rosas são a infância de Jesus e de Maria; as rosas florescentes representam Jesus e Maria nas ocasiões de sofrimento, e as rosas plenamente abertas mostram Jesus e Maria em sua glória e triunfo. A rosa alegra por sua beleza: contemplemos Jesus e Maria nos mistérios gozosos. Ela espeta com seus espinhos: contemplemo-los nos mistérios dolorosos. E ela rejubila pela suavidade de seu perfume: contemplemo-los, por fim, nos mistérios gloriosos. Portanto, não desprezem essa planta feliz e divina. Plantem-na vocês mesmas em suas almas, tomando a firme decisão de recitar o Rosário. Cultivem-na e reguem-na recitando-o fielmente, todos os dias, e fazendo boas obras. Desse modo vocês verão que essa semente que por ora parece tão pequena se tornará, com o passar do tempo, uma árvore frondosa, onde os pássaros do céu – ou seja, as almas predestinadas e enlevadas pela contemplação – farão seus ninhos e suas moradas, para estarem, à sombra de suas folhas, protegidas do calor do sol e, no alto de sua copa, abrigadas dos animais ferozes da terra, e, finalmente, para serem delicadamente nutridas por seu fruto, que não é outro que o adorável Jesus, a quem seja a honra e a glória pelos séculos dos séculos sem fim. Assim seja. Deus somente. 13 BOTÃO DE ROSA (às crianças) 7. Ofereço-lhes, meus filhos, um lindo botão de rosa, que nada mais é do que um dos pequenos grãos[2] de seu terço, que lhes parece tão pouca coisa! Quão precioso é esse grão! Oh! Quão admirável é esse botão de rosa. Oh! Quão grande ele se tornará se vocês recitarem com devoção a Ave-Maria! Talvez seja demais tanto lhes pedir como lhes aconselhar um Rosário por dia! Rezem ao menos um terço todos os dias, com grande devoção; assim, vocês estarão colocando um pequeno chapéu de rosas sobre as cabeças de Jesus e de Maria. Acreditem em mim. Escutem a bela história que já vou lhes contar e guardem-na bem na memória. 8. Duas garotinhas, ambas irmãs, encontravam-se à porta de casa recitando o terço piedosamente. Então lhes apareceu uma linda senhora, que se aproximou da caçula, que não tinha mais do que seis a sete anos, tomou-a pela mão e a levou consigo. A irmã mais velha, bastante espantada, tentou ir atrás dela, mas, sem encontrá-la, voltou aos prantos para casa e contou que sua irmã havia sido levada. O pai e a mãe buscaram em vão pela menina, durante três dias. Ao final do terceiro dia, encontraram-na à porta de casa com um semblante alegre e radiante. Então lhe perguntaram aonde ela tinha ido: a menina respondeu que a senhora para quem ela rezava o terço a havia levado a um lugar muito bonito, tinha-lhe oferecido coisas muito gostosas para comer e colocado em seus braços um lindo menininho em quem ela deu muitos beijos. O pai e a mãe, que eram recém-convertidos à fé, chamaram o reverendo padre jesuíta que os instruíra na fé e na devoção ao Rosário, contando-lhe o que havia acontecido. Foi ele quem nos contou esse caso, que aconteceu no Paraguai.[3] Filhinhos, imitem essas duas garotinhas e, como elas, rezem o terço todos os dias. Desse modo vocês merecerão ir ao paraíso para ver Jesus e Maria, se não durante esta vida, ao menos depois da morte, por toda a eternidade. Assim seja. Que os sábios e os ignorantes, os justos e os pecadores, os pequenos e os grandes louvem e saúdem noite e dia, por intermédio do Santo Rosário, Jesus e Maria: Salutate Mariam, quae multum laboravit in vobis (“Saúdem Maria, que muito trabalhou por vocês”, Rm 16,6). 14 PRIMEIRA DEZENA A excelência do Santo Rosário em sua origem e em seu nome PRIMEIRA ROSA 9. O Rosário consiste de duas coisas, a saber: a oração mental e a oração vocal. A oração mental do Santo Rosário nada mais é do que a meditação dos principais mistérios da vida, da morte e da glória de Jesus Cristo e de sua Santíssima Mãe. A oração vocal do Rosário consiste em recitar quinze[1] dezenas de Ave-Marias, cada uma das quais precedida por um Pai-nosso, meditando e contemplando, nos quinze mistérios do Santo Rosário, as quinze principais virtudes que Jesus e Maria praticaram. No primeiro terço, que é de cinco dezenas, prestam-se homenagem e consideração aos cinco mistérios gozosos; no segundo, os cinco mistérios dolorosos, e no terceiro, os cinco mistérios gloriosos.[2] Assim, o Santo Rosário é uma sagrada composição de oração mental e vocal, com o objetivo de honrar e imitar os mistérios e as virtudes da vida, da Paixão e morte, e das glórias de Jesus e de Maria. 15 SEGUNDA ROSA 10. Constituindo-se, em seu fundamento e em sua substância, da oração de Nosso Senhor Jesus Cristo e da Saudação do anjo à Santíssima Virgem Maria, quais sejam, o Pai-nosso e a Ave-Maria, como também da meditação dos mistérios de Jesus e de Maria, o Santo Rosário é, sem dúvida, a primeira oração e a primeira devoção dos fiéis, que, desde os apóstolos e os primeiros discípulos, esteve em uso através dos séculos até nossos dias.[3] 11. Entretanto, a forma e o método de recitação atual do Santo Rosário foram inspirados à Igreja e sugeridos pela Santíssima Virgem a São Domingos para converter os hereges albigenses[4] e os pecadores no ano de 1214, conforme vou relatar e como referiu Alain de la Roche em seu famoso livro De Dignitate psalterii. São Domingos, constatando que os pecados dos homens representavam obstáculo à conversão dos albigenses, entrou numa floresta próxima a Toulouse, onde passou três dias e três noites em contínua oração e penitência. Ali chorou, gemeu e macerou o próprio corpo de tal maneira com golpes de disciplina, a fim de apaziguar a cólera de Deus, que chegou perto de morrer. A Santíssima Virgem então lhe apareceu, ao lado de três princesas do céu, e lhe disse: – Você sabe, meu querido Domingos, qual a arma da qual a Santíssima Trindade se serviu para reformar o mundo? – Ó Senhora – respondeu –, vós o sabeis melhor do que eu, pois, depois de vosso Filho, vós sois o principal instrumento de nossa salvação. Ela acrescentou: – Saiba que a principal peça de artilharia foi o Saltério angélico, que é o fundamento do Novo Testamento. Por isso, se você quiser conquistar esses corações endurecidos para Deus, pregue meu Saltério. O santo se levantou completamente consolado e, inflamado pelo zelo da salvação dessas almas, entrou na catedral de Toulouse. Imediatamente os sinos tocaram, pela ação dos anjos, para reunir os habitantes, quando, no início da pregação, uma tempestade terrível se abateu; a terra tremeu, o sol escureceu, os raios e trovões contínuos fizeram tremer e gelar toda a assembleia; e o espanto cresceu quando todos viram uma imagem da Santíssima Virgem exposta num lugar de destaque erguer três vezes os braços para o céu em sinal de clamor a Deus por vingança contra eles, caso não se convertessem e não recorressem à proteção da Santíssima Mãe de Deus. Com tais prodígios, o céu quis aumentar a estima pela nova devoção do Santo Rosário e torná-la mais conhecida. A tempestade finalmente cessou com as orações de São Domingos, que deu continuidade a seu discurso e explicou com tamanho fervor e convicção a excelência do Santo Rosário que praticamente todos os habitantes de Toulouse o abraçaram e 16 renunciaram a seus erros, de modo que, em pouco tempo, foi possível presenciar uma grande mudança na vida e nos costumes da cidade. 17 TERCEIRA ROSA 12. Esse modo prodigioso pelo qual o Santo Rosário se estabeleceu, que tem algo a ver com a maneira pela qual Deus revelou sua Lei ao mundo no monte Sinai, mostra claramentea excelência dessa divina prática. Assim, São Domingos, inspirado pelo Espírito Santo, instruído pela Santíssima Virgem e pela própria experiência, difundiu pelo resto de sua vida o Santo Rosário, pelo exemplo e em alta voz, nas cidades e regiões rurais, na presença de grandes e pequenos, sábios e ignorantes, católicos e hereges. O Santo Rosário, que ele recitava diariamente, era sua preparação diante da pregação e seu repouso após a pregação. 13. Num dia de São João Evangelista, estando o santo na catedral de Notre-Dame de Paris, atrás do altar principal, numa capela, a fim de se preparar à pregação com a meditação do Santo Rosário, a Santíssima Virgem lhe apareceu e disse: – Domingos, embora o que você preparou seja bom, receba, não obstante, este sermão bem melhor que lhe trago. São Domingos recebe de suas mãos maternais o livro em que se encontrava esse sermão, o lê, saboreia e compreende, agradecendo à Santíssima Virgem. Chegando o momento de proferir o sermão, ele sobe à cátedra e, depois de fazer o elogio de São João Evangelista, do qual disse ter merecido ser o guardião da Rainha do Céu, dirigiu-se a toda a assembleia dos grandes e dos doutores – os quais estavam mais habituados a não ouvir senão discursos eruditos e especulativos – ali reunidos para escutá-lo, dizendo-lhes que não lhes falaria com as palavras sábias da sabedoria humana, mas na simplicidade e na força do Espírito Santo. Então São Domingos lhes pregou o Santo Rosário e lhes explicou, palavra a palavra, como a crianças, a Saudação angélica, servindo-se das comparações mais simples que havia lido no papel a ele dado pela Santíssima Virgem. 14. A esse respeito, tais foram as palavras do sábio Cartagena, extraídas em parte do livro do bem-aventurado Alain de la Roche De dignitate psalterii: O bem-aventurado Alain afirmou que São Domingos lhe disse um dia numa revelação: – Meu filho, você prega, e isso é bom; mas porque você não deve buscar mais o louvor humano que a salvação das almas, ouça o que me ocorreu em Paris. Eu tinha de pregar na grande igreja dedicada à bem- aventurada Virgem Maria e queria falar de modo engenhoso, não por orgulho, mas em reverência à qualidade elevada dos ouvintes. Enquanto rezava, estando sozinho por cerca de uma hora antes do discurso, recitando o Rosário, fui enlevado em êxtase: vi a Divina Mãe, minha amiga, confiar-me um livreto e dizer-me: “Domingos, por mais bem-feito que tenha sido o seu discurso, trago-lhe outro muito melhor”. Com grande alegria, pego o livro, leio-o do início ao fim e, como ela havia dito, ali encontro tudo de que precisava para pregar. Agradeço a ela de coração. Chegado o momento de pregar, deparo-me com toda a Universidade de Paris e grande número de senhores, que haviam sido testemunhas ou simplesmente informados das maravilhas operadas pelo Senhor por meu intermédio. Subo ao ambão. Era a festa de São João Evangelista, do qual me limitei a dizer que mereceu ser eleito como custódio da Rainha do Céu. Em seguida comecei dizendo assim ao auditório: “Senhores e mestres ilustres, estais habituados a ouvir discursos elegantes e elevados, mas hoje não quero dirigir-vos doutas palavras da 18 sabedoria humana, porém revelar-vos o Espírito de Deus e a sua força”.[5] E então, conforme observa Cartagena, assim como o bem-aventurado Alain, São Domingos explicou-lhes, com comparações e semelhanças familiares, a Saudação angélica. 15. E o bem-aventurado Alain de la Roche, como afirma o mesmo Cartagena, descreve várias outras aparições de Nosso Senhor e da Santíssima Virgem a São Domingos, para encorajá-lo e estimulá-lo cada vez mais na difusão do Santo Rosário, em vista da destruição do pecado e da conversão dos pecadores e hereges. São de Cartagena as seguintes palavras: O bem-aventurado Alain de la Roche conta que a Virgem Maria lhe revelou como seu Filho Jesus apareceu a São Domingos dizendo-lhe: – Domingos, agrada-me constatar que você não se apoia em sua sabedoria pessoal, trabalha com humildade pela salvação das almas e não busca agradar a homens presunçosos. Muitos pregadores, ao contrário, costumam desde o princípio prorromper contra os pecados mais graves, ignorando que, antes de administrar um remédio amargo, deve-se preparar o doente para recebê-lo e aproveitá-lo. Por isso, devem, primeiramente, exortar seus ouvintes a amar a oração e, principalmente, o Saltério angélico. Se todos começarem a rezar assim, sem dúvida a divina clemência será propícia a todos os que perseverarem. Pregue, portanto, o meu Rosário.[6] 16. Cartagena diz ainda: Todos os pregadores, no início de seus discursos, fazem os fiéis recitarem a Saudação angélica para obter o favor divino. Esse hábito provém de uma revelação que a Virgem Santíssima fez a São Domingos: “Meu filho – disse ela –, não se espante se você não tiver êxito em sua pregação: você trabalha um terreno ainda não irrigado pela chuva. Saiba que, quando Deus quis renovar o mundo, mandou primeiro a chuva, ou seja, a Saudação angélica: desse modo o mundo foi reformado. Em suas pregações, exorte, portanto, a recitar o Rosário e você colherá muitos frutos para as almas”. Assim fez sempre São Domingos e isso explica o pleno sucesso de sua pregação.[7] 17. Tive o prazer de transcrever integralmente tais passagens em latim desses bons autores pensando nos pregadores e nas pessoas sábias que poderiam pôr em dúvida a maravilhosa virtude do Santo Rosário. Enquanto, a exemplo de São Domingos, os pregadores anunciavam a devoção do Santo Rosário, a piedade e o fervor floresciam nas ordens religiosas que praticavam essa devoção, assim como em todo o mundo cristão; contudo, a partir do momento em que se passou a descurar esse presente vindo do céu, começou-se a ver somente pecados e desordens por todo lado. 19 QUARTA ROSA 18. Como todas as coisas, mesmo as mais santas, quando particularmente dependem da vontade dos homens, estão sujeitas a mudanças, não é de admirar que a irmandade do Santo Rosário tenha subsistido, em seu primeiro, fervor apenas cem anos após sua fundação. Assim, ela foi praticamente sepultada no esquecimento. A malícia e a inveja do demônio certamente contribuíram para que se negligenciasse o Santo Rosário, de modo a conter o fluxo das graças divinas que essa devoção trazia para o mundo. Com efeito, a justiça divina afligiu todos os reinos da Europa no ano de 1349 com a peste mais terrível que jamais se viu, a qual, do leste, se disseminou pela Itália, Alemanha, França, Polônia, Hungria, cujas terras foram praticamente devastadas por completo, pois, de cem homens, apenas um sobrevivia. As cidades, os burgos, os vilarejos e mosteiros foram inteiramente evacuados durante os três anos de duração do contágio. E a essa praga divina seguiram-se outras duas: a heresia dos flagelantes[8] e um funesto cisma em 1376.[9] 19. Depois que, pela misericórdia divina, essas misérias cessaram, a Santíssima Virgem ordenou ao bem-aventurado Alain de la Roche, célebre doutor e famoso pregador da Ordem de São Domingos do convento de Dinan, na Bretanha, renovar a antiga irmandade do Santo Rosário, a fim de que, pelo fato de essa célebre irmandade ter se originado nessa província, um religioso da mesma província tivesse a honra de restabelecê-la.[10] Esse bem-aventurado padre começou a trabalhar nessa grande obra em 1460, depois que Nosso Senhor Jesus Cristo, como ele mesmo conta, disse-lhe um dia, a partir da santa Hóstia, quando ele celebrava a santa missa, a fim de determiná- lo a pregar o Santo Rosário: – Pois, então – disse-lhe Jesus Cristo –, você está me crucificando de novo? – Como, Senhor? – respondeu o bem-aventurado Alain espantado. – São os pecados que me crucificam – respondeu-lhe Jesus –, e eu preferiria ser crucificado mais uma vez a ver meu Pai ultrajado pelos pecados que você cometeu no passado. E você continua a me crucificar atualmente, pois você tem a ciência e tudo o que é necessário para pregar o Rosário de minha Mãe e, por meio dele, instruir e retirar inúmeras almas do pecado. E, assim, você as salvaria, alémde impedir grandes males; e ao não fazê-lo, você é culpado pelos pecados que eles cometerem. Essas terríveis advertências fizeram o bem-aventurado Alain pregar incessantemente o Rosário. 20. A Santíssima Virgem também lhe disse um dia, para encorajá-lo cada vez mais a pregar o Santo Rosário: – Você foi um grande pecador na juventude, mas eu obtive de meu Filho sua conversão; roguei por você e desejei, se possível fosse, [sofrer] todos os tipos de 20 penas para salvá-lo, pois os pecadores convertidos são minha glória, e para torná-lo digno de pregar por toda parte meu Rosário. Mostrando-lhe os grandes frutos que conseguira produzir entre os povos, mediante essa bela devoção que ele pregava continuamente, São Domingos lhe disse: – Veja o fruto que produzi pela pregação do Santo Rosário. Faça também o mesmo, você e todos os outros que amam a Santíssima Virgem, a fim de atraírem, por meio desse santo exercício do Rosário, todos os povos à verdadeira ciência das virtudes.[11] Eis de modo breve o que a história nos ensina acerca do estabelecimento do Santo Rosário por São Domingos e de sua renovação pelo bem-aventurado Alain de la Roche. 21 QUINTA ROSA 21. Propriamente falando, existe apenas uma espécie de irmandade do Rosário de 150 Ave-Marias. Porém, no que diz respeito ao fervor das diversas pessoas que o praticam, existem três tipos dele, quais sejam: o Rosário comum ou ordinário, o Rosário perpétuo e o Rosário cotidiano. A irmandade do Rosário ordinário exige recitá-lo uma vez por semana somente. A do Rosário perpétuo, apenas uma vez por ano. A do Rosário cotidiano, por sua vez, pede recitá-lo todos os dias, por inteiro, ou seja, 150 Ave-Marias. O fato de deixar de recitar algum desses Rosários não constitui um pecado, nem mesmo venial, pois tal compromisso é voluntário e suplementar. No entanto, não se deve aderir à irmandade quando não se tem a vontade determinada de rezá-lo de acordo com suas diretrizes, sem, contudo, deixar de cumprir as obrigações do Estado. Assim, quando a recitação do Santo Rosário estiver em concorrência com alguma ação à qual o Estado nos impele, deve-se preferir essa ação ao Rosário, por mais santo que ele seja. Quando, durante uma doença, não se pode rezá-lo por completo, nem em parte, sem agravar o mal, não se é obrigado a fazê-lo. Quando, por uma obediência legítima, um esquecimento voluntário ou uma necessidade urgente, não foi possível recitá-lo, não há nenhum pecado, mesmo venial, de modo que não se deixa de participar das graças e méritos dos outros irmãos e irmãs do Santo Rosário, que o recitam pelo mundo. Cristão, se você deixar de rezá-lo inclusive por pura negligência, sem nenhum desprezo formal, mesmo assim não incorrerá em pecado, falando em termos absolutos, mas estará perdendo a participação nas orações, méritos e boas obras da irmandade, e pela sua infidelidade nas coisas pequenas e suplementares, você cairá insensivelmente na infidelidade às coisas grandes e de obrigação essencial, pois qui spernit modica paulatim decidet (“quem despreza o pouco, pouco a pouco cairá”, Eclo 19,1). 22 SEXTA ROSA 22. A partir da época em que São Domingos estabeleceu essa devoção até o ano 1460, quando o bem-aventurado Alain de la Roche, por ordem do céu, a renovou, nós a chamamos Saltério de Jesus e da Santíssima Virgem, pois ela contém 150 Saudações angélicas, assim como o Saltério de Davi contém 150 Salmos; e como os simples e de pouca instrução não podem recitar o Saltério de Davi, encontra-se na recitação do Santo Rosário um fruto igual àquele que se colhe da recitação dos Salmos de Davi, e inclusive ainda mais abundante: 1) Pois o Saltério angélico tem um fruto mais nobre, qual seja: o Verbo encarnado, enquanto o Saltério de Davi nada mais faz do que predizê-lo; 2) Assim como a verdade ultrapassa a figura e o corpo a sombra, assim também o Saltério da Santíssima Virgem ultrapassa o Saltério de Davi, que dele não foi senão a sombra e a figura; 3) Pois a Santíssima Trindade imediatamente constituiu o Saltério da Santíssima Virgem ou o Rosário do Pai-nosso e da Ave-Maria. Eis o que o sábio Cartagena afirma a esse respeito: O ilustríssimo escritor de Aix-la-Chapelle [J. Beyssel] diz em seu livro A coroa de rosa, dedicado ao imperador Maximiliano: “Não se pode sustentar que a saudação mariana seja uma invenção recente, pois, ao contrário, surgiu e se difundiu com a própria Igreja. De fato, nas origens da Igreja os fiéis mais instruídos celebravam os louvores divinos com a tríplice cinquentena dos Salmos de Davi. Entre os simples, que encontravam grande dificuldade no serviço divino, nasceu uma santa emulação... Eles pensaram, e com razão, que no celestial elogio [do Rosário] estão incluídos todos os mistérios divinos dos Salmos, sobretudo porque os Salmos cantavam Aquele que devia vir, enquanto essa [nova] fórmula de oração se dirige Àquele que já veio. Assim, começaram a chamar Saltério de Maria as três cinquentenas de Saudações, antepondo a cada dezena a oração dominical, como haviam visto fazerem aqueles que recitavam os Salmos”.[12] 23. O Saltério ou Rosário da Santíssima Virgem se divide em três terços de cinco dezenas cada, com o objetivo de: 1) honrar as três Pessoas da Santíssima Trindade; 2) honrar a vida, a morte e a glória de Jesus; 3) imitar a Igreja triunfante, auxiliar a Igreja militante e aliviar a Igreja padecente; 4) imitar as três partes dos Salmos, sendo a primeira relativa à via purgativa, a segunda à via iluminativa e a terceira à via unitiva; 5) encher-nos de graças durante a vida, de paz na hora da morte e de glória na eternidade. 23 SÉTIMA ROSA 24. Depois que o bem-aventurado Alain de la Roche renovou essa devoção, a voz do povo, que é a voz de Deus, lhe deu o nome de Rosário, que significa coroa de rosas, de modo que, sempre que rezamos de modo adequado o Rosário, colocamos sobre as cabeças de Jesus e de Maria uma coroa composta de cento e cinquenta e três rosas brancas e de dezesseis rosas vermelhas do paraíso, as quais nunca perderão nem em beleza nem em esplendor. A Santíssima Virgem aprovou e confirmou esse nome de Rosário, revelando a muitos que cada Ave-Maria recitada em sua honra representa uma rosa que a ela se oferece, assim como um Rosário representa uma coroa de rosas. 25. O irmão Alfonso Rodriguez, da Com-panhia de Jesus, recitava o Rosário com tamanho fervor que costumava ver sair de sua boca, a cada Pai-nosso, uma rosa vermelha e, a cada Ave-Maria, uma rosa branca, de igual beleza e agradável odor, diferente apenas na cor. As crônicas de São Francisco contam que um jovem religioso tinha esse louvável costume de dizer todos os dias, antes das refeições, a coroa da Santíssima Virgem. Um dia, sabe-se lá por qual imprevisto, ele deixou de fazê-lo e, tendo tocado o sino do jantar, pediu ao superior a permissão de recitá-lo antes de sentar-se à mesa. Com tal permissão, ele se retirou em seu quarto, mas como estava demorando muito, o superior mandou um coirmão chamá-lo. Esse coirmão o encontrou em seu quarto, envolvido por uma luz celeste, e a Santíssima Virgem com dois anjos junto dele. À medida que ele dizia uma Ave-Maria, uma bela rosa saía de sua boca; os anjos tomavam as rosas, uma depois da outra, e as colocavam sobre a cabeça da Santíssima Virgem, que demonstrava satisfação. Dois outros religiosos enviados para ver o motivo do atraso dos coirmãos também testemunharam esse mistério, e a Santíssima Virgem não desapareceu até que a coroa fosse concluída. O Rosário é, portanto, uma grande coroa e o terço, um pequeno chapéu de flores ou uma pequena coroa de rosas celestes que se coloca sobre a cabeça de Jesus e de Maria. A rosa é a rainha das flores, assim como o Rosário é a rosa e a primeira das devoções. 24 OITAVA ROSA 26. Não é possível expressar como a Santíssima Virgem prefere o Rosário dentre todas as devoções e como ela é magnífica ao recompensar aqueles que se empenham em divulgá-lo, estabelecê-lo e cultivá-lo; ao contrário, como ela é terrível contra aqueles que a ele se opõem. São Domingosnão teve outra ocupação em maior estima durante toda a sua vida do que louvar a Santíssima Virgem, anunciar suas grandezas e encorajar todo o mundo a honrá-la por meio de seu Rosário. Essa poderosa Rainha do céu, por sua vez, não cessou de derramar sobre esse santo bênçãos em abundância, e coroou seus trabalhos com mil prodígios e milagres, de modo que ele jamais pediu a Deus nada que não tivesse alcançado pela intercessão da Santíssima Virgem. E para completar toda uma série de favores, ela o tornou vitorioso contra a heresia albigense, bem como pai e patriarca de uma grande Ordem. 27. Que direi do bem-aventurado Alain de la Roche, reformador dessa devoção? A Santíssima Virgem o honrou várias vezes com sua visita, para instruí-lo acerca dos meios necessários para sua salvação e para tornar-se um bom padre, um perfeito religioso e imitador de Jesus Cristo. Durante as tentações e terríveis perseguições demoníacas, que o reduziam a uma tristeza extrema, beirando ao desespero, ela o consolava, dissipando com sua doce presença todas essas nuvens e trevas. Ela lhe ensinou o método de recitar o Rosário, como também as excelências e os frutos dele. Ela o distinguiu com o glorioso título de seu novo esposo, e como penhor de seu casto afeto, colocou-lhe um anel no dedo e um colar, feito com seus cabelos, no pescoço, além de dar-lhe um Rosário. O abade Tritème, o erudito Cartagena, o sábio Martinho Navarro, entre outros, falam dele com grande louvor. Tendo atraído para a irmandade do Rosário mais de cem mil almas, morreu em Zwolle, na Flandres, em 8 de setembro de 1475. 28. O demônio, invejoso dos grandes frutos que Tomás de São João, célebre pregador do Santo Rosário, produzia por meio dessa prática, causou-lhe, após seus dolorosos maus-tratos, uma persistente e dolorosa enfermidade, em relação à qual os médicos o desenganaram. Certa noite, quando ele já se sentia a ponto de morrer, o demônio apareceu-lhe na forma de uma figura assustadora; mas, elevando diretamente os olhos e o coração para uma imagem da Santíssima Virgem que estava perto de sua cama, gritou com todas as suas forças: – Ajudai-me, socorrei-me, ó minha dulcíssima Mãe! Assim que terminou de dizer essas palavras, a Santíssima Virgem lhe estendeu a mão da sagrada imagem, apertou-lhe o braço dizendo: – Não tenha medo, meu filho Tomás, eis que venho em seu socorro. Levante-se e continue a pregar a devoção de meu Rosário, como você começou. Eu o defenderei 25 de todos os seus inimigos. A essas palavras da Santíssima Virgem, o demônio saiu em debandada. O doente se levantou em perfeita saúde, dando graças a sua boa Mãe com uma torrente de lágrimas, e continuou a pregar o Rosário com êxito extraordinário. 29. A Santíssima Virgem não favorece somente os pregadores do Rosário. Ela recompensa gloriosamente aqueles que, por seu exemplo, atraem outros a essa devoção. Alfonso, rei de León e Galícia, desejando que todos os seus súditos honrassem a Santíssima Virgem através do Rosário, teve a ideia de carregar um grande Rosário consigo, mas sem que ele próprio se obrigasse a recitá-lo. Isso levou todas as pessoas de sua corte a dizê-lo devotamente. O rei adoeceu gravemente, ficando entre a vida e a morte, e quando todos o consideraram morto, foi arrebatado em espírito ao tribunal de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ele viu os demônios que o acusavam de todos os crimes que havia cometido e, estando o Juiz Supremo a ponto de condená-lo às penas eternas, a Santíssima Virgem se apresentou em seu favor diante de seu Filho. Trouxeram então uma balança e, numa das bandejas, foram colocados todos os pecados do rei, ao passo que, na outra, a Santíssima Virgem colocou o grande Rosário que ele havia carregado em sua honra, com todos aqueles que haviam sido recitados mediante seu exemplo, que pesaram mais que todos os seus pecados. Em seguida, olhando-o com um olhar favorável, ela lhe disse: – Obtive de meu Filho, em recompensa pelo pequeno serviço que você me prestou ao carregar o Rosário, o prolongamento de sua vida por mais alguns anos. Empregue- os bem e faça penitência. O rei, então, voltando desse arrebatamento, exclamou: – Ó bem-aventurado Rosário da Santíssima Virgem, pelo qual fui livrado da condenação eterna! Depois de recobrar a saúde, ele passou o resto de seus dias absorto pela devoção do Santo Rosário, recitando-o diariamente. Que os devotos da Santíssima Virgem se esforcem para conquistar, quanto mais puderem, fiéis para a irmandade do Santo Rosário, a exemplo desses santos e desse rei. Eles experimentarão aqui embaixo seus favores e alcançarão a vida eterna: Qui elucidant me vitam aeternam habebunt (“Aqueles que me tornam conhecida terão a vida eterna”, Eclo 24,31). 26 NONA ROSA 30. Vejamos agora quão injusto é impedir o progresso da irmandade do Santo Rosário e quais os castigos com que Deus puniu vários infelizes que a desprezaram e quiseram destruir. Embora a devoção do Santo Rosário tenha sido autorizada pelo céu, por vários prodígios, e aprovada pela Igreja, por diversas bulas papais, não faltam hoje indivíduos ímpios, libertinos e de espírito orgulhoso, que se esforçam ou por difamar a irmandade do Santo Rosário, ou dela afastar os fiéis. É fácil perceber que as línguas dessas pessoas estão infectadas pelo veneno do inferno e que elas agem impulsionadas pelo espírito maligno, pois ninguém pode desacreditar a devoção do Santo Rosário sem condenar aquilo que há de mais piedoso na religião cristã, a saber: a Oração dominical, a Saudação angélica, os mistérios da vida, da morte e da glória de Jesus Cristo e de sua Santíssima Mãe. Essas pessoas de espírito orgulhoso, que não podem suportar o fato de rezarmos o Rosário, com frequência caem, sem perceber, na lógica reprovada dos hereges, que têm horror ao terço e ao Rosário. Consiste em distanciar-se de Deus e da verdadeira piedade a atitude de condenar as irmandades, pois Jesus Cristo nos garante estar presente no meio daqueles que estão reunidos em seu nome. Não é atitude de um bom católico fazer pouco caso de tão grandes indulgências que a Igreja concede às irmandades. De fato, age como inimigo da salvação das almas aqueles que convencem os fiéis a abandonar o Santo Rosário, uma vez que, por meio dele, deixamos para trás o pecado e abraçamos a piedade. São Boaventura disse com razão que aquele que morrer em seu pecado por ter desprezado a Santíssima Virgem será condenado: Qui negligerit illam morietur in peccatis suis (In psalterio suo). Que castigos devem esperar aqueles que desviam os outros de sua devoção? 27 DÉCIMA ROSA 31. Enquanto São Domingos pregava essa devoção em Carcassone,[13] um herege começou a ridicularizar seus milagres e os quinze mistérios do Santo Rosário, impedindo a conversão dos hereges. Para punir esse ímpio, Deus permitiu que quinze mil demônios entrassem em seu corpo, motivo pelo qual seus pais o levaram até o bem-aventurado Pregador, a fim de que o livrasse dos maus espíritos. Domingos se pôs em oração e exortou todos os circunstantes a acompanhá-lo na recitação do Rosário, em voz alta, de modo que, a cada Ave-Maria, a Santíssima Virgem fazia sair cem demônios do corpo desse herege em forma de carvões em brasa. Depois de ter sido libertado, o rapaz abjurou seus erros, se converteu e passou a fazer parte da irmandade do Santo Rosário, com vários outros de seu grupo, também eles comovidos por esse castigo e pela virtude do Rosário. 32. O erudito Cartagena, da Ordem de São Francisco, com outros autores, relata que, no ano de 1482, quando o venerável padre Tiago Sprenger e seus religiosos trabalhavam com grande zelo para restabelecer a devoção e a irmandade do Santo Rosário na cidade de Colônia, dois célebres pregadores, enciumados dos grandes frutos por eles alcançados mediante essa prática, se colocaram a denegri-la em seus sermões. E como eram dotados de talento, e gozavam de boa reputação, conseguiram dissuadir muitas pessoas a aderir a ela. Um deles, para obter melhor êxito em seu pernicioso desígnio, preparou um sermão por escrito, a ser proferidonum dia de domingo. Tendo chegado a hora do sermão e nada do pregador aparecer, foi necessário esperá-lo e, em seguida, procurá-lo, quando, por fim, acabou-se por encontrá-lo morto, sem ter tido o socorro de ninguém. O outro pregador, certo de que tal acidente havia sido de causa natural, resolveu dobrar esforços para suprimir a irmandade do Rosário. Chegando o dia e a hora de seu sermão, Deus o castigou com uma paralisia que lhe tirou os movimentos e a fala. Assim reconheceu sua falta e a de seu companheiro, e recorreu à Santíssima Virgem em seu coração, prometendo-lhe pregar por toda parte o Rosário, com o mesmo zelo que havia empregado para combatê-lo. Para isso, pediu a ela que lhe devolvesse a saúde e a fala, o que a Santíssima Virgem lhe concedeu. Encontrando-se então subitamente curado, ele se levantou como um outro Saulo, de perseguidor transformado em defensor do Rosário. Fez reparação pública de seu erro e pregou com muito empenho e eloquência as maravilhas do Santo Rosário. 33. Não tenho dúvida de que os espíritos arrogantes e críticos deste tempo, ao ler as histórias deste pequeno tratado, as colocarão em dúvida, como sempre fizeram, ainda que eu não tenha feito nada além de transcrevê-las a partir de ótimos autores contemporâneos e, em parte, de um livro recentemente publicado pelo reverendo padre Antonino Thomas, da Ordem dos Frades Pregadores, intitulado A roseira 28 mística. Todos sabemos que existem três tipos de fé a ser prestada aos diferentes relatos. Devemos às histórias divinas uma fé divina; às histórias profanas, que não atentam contra a razão e foram escritas por bons autores, uma fé humana; e às histórias piedosas, narradas por bons autores e de modo algum contrárias à razão, à fé e aos bons costumes, não obstante sejam por vezes extraordinárias, uma fé piedosa. Devo admitir que não é necessário ser nem demasiado crédulo nem demasiado crítico, mas buscar a justa medida em tudo, a fim de encontrar o ponto da verdade e da virtude. Mas também sei que, assim como a caridade crê facilmente em tudo o que não é contrário à fé e aos bons costumes – Caritas omnia credit (“A caridade tudo crê”, 1Cor 13,7) –, também o orgulho leva a negar praticamente todas as histórias bem certificadas, com o pretexto de que não se encontram na Sagrada Escritura. Trata-se de uma armadilha de Satanás, na qual os hereges, que negam a Tradição, caíram, e na qual os críticos de nosso tempo caem, sem se dar conta, não crendo naquilo que não compreendem, ou que não lhes diz respeito, sem qualquer outra razão que não o orgulho e a autossuficiência de seu próprio espírito. 29 SEGUNDA DEZENA A excelência do Santo Rosário nas orações que o compõem DÉCIMA PRIMEIRA ROSA 34. O Credo, ou Símbolo dos Apóstolos, que recitamos com a cruz do Rosário ou do terço, sendo um sagrado resumo e síntese das verdades cristãs, é uma oração de grande mérito, pois a fé é a base, o fundamento e o princípio de todas as virtudes cristãs, de todas as virtudes eternas e de todas as orações que Deus considera agradáveis. Accedentem ad Deum credere oportet (“Quem se aproxima de Deus deve crer”, Hb 11,6). Aquele que se aproxima de Deus pela oração precisa, antes de mais nada, crer, e quanto mais crer, mais fé terá, e mais sua oração terá força e mérito em si mesma, a fim de dar glória a Deus. Não tomarei o tempo de explicar as palavras do Símbolo dos Apóstolos, mas não posso deixar de declarar que estas três palavras: Credo in Deum (“Creio em Deus”), que contêm os atos das três virtudes teologais – a fé, a esperança e a caridade –, têm uma eficácia maravilhosa para santificar a alma e afastar o demônio. Foi com essas palavras que inúmeros santos venceram as tentações, particularmente aquelas que atentam contra a fé, a esperança ou a caridade, seja durante a vida, seja na hora da morte. Tais foram as derradeiras palavras que São Pedro mártir conseguiu escrever com os dedos na areia, quando, tendo a cabeça cortada ao meio por um golpe de sabre que um herege lhe desferiu, estava perto de expirar.[1] 35. Como a fé é a única chave que nos permite entrar em todos os mistérios de Jesus e de Maria contidos no Santo Rosário, é necessário começá-lo recitando o Credo com grande atenção e devoção, e, quanto mais viva e forte for nossa fé, mais méritos terá nosso Rosário. É preciso que essa fé seja viva e inflamada pela caridade, ou seja, para recitar bem o Santo Rosário, é preciso estar na graça de Deus ou em busca dela. É preciso que a fé seja forte e constante, ou seja, não devemos buscar na prática do Santo Rosário somente seu gosto sensível e sua consolação espiritual, de modo que não devemos abandoná-lo quando tivermos uma porção de distrações involuntárias no espírito, um desgosto estranho na alma, um tédio fadigoso e uma indolência quase contínua no corpo. Não são necessários nem gosto sensível, nem consolação, nem suspiros, nem ímpetos, nem lágrimas, nem aplicação contínua da imaginação para recitar bem o Rosário. Bastam a fé pura e a boa intenção. Sola fides sufficit (“Só a fé é suficiente”, do hino Pange língua). 30 DÉCIMA SEGUNDA ROSA 36. O Pai-nosso, ou Oração dominical, recebe sua primeira excelência de seu autor, que não é um homem ou um anjo, mas o Rei dos anjos e dos homens, Jesus Cristo. “Era necessário – afirma São Cipriano – que Aquele que veio nos dar a vida da graça como Salvador nos ensinasse, como Mestre celeste, a maneira de rezar”.[2] A sabedoria do Divino Mestre aparece exatamente na ordem, na doçura, na força e na clareza dessa divina oração que, embora breve, é rica de instrução, inteligível para os simples e repleta de mistérios para os sábios. O Pai-nosso condensa todos os deveres que temos em relação a Deus, os atos de todas as virtudes e os pedidos relativos a todas as nossas necessidades espirituais e corporais. Como afirma Tertuliano, “ele contém a síntese do Evangelho”.[3] Nas palavras de Tomás de Kempis, “ele ultrapassa todos os desejos dos santos e contém, em forma de resumo, todas as doces sentenças dos Salmos e Cânticos”.[4] Ele pede tudo aquilo de que necessitamos; louva a Deus de modo excelente, eleva a alma da terra ao céu e a une estreitamente a Deus. 37. De acordo com São João Crisóstomo, “quem não ora como o Divino Mestre orou e ensinou a orar não é seu discípulo, e Deus Pai não se agrada em ouvir as orações que o espírito humano formou, mas exatamente aquelas que seu Filho nos ensinou”.[5] Devemos recitar a Oração do Senhor com a certeza de que o Pai eterno a atenderá, uma vez que se trata da Oração de seu Filho, que Ele sempre atende, como também pelo fato de nós sermos seus membros. De fato, que pode recusar um Pai tão bom a um pedido tão bem fundamentado e apoiado nos méritos e na recomendação de tão digno Filho? Santo Agostinho assegura que o Pai-nosso bem recitado apaga os pecados veniais. [6] O justo cai sete vezes. A Oração do Senhor contém sete pedidos para remediar tais quedas e pelos quais podemos nos fortalecer contra nossos inimigos. Ela é curta e fácil, a fim de que, como nós somos frágeis e estamos sujeitos a várias misérias, recebamos um socorro imediato ao recitá-la com maior frequência e devoção. 38. Emendem-se, portanto, almas devotas que negligenciam a Oração que o próprio Filho de Deus compôs e que Ele mesmo recomendou a todos os fiéis. Emendem-se vocês que só têm consideração pelas orações compostas pelos homens, como se o homem, mesmo o mais esclarecido, soubesse melhor do que Nosso Senhor Jesus Cristo como devemos orar. Vocês procuram nos livros dos homens o modo de louvar e de rogar a Deus, como se tivessem vergonha de fazer uso daquela que seu Filho nos prescreveu. Vocês estão convencidos de que as orações que estão nos livros são para os sábios e os ricos, e o Rosário não serve senão para as mulheres, para as crianças e para o povo, como se os louvores e as orações que vocês leem fossem mais bonitas e mais agradáveis a Deus do que as que estão contidas na Oração do Senhor. 31 Constitui uma perigosa tentação desgostar-se da Oração que Nosso SenhorJesus Cristo nos ensinou, dando preferência às orações que os homens inventaram. Isso não quer dizer que estejamos desaprovando as orações que os santos compuseram para estimular os fiéis ao louvor de Deus, mas não podemos admitir que eles deem preferência a elas, preterindo a Oração que saiu da boca da Sabedoria encarnada, nem que eles deixem a fonte para correr atrás dos córregos, nem que eles desdenhem a água límpida para beber a água turva. Sim, pois o Rosário, constituído pela Oração do Senhor e pela Saudação angélica, é essa água límpida e perpétua que jorra da fonte da graça, enquanto as outras orações que eles buscam nos livros nada mais são do que pequenos riachos que delas emanam. 39. Podemos chamar feliz aquele que, ao recitar a Oração do Senhor, presta atenção em cada palavra, encontrando nela tudo aquilo de que precisa, tudo o que pode desejar. Ao recitarmos essa admirável oração, em primeiro lugar cativamos o coração de Deus, invocando-o pelo doce nome de Pai. “Pai nosso”, o mais afetuoso de todos os pais, todo-poderoso na criação, admirável em sua conservação, amável em sua Providência, plena e infinitamente bom da Redenção. Deus é nosso Pai, nós somos todos irmãos, o céu é nossa pátria e nossa herança. Isso já não é o bastante para nos inspirar ao mesmo tempo ao amor de Deus, ao amor do próximo e ao desapego de todas as coisas da terra? Amemos, então, esse Pai e digamos-lhe mil e tantas vezes: “Pai nosso que estais nos céus. Vós que encheis o céu e a terra com a imensidão de vossa essência, que estais presente em toda parte; vós que estais nos santos por vossa glória, nos condenados por vossa justiça, nos justos por vossa graça, nos pecadores por vossa paciência que os suporta: fazei que sempre nos lembremos de nossa origem celeste, que sempre vivamos como vossos autênticos filhos; que estejamos sempre voltados unicamente para vós com todo o ardor de nossos desejos”. Santificado seja o vosso nome. O nome do Senhor é santo e temível – disse o rei- profeta – e o céu – segundo Isaías – ressoa os louvores que os serafins não cessam de dar à santidade do Senhor, Deus dos exércitos. Pedimos aqui que toda a terra conheça e adore os atributos desse Deus tão grande e tão santo. Que Ele seja conhecido, amado e adorado pelos pagãos, pelos turcos, pelos judeus, pelos bárbaros e todos os infiéis. Que todos os homens o sirvam e glorifiquem com uma fé viva, uma esperança firme, uma caridade ardente e a renúncia a todos os erros. Em uma palavra: que todos os homens sejam santos, porque Ele é santo. Venha a nós o vosso Reino. Ou seja, que vós reineis em nossas almas mediante vossa graça, durante a vida, a fim de merecermos, depois da morte, reinar convosco em vosso Reino, que é a suprema e eterna felicidade, na qual cremos, a qual esperamos e aguardamos. Felicidade essa que nos foi prometida pela bondade do Pai, 32 que nos foi adquirida pelos méritos do Filho e que nos é revelada pelas luzes do Espírito Santo. Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu. Sem dúvida, nada pode subtrair-se às disposições da Providência divina, que tudo previu; tudo estabeleceu, mesmo antes que acontecesse. Nenhum obstáculo a desvirtua do fim que ela definiu. E o fato de pedirmos a Deus que sua vontade seja feita não quer dizer, como afirmou Tertuliano, que tenhamos algum receio de que alguém se oponha de modo eficaz à execução de seus desígnios, mas que acolhemos humildemente tudo o que Ele agradou-se em ordenar a nosso respeito. Que possamos cumprir, sempre e em todas as coisas, sua santíssima vontade – que conhecemos por intermédio de seus mandamentos – com a mesma disposição, amor e constância que os anjos e os bem- aventurados a cumprem no céu. 40. O Pão nosso de cada dia nos dai hoje. Jesus Cristo nos ensina a pedir a Deus tudo o que é necessário para a vida do corpo e para a vida da alma. Por meio dessas palavras da Oração dominical, fazemos a humilde confissão de nossa miséria e prestamos homenagem à Providência, declarando que cremos e queremos receber de sua bondade todos os bens temporais. Sob o nome de pão, pedimos tudo o que é simplesmente necessário à vida, excluindo o que seja supérfluo. Pedimos esse pão hoje, ou seja, limitamos ao dia presente todas as nossas preocupações, confiando-nos à Providência para o dia de amanhã. Pedimos o pão de cada dia, confessando assim nossas necessidades que vêm e que vão a todo instante, e mostrando nossa dependência contínua da proteção e do socorro de Deus. Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido. Nossos pecados – diziam Tertuliano e Santo Agostinho – constituem dívidas que contraímos de Deus, e sua justiça exige o pagamento delas até o último centavo. Ora, nós todos temos essas tristes dívidas. Apesar do número de nossas iniquidades, aproximemo-nos então dele com confiança e digamos a Ele com arrependimento sincero: “Pai Nosso que estais nos céus, perdoai-nos os pecados de nosso coração e de nossa boca, os pecados de ação e de omissão, que nos tornam infinitamente culpados aos olhos de vossa justiça, pois, na qualidade de filhos de um pai tão clemente e misericordioso, nós perdoamos por obediência e por caridade àqueles que nos ofenderam. E não nos deixeis – por causa de nossa infidelidade a vossas graças – cair nas tentações do mundo, do demônio e da carne. Mas livrai-nos do mal, que é o pecado, do mal da pena temporal e da pena eterna, por nós merecidas. Assim seja. Palavra de grande consolação, que é, segundo São Jerônimo, como que o selo que Deus põe no final de nossos pedidos, para nos garantir que foram atendidos, como se Ele mesmo nos respondesse: “Amém! Seja feito conforme você 33 pediu; você obteve isso de verdade, pois é o que significa essa palavra: Amém!”. 34 DÉCIMA TERCEIRA ROSA 41. Nós honramos as perfeições de Deus ao recitar cada palavra da Oração dominical. Honramos sua fecundidade com o nome de Pai, que engendra desde toda a eternidade um Filho que é Deus como vós,[7] eterno, consubstancial, que é uma mesma essência, uma mesma potência, uma mesma bondade, uma mesma sabedoria convosco, Pai e Filho, que, amando-vos mutuamente, produzis o Espírito Santo, que é Deus como vós: Três Pessoas dignas de adoração, que sois um só Deus. Pai Nosso! Ou seja, Pai dos homens pela criação, pela conservação e pela redenção, Pai misericordioso dos pecadores, Pai amigo dos justos, Pai magnífico dos bem- aventurados. Que sois. Mediante tais palavras, admiramos a infinitude, a grandeza e a plenitude da essência de Deus, que se chama verdadeiramente Aquele que é, ou seja, Aquele que existe essencialmente, necessariamente e eternamente, que é o Ser dos seres, a causa de todos os seres; que contém eminentemente em si mesmo as perfeições de todos os seres; que está em todos – sem ficar preso – por sua essência, por sua presença e por sua potência. Com estas palavras, honramos sua sublimidade, sua glória e majestade: “Que estais nos céus”, ou seja, sentado como em vosso[8] trono, exercendo vossa justiça sobre todos os homens. Adoramos sua santidade ao desejar que seu nome seja santificado. Reconhecemos sua soberania e a justiça de suas leis ao desejar que seu Reino venha a nós, e que os homens lhe obedeçam na terra, assim como os anjos lhe obedecem no céu. Cremos em sua Providência ao pedir-lhe que nos dê o pão nosso de cada dia. Invocamos sua clemência ao pedir-lhe a remissão de nossos pecados. Recorremos a sua potência ao pedir-lhe que não nos deixe cair em tentação. Confiamo-nos a sua bondade, esperando que Ele nos liberte do mal. O Filho de Deus sempre glorificou seu Pai com suas obras. Ele veio ao mundo para levar os homens a glorificá-lo, ensinando-lhes a maneira de honrá-lo, mediante essa oração que Ele mesmo dignou-se ditar para nós. Portanto, devemos recitá-la sempre, com atenção e no mesmo espírito com que Ele a compôs. 35 DÉCIMA QUARTA ROSA 42. Ao recitar atentamente essa divina Oração, cumprimos tantos atos das mais nobres virtudes cristãs quantas são as palavras que pronunciamos.Ao dizer Pai nosso que estais nos céus, realizamos atos de fé, de adoração e de humildade. Ao desejar que seu nome seja santificado e glorificado, manifestamos um zelo ardente por sua glória. Ao pedir-lhe a posse de seu Reino, realizamos um ato de esperança. Ao desejar que sua vontade seja feita tanto na terra como no céu, demonstramos um espírito de perfeita obediência. Ao pedir-lhe o pão nosso de cada dia, praticamos a pobreza de espírito e o desapego dos bens terrenos. Ao pedir-lhe o perdão de nossos pecados, cumprimos um ato de arrependimento. E quando perdoamos àqueles que nos ofenderam, exercemos a misericórdia em seu mais alto grau de perfeição. Quando lhe gritamos por socorro nas tentações, colocamos em prática atos de humildade, de prudência e de força. Ao esperar que Ele nos livre do mal, exercitamos a paciência. Enfim, ao pedir todas essas coisas, não somente para nós, mas também para nosso próximo e para todos os membros da Igreja, estamos fazendo o dever dos verdadeiros filhos de Deus, imitando-o em sua caridade, que abraça todos os homens, e cumprindo o mandamento do amor ao próximo. 43. Detestamos todos os pecados e estamos observando todos os mandamentos de Deus quando, ao recitar essa Oração, nosso coração concorda com nossa língua, e quando não temos nenhuma intenção divergente do sentido dessas divinas palavras. Pois, quando fazemos a reflexão de que Deus está no céu, ou seja, infinitamente elevado acima de nós pela grandeza de sua majestade, entramos em sua presença com os sentimentos do mais profundo respeito; completamente tomados pelo temor, apartamo-nos do orgulho e nos abaixamos até o nada. Quando, ao pronunciar o nome de Pai, nos lembramos de que recebemos nossa existência de Deus, por intermédio de nossos pais, e mesmo nossa instrução, por meio de nossos professores, que nesse caso ocupam o lugar de Deus, de quem são as imagens vivas, sentimo-nos obrigados a honrá-los ou, melhor dizendo, honrar a Deus nas pessoas deles, evitando, de qualquer maneira, desprezá-los e afligi-los. Ao desejarmos que o santo Nome de Deus seja glorificado, estamos bem longe de profaná-lo. Quando olhamos o Reino de Deus como nossa herança, estamos renunciando a todo apego aos bens deste mundo; quando pedimos sinceramente por nosso próximo, os mesmos bens que desejamos para nós mesmos, estamos renunciando ao ódio, à briga e à inveja. Ao pedir a Deus nosso pão de cada dia, estamos manifestando nossa aversão à gulodice e à luxúria, que se nutrem da abundância. Ao pedir a Deus que verdadeiramente nos perdoe, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido, estamos reprimindo nossa cólera e nossa vingança, pagando o mal com o bem e amando nossos inimigos. Ao pedir a Deus que 36 não nos deixe cair no pecado no momento da tentação, demonstramos estar fugindo da preguiça, procurando os meios de combater os vícios e trabalhando pela nossa salvação. Ao pedir a Deus que nos livre do mal, estamos dando provas de que tememos sua justiça e somos felizes, pois o temor a Deus é o começo da sabedoria: é pelo temor a Deus que se evita o pecado. 37 DÉCIMA QUINTA ROSA 44. A Saudação angélica é tão sublime, tão elevada, que o bem-aventurado Alain de la Roche acreditava que nenhuma criatura é capaz de compreendê-la, mas somente Jesus Cristo, nascido da Virgem Maria, pode explicá-la. Sua excelência se deve, principalmente, à Virgem Maria (a quem ela foi dirigida), à finalidade da Encarnação do Verbo (pela qual ela foi trazida do céu) e ao anjo Gabriel (que a pronunciou primeiro). A Saudação angélica resume, na síntese mais concisa que poderia existir, toda a teologia cristã sobre a Santíssima Virgem Maria. Nela encontramos um louvor e uma invocação. O louvor compreende tudo aquilo que constitui a verdadeira grandeza de Maria. A invocação compreende tudo aquilo que devemos lhe pedir, e que podemos esperar de sua bondade para nós. A Santíssima Trindade revelou a primeira parte dessa oração. Santa Isabel, iluminada pelo Espírito Santo, acrescentou-lhe a segunda. E a Igreja, no Primeiro Concílio de Éfeso, ocorrido em 430, inseriu a conclusão, depois de ter condenado o erro de Nestório[9] e definido que a Santíssima Virgem é verdadeiramente a Mãe de Deus. O Concílio ordenou que se passasse a invocar a Virgem Santíssima com a gloriosa qualidade destas palavras: Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte. 45. A Santíssima Virgem foi aquela a quem essa divina Saudação foi apresentada com o objetivo de concluir o maior e o mais importante projeto do mundo: a Encarnação do Verbo Eterno, a paz entre Deus e os homens, e a redenção do gênero humano. O embaixador dessa feliz notícia foi o arcanjo Gabriel, um dos primeiros príncipes da corte celeste. A Saudação angélica contém a fé e a esperança dos patriarcas, dos profetas e dos apóstolos. Ela é a constância e a força dos mártires; a ciência dos doutores, a perseverança dos confessores e a vida dos religiosos (bem- aventurado Alain). Ela é o cântico novo da Lei da graça, a alegria dos anjos e dos homens, o terror e a confusão dos demônios. Mediante a Saudação angélica, Deus se fez homem, uma Virgem se tornou Mãe de Deus, as almas dos justos foram livradas do limbo, as ruínas do céu foram reparadas e os tronos vazios foram preenchidos, o pecado foi perdoado, a graça foi-nos dada, os doentes foram curados, os mortos ressuscitados, os exilados chamados, a Santíssima Trindade foi apaziguada e os homens obtiveram a vida eterna. Enfim, a Saudação angélica é o arco-íris, o sinal da clemência e da graça que Deus concedeu ao mundo (bem-aventurado Alain). 38 DÉCIMA SEXTA ROSA 46. Embora não haja nada tão grande quanto a majestade divina, nem nada tão abjeto quanto o homem considerado como pecador, essa suprema majestade não desdenha nossas homenagens, sendo adorada quando cantamos seus louvores. E a Saudação do anjo é um dos mais belos cânticos que podemos dirigir à glória do Altíssimo: Canticum novum cantabo tibi (“Ó Deus, cantarei para ti um canto novo”, Sl 144,9). Esse canto novo que Davi predisse que se cantaria quando da vinda do Messias é a Saudação do arcanjo. Há um cântico antigo e um cântico novo. O antigo é aquele que os israelitas cantaram em agradecimento pela criação e sua conservação, pela libertação do cativeiro, pela passagem através do mar Vermelho, pelo maná e todos os outros favores do céu. O cântico novo é aquele que os cristãos cantam em ação de graças pela Encarnação e pela Redenção. Como esses prodígios foram realizados mediante a Saudação do anjo, repetimos essa mesma saudação para agradecer a Santíssima Trindade por seus benefícios inestimáveis. Louvamos Deus Pai por ter tanto amado o mundo que lhe deu seu Filho único para o salvar. Bendizemos o Filho por ter descido do céu à terra, por ter-se feito homem e por nos ter resgatado. Glorificamos o Espírito Santo por ter formado no seio da Santíssima Virgem esse corpo tão puro, que foi a vítima por nossos pecados. É nesse espírito de reconhecimento que devemos recitar a Saudação do anjo, produzindo atos de fé, esperança, amor e ações de graças pela grande obra de nossa salvação. 47. Embora o cântico novo se dirija diretamente à Mãe de Deus e contenha elogios a ela, ele não deixa de exaltar a glória da Santíssima Trindade, pois toda a honra que rendemos à Santíssima Virgem volta a Deus como a causa de todas as suas perfeições e de todas as suas virtudes. Deus Pai é glorificado quando honramos a mais perfeita de suas criaturas. O Filho é glorificado quando louvamos sua puríssima Mãe. O Espírito Santo é glorificado quando admiramos as graças de que ele cumulou sua Esposa. Assim como a Santíssima Virgem, com seu belíssimo cântico do Magnificat, elevou a Deus os louvores e as bênçãos que lhe haviam sido dados por Santa Isabel, em reverência a sua eminente dignidade de Mãe do Senhor, assim também ela remete prontamente a Deus os elogios e as bênçãos que nós lhe dirigimos pela Saudação do anjo. 48. Se a Saudação do anjo glorifica a San-tíssima Trindade, ela também