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Posse e Usucapião (2)

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POSSE E USUCAPIÃO
Nos termos do art.º 1207.º CCiv. a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião. Como efeito de charneira derivado da posse temos, então, a usucapião como fonte de aquisição originária de direitos reais. Ela cuida da reintegração da coisa na ordenação dominial definitiva pela convolação do exercício da posse nos termos do direito real sob cujos limites se possui, contanto que mantida por certo período de tempo. O mesmo é dizer, em suma, que a posse reiterada atribui direitos reais. 
Falar de usucapião, para mais arreigados à fantasmagórica facilidade derivada do art.º 1207.º CCiv., exige o estudo aprofundado dos seus requisitos. Além dos que se relacionam com o tempo de duração da posse, há que ter em linha de conta as suas características, a própria especialidade da capacidade exigida para usucapir, e sem esquecer, é claro, o regime de invocação pelo interessado na articulação com as regras da interrupção e suspensão dos seus prazos. A todos vamos de imediato.
1.1. Direitos reais que se podem adquirir por usucapião
A lei é clara e delimita os direitos reais que podem ser adquiridos por usucapião: só o direito de propriedade e os direitos reais de gozo podem ser adquiridos por usucapião (art.º 1208.º CCiv.), diz ela. Abrem-se, como em todos os domínios do direito, excepções, direitos reais de gozo que, com os de garantia e aquisição, não podem ser adquiridos por usucapião e a que se refere o art.º 1213.º CCiv.:
· Não podem então ser adquiridas por usucapião (de imóveis) as servidões legais não aparentes (cjg. Art.º 1438.º CCiv.). Compreende-se a razão desta exclusão, com alicerces na forma de expressão do direito, isolada da mundividência pelo carácter oculto que não permite àquele contra quem são exercidas obter a consciência de uma posse que colida com o máximo aproveitamento que a propriedade e o gozo, fruição e uso lhe deveriam atribuir;
· Os direitos reais de uso e habitação, o que se justifica na sua natureza intuitus personae, pois a sua dimensão de natureza pessoal só faculta a aquisição perante a pessoa perante quem são constituídos e nunca perante terceiros que não os reais titulares.
1.2. Objecto dos direitos reais susceptíveis de usucapião
Tanto as coisas móveis como as coisas imóveis se dão à aquisição de direitos pela usucapião. O binómio usucapião de imóveis (art.º 1213.º ss CCiv.) vs usucapião de móveis (art.º 1218.º ss CCiv.), de ditame legal, não deixa dúvidas a esse respeito. 
Discutir-se-á, numa e noutra, as especiais restrições ou regras particulares quanto aos prazos por que o exercício da posse, em função dos seus caracteres, permitirá a usucapião de acordo com os prazos, que diverge, quando falamos de bens de uma ou outra classificação. Sem ainda cair nessa análise, lembre-se só as coisas insusceptíveis de aquisição por usucapião. Reconduzem-se à esfera dos bens do domínio público do Estado, por impossibilidade de incidência de direitos privados nos termos dos art.ºs 193.º e 1322.º e 1324.º CCiv. 
1.3. Usucapião e mera detenção
O art.º 1210.º CCiv., e bem, retira aos possuidores precários ou meros detentores a possibilidade de aquisição de direitos pela usucapião. Compreende-se a norma, ou não fosse a usucapião consequência da posse, precisamente o que ali - na detenção - não existe. A inversão do título da posse, pelo detentor ou através de terceiro, como factor aquisitivo da posse (cfr. art.º 1183.º.d) e 1185.º CCiv), poderá já permiti-la, embora os prazos da usucapião só iniciem a sua contagem depois do momento em que ela ocorrer. Mais do que se aceitar, tem-se por justa a solução que não ficciona como posse o que nunca o foi.
1.4. Usucapião e caracteres da posse
Nem toda a posse é boa para usucapião, patenteia a doutrina através de um emblemático adágio. Através dele quer-se referir a insusceptibilidade da posse violenta ou oculta para fundarem a usucapião, à conta do que desses caracteres da posse advém e diz respeito à dilação da contagem dos prazos daquela nos termos do art.º 1217.º CCiv. Repetem-se as afirmações de regime dadas no capítulo dos caracteres da posse, aqui só se repisando com a fundamentação desta solução. Com efeito, enquanto a posse é exercida com violência ou sem publicidade o titular do direito ofendido não pode reagir contra ela, socorrendo-se porventura dos paliativos da tutela possessória, seja porque não a conhece, seja porque sofre uma contrição intelectual ou física. 
Contudo, o art.º 1220.º.2 do CCiv. é norma especial e no campo da usucapião de bens móveis funda uma solução muito particular para os casos em que a coisa, objecto de posse oculta e violenta, tiver passado para um terceiro de boa-fé. A lei, ao contrário do que se esperaria por a posse não contar o seu prazo sob essas características, confere-lhe tutela jurídica, embora limitada, mas sem dúvidas permitindo a usucapião. A lei optou, para aqui, pela fixação de um prazo de quatro ou sete anos desde a aquisição, consoante ela seja ou não titulada. Observe-se apenas que esta usucapião de bens móveis por terceiro de boa-fé que adquira e continue uma posse oculta ou violenta não valerá para os bens móveis sujeitos a registo, sob o risco de encurtamento dos prazos, mais latos, que para estes a lei prevê no art.º 1218.º.b) CCiv. (10 anos). 
1.5. Capacidade para adquirir por usucapião
Vale o art.º 1209.º CCiv., donde ressalta a mera capacidade de gozo do direito real respectivo como critério de aquisição. Prescinde-se mesmo do uso da razão que condiciona a aquisição da posse (art.º 1186.º CCiv.), permitindo-se que até os incapazes adquiram por usucapião, por si ou através dos seus representantes legais.
1.6. A usucapião e o decurso do tempo: as regras da suspensão e interrupção da prescrição
A usucapião é resultado inelutável de uma posse reiterada, isto é, mantida por certo lapso de tempo (art.º 1207.º CCiv.). Sem que seja o único critério por que a usucapião se afirma, é indiscutível que ele, o tempo da posse, nela é requisito essencial. Autonomizam-se aqui dois regimes, um respeitante a coisas imóveis e outro a coisas móveis, subdividindo-se este último na vicissitude da coisa móvel estar ou não sujeita a registo. Os prazos, dentro dessas características ligadas à própria natureza do bem, divergirão ainda dentro dos caracteres da própria posse, mostrando-se latente uma dissemelhança de resultados quando a posse é de boa ou de má-fé, registada ou não e, por maioria de razão, titulada.
Tentemos, ainda que só esquematicamente, expressar o regime legal de prazos da aquisição de direitos por via da usucapião. Deve ter-se presente, em linha com o art.º 1217.º CCiv., que a posse e os prazos de que aqui falamos têm como baluarte o pressuposto de que ela é pacífica e pública, sem o que não poderíamos falar por os prazos não correrem nesse período: 
Estes prazos, todavia, têm de ser vistos na íntima ligação que têm com o art.º 1212.º CCiv. quando daqui resulta a aplicação, à usucapião, das normas relativas à suspensão (311.º ss CCiv.) e interrupção da prescrição (314.º ss CCiv.). Vimos atrás, parcialmente, o seu regime nos capítulos da invocação, dos efeitos e até da renúncia. O tempo, agora, mede-se pelos seus regimes de suspensão e interrupção de prazo: 
1.6.1. Suspensão do prazo (art.ºs 309.º ss CCiv.)
Verificada a causa de suspensão do prazo para usucapir, ele paralisa-se, sem se contar por todo o tempo por que durar, recontando-se onde parou logo que termine. Fala-se a propósito de três diversos tipos de suspensão:
· De início: as causas que determinam a suspensão verificam-se desde o início e ocorrem em simultâneo com a posse. É a hipótese, logo, do art.º 309.º b) CCiv.,onde o casamento entre possuidor e proprietário suspende o prazo para usucapir durante o tempo por que aquele durar se os lugares de possuidor e proprietário coincidirem de início. O prazo,como dito, suspende-se de início.
· De curso: as causas da suspensão verificam-se no exercício da posse, como também sugere o art.º 309.b) CCiv. e a sugestiva expressão legal nem corre, o que bloqueia o curso do prazo; 
· De termo: as causas de suspensão verificam-se no termo, já, do prazo da usucapião, que só não se venceu por não estar cumprida certa exigência da lei. P. ex., no art.º 311.º.1 CCiv., a previsão normativa “sem ter decorrido um ano“ evidencia este acréscimo de prazo de suspensão.
Com assaz relevo, a suspensão a favor de menores e a favor de interditos e inabilitados entroncam agora no nosso estudo pela maior frequência da sua verificação prática. 
→ Interrupção a favor de menores (art.º 311.º.1 CCiv.):
O menor, se não tiver representante legal, revela-se incapaz, circunstância que é impeditiva do início do prazo da usucapião. Adquirindo o menor representante legal, pensar-se-ia que a suspensão cessaria de imediato pelo início do decurso do prazo da usucapião. Ele começa efectivamente a correr, embora a usucapião não possa produzir efeitos, mesmo que o prazo dela já esteja vencido, até que decorra um ano desde que o menor atingiu a maioridade, prazo que a lei lhe concede para defender os seus direitos se o representante, relapso, não o tiver feito. Esta suspensão, na linha do que classificamos antes, é uma suspensão de termo, pois embora o prazo da usucapião já esteja terminado, acresce agora uma última exigência temporal, o decurso de um ano desde a aquisição da maioridade. 
Exemplo: Na posse de má - fé não titulada, o seu decurso por 22 anos contra um proprietário que vem a morrer e a deixar como herdeiro o filho menor com 14 anos e com representante legal, significará a necessidade da contagem de três anos de posse, até que aquela perfaça 25 anos, com mais um, o correspondente à sua maioridade, para que a usucapião possa ocorrer.
→ Interrupção a favor de interditos e inabilitados (art.º 311.º.3 CCiv.):
Prevista no n.º 3 do art.º 311.º CCiv., determina a suspensão dos prazos da usucapião pelo intervalo de tempo por que o incapaz ou interdito aguarda quem o represente, mantendo-se o paliativo do prazo de um ano, aqui após a designação do representante, bem como no tempo máximo de três anos por que a suspensão pode quando a interdição ou a inabilitação não seja levantada. Ou seja, ficciona-se o termo da incapacidade ao fim de três anos desde a declaração, soma-se o ano referido no art.º 311.º.1 e só ao fim de quatro é que a usucapião pode produzir os seus efeitos. P. ex., se faltam dois anos para a posse permitir a aquisição de direitos por usucapião, e aquele contra quem a posse é exercida for declarado interdito, sem ninguém que o represente, passar-se-ão três anos de suspensão com outro de ficção legal - quatro, no total - até que aqueloutros dois anos de posse para usucapião possam contabilizar-se.
1.6.2. Interrupção do prazo
Determinada pelas causas legais por que pode interromper-se o prazo para usucapir, tem-se ele por inutilizado, com a contagem de um novo logo que aquelas ocorrem (art.º 314.º ss CCiv.). Hipótese comum é a da interrupção advir da citação ou notificação judicial por que alguém, directa ou indirectamente, exprime a intenção de exercer o seu direito. 
1.7. A invocação da usucapião
Para operar, a usucapião carece de invocação. Sabíamo-lo do art.º 1208.º CCiv., acrescenta-o a remissão do art.º 1212.º CCiv. para as regras da prescrição, maxime para o art.º 294.º CCiv - O tribunal não pode suprir, de ofício, a prescrição; esta necessita, para ser eficaz, de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita, pelo seu representante ou, tratando-se de incapaz, pelo Ministério Público. Além destes, têm legitimidade para invocar a prescrição os credores do interessado e outros terceiros com interesse na sua declaração, ainda que o devedor a ela tenha renunciado (art.º 296.º CCiv.). Contudo, na hipótese desta renúncia, para que os credores possam invocá-la têm de se observar os requisitos da impugnação pauliana. 
A necessidade de invocação revela a natureza facultativa da usucapião: o possuidor só beneficiará, querendo, da tutela definitiva do direito possuído. Contudo, mercê das refracções que a usucapião tem e justificam a tutela de terceiros, vejamos um ponto muito especial nesta matéria: a renúncia à prescrição, prevista no art.º 293.º CCiv., aqui aplicável fruto da remissão do art.º 1212.º CCiv. Ela só será válida se for efectuada depois de decorrido o respectivo prazo e, para ser válida, tem de provir de quem se podia aproveitar dela e tinha disponibilidade para a invocar. 
	
1.8. Efeitos da usucapião
A posse reiterada de um bem permite a aquisição do direito em termos do qual é exercida. A definição, pertencente ao art.º 1207.º CCiv., dá de palmatória o efeito da usucapião: a aquisição de direitos reais através da posse. Complementa esse efeito o art.º 1208.º do CCiv. ao dizer que ela, uma vez invocada com sucesso, retroage os seus efeitos à data do início da posse, do mesmo jeito com que o art.º 1238.º.c) do mesmo CCiv. postula a assimilação do momento da aquisição da propriedade por usucapião com o início da posse. 
Isto significa que a aquisição da propriedade é originária, com o direito a nascer ex novo na esfera do usucapiente, depurado de quaisquer direitos e ónus que antes contivesse. Na colisão com direitos reais limitadores do anterior direito, portanto, eles extinguir-se-ão se o conteúdo da posse exercida lhes traduzisse uma oposição. P. ex., pense-se no exercício de uma posse correspondente à propriedade, exercida num prédio onerado com uma servidão de passagem. Se o possuidor exercia a sua posse com oposição àquela, ela cairá com a aquisição originária, assim não acontecendo se, quando a exercia, tolerava essoutro direito real. No art.º 1464.º CCiv. a usucapio libertatis traduz esta precisa solução ao impedir a liberdade do prédio por usucapião de houver oposição do proprietário. 
USUCAPIÃO DE BENS IMÓVEIS
ART.ºS 1213.º - 1217.º CCIV.
Posse titulada e registada 
Art.º 1214.º CCiv.
Boa-fé: 10 anos desde a data do registo (al.a)
Má-fé: 15 anos desde a data do registo (al. b)
Mero registo da posse Art.º 1215.º CCiv.
Boa-fé: 5 anos continuados depois do registo (al. a)
USUCAPIÃO DE BENS MÓVEIS
1218.º A 1221.º CCIV.
Sujeitos a registo
Art.º 1218.º CCiv.
Não sujeitos a registo
Art.º 1219.º CCiv.
Má-fé: 10 anos de posse continuada depois do registo (al.b)
Posse não titulada nem registada 
Art.º 1216.º CCiv.
Boa-fé: 20 anos
Má-fé: 25 anos
Havendo título de aquisição e registo (al. a)
Sem registo da posse (al. b)
2 anos se a posse for de boa-fé
4 anos se a posse for de má-fe
10 anos, indepententemente do registo e da posse ser de boa ou má-fé 
Se a posse for titulada e de boa - fé
Nos restantes casos, independentemente da posse ser de má-fé e não titulada
3 anos
6 anos

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