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1. 27. Do sintoma à síndrome TRANSFUNDO OU ANCORAGEM DAS VIVÊNCIAS PSICOPATOLÓGICAS E SINTOMAS EMERGENTES Desenvolvendo o modelo sugerido inicialmente por Karl Jaspers e Kurt Schneider, o psicopatólogo alemão Hans Jörg Weitbrecht (1909-1975) propõe ordenar as vivências psicopatológicas em duas perspectivas fundamentais. De um lado, têm-se os transfundos ou ancoragens das vivências psicopatológicas, espécie de palco, de contexto mais geral. Nesses transfundos surgem, por outro lado, os chamados sintomas específicos ou emergentes, aqueles que ocorrem e se desenvolvem de forma perceptível e delimitável (Weitbrecht, 1978). Esses sintomas específicos ou emergentes são, portanto, vivências pontuais, que ocorrem sempre sobre determinado transfundo. Esse transfundo ou ancoragem, por sua vez, influencia de modo marcante o sentido, a direção, a qualidade específica do sintoma emergente. Há uma relação dialética entre o sintoma emergente e o transfundo, entre a figura e o fundo, a parte e o todo, o pontual e o contextual. Nesse modelo, discriminam-se dois tipos básicos de transfundos: os estáveis e duradouros (personalidade e inteligência) e os mutáveis e momentâneos (nível de consciência e atenção; humor e estado afetivo de fundo): Os transfundos estáveis, pouco mutáveis, são representados basicamente pela personalidade e a inteligência. Qualquer experiência (alucinação, delírio, afeto, entre outras) ganha conotação diferente a partir da personalidade específica do indivíduo que a vivencia. Pacientes passivos, dependentes, “sem energia” e “astênicos” tendem a vivenciar os sintomas de modo também passivo; já indivíduos hipersensíveis, explosivos, muito reativos a diferentes estímulos, tendem a responder aos sintomas de forma mais viva e ampla, e assim por diante. A inteligência é o outro transfundo estável. Ela determina essencialmente os contornos, a diferenciação, a profundidade e a riqueza de todos os sintomas psicopatológicos. Pacientes 2. muito inteligentes produzem, por exemplo, delírios ricos e complexos, interpretam constantemente suas vivências e desenvolvem as dimensões conceituais dessas experiências de forma mais acabada. Sujeitos com inteligência reduzida criam quadros psicopatológicos indiscriminados, com menos detalhes, superficiais e, às vezes, pueris. Os transfundos mutáveis e momentâneos são representados pelo nível de consciência e atenção e pelo humor e estado afetivo de fundo. Eles atuam decisivamente na determinação da qualidade e no sentido do conjunto das vivências psicopatológicas. O nível de consciência e a atenção estabelecem a clareza, a precisão e a nitidez dos sintomas emergentes. Sob o estado de turvação da consciência, alucinações auditivas ou visuais, recordações, sentimentos, são experimentados em uma atmosfera nebulosa, menos clara e até confusa. O humor e o estado afetivo de fundo, momentâneos e passageiros, influem decisivamente não apenas no desencadeamento de sintomas (os chamados sintomas catatímicos), mas também no colorido e no brilho específico do sintoma. Uma lembrança, uma alucinação, um delírio, em um contexto ansioso ou irritado intenso, pode ganhar dimensões muito próprias. Em um estado depressivo grave, quaisquer dificuldade cognitiva, lembrança ou pensamento recorrente passam a ter uma importância enorme para o sujeito. Os chamados sintomas emergentes ou específicos são, portanto, todas as vivências psicopatológicas mais destacadas, individualizáveis, que o paciente experimenta, vivências de todos os capítulos da psicopatologia geral. Incluem as esferas que, diferentemente dos transfundos e das ancoragens, são elementos precisos, mais circunscritos, como uma alucinação (sensopercepção), um sentimento determinado (afetividade), um delírio (juízo), um pensamento obsessivo (pensamento), uma paramnésia (memória), uma alteração da linguagem ou da vontade. COMPONENTES DO SURGIMENTO, CONSTITUIÇÃO E MANIFESTAÇÃO DOS SINTOMAS E DOS TRANSTORNOS MENTAIS Cabe abordar aqui as distintas relações entre história de vida, eventos vitais e projeto existencial do indivíduo. Além disso, em relação tanto aos sintomas como às síndromes, deve-se buscar esclarecer quais são os possíveis fatores predisponentes (carga genética, experiências emocionais na infância e adolescência, condições pregressas de vida) e precipitantes (estresses, perdas, fatores atuais ou mais recentes) e o surgimento dos transtornos mentais. Assim, é preciso notar como se articula, ao longo da vida, o conjunto de fatos biológicos, psicológicos e sociais para a ocorrência ou não de sintomas, síndromes ou transtornos mentais. Desde a obra do psicopatólogo suíço-americano Adolf Meyer (1866-1950), considera-se em psicopatologia que, ao lado dos fatores genéticos, gestacionais e perinatais, que precedem o início propriamente dito da vida de relações de um sujeito, estão os fatores predisponentes. Assim, antes de nascer, as pessoas carregam consigo a vulnerabilidade constitucional (hereditariedade, constituição) para os distintos transtornos. Os chamados fatores predisponentes (predisposing events) são aqueles que se configuram com a articulação da vulnerabilidade constitucional e as primeiras experiências, no início da vida, que ocorrem na primeira e na segunda infância (0-6 anos) (Meyer, 1951; Rahe, 1990). Esses fatores predisponentes sensibilizam o indivíduo para as diversas situações que a vida lhe colocará e tornam as pessoas mais ou menos vulneráveis para os fatores precipitantes (precipitating ou life-events), eventos que ocorrem em proximidade temporal ao surgimento propriamente dito dos sintomas e transtornos mentais (Rahe, 1990). Assim, os fatores predisponentes podem incluir, além da genética, eventos ocorridos nos primeiros anos de vida, como a morte de um dos pais, abuso sexual, violência ou negligência física ou emocional, entre outros. Fatores precipitantes (também chamados de eventos de vida, ou life events), por sua vez, são geralmente eventos estressantes e/ou traumáticos que ocorrem em proximidade ao deflagramento do transtorno mental, como morte de pessoa próxima, brigas familiares importantes, separações conjugais, desemprego, mudanças no trabalho ou estudo, casamento, perda ou ganho financeiros, traição de parceiro(a), reprovações escolares, brigas com amigos, entre outros. Os fatores predisponentes tornam as pessoas mais ou menos vulneráveis para a ação dos fatores precipitantes (Meyer, 1951). Também é importante assinalar que a resiliência, capacidade de absorver e lidar com os fatores precipitantes, é fundamental no processo de saúde-doença no campo da psicopatologia. 1. 2. 3. Cabe lembrar ainda que fatores precipitantes, associados à vulnerabilidade constitucional e a fatores predisponentes, ocorrem sempre em um sujeito com uma história de vida específica (Lebensgeschichte). Tal história é absolutamente única, só ocorre uma vez, em um contexto socioeconômico, político e cultural determinado, em certo período histórico. A história de vida de um sujeito relaciona-se a um projeto de vida (Lebensentwurf), como descrito por Janzarik (1996), com toda a densidade existencial e a complexidade que as noções de sujeito, projeto existencial e história de vida implicam. Manifestação dos transtornos mentais: patogenia, patoplastia e psicoplastia Desde o século XIX, os clínicos têm percebido que nem todos os aspectos da manifestação de uma doença derivam diretamente do processo patológico de base (em geral relacionados à predisposição constitucional e a fatores predisponentes).Nessa linha, o psicopatólogo alemão Karl Birnbaum (1878- 1950) propôs que se discriminem três fatores envolvidos nas manifestações das doenças mentais (Birnbaum,1923): O fator patogenético (patogênese) propriamente dito está mais relacionado à manifestação dos sintomas diretamente produzidos pelo transtorno mental de base; assim, há o humor triste, o desânimo e a inapetência relacionados à depressão, ou as alucinações auditivas e a percepção delirante relacionadas à esquizofrenia. O fator patoplástico (patoplastia) inclui as manifestações relacionadas à personalidade pré-mórbida do paciente, à história de vida específica do sujeito e aos padrões de sentir e se comportar relacionados à cultura de origem do indivíduo, seu meio familiar, religioso, de classe social, profissional, que lhe eram particulares desde antes de adoecer. São fatores externos e prévios ao processo patológico de base, mas, nem por isso, menos importantes, pois intervêm de forma marcante na constituição e na conformação dos sintomas e na exteriorização do quadro clínico. O fator psicoplástico (psicoplastia) relaciona-se aos eventos e às reações do indivíduo e do meio psicossocial posteriores ao adoecer. São as reações aos conflitos familiares, à desmoralização, às perdas sociais e ocupacionais associadas aos episódios e ao curso da síndrome ou do transtorno. Essas reações do meio, o padrão de interação do indivíduo adoentado e seu meio sociofamiliar contribuem para determinar o quadro clínico resultante. Pode-se, assim, exemplificar esses três fatores: um homem de 50 anos é acometido de um episódio depressivo grave (fator patogenético); ele sempre teve personalidade extrovertida, ativa e enérgica; e é filho de italianos napolitanos (fatores patoplásticos). Após alguns meses do início dos sintomas depressivos, estando ele muito descuidado com suas tarefas profissionais, acaba por perder o emprego (fator psicoplástico). A manifestação dramática e demonstrativa dos sintomas depressivos fica por conta dos fatores patoplásticos; o humor triste, a perda do apetite e a anedonia podem ser atribuídos aos fatores patogenéticos; e, por fim, as sensações de fracasso, de inutilidade e de desmoralização diante da vida são devidas aos fatores psicoplásticos. A EVOLUÇÃO TEMPORAL DOS TRANSTORNOS MENTAIS Conceito de processo, desenvolvimento, surto, fase, reação, crise e episódio (Schneider, 1976; Vallejo Nagera, 1977; Jaspers, 1979) Segundo a concepção psicopatológica, com base na patologia geral e na escola jasperiana, os cursos longitudinais dos transtornos mentais crônicos podem ser de dois tipos: processo e desenvolvimento. Já os fenômenos agudos ou subagudos, com caráter episódico, classificam-se em crises ou ataques, reações vivenciais, fases e surtos (Quadro 27.1). Quadro 27.1 | Tipos de evolução dos quadros psiquiátricos segundo as visões de Karl Jaspers e Kurt Schneider DIMENSÃO TEMPORAL PSICOLOGICAMENTE COMPREENSÍVEL (CONEXÃO DE SENTIDO) NÃO COMPREENSÍVEL PSICOLOGICAMENTE (RUPTURA NA LINHA VITAL) Crônico Desenvolvimento Processo Agudo Reação vivencial Fase (não há alterações cognitivas, afetivas e de personalidade que se mantêm após a fase) Surto (há alterações cognitivas, afetivas e de personalidade após o episódio agudo) 1. 2. 3. Processo refere-se a uma transformação lenta e insidiosa da personalidade, decorrente de alterações psicologicamente incompreensíveis, de natureza endógena. O processo irreversível, supostamente de natureza corporal (neurobiológica), rompe a continuidade do sentido normal do desenvolvimento biográfico de uma pessoa. Utiliza-se o termo “processo”, por exemplo, para caracterizar a natureza de um quadro esquizofrênico de evolução insidiosa, que lenta e radicalmente transforma a personalidade do sujeito acometido. Desenvolvimento refere-se à evolução psicologicamente compreensível de uma personalidade. Essa evolução pode ser normal, configurando os distintos traços de caráter do indivíduo, ou anormal, determinando os transtornos da personalidade e as neuroses. Nesse caso, há uma conexão de sentido, uma trajetória compreensível ao longo da vida do sujeito. Fala-se, então, em “desenvolvimento histriônico”, “desenvolvimento hipocondríaco”. Por sua vez, os fenômenos agudos ou subagudos classificam-se em: 1) crises ou ataques, 2) reações vivenciais, 3) fases e 4) surtos. A crise, ou ataque, caracteriza-se, em geral, por surgimento e término abruptos, com duração de segundos ou minutos, raramente horas. Utilizam- se os termos “crise” ou “ataque” para fenômenos como crises epilépticas, crises ou ataques de pânico, crises dissociativas, crises de agitação psicomotora, entre outros. A reação vivencial anormal caracteriza-se como um fenômeno psicologicamente compreensível, desencadeado por eventos vitais significativos para o indivíduo que os experimenta. É designada reação anormal por causa da intensidade muito marcante e duração prolongada dos sintomas. Ocorre geralmente em personalidades vulneráveis, predispostas a reagir de forma anormal a certas ocorrências da vida. Após a morte de uma pessoa próxima, a perda do emprego ou a separação conjugal, o indivíduo reage, por exemplo, apresentando um conjunto de sintomas depressivos ou ansiosos, sintomas fóbicos ou mesmo paranoides. A reação vivencial pode durar semanas ou meses, eventualmente alguns anos. Passada a reação vivencial, o indivíduo retorna ao que era antes, sua personalidade não sofre ruptura; pode empobrecer-se ou enriquecer-se, mas não se modifica radicalmente. Já a fase refere-se particularmente aos períodos de depressão e de mania dos transtornos afetivos (transtorno bipolar e transtorno depressivo recorrente). Passada a fase, o indivíduo retorna ao que era antes dela, sem alterações 4. duradouras na personalidade, ou seja, não há sequelas na personalidade. A fase é, em sua gênese, incompreensível psicologicamente e tem um caráter endógeno. Uma fase pode durar semanas ou meses, menos frequentemente anos, e há sempre (ou quase sempre) restitutio ad integrum (ou seja, recuperação total). Fala-se, então, em fase depressiva, fase maníaca e período interfásico assintomático, eutímico. O surto, segundo a noção da patologia geral (mas assumida pela psicopatologia), é uma ocorrência aguda, que se instala de forma mais ou menos repentina, fazendo eclodir uma doença de base endógena, não compreensível psicologicamente. A característica do surto é que ele produz sequelas irreversíveis, danos à personalidade e/ou à esfera cognitiva e/ou afetiva do indivíduo. Assim como após o primeiro surto de esclerose múltipla, o paciente “sai”, geralmente, com alguma sequela sensitiva ou motora após o primeiro surto de esquizofrenia (com alucinações, delírios, percepção delirante, etc.), que pode durar de 3 a 4 meses; por exemplo, o indivíduo “sai diferente”, seu contato com os amigos torna-se mais distanciado, o afeto modula menos, e ele tem dificuldades na vida social, as quais não consegue explicar ou entender. Isso decorre de “déficit pós-esquizofrênico”, devido àquilo que Eugen Bleuler (1960, p. 268) afirmava: “Do ponto de vista científico, na esquizofrenia não há restitutio ad integrum (recuperação completa), ou pelo menos ao status quo ante (estado anterior à doença)”. Tem-se, portanto, como possibilidades, um surto esquizofrênico agudo, um surto catatônico, entre outros tipos. Após vários anos de doença, nos quais vários surtos foram se sucedendo (ou um processo insidioso foi se implantando de forma lenta), em geral o paciente se encontrano chamado estado residual da patologia, apresentando apenas sinais e sintomas que são sequelas desta, sintomas predominantemente negativos. A designação episódio é mais genérica, compreende duração de dias até semanas. Tanto o termo crise como o termo episódio não especificam a natureza do fenômeno mórbido: são denominações referentes apenas ao aspecto temporal dele. Na prática, é comum utilizar-se o termo episódio de forma inespecífica, quando não há condições de precisar a natureza do fenômeno mórbido. Assim, pode-se falar em episódio maniatimorfo (ou maniatiforme), episódio paranoide, 1. 2. 3. 4. episódio apático-depressivo, episódio esquizofreniforme. Quando o diagnóstico está mais bem estabelecido, deve-se usar, por exemplo, os termos fase maníaca, fase depressiva, surto esquizofrênico. Dessa forma, portanto, é incorreto falar em surto maníaco, fase esquizofrênica, crise maníaca; tal uso revela o desconhecimento da terminologia e dos conceitos psicopatológicos básicos. Na dúvida, quando não se conhece ainda o tipo de fenômeno e o curso temporal do ocorrido, sugere-se utilizar o termo neutro episódio (assim não haverá erro ao chamar de episódio ou crise algo que é, de fato, um surto esquizofrênico ou uma fase maníaca). A personalidade pré-mórbida e os sinais pré-mórbidos são aqueles elementos identificados em períodos da vida do paciente claramente anteriores ao surgimento da síndrome ou transtorno propriamente dito, em geral na infância. Já pertencendo ao início do transtorno, fala-se em sinais e sintomas prodrômicos, que representam de fato a fase precoce, inicial, do adoecimento. A literatura psiquiátrica, principalmente a de língua inglesa, utiliza os seguintes termos em relação ao curso dos episódios de transtornos mentais (Frank et al., 1991): Remissão (remission). É o retorno ao estado normal tão logo acaba o episódio agudo. Fala-se em remissão espontânea quando o paciente se recupera sem o auxílio de intervenção terapêutica. Recuperação (recovery). É o retorno e a manutenção do estado normal, já tendo passado um bom período de tempo (geralmente se considera um ano) sem que o paciente apresente recaída do quadro. Recaída ou recidiva (relapse). É o retorno dos sintomas logo após haver ocorrido melhora parcial do quadro clínico ou quando o estado assintomático é ainda recente (não tendo passado um ano do episódio agudo). Recorrência (recurrence). É o surgimento de um novo episódio, depois de o indivíduo apresentar-se assintomático por um bom período (pelo menos por cerca de um ano). Pode-se dizer que a recorrência é um novo episódio da doença. CONTEXTUALIZAÇÃO DO SINTOMA EM RELAÇÃO A SUA ORIGEM NEUROBIOLÓGICA OU SOCIOCULTURAL A seguir, é apresentado um esquema que visa estabelecer uma contextualização mais clara do sintoma psicopatológico em relação a possíveis mecanismos cerebrais, biológicos ou psicológicos e socioculturais (Quadro 27.2). Quadro 27.2 | A posição dos fenômenos psicopatológicos em relação à dimensão biológico-cerebral e à dimensão psicológico-subjetiva e cultural PLANO SINTOMÁTICO (TIPOS, QUALIDADES ESPECÍFICAS DE SINTOMAS) ÁREA ENVOLVIDA RELAÇÃO DE DEPENDÊNCIA COM O CEREBRAL E O CULTURAL Primeiro nível (neurológico) Sintomas, sinais e síndromes sensitivo-motoras da neurologia clássica. Sinal de Babinski na síndrome piramidal, cegueira cortical por lesão da área visual primária, etc. Áreas sensitivo-motoras primárias e secundárias Cérebro/mente +++/– Relação muito íntima com o plano biológico. Tende a ser universal, com pouca plasticidade, independentemente da biografia e da cultura. Segundo nível (neuropsicológico) Sintomas, sinais e síndromes neuropsicológicas clássicas. Afasias, agnosias, apraxias, sintomas deficitários no delirium/demências. Sintomas esquizofrênicos negativos. Estado alucinatório. Sintomas psicóticos primários. Alucinações audioverbais. Áreas secundárias e terciárias frontais, temporoparietoccipitais e límbicas Cérebro/mente +++/+ Relação íntima com o plano cerebral, mas já recebe influência do plano cultural. O sintoma é produzido pela “lesão orgânica”, porém é influenciado pela biografia e pela cultura. Terceiro nível (psicopatológico primário) Delírio e alucinações na esquizofrenia, sintomas catatímicos no transtorno bipolar (TB). Obsessões e fobias. Afetos primários como depressão e ansiedade. Áreas terciárias Cérebro/mente +++/++ Relação mais equilibrada entre o biológico e o cultural. Sintomas são produzidos pela interação entre as alterações cerebrais patológicas e a biografia e a cultura. Quarto nível (psicopatológico secundário) Sintomas afetivos secundários, conflitos emocionais, aspectos da personalidade, conteúdo de sintomas como delírio e obsessões. Reações da personalidade em transtornos como TB, transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) e esquizofrenia. Cérebro/mente ++/+++ Relação íntima com o biográfico e cultural e menos determinados pelo cerebral. Sintomas são construídos tendo por base a cultura e a biografia do sujeito. Muita plasticidade e especificidade cultural do sintoma. Dessa forma, certos sintomas são tidos como intimamente dependentes de alterações neuronais, como os sintomas neurológicos primários (paralisias, anestesias, perdas sensoriais) ou os sintomas neuropsicológicos (afasias, agnosias, apraxias, algumas formas de amnésias). Em outro extremo, há sintomas mais “independentes” de determinações e fatores neurobiológicos e mais associados a processos e mecanismos psicológicos, subjetivos e simbólicos (mediados pela cultura). Tal esquema visa auxiliar o estudante em relação à contextualização e à origem dos variados fenômenos observados na psicopatologia. 28. As síndromes da psicopatologia, os transtornos e os modos de proceder em relação aos diagnósticos Embora haja atualmente dois sistemas de classificação (DSM-5 e CID-11) que definem e descrevem os transtornos mentais específicos de forma clara, considera-se útil clinicamente a abordagem inicial dos quadros mentais por meio da perspectiva sindrômica. As síndromes são conjuntos de sinais e sintomas que se agrupam de forma recorrente e são observados na prática clínica diária. São agrupamentos estáveis de sintomas, conjuntos sígnicos (Saurí, 2001), que podem ser produzidos por várias causas (Berrios, 1996). Identificar síndromes é o primeiro passo no sentido de ordenar a observação psicopatológica dos sinais e dos sintomas dos pacientes (Leme Lopes, 1980). O diagnóstico sindrômico é um ato clínico modesto, mas estrategicamente importante no raciocínio clínico. Trata-se de uma indicação preciosa para o diagnóstico (Van Den Berg, 1970). Assim, o raciocínio clínico vai evoluindo gradativamente ao longo das primeiras avaliações para o conhecimento mais aprofundado sobre o paciente e seu sofrimento mental. Na psicopatologia clássica, a chamada “teoria das síndromes” foi defendida por autores como Johannes Lange (1891-1938), Adolf Meyer (1866-1950), Bartolomé L. Lloret (1905-1966), entre outros. Nessa teoria, postula-se que, no complexo sintomático geral denominado “síndrome”, há sintomas nucleares (como a alteração de nível de consciência e atenção no delirium ou a mudança do humor e do ritmo psíquico nos transtornos afetivos) e sintomas periféricos (que se articulam em torno e hierarquicamente de forma secundária aos sintomas nucleares) (Jablensky, 2012). Seguramente, é desejável, sempre que possível, após a precisa caracterização dos sinais e dos sintomas e seu ordenamento em síndromes clínicas, formular hipóteses diagnósticas relativas aos transtornos mentais específicos, que idealmente teriam (mas raramente têm) etiologia ou fatores etiológicos determinados, fisiopatologia ou psicopatologia específicas e cursorelativamente homogêneo (Betta, 1972; Messas et al., 2017). É interessante e mais útil que os transtornos sejam definidos segundo sistemas internacionais de diagnóstico e classificação, estabelecidos por grupos de pesquisadores e profissionais experientes (como DSM-5 e CID-11), com vocabulário e construtos compreendidos e utilizados de forma estável pelos profissionais e pesquisadores, visto que, dessa forma, o conhecimento pode progredir no mundo todo, de modo mais rápido e fecundo. Em muitas situações clínicas, por dispor-se de pouca informação sobre o paciente, pela dificuldade intrínseca do caso ou pela insuficiência de conhecimento científico, faz-se necessário utilizar e se contentar provisoriamente com o diagnóstico sindrômico (Eisenberg, 1993). Mais recentemente, os construtos “síndrome”, “protótipo” e “dimensionalidade” têm ganhado renovado interesse em psicopatologia por meio de modelos matemáticos computadorizados sofisticados, desenvolvidos para, a partir de grande número de dados empíricos, identificar síndromes sustentáveis que possam orientar estratégias terapêuticas mais eficazes (Goekoop; Goekoop, 2014). A ideia de uma chamada “medicina e psiquiatria de precisão”, que, em vez de categorias diagnósticas preestabelecidas, utilize dados básicos das dimensões clínicas (no nosso caso, psicopatologia), neuronais e genômicas, lance mão de grandes bancos de dados (big-data systems, big-data driven, ou seja, análises estatísticas sofisticadas com grande número de dados) e de procedimentos como uso de definições multidimensionais, diagnósticos dimensionais (em vez de categoriais), estabelecimento de hierarquias e trajetórias multivariadas, tem sido defendida por alguns autores (Ozomaro et al., 2013; Huys et al., 2016; Joyce et al., 2017). PREVALÊNCIA DE TRANSTORNOS MENTAIS NO MUNDO E NO BRASIL Na Europa, um amplo estudo multicêntrico (Lépine et al., 2005), que envolveu França (n = 2.894), Alemanha (n = 3.555), Bélgica (n = 2.419), Espanha (n = 5.473), Itália (n = 4.712) e Países Baixos (n = 2.372), pesquisou a prevalência na vida e no último ano de transtornos depressivos, de ansiedade e relacionados ao uso de álcool. Foi identificada a prevalência de pelo menos uma dessas condições, no ano, de 10% e, na vida, de 25%. Uma metanálise de estudos internacionais realizados entre 1980 e 2013 (174 estudos, em 63 países diferentes), sobre a prevalência de transtornos mentais comuns, revelou que, nos últimos 12 meses, 17,6% das pessoas apresentavam alguma psicopatologia e, durante a vida, 29,2% apresentaram pelo menos uma (Steel et al., 2014). Os dados são relativamente elevados, mas deve- se lembrar que se referem a qualquer transtorno mental, inclusive quadros leves como insônia, fobia simples e quadros ansiosos e depressivos leves. No Brasil, dois estudos feitos com amostras probabilísticas, representativas, nas cidades de São Paulo (nos dois estudos) e Rio de Janeiro (incluído em um dos estudos), nos anos de 2005 a 2008, encontraram prevalências na vida, no Rio de Janeiro, de 42,1% e, em São Paulo, de 44% e prevalências nos últimos 12 meses de 31,2% (RJ) e de 29,6 a 32,5% (SP). Assim, no Brasil, de acordo com tais estudos, a frequência de transtornos mentais parece ser consideravelmente elevada. Deve-se atentar, entretanto, para o fato de esses dados serem de grandes metrópoles, com vários milhões de habitantes (o que pode, em tese, significar um importante componente de estresse), e reunirem grande número de transtornos. A Tabela 28.1 apresenta as prevalências para os transtornos mentais mais frequentes. Tabela 28.1 | Dois estudos sobre prevalência de transtornos mentais nas cidades de Rio de Janeiro e São Paulo* TRANSTORNO MENTAL PREVALÊNCIA NOS ÚLTIMOS 12 MESES (%) 5.037 PESSOAS ANDRADE ET AL. (2012) APENAS SÃO PAULO PREVALÊNCIA NOS ÚLTIMOS 12 MESES (%) 3.744 PESSOAS RIBEIRO ET AL. (2013) SÃO PAULO E RIO DE JANEIRO PREVALÊNCIA NA VIDA (%) 3.744 PESSOAS RIBEIRO ET AL. (2013) SÃO PAULO E RIO DE JANEIRO Dependência de álcool Total: 1,3% (casos graves: 94,5%) São Paulo: 2,2% Rio de Janeiro: 1,0% São Paulo: 5,8% Rio de Janeiro: 6,2% 1. Abuso de álcool 2. Uso perigoso de álcool 1. Total: 2,7% (casos graves: 47,2%) 2. São Paulo: 1,2% Rio de Janeiro: 1,7% 2. São Paulo: 8,1% Rio de Janeiro: 9,4% Depressão maior Total: 9,4% (casos graves: 43,1%) São Paulo: 8,2% Rio de Janeiro: 6,0% São Paulo: 19,9% Rio de Janeiro: 17,4% Transtorno bipolar (tipo I e tipo II) Total: 1,5% (casos graves: 65,4%) não aferido não aferido Distimia Total: 1,3% (casos graves: 50,9%) São Paulo: 0,8% Rio de Janeiro: 0,8% São Paulo: 1,4% Rio de Janeiro: 1,9% Algum transtorno de ansiedade ou fobia Total: 19,9% (casos graves: 36,5%) São Paulo: 20,8% Rio de Janeiro: 18,8% São Paulo: 30,8% Rio de Janeiro:27,7% Transtorno de pânico Total: 1,1% (casos graves: 56,6 %) São Paulo: 0,1% Rio de Janeiro: 1,0% São Paulo: 0,7% Rio de Janeiro: 1,3% Fobia específica Total: 10,6% (casos graves: 35%) São Paulo: 10,2% Rio de Janeiro: 9,6% São Paulo: 16,8% Rio de Janeiro: 14,6% Fobia social Total: 3,9% (casos graves: 55,6%) São Paulo: 3,3% Rio de Janeiro: 2,1% São Paulo: 5,7% Rio de Janeiro: 4,0% Agorafobia Total: 1,6% (casos graves: 57,4%) São Paulo: 2,7% Rio de Janeiro: 2,1% São Paulo: 4,0% Rio de Janeiro: 3,5% Transtorno de ansiedade generalizada Total: 2,3% (casos graves: 41,9%) São Paulo: 3,5% Rio de Janeiro: 2,2% São Paulo: 6,0% Rio de Janeiro: 5,8% Transtorno obsessivo- compulsivo Total: 3,9% (casos graves: 42,5%) São Paulo: 3,3% Rio de Janeiro: 2,8% São Paulo: 4,1% Rio de Janeiro: 3,6% Transtorno de estresse pós- traumático Total: 1,6% (casos graves: 51,1%) São Paulo: 5,0% Rio de Janeiro: 3,3% São Paulo: 10,2% Rio de Janeiro: 8,7% Pelo menos algum transtorno mental Total: 29,6% (casos graves: 33,9%) São Paulo: 32,5% Rio de Janeiro: 31,2% São Paulo: 44,0% Rio de Janeiro: 42,1% *Em São Paulo, 2005-2007, com 5.037 pessoas com 18 anos ou mais; em São Paulo e no Rio de Janeiro, 2007-2008, com 3.744 pessoas entre 15 e 75 anos. Fontes: Andrade et al., 2012; Ribeiro et al., 2013. PARTE III - Psicopatologia e as grandes síndromes e transtornos psicopatológicos Capítulo 27 | Do sintoma à síndrome Transfundo ou ancoragem das vivências psicopatológicas e sintomas emergentes Componentes do surgimento, constituição e manifestação dos sintomas e dos transtornos mentais Manifestação dos transtornos mentais: patogenia, patoplastia e psicoplastia A evolução temporal dos transtornos mentais Conceito de processo, desenvolvimento, surto, fase, reação, crise e episódio (Schneider, 1976; Vallejo Nagera, 1977; Jaspers, 1979) Contextualização do sintoma em relação a sua origem neurobiológica ou sociocultural Capítulo 28 | As síndromes da psicopatologia, os transtornos e os modos de proceder em relação aos diagnósticos Prevalência de transtornos mentais no mundo e no Brasil
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