Prévia do material em texto
As Tragédias Escritas Por Alef Baltazar Bruno Cesardi Copyright © Grupo Editorial Coerência, 2021 Copyright © Bruno Cesardi, 2020 Todos os direitos desta edição reservados ao Grupo Editorial Coerência. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida através de qualquer meio existente sem a autorização prévia da editora. DIREÇÃO EDITORIAL: Lilian Vaccaro REVISÃO: William Magalhães PRODUÇÃO GRÁFICA: Giovanna Vaccaro CAPA: Henrique Morais PREPARAÇÃO: Raquel Escobar Kaio Rodrigues São Paulo Avenida Paulista, 326, cj 84 - Bela Vista São Paulo | SP – 01.310-902 www.editoracoerencia.com.br Natal, Rio Grande do Norte, 2019 Uma homenagem aos clássicos do terror que fizeram parte da minha infância. http://www.editoracoerencia.com.br/ SUMÁRIO A escolha errada O livro obscuro A tragédia vivida por Walter Wallace: o homem que não merecia o inferno Vertigo e as mil almas A escolha certa Aquela que perdeu tudo A ESCOLHA ERRADA CAPÍTULO 1 1. — Vamos parar pra comer alguma coisa— George sugeriu. — Estou morrendo de fome. Denis concordou, e logo pararam num restaurante qualquer no meio da estrada, bem no horário do almoço. Viajavam desde muito cedo. Denis nem sequer se lembrou de comer qualquer coisa antes de pôr os pés na estrada; sua cabeça estava tão cheia de pensamentos pessimistas que ele nem reparou na barriga vazia durante toda a manhã e o começo da tarde. Encontraram o estabelecimento praticamente vazio: um casal comia num canto e uma família no outro. O ambiente perfeito para uma refeição tranquila. Escolheram uma mesa próxima da janela de vidro. Mark Knopfler cantava através de uma caixinha de som bastante tímida: Eu deveria ter aprendido a tocar guitarra Eu deveria ter aprendido a tocar bateria Olha só para aquela gracinha, ela está posando na câmera Cara, nós poderíamos nos divertir um pouco. George desejava ter aprendido alguma coisa também. Trabalhava o ano inteiro e mal conseguia pagar as contas. Contudo, sua realidade poderia mudar muito em breve — ou assim ele ousava sonhar. Foram atendidos por um velho cheio de simpatia e um espesso bigode bem penteado no maior estilo Wyatt Earp ou talvez um Belchior mais extravagante. Denis pediu comida para o almoço. Arroz, frango frito, macaxeira, uma porção de fritas e um suco de laranja para ajudar tudo a descer. O prato de George foi praticamente o mesmo, porém, ao invés de frango, optou por peixe e, ao invés de suco de laranja, pediu uma cerveja. Algo dentro dele gritava por um peixinho. Denis só percebeu a fome consideravelmente voraz quando triturou a comida com os dentes. As batatas estavam apetitosas; o arroz, por outro lado, nem tanto. Entre uma garfada e outra, ele olhava para a estrada e recordava o motivo pelo qual viajavam. Ainda não sabia ao certo se aquilo tudo parecia ser apenas uma ideia ruim, um péssimo plano ou a maior estupidez de toda a sua vida. George não se mostrava assim tão preocupado, a julgar pela naturalidade com que comia ou a tranquilidade com que dirigira durante o percurso até ali. Era quase como se aquela estupidez toda fosse uma grande aventura ou uma viagem muito almejada, planejada e finalmente executada. Já Denis compreendia muito bem o perigo representado pela investigação. Precisava fazer o parceiro compreender também. — Tem certeza de que devemos fazer isso? — ele perguntou. Seu prato ainda estava pela metade; o do parceiro, já vazio. George pediu mais uma porção de fritas e só respondeu depois de enfiar um palito de dente numa delas. Tinham todas um aspecto saborosíssimo, diferente das encontradas nos fast-foods. Batatas de verdade, George pensou. — Mas é claro, cara. Nada mudou. Algo de errado? — Isso não tá me cheirando muito bem. George deixou escapar um longo suspiro consternado. — Lá vem você de novo com esse papo. Já te falei: pode dar o fora se quiser. Eu vou continuar. Só peço para você não estragar todo o meu trabalho. Por favor. — Ele levou um guardanapo até a boca. — Nosso trabalho, George — Denis lembrou e voltou a fitar a estrada, receoso, desconfortável. Queria estar em qualquer outra parte do mundo, menos ali. — Podemos estar nos arriscando demais perseguindo esses caras. Pode dar muita merda pro nosso lado. Enquanto secava os lábios, passou pela cabeça de George contar o motivo pelo qual queria tanto seguir em frente com aquela loucura. Só que uma coisa o impediu, a mesma de sempre. Não conseguia imaginar uma reação boa por parte do parceiro. Não sabia se ele estragaria as coisas ou se o deixaria seguir em frente. Não queria descobrir. Não podia arriscar. Ainda mais agora, faltando tão pouco para colher os frutos depois de tanto tempo investido. E suor. Muito suor. Arrependia-se amargamente de não ter embarcado naquela investigação sozinho. — Eu vou levar isso até o fim. Não perdi dois anos da minha vida pra nada. — Então você prefere perder a vida inteira? — Já perdi anos demais, Denis. Anos demais. — Ele encarou o companheiro nos olhos, motivado. — Desperdicei todas as oportunidades que a vida me ofereceu. Essa eu não vou deixar passar. Sinto muito se você ficou com medo de uma hora para outra. Pode cair fora se quiser. — George o encarava como se fosse um cachorro disposto a tudo para defender o seu precioso osso. Ninguém disse mais nada. Apenas terminaram suas refeições, pagaram a conta e saíram feito um casal brigado: incapaz de pedir um divórcio por conta dos filhos. George ainda foi ao banheiro esvaziar a bexiga. Odiava quando precisava se aliviar na estrada, no meio do nada. Sentia-se desconfortável, desconfiado de que pudessem existir câmeras escondidas prontinhas para flagrá-lo. Muitas vezes não conseguia nem mesmo mijar. Deu de cara com um banheiro limpinho, muito provavelmente recém-lavado, com cheiro de desinfetante e tudo mais. Aquele era o seu dia de sorte, pensou. Nunca antes havia se deparado com um banheiro de restaurante barato tão limpo quanto aquele. Até mesmo a descarga funcionava perfeitamente. Já fora do banheiro, George fitou o céu cinzento. Dava a impressão de que poderia chover a qualquer instante. O céu não mudava havia quase uma semana e, ainda assim, nenhuma gota de chuva tinha caído. 2. A estrada à sua frente não passava de uma linha reta iluminada apenas pelos faróis do carro e alguns postes ocasionais. Os olhos de George permaneciam fixos nela, contudo, seus pensamentos se encontravam perdidos em algum outro lugar. — Como você imagina esses caras? — perguntou ele, quebrando o silêncio cultivado desde a saída do restaurante. Denis se endireitou no banco do passageiro. Seus ombros se ergueram numa interrogação. Durante boa parte da investigação, gastara muito do seu tempo imaginando como poderiam ser os tais sujeitos. Mesmo assim, sentia-se como havia começado: sem qualquer suposição capaz de satisfazer sua curiosidade. Não existia nenhuma prova, descrição ou qualquer coisa do gênero. Nada. Apenas fantasias baseadas no mais puro achismo. Tudo soava ao mesmo tempo possível e improvável. — Olha, galado. Eu realmente espero que sejam estranhos. Não consigo acreditar nesses caras fazendo o que fazem há tanto tempo. Tenho medo de encontrar pessoas tão normais quanto a gente. — Eu não sei, cara. Não consigo imaginar esse grupo assim tão esquisitão, contanto que seja mesmo um grupo. Justamente por fazerem isso há muito tempo. Não consigo pensar nesses caras andando por aí fantasiados como os malucos da Ku Klux Klan ou… não sei. Yakuza talvez. Deve ser uma coisa bem discreta. — Esse lance metódico de eles atacarem a cada três meses, com datas, lugares e horas marcadas… — Denis franziu os lábios e sacudiu a cabeça. — Com certeza eles são estranhos. É tudo muito bizarro. — Enquanto falava, Denis brincava com as mãos, como se estivesse montando um cubo mágico invisível. — Não entendo como ninguém nunca notou essas coincidências. É quase um absurdo. Um meio sorriso cético apareceu nos lábios de George. Não sabia o que era mais absurdo: ninguém nunca ter notado aquelas coisas tão obviamente conectadas ou, de fato, alguémter chegado a notar, mas não vivido o suficiente para contar a história. Ou simplesmente tivesse decidido guardar tudo para si, sabe-se lá por qual motivo. Todas as opções pareciam igualmente plausíveis. Tais pensamentos George resolveu não compartilhar com o parceiro. — Pois é, cara. Como diz o ditado: antes tarde do que nunca. Pararam no meio da estrada alguns quilômetros depois. George desdobrou o mapa que trazia consigo. Conferiu a placa mais próxima para saber se aquele era mesmo o lugar certo. — Chegamos — anunciou, a voz tão entusiasmada quanto nervosa. Denis fez uma careta. Não se sentia nem um pouco confortável ali, naquele horário e naquele dia. Quanto mais próximo se imaginava dos possíveis sequestradores, maior ficava o receio cultivado em seu âmago. Era como se abrigasse um monstro dentro dele. Um monstro que se alimentava da sua insegurança e do seu medo. Esse monstro já se encontrava gigantesco — e ainda não parecia estar nem perto da fase adulta. Engoliu em seco com certa dificuldade e desconforto. A saliva desceu arranhando, feito areia. Pegou uma garrafinha cheia de água e tomou um longo gole, depois outro e mais outro. O estabelecimento mais próximo ficava a alguns quilômetros dali. Ao redor deles não existia nada além de mato e a estrada contínua e reta. Dirigiram por mais um quilômetro e deixaram o carro escondido sob uma árvore muito grande. George olhou para cima, sem conseguir encontrar uma única estrela. O céu continuava nublado, mas a terra permanecia seca, quase como se o céu estivesse prestando atenção nos dois jornalistas e, aflito com a situação, fosse incapaz de despejar sobre o mundo a sua gloriosa chuva. Tal pensamento fez surgir um meio sorriso no rosto de George. Logo quando começou a caminhar de volta, em direção à placa, o arrependimento de não ter trazido consigo um casaco assolou George. Ali fazia um frio de congelar os ossos. Cruzou os braços, escondeu as mãos nas axilas e xingou a própria estupidez em silêncio. Mas não podia se culpar, pois ninguém em sã consciência esperava sentir frio em Natal — qualquer que fosse o horário. Assim como quase todo o percurso de carro, a caminhada foi silenciosa. Um silêncio repleto de expectativas ansiosas. Entraram no meio do mato quando alcançaram a placa e, como havia sido planejado, ali ficaram muito bem escondidos. — Tem certeza de que eles não nos verão aqui? — Denis perguntou. George encarou o companheiro na penumbra. Não conseguia enxergar muita coisa, mas, ainda assim, pôde ver nos olhos de Denis um brilho amedrontado. — Faz o teste você. Vai lá e vê se dá pra enxergar alguma coisa. Ele foi. Seus passos causaram ruídos bruscos; galhos se partiram e pequenos estalos rugiram. Ali perto havia um grilo muito entusiasmado tocando sua música sem se importar com a presença da plateia recém-chegada. Quando Denis voltou, depois de ter ficado um tempo tentando vislumbrar qualquer coisa atrás das árvores e galhos, disse: — Realmente não consegui enxergar merda nenhuma. — E depois completou: — Deveria ter trazido algo para comer. — Mas o que ele queria mesmo era algo para beber, para fazer nascer dentro dele um pouco de coragem, talvez. Coragem suficiente para combater o monstro. Sentia-se novamente com dezoito anos, quando precisara de um empurrãozinho para chamar uma garota para sair ou mesmo dançar. Uma centena de arrependimentos diferentes pairava sobre a cabeça de Denis, e aquele que mais pesava era o de ter embarcado naquela loucura. Esse, de fato, poderia muito bem ser o seu último arrependimento — e esse também era um de seus arrependimentos. Ele tremia, porém, diferente de George, não sentia qualquer frio. Muito pelo contrário: começava a suar. O nervosismo parecia ser todo convertido num calor agonizante. Arregaçou as mangas do casaco até os cotovelos, sentindo-se momentaneamente melhor. As horas passaram vagarosamente, e o incômodo silêncio continuou a reinar; dessa vez, um silêncio repleto de expectativas tenebrosas e incertas. Os jornalistas ficaram esperando por alguma coisa. Muito fora planejado para aquela noite. George e Denis passaram dias debatendo a respeito de como iriam se esconder, sobre como iriam prestar atenção em todos os detalhes e, mais importante, sobre como continuariam bem escondidos, sem chamar atenção indesejada. Também falaram sobre um possível plano de fuga. Ainda assim, uma coisa nem sequer passou pela cabeça dos dois: os malditos insetos. Eles lutavam para afastar os pequenos bichinhos que tentavam mordiscar suas peles. George constantemente distribuía tapas pelo próprio corpo, na esperança de esmagar um ou outro. Uma dezena de insetos foi assassinada naquela noite. Um repelente, ou mesmo inseticida, teria sido incrivelmente útil. O mundo estava escuro, a estrada sombria e alguns carros passavam apressados para chegarem aos seus respectivos destinos. Por um breve instante, iluminavam o mundo com a luz de seus faróis para logo depois desaparecerem para todo o sempre. Qualquer um dos carros poderia muito bem pertencer aos lunáticos. Por isso, cada carro avistado significava um novo motivo para se preocupar. E, até então, nenhum deles fizera menção de parar. Talvez estivessem no lugar errado; George poderia ter se equivocado ao conferir a placa ou mesmo toda a investigação poderia ter sido um completo desperdício de tempo — um devaneio produzido pela mente entediada de George. Tais pensamentos fizeram Denis se sentir um pouco melhor. A esperança, por mais remota, fazia-o sonhar com tais possibilidades e tomá-las como coisas realmente possíveis. Não passava de um cara otimista no fim das contas — ao menos se esforçava para ser. — Esses caras que não aparecem — queixou-se, torcendo para não aparecerem mesmo. O tempo de espera fez parte do nervosismo se apaziguar um pouco, mas não o suficiente para deixá-lo confortável com a situação. Só se sentiria mesmo confortável quando estivesse em casa, de banho tomado, pijama vestido e pronto para dormir e esquecer cada segundo daquele dia. Feliz por tudo ter sido, de fato, um devaneio produzido pela mente do parceiro. George se preparava para dizer algo quando um grande trailer parou bem perto deles, interrompendo seu raciocínio. Os dois, por puro instinto, abaixaram-se, mesmo sabendo o quão escura era aquela noite — ou esquecendo o quão escura era aquela noite. Um velho escapou do veículo e deu alguns passos para fora da estrada. — Esse aí não tem qualquer pinta de sequestrador — sussurrou George. O velho passou alguns segundos parado, olhou para um lado e depois para o outro. Desabotoou a calça, abaixou o zíper e começou a mijar. Podiam ouvir o som da urina regando o solo. Era mijo que não acabava mais, de modo que levou quase cinco minutos para esvaziar a bexiga. Porém, o velho demorou mais ainda sacudindo-se todo, mexendo o quadril e dando pulinhos para conferir se nenhuma gota ficaria sobrando. A possibilidade de que o velho passaria a noite toda ali, balançando o quadril como se estivesse dançando, pareceu real. — Anda, homem! — gritou uma voz de velha irritada de dentro do trailer. — É sempre essa mesma bosta. Coloca essa coisa inútil pra dentro e vamos embora. — Já vou, mulher. Sabe que eu não funciono sob pressão. Calma! — gritou de volta e resmungou algo que eles não foram capazes de ouvir. Pôde sentir, mesmo um pouco distante, os músculos de Denis perderem a rigidez, seu corpo sendo tomado pelo alívio. Ele soltou um longo suspiro, e um mar de tensão pareceu abandonar seu corpo. — É só um casal de velhos no meio do nada. — E riu de nervoso. — Quais as possibilidades? O velho passou mais alguns instantes naquele ritual bizarro, mas a mulher gritou outra vez e ele entrou no trailer, irritado. Logo depois sumiram. George ficou pensando no ocorrido, e a possibilidade, que já era mínima, passou a ser nula: jamais pararia para se aliviar no meio da estrada novamente. 3. Pouco tempo depois, não saberiam dizer exatamente quanto, o tráfego consideravelmente tranquilo passou a ser ainda mais escasso. A cada dezminutos, às vezes mais, às vezes menos, avistavam um carro e um desses carros parou, como o trailer havia parado algum tempo antes. E em seguida outro também parou. O primeiro, uma Kombi branca, caindo aos pedaços. O segundo, um carro funerário, quase em bom estado. Não foi preciso pensar duas vezes, nem ao menos uma: a visita tão aguardada havia chegado. Não pararam muito longe, e alguns indivíduos rapidamente saltaram dos carros. Nenhum dos dois conseguia enxergar muito bem daquela distância, devido à escuridão e uma fina névoa. Mas, a contar pelas sombras distantes, o grupo parecia ser constituído por quatro adultos e… uma criança? — Ah… — Fez um deles, parecendo aliviado. — Estava com saudades disso aqui já. A última vez foi quando pegamos o Wallace. — Não faz tanto tempo assim, doutor — respondeu uma voz infantil. Ao menos conseguiam ouvi-los razoavelmente bem. — Oh, Beth, sabe como as coisas são para gente velha como eu. A criança parou um instante, encarou o velho. — Eu sou um pouquinho mais velha que você — ela falou com um quê de humor. George cutucou o ombro do parceiro e, juntos, caminharam pela mata, fazendo o máximo de esforço para produzir o mínimo de ruído. Denis precisou dar tudo de si para conseguir mover as pernas. Sentia-as tão pesadas quanto duas colunas de concreto. Todo seu corpo parecia pesado feito concreto. — Preste atenção a tudo, principalmente aos nomes — George lembrou quando ficaram tão próximos quanto ousavam. Dali tinham uma boa visão e conseguiam ouvir os estranhos muitíssimo bem, além de permanecerem devidamente escondidos. — E-eu sei — Denis alegou e, ao se remexer, acabou pisando num galho que se partiu e fez soar um barulho estridente que assassinou o frágil silêncio daquela madrugada. Mesmo naquela penumbra, George reparou quando a criança virou a cabeça na direção deles, alarmada. A sua boca ficou instantaneamente seca. Olhou para o parceiro no escuro. Denis estava completamente petrificado, como se fizesse parte da própria paisagem. — Como eu dizia… — Shiu… — Ela silenciou o velho. — Ouvi alguma coisa, doutor. — Não seja boba. Não há nada por aqui — argumentou o tal doutor. — Provavelmente foi um esquilo. — Nem existem esquilos nessa cidade. — Rebateu a menininha e se distanciou do grupo, caminhando a passos muitíssimos cautelosos na direção da mata. Os dois prenderam a respiração e, caso fosse possível, teriam obrigado os corações a pararem de bater também. Cada metro vencido por ela acrescentava sobre os dois uma tonelada de tensão. Seus pés praticamente não produziam barulho sobre a mata — um som úmido, tão diferente dos produzidos por Denis algum tempo antes. E, assim como Denis, ela ficou parada a pouquíssimos metros, encarando tudo e procurando qualquer coisa suspeita naquela escuridão dominada por um silêncio soturno. Um silêncio que penetrava nos ouvidos dos dois jornalistas e fazia crescer no âmago de ambos uma série de arrepios medonhos. George não saberia dizer ao certo, mas pensou ter sentido os olhos dela sobre os seus. Gotículas de suor começaram a se formar e escorrer por sua testa. O frio acabou dando lugar a um calor sufocante. Sentia como se houvesse uma mão quente em volta do seu pescoço. Por um momento, o corpo desaprendeu completamente como respirar por conta própria. Por um momento, uma corda invisível lhe roubou todo o ar. A tensão o afogava pouco a pouco. Aquele mísero instante, aquela mísera sensação de troca de olhares, pareceu durar uma eternidade. O pânico catatônico o envolveu de uma forma nunca antes saboreada, impossibilitando-o de fazer qualquer coisa além de desejar o fim daquela agonia. Naquele momento, não parecia existir nada além daquela tensão, daquela criança, do medo de ser pego e acabar como as centenas de outros sequestrados: no limbo. Havia algo na mão da criança, ele notou, sem conseguir deduzir ou ver o que era. Ela deu mais alguns passos adiante. Afastou uns galhos, olhou para um lado e depois para o outro. Ficaram a pouquíssimos metros dela. George até mesmo pôde sentir o seu forte perfume. Um tênue odor de cereja misturado com inseticida barato. Sem parecer ter encontrado nada na busca, a criança cansou de olhar a escuridão e suspirou. Largou os galhos, deu as costas e voltou para onde esperava o grupo. — Acho que estou ficando maluca, doutor — disse. O doutor gargalhou. — Sempre foi, Beth. Sempre foi. Lentamente, George voltou a respirar. Seu corpo recordou como a coisa funcionava. Não conseguia imaginar o que teria acontecido caso aquilo tivesse durado um pouco mais. Talvez morresse asfixiado pelo próprio medo, morto pela corda invisível. Talvez desmaiasse tamanho o estresse. Talvez não fosse capaz de suportar por muito mais e, num ato de puro desespero, resolvesse correr desenfreado. Não demorou muito para sentir o cheiro de urina. Não sentia as calças molhadas, mas, mesmo tudo apontando para Denis, não conseguiu olhar para baixo ou mesmo para o lado para conferir. Lentamente, levou a mão até a virilha. Engoliu em seco. O cheiro não vinha dele. Mesmo quando a garotinha já se encontrava distante, os jornalistas continuaram a agir como se ela ainda os procurasse. Não queriam passar por aquilo mais uma vez. Poderiam não ter a mesma sorte. O bando ficou esperando por algum tempo. O doutor constantemente olhava para o relógio em seu pulso, um tanto quanto impaciente. Talvez existisse um outro compromisso requisitando sua presença. George os observava na esperança de encontrar qualquer coisa além das placas para identificá-los futuramente. No entanto, antes de conseguir descobrir qualquer coisa útil, um carro apareceu bem longe. 4. Viajar de carro nunca foi uma coisa muito prazerosa para Diana, mas ela não se encontrava em posição de escolher. Ou ia com a família ou ficava em casa sozinha durante uma semana inteira. Considerando o nível de desgosto entre ficar uma semana abandonada ou passar um dia confinada dentro de um carro, a escolha até pareceu fácil. Preferia estar com a família, embora não gostasse tanto assim dos parentes do seu esposo. — Vai adorar a cabana — havia dito o marido com aquele seu sorriso boboca de vencedor. Ele sempre lutou para arrastá-la num daqueles passeios exóticos. — Vamos caçar. Posso te ensinar a atirar. Não, ela não iria caçar. E não, ela não iria pegar numa arma. Nunquinha. A família de Augusto possuía alguns costumes estranhos — ao menos sob o olhar crítico e urbano dela. Quando tinha apenas doze anos, o marido já havia caçado, matado e empalhado um pobre animal. E agora o safado queria ensinar o filho a caçar, assim como o pai o ensinara. Contra aquilo ela não iria protestar, a não ser que o filho também não quisesse se envolver com aquele tipo de bizarrice. Ela não era vegana e não nutria qualquer pretensão de se tornar uma, mas também não via motivo algum para matar um animal com as próprias mãos — ou mesmo compactuar com tamanha atrocidade. Já era difícil o suficiente esquecer todas as vezes em que ela, por qualquer motivo inoportuno, recordava de onde vinha todo e qualquer suculento pedacinho de carne. Infelizmente, não existem árvores de bacon ou picanha. Infelizmente. Ela fez uma careta. — É um costume. Somos uma família de caçadores, meu amor. — Não, Augusto. — Diana riu e rebateu. — Você é um professor de taekwondo que, uma vez no ano, vai caçar com sua família maluca. — Ela revirou os olhos ao pensar no que tornava a coisa toda ainda pior: caçar no Brasil era crime havia décadas. Um certo arrependimento pairava sobre os pensamentos dela, mas já não podia mais voltar atrás — mesmo que quisesse. Já se encontravam na metade do caminho, e Diana, no banco traseiro do carro, tentava começar pela sexta vez naquele mesmo dia a ler O Iluminado. Havia lido tantas vezes os primeiros parágrafos que acabou memorizando alguns deles. “Jack Torrance pensou: babaquinha pomposo.” Sempre acontecia alguma coisa, e ela se sentia obrigada a parar a leitura: um carro passava buzinando; Augusto e Mateus cantando com entusiasmo uma música enjoadado Bon Jovi; um maldito quebra-molas não notado pelo displicente motorista; eles precisavam parar para abastecer. O máximo que conseguiu alcançar sem ser interrompida foi a parte em que Jack Torrance entendia o argumento sobre um snowmobile, no qual Ullman fez uma suposição a respeito de um possível acidente num local isolado. Parecia uma realidade terrível aquela. O que interrompeu a leitura dessa vez foi algo bem mais inusitado. Enquanto tentava ler as palavrinhas em constante movimento, como se estivessem tentando fugir dela, Diana ouviu o filho gritar: — Pai! Conseguiu erguer os olhos a tempo de ver a menininha no meio da estrada. Augusto freou abruptamente, e os pneus do carro gritaram alto enquanto derrapavam sobre o asfalto da BR-101. Por um instante, pareceu que o carro ia atropelar a menina. Embora tenha sido por muito pouco, felizmente não chegou a acontecer. Augusto saltou do veículo, assustado. No banco do passageiro, Mateus esticou o pescoço na tentativa de visualizar melhor a cena. — O que faz aqui no meio do nada? — Augusto indagou, sua voz tomada pela adrenalina. A resposta da criança foi um balbuciar de palavras incompreensíveis misturadas a um choro deturpado pela gagueira. As palavras saíram apressadas e embaraçadas, tornando impossível qualquer entendimento. “Casa. Eles. Pegaram. Fugi. Meus pais. Corri. Doendo. Pés.” Essas foram algumas das palavras vomitadas pela menina. Augusto olhou para o carro com uma expressão atordoada, buscando saber se a esposa conseguiu compreender alguma coisa. Diana balançou a cabeça negativamente. — Você está bem? — perguntou o marido. — Tá machucada? Olhou para a estrada ao seu redor. De onde, pelo amor de Deus, aquela menina saíra? A noite fazia do lugar praticamente uma penumbra. O poste mais próximo ficava a alguns bons metros à frente. A menina continuava a chorar e, sem que Diana percebesse, quando voltou a olhar na direção dela e do marido, ela se abrigava nos braços dele. — Tudo bem — dizia Augusto, ajoelhado. — Vai ficar tudo bem. — Ele continuava olhando para Diana, ainda buscando uma resposta no olhar dela. — Não — a menina disse. — Não vai. Mais uma vez, o filho gritou: — Pai! Diana olhou para o mundo ao seu redor, o rosto maquiado por uma expressão desorientada. Viu um par de sombras aproximando-se lentamente do carro. Augusto se ergueu, assustado, tentando esconder a menina atrás de si. — São eles! São eles! São eles! — voltou a gritar e continuou a gritar, histérica. O par de sombras estava próximo. Próximo o suficiente para Diana notar as máscaras que lhes cobriam os rostos. Máscaras com bicos pontudos e olhos que se destacavam na escuridão. Sentiu vontade de gritar como a garotinha — e teria gritado se a voz não tivesse ficado entalada na garganta. Não conseguiu fazer nada além de assistir àquilo tudo boquiaberta e com os olhos bem arregalados, incrédulos. — Ei, vocês — disse Augusto com uma voz trêmula. — Não temos muita grana. Umas cento e cinquenta pratas. Se quiserem, podem até levar o carro. — Engoliu em seco, erguendo as mãos num gesto de paz e submissão. Os homens não deram ouvidos às suas palavras e continuaram caminhando na direção do carro. Augusto correu de volta para o veículo, arrastando consigo a menina. Diana não conseguia tirar os olhos dos homens-sombra. Um deles caminhava de uma forma estranha. Numa outra situação, poderia até tê-lo achado engraçado, desprovido de compasso e equilíbrio. Porém, naquele momento, só podia pensar em como ele parecia assustador envolvido pela fria noite. Já o outro, a contraponto, caminhava de forma monocórdia feito um verdadeiro robô. A menina surgiu no seu colo, atirada pelo marido. Tudo aconteceu muito rápido. Augusto deu partida no carro, o motor soou alto; Diana envolveu a criança num abraço apertado. Mateus gritou quando os homens alcançaram a porta do veículo; Augusto acelerou, a porta foi arrancada. O marido deixou escapar um grito de pânico; Diana, um suspiro rouco. A criança somou seu grito ao do filho. O carro andou alguns poucos metros, mas, assim como a porta, o marido foi arrancado. Um frio avassalador, terrível e congelador preencheu o veículo. Por um instante, tudo ficou muito silencioso. Era como se Deus houvesse apertado, com o seu controle remoto universal, o botão de “silenciar.” Diana ficou encarando a porta arrancada com olhos incrédulos. O filho, travado no banco do passageiro com a boca aberta e o rosto congelado numa expressão aterrorizada. A criança finalmente em silêncio. Lentamente, olhou para trás. O marido lutava para escapar dos homens-sombra. A criança parecia se esforçar para se livrar do seu abraço apertado. Nem chegou a reparar no quão forte apertava a pobre coitada. Nem mesmo chegou a reparar que segurava algo. O que estava acontecendo? Sem conseguir tirar os olhos do marido, Diana ouviu a porta do passageiro se abrir. Meu filho, ela pensou, e um mau pressentimento a assolou feito uma descarga elétrica. Sua boca novamente se abriu e mais uma vez ela se viu incapaz de gritar — ou de fazer qualquer coisa além de permanecer no carro. Ficou apenas com a boca aberta e uma expressão maquiada de desespero desorientado. Nem ao menos passou pela cabeça dela a possibilidade de tomar uma atitude. Tudo parecia surreal, um pesadelo em que ela não passava de uma coadjuvante sem falas ou ações relevantes. O que estava acontecendo? O filho empunhava o rifle do pai. O marido lutava contra os estranhos mascarados. Ele era um bom lutador, afinal, vivia daquilo. Porém, havia algo de errado com seus adversários. Augusto desferiu incontáveis golpes em cada um deles e, mesmo assim, nenhum pareceu surtir qualquer efeito. Por vezes, fugia da investida lenta dos dois e contra-atacava com socos e pontapés. O máximo que conseguia fazer era empurrar os sujeitos para mais longe. E eles sempre voltavam a atacar como se nada houvesse acontecido. Por Deus. O que estava acontecendo? Enquanto o pai lutava e escapava do par de sombras, Mateus assistia a tudo com a escopeta nas mãos. Não parecia confiante. Como estaria? Era noite, o mundo praticamente uma penumbra iluminada apenas pelas lanternas traseiras do carro, e ele nervoso demais, vivenciado o próprio filme de horror. Não passava de uma criança! Segurava a arma como se ela fosse um animal perigoso. Mortal. Porém, contrariando a tudo, ergueu a arma desajeitadamente. Mirou com cuidado por mais de quinze segundos, aguardando pelo momento perfeito, tomando todo o cuidado do mundo para não acertar o pai por acidente. E sim. Ele atirou. E acertou. O disparo foi certeiro e encontrou as costas de um dos algozes. Ele caiu instantaneamente de cara no chão. E lá ficou, sem se mexer — aparentemente morto. Diana deixou um sorriso torto escapulir. Um sorriso que era um misto de pânico e fé. Ela apertou ainda mais a criança, sem se dar conta de que o fazia. Era como se, naquele gesto inconsciente, ela buscasse se agarrar a um pingo de esperança. E ela a segurava desesperadamente, como se o destino do mundo dependesse daquilo. Ao menos o seu dependia. O filho voltou a engatilhar o cão, deixando a arma pronta para um novo disparo, e se aproximou da confusão. Parecia mais confiante agora, depois do primeiro tiro bem-sucedido. No entanto, sua confiança sumiu tão depressa quanto apareceu. O homem alvejado pela bala de escopeta se remexeu muito lentamente e se sentou. Fez tudo isso com os olhos brilhantes cravados no adolescente. Um espasmo correu pelo corpo dele, seguido por um grunhido estranho que poderia ter sido uma risada. Com uma mão apoiada no asfalto, voltou a se erguer muito lentamente. Mateus deu passos curtos para trás e novamente mirou no mascarado. — Para trás. Para trás! — gritou. — Ou eu atiro de novo. Desengonçado e lento, o grandalhão caminhou na direção do filho. Não parecia se importar com a arma apontada para si. Conforme o sujeito se aproximava, Mateus arrastava os pés na direção contrária. E ficou sem ter para onde fugir quando suas costas encontraram o carro estacionado, os olhosarregalados sobre o mascarado. Nem sequer passou por sua cabeça apontar a arma para o grandalhão novamente. Um aperto no coração fez Diana soltar a menina e, dessa vez, o grito não ficou preso na garganta. Saiu violento, vomitado e esganiçado, fazendo sua garganta ficar em chamas imediatamente: — Atira, Mateus! O filho se assustou com o grito. Podia ouvi-lo soluçando e podia vê-lo tremendo. Diana, histérica e desesperada, gritou novamente: — Atira. Atira. Atira. Atira! E ele atirou. Dessa vez, porém, errou por muito. Não houve tempo para um terceiro disparo, assim como não havia mais tempo para qualquer outra coisa. O homem-sombra suspendeu a criança pelo pescoço, roubando-lhe todo o ar. Mateus deixou escapar um arfar descontrolado, assim como a arma de sua mão. Ficou chutando o mascarado com os pés, esperneando-se como um homem suspenso numa forca. Conforme o homem-sombra espremia seu pescoço, suas pernas perdiam o ímpeto, transformando-se em nada mais do que o tímido oscilar de um balanço empurrado pelo vento. Não demorou muito tempo para eles cessarem por completo. Diana assistia a tudo sem conseguir acreditar. Que diabos está acontecendo? O menino foi largado no chão, desfalecido. O homem-sombra ficou encarando-o por um instante, com a cabeça pendendo para a esquerda. Depois olhou na direção dela, bem no fundo de seus olhos. Pareceu se alimentar do medo diante de si, do olhar apavorado de uma mãe que acabava de ver o filho ser estrangulado. Fez novamente aquele som esquisito parecido com um riso — ou talvez um soluço. Deu de ombros e foi embora. Estremeceu com os olhos repletos de lágrimas. Diana levou as mãos aos olhos e os esfregou com muita força. Ela nem reparou no marido caído no chão. Queria acordar. Queria fugir daquela terrível realidade. — Ei — fez a criança, sem qualquer resquício do tom lamurioso. — Não fique triste. Não precisa chorar assim. Foi divertido, não? Disparou à menina um olhar úmido e assustado. Ela escondia uma das mãos nas costas, como se guardasse ali uma surpresa. — O quê? — Sua voz saiu esganiçada. A criança a encarava, um esboço de sorriso nos olhos. — Foi um bom sequestro. A maioria das pessoas não reage tão bem quanto vocês — ela falou. — Obrigada. Agora sim ela deixou escapar o sorriso por completo. Um sorriso de criança satisfeita. Largo demais para um rosto tão delicado e pequeno. Assustador demais para um rosto tão angelical. Terrível demais para maquiar as feições de uma criança. Contudo, existia algo de muito errado no rosto dela. Seus olhos não sorriam, apenas a boca. Quase como se ela fosse uma atriz de terceiro escalão, sem talento suficiente para emular por completo a expressão devassa de quem gozava do terror alheio. Os olhos escuros, sem brilho. Sem nada. — Você armou tudo isso? — Diana indagou, incapaz de acreditar. A resposta foi um balançar a cabeça de um lado para o outro. Da esquerda para direita. Da direita para a esquerda. — É. Mais ou menos. Mais pra menos. Diana voltou a olhar para a mão da criança, a que não estava visível. — O que você tem aí? — Um presente especial. Só para você. Seu olhar subiu de encontro aos olhos estranhos da menina. Ficou com medo de se perder naquela imensa inexpressão. Respirou fundo e, tentando ser rápida, jogou-se na direção da maldita fedelha. Porém, ela parecia já esperar por aquilo. Antes que fosse capaz de atacá-la, uma seringa foi cravada em seu pescoço. Ainda conseguiu ficar sobre a menina. Nem chegou a reparar na seringa espetada nela. Suas mãos foram de encontro ao pescoço da maldita fedelha. Usou toda a sua força para esganar a desgraçada. A criança sorria e a encarava como se aquela fosse a sua brincadeira favorita. Ela gargalhava e tossia. Tossia e gargalhava. Os olhos permaneciam estáticos. A visão de Diana ficou embaçada e depois voltou ao normal. E logo voltou a embaçar e desembaçar novamente. Usou todas as forças restantes para apertar ainda mais aquele frágil pescoço. Aquele maldito pescoço. Ela piscou longamente, o corpo exausto. E ficava mais exausto a cada piscada, a cada segundo perdido. Até que os dedos perderam a força. Seu último vislumbre foi aquele sorriso de criança satisfeita. 5. — Temos um problema, Baltazar! — a menininha gritou, já fora do carro. O doutor se apressou na direção dela. — Mas que filho da puta — resmungou ele e depois caiu numa breve gargalhada. O garoto havia errado o mascarado por muito, mas acabou acertando o pai em cheio. — Está mortinho. A criança chutou o corpo do homem. — Pegaram a mulher? — perguntou o doutor, o tal do Baltazar. — Peguei. — É o suficiente. Vamos embora — ele disse, já se distanciando do grupo. — Vamos deixá-lo aqui? — Não precisamos de mais mortos. A menininha deu de ombros. Os capangas mascarados pegaram o filho e a mãe e os jogaram na Kombi branca feito pedaços de carne. Não muito tempo depois, assim como os demais veículos avistados naquela mesma noite, o carro funerário e a Kombi branca sumiram no mundo. Anotaram as placas e os nomes. George e Denis passaram algum tempo ainda entocados. Trocaram olhares no escuro, ambos ofegantes e amedrontados. George engoliu em seco e, quando dispensou a possibilidade de os sujeitos voltarem, abandonou o esconderijo. Denis o acompanhou. Foram caminhando devagar, receosos e ainda desacreditados em tudo o que haviam presenciado. George constantemente levava as mãos à cabeça. As pernas de Denis tremiam. Cada passo se assemelhava a um tropeço, e o seguinte apenas consequência do tropeço anterior. — Está morto. Morto, George — arquejou com nojo. A cabeça do homem estava parcialmente destruída pelo disparo. Boa parte dela jazia esparramada no chão. Já cheirava mal. — Puta que pariu, George. Puta que pariu! Puta que pariu. Denis se ajoelhou ao lado do corpo, entorpecido pelo remorso. Colocou sobre os ombros toda a culpa pelo ocorrido. George olhava para os lados, temendo que algum carro pudesse aparecer. Seria um flagrante e tanto. — Deveríamos ter avisado a polícia! — Denis esbravejou, fazendo das palavras uma acusação. — Isso é culpa nossa. Puta que pariu, George. O que vamos fazer agora? Puta que pariu! George parecia mais calmo, mas só parecia. A chuva finalmente caiu, depois de tantas ameaças durante a semana inteira. Não uma chuvinha passageira, muito menos uma garoa mais violenta, mas sim uma torrencial tempestade. As gotículas despencavam do céu escuro e, grossas como eram, chegavam a machucar. Num segundo, o mundo estava seco e frio. No outro, alagado como se aquele fosse o terceiro ou quarto dia seguido de chuva. Denis ficou assistindo, sem pestanejar, aos miolos do homem morto serem espalhados pelo asfalto. — Precisamos sair daqui, Denis. — Tocou o ombro do parceiro. Ambos já se encontravam ensopados. — Vamos. Não há nada para ser feito aqui. Denis o encarou por um instante. Parecia chorar havia horas, mas nenhuma lágrima tinha sido derramada. O céu chorava por ele. Afastou a mão de George com uma sacudida de ombro. — Precisamos ligar pra alguém, isso sim. A polícia. — Não, não precisamos nada. Ele será encontrado. Vamos andando antes que algum curioso resolva parar. — Mas… — Mas o quê, Denis?! — George estourou. — Quer ficar aqui e explicar à polícia como nós assistimos a um homem ser morto pelo próprio filho e sua família sequestrada? É isso o que quer? Quer ser preso como cúmplice? Não vão nos dar uma medalha nem vão nos chamar de heróis. Seremos tachados como bandidos. Seremos presos. Você não vê isso? Precisamos vazar o quanto antes. Demorou um pouco para Denis perceber que não fazia a menor diferença ficar ali ou não. Deu uma última olhada para o defunto. Sua boca se apertou numa indignação silenciosa. Lentamente, ele se levantou feito um boxeador depois de levar um soco e por pouco não ter perdido a partida por nocaute já nos últimos segundos da contagem. A dupla correu na direção do carro escondido sob a árvore. Denis passou o caminho todo choramingando sobre a culpa deles naquilo tudo. George passou o caminho todo calado, refletindosobre os recentes acontecimentos. As palavras de seu parceiro chegavam ao seu ouvido, mas ele não as ouvia. Não conseguia. O barulho dentro de sua cabeça soava alto demais. Vozes estranhas gritavam coisas estranhas. No meio do percurso, resolveu parar o carro de súbito. Tirou as mãos do volante, pousando-as nas coxas, e fitou a estrada. Não proferiu uma única palavra. Apenas ficou observando a chuva tamborilando violentamente contra o capô. Denis falou uma coisa ou outra, mas ele ainda não ouvia nada. Nem sequer ouviu um carro que passou ao seu lado buzinando alto. Era tudo verdade, George concebeu. Todo o seu trabalho havia findado em alguma coisa. Todo o esforço e comprometimento serviram, pela primeira vez em toda a sua vida, a algo… Algo certo. Pela primeira vez. Seu suor havia lhe trazido alguma coisa que não a mais pura e simples decepção. Pela primeira vez, os seus esforços não foram premiados com o fracasso. Um sorriso iluminou o seu rosto. E o sorriso logo foi transformado em vergonha quando se lembrou do homem abandonado na estrada. Era tudo verdade. CAPÍTULO 2 1. Denis estava cheio de perguntas sem respostas. A noite anterior havia sido dolorosa, e ficou reprisando-a na cabeça até cair num sono profundo. Não fazia a menor ideia de quando apagara, mas dormira um sono sem sonhos e acordara com a imagem do homem morto na cabeça. O dia seguiu com essa imagem o atormentando. Não importava para onde olhava ou em que tenta se concentrar, sempre voltava a ver e a pensar no defunto. Sentia como se estivesse congelado no tempo; parado naquele momento, naquela noite, enquanto o mundo ao seu redor continuava a girar e girar. As horas passaram em alta velocidade, umas por cima das outras, assim como os veículos passavam pela estrada na noite anterior. E, assim como os carros, as horas foram esquecidas quando deixadas para trás. Mesmo atordoado como se encontrava, sabe-se lá por qual motivo, resolveu ir para o trabalho. Passou a tarde inteira fitando os tópicos de matérias a serem escritas. Não chegou a ligar o computador e muito menos a escrever qualquer coisa. Quando o expediente acabou e quase todos os funcionários abandonaram o jornal, apenas ele restava ali. Existindo. O som de uma porta sendo aberta soou atrás dele. — Ei, Denis. O que ainda faz aqui a essa hora? — Concluindo uns trabalhos. — A não ser que esteja escrevendo com a força do pensamento, ainda com o computador desligado… — A sra. Karla sorriu, irônica, e colocou uma mão delicada sobre o seu ombro. Num passado não muito distante, como costumava acontecer, teria a puxado para perto de si, apertado sua bunda com força e dado um longo beijo nela. Denis apenas a encarou, os olhos desprovidos de qualquer desejo. — Desculpe, minha cabeça tá uma bagunça hoje. — Sem problema, querido. Vejo que o George não apareceu hoje. Será que vai nos agraciar finalmente com um pedido de demissão? — ela brincou. — Se cuida. Hoje eu fiz vista grossa por você ser o nosso melhor redator, mas amanhã eu o quero a 110% para compensar o dia perdido. — Sim, senhora. Ela o beijou na bochecha e, quando a boca dela encontrou a sua, o beijo saiu sem qualquer vontade por parte dele. Ela parou um instante, olhando-o nos olhos. — Tudo bem? Denis esboçou um sorriso cansado e mentiu: — Tudo bem. Desculpa. Não estou no clima hoje. — Fez uma pausa. — Pensando em outras coisas… — Posso ver — ela confessou. — Nos vemos depois, então. Até mais. Quando a sra. Karla saiu, Denis continuou a fitar o quadro por mais alguns instantes. E quando percebeu quanto tempo havia perdido naquele estado atemporal, decidiu que já era hora de ter uma longa conversa com George. Ligou para o parceiro uma dúzia de vezes, sem receber nenhuma resposta além da gravada na caixa postal. George era a única pessoa que Denis conhecia que tinha sua própria mensagem. “Oi. Você ligou para o George; deixe o seu recado.” Dirigiu-se até o quartinho alugado por eles para tocar a investigação, e nada de George por ali também. Existia mais uma alternativa para tentar e, quando chegou ao bar, não encontrou o parceiro por lá. Denis se sentou e pediu algo para beber. 2. George encontrou o parceiro para lá de bêbado no barzinho. Costumavam frequentar o lugar para espairecer, quando já se encontravam praticamente esgotados — ou entediados — depois de tantas horas e horas correndo atrás de pistas num quartinho minúsculo. Denis balbuciava palavras de difícil compreensão na tentativa de barganhar mais um copo com o garçom, que provavelmente já tinha uma audição muito bem treinada para decifrar o incompreensível linguajar dos bêbados. Talvez como um farmacêutico capaz de ler os garranchos escritos pelos médicos. Um talento bastante peculiar. Os olhos de Denis flagraram George. — Por que demorou tanto? — perguntou. — Venha aqui, diga a esse bom homem para me dar mais um copo. — Vou levá-lo para casa, Denis. — Pra casa não. — Quanto ele deve? — indagou ao garçom. — Relaxe, já pagou. Tire-o daqui e não dê mais bebida a ele. Esse daí não pode ver mais um copo hoje, senão vai parar no hospital. — Certo. Obrigado. Pensou que a força seria necessária para tirá-lo dali, mas não foi. Bastou passar a mão por baixo do braço do bêbado e guiá-lo para fora do bar. Ele se deixou conduzir, dócil feito uma criança de cinco anos repleta de sono. Acomodou o parceiro no banco traseiro do carro e dirigiu. — Por que tava enchendo a cara? — George perguntou. Viu pelo retrovisor o sorriso de Denis, e o sorriso logo morreu, dando espaço a uma expressão repleta de remorso. — Não sei. — Sacudiu a cabeça. — Me pareceu uma boa. — Denis fez uma pausa. — Foi nossa culpa, George. 3. Denis abriu os olhos e reconheceu o quartinho alugado. Não se lembrava de ter bebido e muito menos de como fora parar ali. Sua cabeça latejava, e a ânsia de vômito incomodava no fundo da garganta. — Já era hora. — Ouviu alguém dizer. Tentou falar, mas não encontrou a própria voz. Olhou para o lado, e o mundo girou. Alguém colocou um balde à sua frente. Ele o tomou nas mãos e ficou esperando pelo vômito. Esperou e esperou. Nada aconteceu. Enquanto George falava alguma coisa sobre ter encontrado um manicômio, Denis voltou a cair num sono pesado. Despertou sem saber se essa era a primeira, a segunda ou até mesmo a terceira vez. A vontade de vomitar havia passado e o balde não estava mais lá. Sentia cheiro de vômito. A cabeça continuava a girar. Olhou para os lados e encontrou George sentado, provavelmente pesquisando alguma coisa. Sua noção de tempo se encontrava completamente deturpada. — Que horas são? — quis saber. — Quase duas — George respondeu. — Noite? — Sim. Sentou-se na cama e ficou massageando a têmpora com as pontas dos dedos. — Que dor de cabeça da porra. — Eu os encontrei. Rastreei a placa de ambos os veículos. Um pertence a uma casa funerária bem antiga e o outro é uma espécie de Kombi branca de manicômio. Fechou os olhos com força e os abriu, muito devagar, colocando-os sobre George. — Onde? — Não fica muito longe. Perto de uma área abandonada. — Abandonado? — perguntou. — Abandonada? — Sim. Ninguém vai lá há anos. Está abandonado há mais de duas décadas. Foi comprado por um grupo desconhecido com a promessa de que um hotel ou coisa do tipo seria construído. Acabou não saindo do papel. — O que vamos fazer, George? — Ir até lá — George disse e o encarou por um longo instante. — Quando estiver em condições de fazer qualquer coisa. CAPÍTULO 3 1. O dia seguinte se arrastou. George, desprovido de qualquer disposição, resolveu perder mais um dia de trabalho. Quando voltasse, caso tivesse o infortúnio de voltar, pretendia arranjar um atestado ou mesmo uma desculpa capaz de satisfazer a sra. Karla — aquela megera imprestável. Deu uma rápida passada em casa. Havia algumas semanas que não pisava por lá e, graças a Deus, não se deparou com a mulher, embora o receio maior fosse o de encontrá-la acompanhada. Tomou um banho demorado, apanhou umas roupas, uma caixinha de madeira com alguns pertences e foi embora.Pela primeira vez em anos, sentia-se bem ao sair de casa. Lá pelo fim da tarde, quando faltava muito pouco para o anoitecer, a dupla encarava o Instituto Alice Bailey. — Tem certeza de que é aqui? — o parceiro perguntou. George acenou positivamente. O manicômio era uma grande construção, praticamente um condomínio, com três prédios ao todo. Dois grandes e um mais modesto. Ainda existia uma pequena casinha destruída ao fundo. Todas construções muito antigas e, de certa forma, assustadoras. Olhando para as três, seria difícil deduzir qual se encontrava mais maltratada pelo tempo e pelos cuidados negligenciados. As paredes, talvez por um milagre, ainda se mantinham de pé. Olhando de longe, George nutria a impressão de que qualquer vento mais forte seria o suficiente para levar qualquer um dos prédios abaixo. Talvez uma reles baforada do Lobo Mau, pensou. Ficava localizado numa área praticamente abandonada da cidade. George conhecia o lugar, todos conheciam. Ao menos uma vez na vida todo natalense ouvia as histórias terríveis que o cercavam: assombrações, contos bizarros e todo tipo de lorota. A coisa só melhorava. — Isso foi construído há quanto tempo? — indagou Denis. — Mais de um século e meio. Foi reformado nos anos quarenta e logo depois nos setenta, mas veio a falir no finzinho da década de noventa, quase nos anos dois mil. Denis franziu as sobrancelhas. — Como um manicômio consegue falir? George revirou o caderninho cheio de anotações. Havia anotado quase tudo o que fora capaz de encontrar a respeito da história daquele tenebroso manicômio. Mas eram poucas as pessoas em Natal que não a sabiam de cor. Só as mais jovens, como Denis. — Não foi exatamente à falência, mas sim fechado. Rolaram muitos boatos a respeito de maus-tratos durante os anos oitenta, setenta e até mesmo sessenta. Nada chegou a ser realmente confirmado. Inclusive, rolou uma investigação mais profunda por parte da polícia e ainda assim não chegaram a encontrar nada de irregular. Algumas pessoas acreditam que os policiais foram comprados. — Isso não me cheira muito bem. — Tem mais, bem mais. Agora começa a ficar interessante. — George desdobrou um jornal velho e entregou para o companheiro. Depois pegou outro para si. — Dê uma olhada! Na matéria em destaque do antigo jornal, Denis leu: “Instituto Alice Bailey, manicômio incendiado pelos próprios pacientes numa tentativa desesperada de alcançar a liberdade”. O título vinha acompanhando de uma foto do local. Fumaça escapava por algumas janelas, e era possível ver parte das chamas ainda queimando. Carros de bombeiro se encontravam ali também, assim como uma comitiva de curiosos. Um pequeno amontoado de corpos jazia do lado de fora, bem no fundo da fotografia. Mais parecia lixo. — O incêndio não foi assim tão horrível. Digo, alguns pacientes e funcionários morreram queimados, mas apenas cerca de 30% da propriedade foi tocada pelas chamas. — George molhou a ponta de um dedo na boca e virou uma página. — Tudo veio à tona depois do motim. Lobotomia, maus tratos, experimentos bizarros, coisas satânicas e toda a merda que se pode imaginar vinda de um lugar como esse. Denis espremeu os olhos com força na tentativa de puxar do fundo da memória qualquer lembrança relacionada ao evento. Havia algo de muito familiar naquela matéria. O nome do manicômio também não lhe era estranho. Instituto Alice Bailey… — Eu lembro — revelou sem tirar os olhos do jornal. — Estava no fim do ensino médio quando tudo aconteceu. A maioria dos pacientes que conseguiu escapar atacou os funcionários. Foi um banho de sangue. Os seguranças abriram fogo contra eles, mas eram muitos para serem contidos por meia dúzia de homens com poucas armas. — Sim, isso. Foi um verdadeiro banho de sangue. Mais de cem mortos numa só noite. Muitos funcionários morreram. Muitos também sumiram e, até hoje, tantos permanecem desaparecidos. Um número enorme de pacientes e funcionários. — George fez uma pausa. — Uma das maiores tragédias dos últimos tempos. Mas, como eram loucos, ninguém se importou com as mortes e logo tudo foi esquecido. George sacudiu o jornal e leu mais algumas linhas. Aquilo beirava o surreal. Curioso demais para o seu gosto. E se tudo estivesse diretamente conectado com os sequestradores… seria uma bomba e tanto. Mal conseguia conter a empolgação dentro de si. Já imaginava seu nome estampado em dezenas de capas de jornais diferentes — e famosos; talvez famosos mundialmente. “George Garcia, jornalista de trinta e sete anos, depois de uma minuciosa investigação, descobre uma série de atrocidades cometida por um grupo de lunáticos.” Um tênue sorriso sonhador se formou e só se desfez quando voltou à realidade instantes depois. — Encontrou mais alguma informação importante aí? — Não exatamente, mas o diretor do manicômio, um tal de Reinhard Prinston, que morreu na noite do motim, não era o dono. — E quem era? — Um tal de Baltazar. Não se fala muito mais a respeito dele aqui. — Denis fez uma pausa e estudou mais alguns parágrafos. — Precisamos pesquisar mais sobre esse nome. Tenho a impressão de que pode ser apenas um pseudônimo ou coisa do tipo. Tem muita coisa que não está encaixando muito bem. George se remexeu no banco ao ouvir tal nome. — O mesmo Baltazar que vimos naquela noite? — Com toda certeza não. Ele teria pelo menos uns cento e sessenta anos hoje. Segundo o que diz aqui, esse Baltazar fundou o manicômio na década de quarenta, e já era velho. É provável que aquele seja algum herdeiro ou coisa do tipo. Não seria um absurdo assim tão grande caso o tal Baltazar tivesse mesmo todos aqueles anos — ou, quem sabe, até mais, George ousou fantasiar. O parceiro não pareceu dar muita importância, mas, no dia do sequestro, presenciaram um homem ser atingido em cheio por uma bala de escopeta e o viram se erguer e caminhar como se nada tivesse acontecido instantes depois. Um colete à prova de balas não seria o suficiente para aquilo. E ele duvidava muito que o sujeito mascarado estivesse usando um. Sem falar naquela fedelha assustadora. Beth. — Bom, vou entrar — George anunciou. — Não acho que seja boa ideia. George apenas o encarou, dando a chance para o parceiro se explicar. Óbvio que não era uma boa ideia. Já podia antecipar quais questionamentos seriam levantados naquela discussão e estava preparado para ignorar cada um deles — por mais sensatos que pudessem parecer. — Não sabemos se o prédio está mesmo vazio. — Ele passou a mão nos curtos cabelos escuros. — Se formos pegos, não há volta e esse pessoal vai continuar a cometer essas atrocidades. Não podemos permitir. — E é por isso que eu vou sozinho — George decretou. — Não vou arriscar a operação inteira. Caso eu não volte… Denis o interrompeu, visivelmente inquieto, consternado. — Não. Não pode ser assim. Precisamos entregar tudo à polícia. Você tá louco, cara. Não posso deixar que faça isso. Você viu o que eles fizeram na estrada. Viu do que são capazes. Isso é uma tremenda estupidez. Sejamos sensatos, cara. Já fizemos mais que o suficiente. Ir além disso é um erro. O rosto de George, antes sério, ganhou uma expressão assustadoramente decidida. Nos olhos dele, Denis viu que nenhum argumento seria capaz de fazê-lo repensar aquela idiotice. Aquela loucura. A investigação podia ser comparada a uma piscina repleta de piche negro e pegajoso; George afundava cada vez mais nela e não demonstrava qualquer sinal de incômodo. Parecia ser seu objetivo se afogar em toda aquela podridão. Denis se sentia igualzinho a um bote salva-vidas, ignorado e inútil. Seria possível salvar quem não queria ser salvo? — Olha, Denis, com todo o respeito, comecei tudo isso. Não vou entregar toda a minha pesquisa nas mãos das autoridades dessa forma. Vou até o fim. É o meu nome que vai estar nas páginas dos jornais quando a verdade sobre esses caras vier à tona! — George suspirou e respirou profundamente por um instante. — Veja bem, já deixei tudo preparado. Quando fomos atrás dos caras no outro dia, deixei o meu caderno, com todas as anotações e a nossainvestigação, no meu e-mail. Deixei programado para o caso de eu não aparecer nas próximas semanas. Um sorriso sem humor nasceu nos lábios de Denis. Ele balançou a cabeça sem querer acreditar naquelas palavras — ou como se quisesse negar a verdade nua e crua diante de si, uma verdade inevitável. George era mesmo um filho da puta. Gostaria de saber quando ele pretendia falar a respeito daquelas coisas. Contudo, não era o momento apropriado para discutir aquilo. Precisava enfiar um pouco de bom senso naquela cabeça estúpida e calva. — Só pode estar maluco, George. — O sorriso continuava vivo em seu rosto, assim como a cabeça continuava balançando. — Não posso deixar você se pôr em perigo dessa forma. Se você for… vou contigo. Foi a vez de George sorrir, mas só por um breve instante. — O que eu estaria perdendo? O que tenho a perder? Mais alguns anos naquele jornal de merda, vivendo essa vida de merda, com nenhuma expectativa de melhora para o futuro? — indagou, olhando bem para o companheiro. Ficou esperando Denis responder alguma coisa e, quando ele não abriu a boca, continuou: — Não precisamos ir os dois. Posso ir sozinho. Eu comecei isso. Você não precisa se colocar em perigo. Fui eu quem colocou você nessa. Não quero ser o responsável por sua vida caso algo aconteça. Além do mais, tenho certeza absoluta que esse lugar vai estar vazio. Não seriam loucos a ponto de ficar num local tão óbvio — mentiu ele. Denis balançou a cabeça amargamente, incapaz de compreender tamanha falta de bom senso. O parceiro assinava um atentado contra a própria vida e segurança ao optar por entrar sozinho. Não foi capaz de dizer mais nada, muito menos de pensar. Ele era mesmo um bote salva-vidas ignorado. Inútil. George esticou o braço na direção do porta-luvas, abriu e pegou uma pequena caixinha de madeira. Colocou-a sobre colo e ergueu a tampa. De dentro, tirou um revólver velho. — Estarei protegido — garantiu. — Vamos fazer assim: vou entrar e, caso você escute algo suspeito… — fez uma pausa para conferir se o revólver estava alimentado — algo como um tiro ou qualquer coisa estranha… Ou caso eu demore muito tempo para sair de lá… Você foge, ok? Mete o pé sem olhar pra trás. A resposta veio com um menear de cabeça — relutante, porém positivo. Denis encarava a arma, perguntando se o parceiro sabia mesmo como usá-la. Antes de sair, George ainda disse: — Cara, siga o plano. Se algo der errado, fuja. Não invente de bancar o herói, por favor. Denis voltou a manear a cabeça. — Certo — disse. George deu as costas e começou a caminhar. À medida que se aproximava, o manicômio ia ficando cada vez maior, assim como a incerteza à respeito de suas ações. No entanto, fazendo contraponto à incerteza, havia uma empolgação crescente. Um misto de sensações contraditórias. Um verdadeiro guilty pleasure. A ideia de o lugar estar vazio soava tão possível quanto a de não estar. Naquele momento, não sabia ao certo se queria mesmo encontrar alguém ali. Torcia para dar de cara com uma pista realmente útil para a investigação. Mas… e se realmente estivessem ali? E se fosse pego? Sorriu. Fazia tempo que não se sentia tão vivo quanto naquele momento. Quanto naquela semana, naqueles quase dois anos de investigação. A euforia, o sabor da adrenalina circulando em suas veias o deixou completamente extasiado. Tão saboroso e prazeroso quanto um belo e proveitoso orgasmo também era. George se sentia bem. Disposto. Pronto para viver. Antes de qualquer coisa, rondou o terreno à procura de uma luz acesa ou mesmo algum barulho. Qualquer coisa que pudesse indicar a presença de vida ali dentro. Caminhava esperando uma surpresa desagradável a qualquer instante. Mas ela não veio. Foi checando as portas para saber se estavam abertas. Três tentativas foram necessárias para encontrar uma destrancada e, já satisfeito com o silêncio mórbido que o envolvia, resolveu entrar. George se viu num corredor estreito e escuro, cheirando a mofo e abandono. Por dentro, a situação parecia tão precária quanto por fora. Sacou uma lanterna barata e observou o espaço ao redor. Iluminou as paredes já descascadas e gastas demais para identificar qual havia sido a cor original; iluminou quadros desbotados e também os seus passos por sobre o carpete repleto de irregularidades e buracos. Encontrou duas dúzias de portas naquele corredor, nenhuma delas aberta. Eram aquelas típicas portas de manicômio, com janelinhas e tudo mais. Tentava iluminar ao máximo os detalhes daquela construção, procurando por pistas ou qualquer coisa que o fizesse crer que estava no local certo. Só queria encontrar algo e fazer desse algo o seu furo. O seu nome. A verdadeira ponta do iceberg. Seguiu com passos curtos até o fim do corredor, tomando muito cuidado para evitar os buracos no carpete. Os corredores exalavam um cheiro estranho, muito parecido com o tão comum aos hospitais, mas, ainda assim, completamente diferente em essência. George não saberia explicar exatamente o motivo. Porém, o cheiro o incomodou assim que o percebeu. O corredor se esticava estreito, até terminar numa porta branca. Essa, por sorte ou azar, encontrava-se aberta. Ela rangeu baixinho quando George a empurrou. Foi introduzido numa recepção, percebeu ao iluminar um balcão. Além dele, notou uma mancha de sangue no chão. Ficou encarando-a por alguns instantes, imaginando se existia havia muito ou pouco tempo. Seria difícil deduzir. Foi iluminando aos poucos e com calma o restante do caminho. A luz da lanterna não alcançava muito mais que dois metros. Por isso, George precisava se aproximar mais das coisas caso quisesse vê-las melhor. Encontrou uma escada que descia e outra que subia, mas, antes de escolher alguma delas, foi até o balcão da recepção e bisbilhotou as gavetas. Encontrou um punhado de papéis e algumas chaves. Nada que, a princípio, pudesse servir como uma pista. Em uma das gavetas, a mais baixa, achou uma caderneta muito curiosa. Ela possuía uma mulher nua estampada na capinha. Parecia-se com uma atriz famosa, de cabelo escuro e pele muito branca, um cachimbo pendendo da boca. Até fez um breve esforço para recordar seu nome, mas foi em vão. George abriu a caderneta e iluminou suas letras com a lanterna. Já nos primeiros parágrafos pôde perceber que se tratava de um diário. A maioria das páginas se encontrava intocada. O autor, por certo, não tivera tempo suficiente para preencher as linhas em branco com o restante da sua história. Os pacientes estão agitados hoje. As noites estão cada vez mais difíceis. Eles ficam inquietos dentro de seus quartinhos, e eu tenho medo de entregar o jantar. Na ala leste, geralmente, escuto coisas durante a noite. Às vezes são gritos e às vezes são coisas que nem gritos parecem ser. Berros inumanos, coisas verdadeiramente animalescas. Tenho medo de confrontar os “médicos” e saber que essas coisas não existem apenas na minha cabeça. Um relato de 1995, escrito por um tal de Maurício Norbe poucos dias antes do incêndio e da rebelião. Pobre coitado, George pensou depois de enfiar o pequeno caderno dentro do bolso. Afastou-se do balcão e começou a subir os degraus, agora com o objetivo de procurar a tal ala leste. Enquanto subia, George parou abruptamente, achando ter ouvido alguma coisa — como se algo muito pequeno tivesse sido derrubado no chão. Um som muito distante. Deve ter sido o vento, decidiu, com os pelinhos da nuca eriçados. Nos filmes, nunca é o vento, lembrou. Os passos seguintes foram ainda mais cautelosos. Já conseguia enxergar os pavilhões repletos de portas. As escadas subiam até o quinto andar e, para cada andar, havia um pavilhão recheado de quartos, ou melhor, de celas. Tinha a estranha impressão de que a construção parecia bem maior quando olhada por dentro, talvez por conta da péssima iluminação. Só conseguia enxergar com precisão até onde a lanterna alcançava. O resto aparentava ser um amontoado de sombras deformadas. O manicômio, de fato, parecia completamente abandonado. E mesmo assim George se sentia estranho lá dentro. O local haviaservido de palco para uma quantidade inimaginável de atrocidades e sabe-se lá mais o quê. Vítimas esquecidas pelo tempo e, muito provavelmente, pessoas que sofreram demais durante suas vidas — e, também muito provável, em suas mortes. Olhava constantemente para algumas das celas e imaginava como teria sido a vida das pessoas que tiveram o azar de viver ali. Não se encontrava tão excitado agora quanto estava antes de entrar. Para ser bem honesto, começava a se sentir meio paranoico com tudo. Imaginava que, caso movesse a lanterna muito rapidamente, poderia se deparar com um monstro ou coisa do tipo. Não se sentia daquela forma desde a adolescência. E foi exatamente o que fez: girou nos calcanhares, jogando luz para todos os lados ao mesmo tempo, sua respiração acelerada, o coração batendo forte. E, como costumava acontecer quando tinha doze anos, não havia nada. Absolutamente nada. — Claro que não há nada — suspirou. Aquele não parecia ser o mais saudável dos ambientes para ficar sozinho. Não podia se dar ao luxo de perder a cabeça. Não podia ficar nervoso sem qualquer motivo. Precisava manter o foco e rezar para encontrar algo. Não deixar nada escapar. Deu um tapinha no próprio rosto. Foi o suficiente para recuperar a compostura. George continuou tentando abrir algumas das portas, mas encontrou todas muito bem trancadas. Às vezes, esforçava-se para vislumbrar alguma coisa lá dentro, mas, mesmo com a lanterna, nada parecia visível; os vidros das janelinhas eram escuros demais, e a luz da lanterna não se mostrou capaz de atravessá-los. Andava já havia algum tempo, sem um objetivo concreto, apenas esperando algo acontecer, esperando dar de cara com qualquer coisa de seu interesse. Explorando todas as possibilidades feito um viajante sem rumo numa cidade desconhecida. Durante mais algum tempo, caminhou, caminhou e caminhou, sem nada encontrar. Depois voltou para a escada, subiu mais um andar e voltou a checar as portas. Uma de cada vez. E fez isso ainda com um outro andar. A esperança de que poderia se deparar com qualquer coisa útil parecia cada vez mais distante. No entanto, ainda havia dois prédios para vasculhar. Suspirou e, enquanto andava pelo último dos andares, parou um instante, cansado. Recostou-se numa grade e ali ficou por um tempo, respirando e pensando, com o silêncio mórbido lhe fazendo companhia. Questionava-se sobre o percurso feito até aquele momento. Poderia muito bem ter deixado de notar uma pista qualquer. O medo morria aos poucos, assim como a sua excitação. Já começava a aceitar a realidade. O prédio estava vazio e as portas muito bem trancafiadas. Muito possivelmente aquele seria mais um fracasso para acrescentar ao seu currículo recheado de tantos outros. Quando já se sentia à vontade para continuar, por pura sorte, viu de soslaio uma janelinha quebrada. A lanterna, sem ter a intenção, iluminou o local enquanto ele se endireitava. Um meio sorriso surgiu. George se aproximou com cuidado e tentou espiar por aquela pequena fenda — parecia grande o suficiente para apenas um braço passar por ela. Vasculhou o lugar com os olhos, sem encontrar nada de muito interessante. Era difícil enxergar qualquer coisa, ainda mais sendo obrigado a dividir o espaço com a lanterna. Passou o facho de luz de um lado para o outro, iluminando o pequeno cômodo. Havia uma cama, uma pequena mesa e um móvel coberto por um pano cinzento. Demorou alguns instantes com os olhos sobre o móvel, achando estranho o fato de o terem coberto, mas o que pareceu mais estranho foi quando ele pensou tê-lo visto se mover com o canto dos olhos. Ao tentar vislumbrar com mais atenção, George se atrapalhou e acabou deixando a lanterna escorregar para dentro da cela. Ouviu um grunhido baixo, incômodo. A lanterna iluminou um par de pés escuros. Tentou ser rápido, mas a coisa lá dentro foi muito mais. George teve o seu braço agarrado com força por uma mão que mais parecia uma garra implacável. Esforçou-se ao máximo para se desvencilhar. Não conseguiu. Desesperado, puxou a arma e simplesmente disparou, preenchendo o mundo inteiro com o barulho estridente. O projétil deve ter atingido a coisa em cheio. Um grito soou alto, animalesco e repleto de dor. Seu braço foi finalmente solto, e ele caiu para trás, direto no chão. O pulso onde a coisa o agarrara latejava. Se houvesse luz suficiente, teria notado a marca vermelha quase viva na pele. Segundos depois, ouviu a coisa chocando-se contra a porta violentamente. Segundos depois, ouviu o som de milhares de coisas se chocando contra as portas violentamente. 2. Ouviu gritos, pancadas e mais gritos e pancadas. Gritos ensurdecedores e pancadas que, somadas umas às outras, fizeram tremer toda a velha estrutura do manicômio. Tudo soava como um alarme, avisando sobre convidados indesejados. Um musical infernal tão alto quanto possível. Da porta por onde George tentara vislumbrar o interior do quartinho, um braço agora pendia frenético na tentativa de alcançá- lo. O membro completamente carbonizado e asqueroso, repleto de cicatrizes pungentes. Num ato de puro e descontrolado desespero, George fez a primeira escolha sensata do dia: correu. Correu sem uma lanterna para iluminar o caminho à sua frente. Seus passos mais se assemelhavam a tropeços sucessivos e atrapalhados. Foi praticamente um milagre não ter tropeçado de verdade e se acidentado. Talvez, só talvez, o medo e o pânico foram os responsáveis por tamanha façanha. Correu pelas escadas, saltando os degraus de dois em dois. Logo se viu na recepção, tão atônito que nem chegou a notar a pequena plateia ali presente, assistindo com humor ao fugitivo acanhado. Atravessou a recepção feito um trem desgovernado e entrou num corredor. George correu muito depressa e não demorou para alcançar a mesma porta usada mais cedo. Dessa vez encontrou-a fechada. George se encostou na porta, respirando profunda e pesadamente. Demorou a notar as três sombras que se sobrepunham à escuridão quase no fim do corredor. Uma delas não era alta nem forte, mas ainda assim assustava com a sua máscara de bico pontudo e olhos estranhos. Pareciam brilhar no escuro, mas não exatamente. Simplesmente se destacavam. Andava na sua direção de peito aberto, sem se importar com a pistola na mão do indesejado visitante. O próprio George se esqueceu que a segurava. As três pararam bem na sua frente, a não mais de três metros. Seria difícil deduzir o que mais parecia fora de controle naquele instante: se a sua respiração ou o coração. Ambos se encontravam num frenesi absurdo. Uma música acelerada e desprovida de qualquer compasso. — Jesus. Você parece estar à beira de um colapso nervoso — observou o doutor num tom bem humorado. Possuía um sotaque peculiar, com uma pronúncia estranha, como se fosse um estrangeiro que já vivia no Brasil havia tempo suficiente para falar o português com perfeição, mas incapaz de abandonar suas raízes. — Abaixe a arma, jovem — aconselhou a criança. — Não vai ser nada bonito caso dispare. Ficou encarando o velho com uma espécie muito peculiar de admiração, acompanhada por espanto e receio. Os olhos bem abertos, ansiosos, incapazes de acreditar naquela visão. Suas pernas tremiam, tanto pelo nervosismo quanto pela pequena maratona. George, com toda certeza, havia batido alguma espécie de recorde velocista. Ou ao menos supunha. Talvez, se não houvesse uma parede sustentando-o como os braços de uma mãe, nem sequer estaria de pé. Sentia-se anestesiado. — Baltazar? — ele enfim perguntou. O doutor o olhou com certo interesse. — O próprio. Quem seria você? George engoliu em seco e disse: — Um curioso. — Sua curiosidade o levou um tanto longe, hein — a criança brincou. Baltazar censurou a pirralha com um olhar e voltou a atenção para o visitante. — O que busca aqui, forasteiro? — perguntou. George ainda lutava para controlar a respiração. Os olhos esbugalhados, assustado. Respirar nunca fora uma atividade tão árdua quanto naquele maldito momento. — Respostas — respondeu. Depois de alguns segundos silenciosos, completou: —Vim fazer algumas perguntas. O doutor riu por um breve instante. Uma gargalhada pausada e cheia de humor que logo morreu. Pareceu considerar suas palavras e depois disse: — Me acompanhe. O velho deu as costas e foi embora. Ficou plantado onde estava, ainda muito nervoso e sem saber se o que fazia era, de fato, certo. De qualquer forma, não havia mais para onde correr. Em qualquer sentido, concluiu. — É melhor se apressar. O doutor não é lá muito paciente — aconselhou a menininha e começou a seguir o velho. George continuou parado, respirando profundamente. O homem mascarado, embora Baltazar já estivesse quase no fim do corredor, continuava plantado no mesmo lugar. Parecia esperar alguma espécie de ordem para voltar a se mexer. E George seguiu os passos do velho. Quando voltou à recepção, já não se ouvia mais as milhares de batidas contra as portas, apenas os passos produzidos pela pequena comitiva serviam como trilha sonora. Silêncio quase completo. O doutor seguiu na frente e os guiou até uma pequena salinha, praticamente no fim do primeiro andar. Um local semelhante a um escritório. Ao contrário de todo o resto do manicômio, aquela sala jazia em perfeitas condições. Tudo se encontrava bem organizado, com cada coisa em seu devido lugar. Baltazar contornou uma comprida mesa que ocupava boa parte do espaço e aconchegou-se numa poltrona confortável. Estendeu uma mão na direção de George e indicou uma das cadeiras vazias. — Sente-se, por gentileza. O homem tinha uma certa pitada de elegância nos gestos, mas, ao mesmo tempo, o sorriso sugestivo e os olhos excessivamente interessados faziam contraponto àquela imagem. Parecia quase impossível deduzir quem era aquele ser diante dos seus olhos. Para George, o doutor Baltazar tanto poderia ser um lunático religioso quanto uma espécie muito exótica de gênio. O tempo havia pintado parte do seu cabelo de branco. — A julgar pelo que vejo, você não é um padre — ele disse bem devagar. — Quem seria você, George? George se remexeu na cadeira, desconfortável. Havia imaginado aquela conversa uma centena de vezes e, agora que se via nela, não sabia bem como proceder. A presença do homem o sufocava a ponto de fazê-lo perder o dom de transformar qualquer pensamento em fala. O doutor deixava sua impaciência evidente enquanto tamborilava os dedos sobre a mesa num ritmo quase frenético. Por um instante, George se obrigou a encarar o homem e voltou a abaixar a cabeça. Baltazar franziu as sobrancelhas. — Me sinto obrigado a confessar, sr. Baltazar — George finalmente falou. — Estou um pouco nervoso. — Mr. Baltazar, por gentileza. Mr. Baltazar, George pensou, quase sentindo vontade de rir de nervoso. Mr. Baltazar… — Vamos, rapaz. Não tenho muito tempo. Ainda preciso dar cabo do seu amiguinho que fugiu de carro. — Eu me chamo George… — O que mais, George? — Ele gesticulou com as mãos. — Isso não é uma entrevista de emprego. Não quero saber quais são as suas qualidades. Quero saber apenas o motivo de estar aqui. Suas intenções. George respirou longa e profundamente. Olhou para os pés e depois para as mãos. Voltou a fitar Baltazar e logo desviou o olhar. As mãos apertaram na calça jeans. Mais uma vez, respirou fundo e só então vomitou tudo o que guardava dentro de si: — Eu estou curioso. Gostaria de saber o que fazem aqui. Quero saber quem vocês são. Quero saber quem caralhos é essa menininha assustadora e quero conhecê-lo, Baltazar. Quero minhas perguntas respondidas. Há quantos anos vocês fazem isso? Cem, cento e cinquenta? Mais? Vocês fazem parte de uma seita maluca, um grupo de psicopatas? Vendem órgãos no mercado ilegal? Eu simplesmente quero saber tudo ao seu respeito. Tudo. Sem deixar passar nada. Nem um fiozinho de cabelo sequer. Tudo, tudo, tudo. Quando terminou de falar, George viu com o canto dos olhos o sorriso jubiloso nos lábios do doutor. — Estou acostumado a sequestrar pessoas, sabe? Mas essa é a primeira vez que alguém vem até mim por livre e espontânea vontade. — Fez uma pausa. — Ah! — deixou escapar. — Têm aqueles que vêm com o intuito de me matar, mas não me refiro a esse tipo de gente. Enfim. Interessante o seu caso. Mas por que eu acreditaria em você? O seu amigo do carro pensa da mesma forma? George engoliu em seco e maneou a cabeça negativamente. — Não. Tenho certeza que não. Baltazar pareceu refletir por um instante. — Como posso acreditar em você, George? Com os olhos sobre os do doutor, George se remexeu na cadeira. Ajustou a postura e, pela primeira vez, tentou parecer respeitável. — Eu é que preciso acreditar em você — respondeu. O sorriso do doutor se fez ainda mais largo. — Como eu farei você acreditar em mim? — Prove-me que você não é louco. Prove que não é só um lunático religioso seguindo supostas ordens divinas. Quero saber se o que fazem aqui é fruto de qualquer coisa sensata. — George sorriu de nervoso. — Sensata, com toda certeza, não é. Mas justificável de alguma forma. — Bom… eu estou seguindo ordens, não exatamente divinas, mas são ordens. — Baltazar virou sua atenção para a criança. Por alguns instantes, George se esquecera por completo da sua presença. — Traga nosso amigo Wallace até aqui, Beth. Por gentileza. Ela não pareceu feliz, mas foi mesmo assim. George, apreensivo, e Baltazar, curioso e divertido, esperaram em silêncio o retorno da menininha. Durante esse tempo, o doutor deixou George muito pouco à vontade, mantendo seus olhos sobre ele, analisando- o como se fosse uma espécie de produto numa vitrine. Por sorte, Beth não demorou em sua jornada. Instantes depois estava de volta, agora acompanhada. — Boa noite, Wallace. Vejo que está com aparência fantástica esta noite. Venha até aqui. O estranho se prostrou ao lado de Mr. Baltazar. Um desconforto cheio de repugnância assolou George quando viu o rosto do homem. Os lábios eram desprovidos de carne, praticamente uma linha reta e sem vida. O olho esquerdo descomunalmente maior que o direito, quase saltando da órbita. Sobre a cabeça, havia vários e vários buracos, falhas e mais falhas, no entanto, onde restava cabelos, eles desciam até as orelhas: ralos e aparentemente tão frágeis feito macarrão cru. Nunca havia vislumbrado tamanha ruína num rosto antes, apenas nas maquiagens das grandes produções hollywoodianas. Mas, além da imagem degradada do sujeito, uma coisa incomodou George: uma sensação de familiaridade. Sentia como se já tivesse visto o tal do Wallace em algum lugar. O recém-chegado puxou uma das cadeiras e se sentou. Fitou o teto com um esboço de sorriso constrangido nos lábios. George não conseguia tirar os olhos dele. Sentia pena, nojo e um nobre desconforto por não ser capaz de se lembrar de onde o conhecia — ou achava conhecer. Enquanto a conversa de Baltazar e George seguia, ele conversava com alguém que não estava ali. — Então, meu caro George, pode me emprestar a sua arma, por gentileza? O corpo inteiro de George tremeu. Mais uma vez, engoliu em seco. E, mesmo contra todos os pedidos de cuidado gritados pelo seu corpo, colocou a arma sobre a mesa, fazendo demasiado esforço para não deixar transparecer o quão trêmula estava sua mão. Baltazar, muito casualmente, apanhou a arma e entregou-a para o recém-chegado. Ao lado de George, Beth assistia àquilo tudo com a curiosidade de quem desfrutava de um filme incrivelmente divertido. — No peito, por favor. Com mãos desajeitadas, Wallace apontou o revólver para o próprio coração. — Será que eu vou morrer? — ele perguntou, mas não parecia ter feito a pergunta para ninguém ali presente. Um sorriso nasceu novamente em seu rosto, como se alguém tivesse feito um comentário engraçado. Ele fitou Baltazar, e Baltazar maneou a cabeça positivamente. Os dedos do deformado buscaram o gatilho de forma atrapalhada. George apertou o tecido de seu jeans com mais força ainda. Por algum motivo, ele realmente achava que aquele homem fosse mesmo puxar o gatilho. E ele puxou… Apenas um clique. A trava de segurança impediu o suicídio. Ao não ouvir o disparo da arma, a expressão do pobre coitado