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As Tragédias Escritas Por Alef Baltazar - Bruno Cesardi

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As Tragédias Escritas Por Alef Baltazar
Bruno Cesardi
Copyright © Grupo Editorial Coerência, 2021 Copyright © Bruno Cesardi, 2020
Todos os direitos desta edição reservados ao Grupo Editorial Coerência.
Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida através de qualquer meio
existente sem a autorização prévia da editora.
DIREÇÃO EDITORIAL: Lilian Vaccaro
REVISÃO: William Magalhães
PRODUÇÃO GRÁFICA: Giovanna Vaccaro
CAPA: Henrique Morais
PREPARAÇÃO: Raquel Escobar Kaio Rodrigues
São Paulo
Avenida Paulista, 326, cj 84 - Bela Vista
São Paulo | SP – 01.310-902 www.editoracoerencia.com.br
Natal, Rio Grande do Norte, 2019
Uma homenagem aos clássicos do terror que fizeram parte
da minha infância.
 
http://www.editoracoerencia.com.br/
SUMÁRIO
A escolha errada
O livro obscuro
A tragédia vivida por Walter Wallace: o homem que não merecia
o inferno
Vertigo e as mil almas
A escolha certa
Aquela que perdeu tudo
A ESCOLHA ERRADA
CAPÍTULO 1
1.
— Vamos parar pra comer alguma coisa— George sugeriu.
— Estou morrendo de fome.
Denis concordou, e logo pararam num restaurante qualquer
no meio da estrada, bem no horário do almoço. Viajavam desde
muito cedo. Denis nem sequer se lembrou de comer qualquer coisa
antes de pôr os pés na estrada; sua cabeça estava tão cheia de
pensamentos pessimistas que ele nem reparou na barriga vazia
durante toda a manhã e o começo da tarde.
Encontraram o estabelecimento praticamente vazio: um casal
comia num canto e uma família no outro. O ambiente perfeito para
uma refeição tranquila. Escolheram uma mesa próxima da janela de
vidro. Mark Knopfler cantava através de uma caixinha de som
bastante tímida:
Eu deveria ter aprendido a tocar guitarra
Eu deveria ter aprendido a tocar bateria
Olha só para aquela gracinha, ela está posando na câmera
Cara, nós poderíamos nos divertir um pouco.
George desejava ter aprendido alguma coisa também.
Trabalhava o ano inteiro e mal conseguia pagar as contas. Contudo,
sua realidade poderia mudar muito em breve — ou assim ele
ousava sonhar.
Foram atendidos por um velho cheio de simpatia e um
espesso bigode bem penteado no maior estilo Wyatt Earp ou talvez
um Belchior mais extravagante. Denis pediu comida para o almoço.
Arroz, frango frito, macaxeira, uma porção de fritas e um suco de
laranja para ajudar tudo a descer. O prato de George foi
praticamente o mesmo, porém, ao invés de frango, optou por peixe
e, ao invés de suco de laranja, pediu uma cerveja. Algo dentro dele
gritava por um peixinho.
Denis só percebeu a fome consideravelmente voraz quando
triturou a comida com os dentes. As batatas estavam apetitosas; o
arroz, por outro lado, nem tanto. Entre uma garfada e outra, ele
olhava para a estrada e recordava o motivo pelo qual viajavam.
Ainda não sabia ao certo se aquilo tudo parecia ser apenas uma
ideia ruim, um péssimo plano ou a maior estupidez de toda a sua
vida.
George não se mostrava assim tão preocupado, a julgar pela
naturalidade com que comia ou a tranquilidade com que dirigira
durante o percurso até ali. Era quase como se aquela estupidez
toda fosse uma grande aventura ou uma viagem muito almejada,
planejada e finalmente executada. Já Denis compreendia muito bem
o perigo representado pela investigação. Precisava fazer o parceiro
compreender também.
— Tem certeza de que devemos fazer isso? — ele perguntou.
Seu prato ainda estava pela metade; o do parceiro, já vazio.
George pediu mais uma porção de fritas e só respondeu depois de
enfiar um palito de dente numa delas. Tinham todas um aspecto
saborosíssimo, diferente das encontradas nos fast-foods. Batatas de
verdade, George pensou.
— Mas é claro, cara. Nada mudou. Algo de errado?
— Isso não tá me cheirando muito bem.
George deixou escapar um longo suspiro consternado.
— Lá vem você de novo com esse papo. Já te falei: pode dar
o fora se quiser. Eu vou continuar. Só peço para você não estragar
todo o meu trabalho. Por favor. — Ele levou um guardanapo até a
boca.
— Nosso trabalho, George — Denis lembrou e voltou a fitar a
estrada, receoso, desconfortável. Queria estar em qualquer outra
parte do mundo, menos ali. — Podemos estar nos arriscando
demais perseguindo esses caras. Pode dar muita merda pro nosso
lado.
Enquanto secava os lábios, passou pela cabeça de George
contar o motivo pelo qual queria tanto seguir em frente com aquela
loucura. Só que uma coisa o impediu, a mesma de sempre. Não
conseguia imaginar uma reação boa por parte do parceiro. Não
sabia se ele estragaria as coisas ou se o deixaria seguir em frente.
Não queria descobrir. Não podia arriscar. Ainda mais agora, faltando
tão pouco para colher os frutos depois de tanto tempo investido. E
suor. Muito suor.
Arrependia-se amargamente de não ter embarcado naquela
investigação sozinho.
— Eu vou levar isso até o fim. Não perdi dois anos da minha
vida pra nada.
— Então você prefere perder a vida inteira?
— Já perdi anos demais, Denis. Anos demais. — Ele encarou
o companheiro nos olhos, motivado. — Desperdicei todas as
oportunidades que a vida me ofereceu. Essa eu não vou deixar
passar. Sinto muito se você ficou com medo de uma hora para
outra. Pode cair fora se quiser. — George o encarava como se fosse
um cachorro disposto a tudo para defender o seu precioso osso.
Ninguém disse mais nada. Apenas terminaram suas
refeições, pagaram a conta e saíram feito um casal brigado: incapaz
de pedir um divórcio por conta dos filhos. George ainda foi ao
banheiro esvaziar a bexiga. Odiava quando precisava se aliviar na
estrada, no meio do nada. Sentia-se desconfortável, desconfiado de
que pudessem existir câmeras escondidas prontinhas para flagrá-lo.
Muitas vezes não conseguia nem mesmo mijar.
Deu de cara com um banheiro limpinho, muito provavelmente
recém-lavado, com cheiro de desinfetante e tudo mais. Aquele era o
seu dia de sorte, pensou. Nunca antes havia se deparado com um
banheiro de restaurante barato tão limpo quanto aquele. Até mesmo
a descarga funcionava perfeitamente.
Já fora do banheiro, George fitou o céu cinzento. Dava a
impressão de que poderia chover a qualquer instante. O céu não
mudava havia quase uma semana e, ainda assim, nenhuma gota de
chuva tinha caído.
2.
A estrada à sua frente não passava de uma linha reta
iluminada apenas pelos faróis do carro e alguns postes ocasionais.
Os olhos de George permaneciam fixos nela, contudo, seus
pensamentos se encontravam perdidos em algum outro lugar.
— Como você imagina esses caras? — perguntou ele,
quebrando o silêncio cultivado desde a saída do restaurante.
Denis se endireitou no banco do passageiro. Seus ombros se
ergueram numa interrogação. Durante boa parte da investigação,
gastara muito do seu tempo imaginando como poderiam ser os tais
sujeitos. Mesmo assim, sentia-se como havia começado: sem
qualquer suposição capaz de satisfazer sua curiosidade. Não existia
nenhuma prova, descrição ou qualquer coisa do gênero. Nada.
Apenas fantasias baseadas no mais puro achismo. Tudo soava ao
mesmo tempo possível e improvável.
— Olha, galado. Eu realmente espero que sejam estranhos.
Não consigo acreditar nesses caras fazendo o que fazem há tanto
tempo. Tenho medo de encontrar pessoas tão normais quanto a
gente.
— Eu não sei, cara. Não consigo imaginar esse grupo assim
tão esquisitão, contanto que seja mesmo um grupo. Justamente por
fazerem isso há muito tempo. Não consigo pensar nesses caras
andando por aí fantasiados como os malucos da Ku Klux Klan ou…
não sei. Yakuza talvez. Deve ser uma coisa bem discreta.
— Esse lance metódico de eles atacarem a cada três meses,
com datas, lugares e horas marcadas… — Denis franziu os lábios e
sacudiu a cabeça. — Com certeza eles são estranhos. É tudo muito
bizarro. — Enquanto falava, Denis brincava com as mãos, como se
estivesse montando um cubo mágico invisível. — Não entendo
como ninguém nunca notou essas coincidências. É quase um
absurdo.
Um meio sorriso cético apareceu nos lábios de George. Não
sabia o que era mais absurdo: ninguém nunca ter notado aquelas
coisas tão obviamente conectadas ou, de fato, alguémter chegado
a notar, mas não vivido o suficiente para contar a história. Ou
simplesmente tivesse decidido guardar tudo para si, sabe-se lá por
qual motivo. Todas as opções pareciam igualmente plausíveis.
Tais pensamentos George resolveu não compartilhar com o
parceiro.
— Pois é, cara. Como diz o ditado: antes tarde do que nunca.
Pararam no meio da estrada alguns quilômetros depois.
George desdobrou o mapa que trazia consigo. Conferiu a placa
mais próxima para saber se aquele era mesmo o lugar certo.
— Chegamos — anunciou, a voz tão entusiasmada quanto
nervosa.
Denis fez uma careta. Não se sentia nem um pouco
confortável ali, naquele horário e naquele dia. Quanto mais próximo
se imaginava dos possíveis sequestradores, maior ficava o receio
cultivado em seu âmago. Era como se abrigasse um monstro dentro
dele. Um monstro que se alimentava da sua insegurança e do seu
medo. Esse monstro já se encontrava gigantesco — e ainda não
parecia estar nem perto da fase adulta.
Engoliu em seco com certa dificuldade e desconforto. A saliva
desceu arranhando, feito areia. Pegou uma garrafinha cheia de
água e tomou um longo gole, depois outro e mais outro.
O estabelecimento mais próximo ficava a alguns quilômetros
dali. Ao redor deles não existia nada além de mato e a estrada
contínua e reta. Dirigiram por mais um quilômetro e deixaram o
carro escondido sob uma árvore muito grande. George olhou para
cima, sem conseguir encontrar uma única estrela. O céu continuava
nublado, mas a terra permanecia seca, quase como se o céu
estivesse prestando atenção nos dois jornalistas e, aflito com a
situação, fosse incapaz de despejar sobre o mundo a sua gloriosa
chuva. Tal pensamento fez surgir um meio sorriso no rosto de
George.
Logo quando começou a caminhar de volta, em direção à
placa, o arrependimento de não ter trazido consigo um casaco
assolou George. Ali fazia um frio de congelar os ossos. Cruzou os
braços, escondeu as mãos nas axilas e xingou a própria estupidez
em silêncio. Mas não podia se culpar, pois ninguém em sã
consciência esperava sentir frio em Natal — qualquer que fosse o
horário.
Assim como quase todo o percurso de carro, a caminhada foi
silenciosa. Um silêncio repleto de expectativas ansiosas. Entraram
no meio do mato quando alcançaram a placa e, como havia sido
planejado, ali ficaram muito bem escondidos.
— Tem certeza de que eles não nos verão aqui? — Denis
perguntou.
George encarou o companheiro na penumbra. Não conseguia
enxergar muita coisa, mas, ainda assim, pôde ver nos olhos de
Denis um brilho amedrontado.
— Faz o teste você. Vai lá e vê se dá pra enxergar alguma
coisa.
Ele foi. Seus passos causaram ruídos bruscos; galhos se
partiram e pequenos estalos rugiram. Ali perto havia um grilo muito
entusiasmado tocando sua música sem se importar com a presença
da plateia recém-chegada. Quando Denis voltou, depois de ter
ficado um tempo tentando vislumbrar qualquer coisa atrás das
árvores e galhos, disse:
— Realmente não consegui enxergar merda nenhuma. — E
depois completou: — Deveria ter trazido algo para comer. — Mas o
que ele queria mesmo era algo para beber, para fazer nascer dentro
dele um pouco de coragem, talvez. Coragem suficiente para
combater o monstro. Sentia-se novamente com dezoito anos,
quando precisara de um empurrãozinho para chamar uma garota
para sair ou mesmo dançar.
Uma centena de arrependimentos diferentes pairava sobre a
cabeça de Denis, e aquele que mais pesava era o de ter embarcado
naquela loucura. Esse, de fato, poderia muito bem ser o seu último
arrependimento — e esse também era um de seus
arrependimentos.
Ele tremia, porém, diferente de George, não sentia qualquer
frio. Muito pelo contrário: começava a suar. O nervosismo parecia
ser todo convertido num calor agonizante. Arregaçou as mangas do
casaco até os cotovelos, sentindo-se momentaneamente melhor.
As horas passaram vagarosamente, e o incômodo silêncio
continuou a reinar; dessa vez, um silêncio repleto de expectativas
tenebrosas e incertas. Os jornalistas ficaram esperando por alguma
coisa. Muito fora planejado para aquela noite. George e Denis
passaram dias debatendo a respeito de como iriam se esconder,
sobre como iriam prestar atenção em todos os detalhes e, mais
importante, sobre como continuariam bem escondidos, sem chamar
atenção indesejada. Também falaram sobre um possível plano de
fuga. Ainda assim, uma coisa nem sequer passou pela cabeça dos
dois: os malditos insetos. Eles lutavam para afastar os pequenos
bichinhos que tentavam mordiscar suas peles. George
constantemente distribuía tapas pelo próprio corpo, na esperança de
esmagar um ou outro. Uma dezena de insetos foi assassinada
naquela noite. Um repelente, ou mesmo inseticida, teria sido
incrivelmente útil.
O mundo estava escuro, a estrada sombria e alguns carros
passavam apressados para chegarem aos seus respectivos
destinos. Por um breve instante, iluminavam o mundo com a luz de
seus faróis para logo depois desaparecerem para todo o sempre.
Qualquer um dos carros poderia muito bem pertencer aos lunáticos.
Por isso, cada carro avistado significava um novo motivo para se
preocupar. E, até então, nenhum deles fizera menção de parar.
Talvez estivessem no lugar errado; George poderia ter se
equivocado ao conferir a placa ou mesmo toda a investigação
poderia ter sido um completo desperdício de tempo — um devaneio
produzido pela mente entediada de George. Tais pensamentos
fizeram Denis se sentir um pouco melhor. A esperança, por mais
remota, fazia-o sonhar com tais possibilidades e tomá-las como
coisas realmente possíveis. Não passava de um cara otimista no fim
das contas — ao menos se esforçava para ser.
— Esses caras que não aparecem — queixou-se, torcendo
para não aparecerem mesmo. O tempo de espera fez parte do
nervosismo se apaziguar um pouco, mas não o suficiente para
deixá-lo confortável com a situação. Só se sentiria mesmo
confortável quando estivesse em casa, de banho tomado, pijama
vestido e pronto para dormir e esquecer cada segundo daquele dia.
Feliz por tudo ter sido, de fato, um devaneio produzido pela mente
do parceiro.
George se preparava para dizer algo quando um grande
trailer parou bem perto deles, interrompendo seu raciocínio. Os dois,
por puro instinto, abaixaram-se, mesmo sabendo o quão escura era
aquela noite — ou esquecendo o quão escura era aquela noite. Um
velho escapou do veículo e deu alguns passos para fora da estrada.
— Esse aí não tem qualquer pinta de sequestrador —
sussurrou George.
O velho passou alguns segundos parado, olhou para um lado
e depois para o outro. Desabotoou a calça, abaixou o zíper e
começou a mijar. Podiam ouvir o som da urina regando o solo. Era
mijo que não acabava mais, de modo que levou quase cinco
minutos para esvaziar a bexiga. Porém, o velho demorou mais ainda
sacudindo-se todo, mexendo o quadril e dando pulinhos para
conferir se nenhuma gota ficaria sobrando. A possibilidade de que o
velho passaria a noite toda ali, balançando o quadril como se
estivesse dançando, pareceu real.
— Anda, homem! — gritou uma voz de velha irritada de
dentro do trailer. — É sempre essa mesma bosta. Coloca essa coisa
inútil pra dentro e vamos embora.
— Já vou, mulher. Sabe que eu não funciono sob pressão.
Calma! — gritou de volta e resmungou algo que eles não foram
capazes de ouvir.
Pôde sentir, mesmo um pouco distante, os músculos de
Denis perderem a rigidez, seu corpo sendo tomado pelo alívio. Ele
soltou um longo suspiro, e um mar de tensão pareceu abandonar
seu corpo.
— É só um casal de velhos no meio do nada. — E riu de
nervoso. — Quais as possibilidades?
O velho passou mais alguns instantes naquele ritual bizarro,
mas a mulher gritou outra vez e ele entrou no trailer, irritado. Logo
depois sumiram.
George ficou pensando no ocorrido, e a possibilidade, que já
era mínima, passou a ser nula: jamais pararia para se aliviar no
meio da estrada novamente.
3.
Pouco tempo depois, não saberiam dizer exatamente quanto,
o tráfego consideravelmente tranquilo passou a ser ainda mais
escasso. A cada dezminutos, às vezes mais, às vezes menos,
avistavam um carro e um desses carros parou, como o trailer havia
parado algum tempo antes. E em seguida outro também parou.
O primeiro, uma Kombi branca, caindo aos pedaços.
O segundo, um carro funerário, quase em bom estado.
Não foi preciso pensar duas vezes, nem ao menos uma: a
visita tão aguardada havia chegado.
Não pararam muito longe, e alguns indivíduos rapidamente
saltaram dos carros. Nenhum dos dois conseguia enxergar muito
bem daquela distância, devido à escuridão e uma fina névoa. Mas, a
contar pelas sombras distantes, o grupo parecia ser constituído por
quatro adultos e… uma criança?
— Ah… — Fez um deles, parecendo aliviado. — Estava com
saudades disso aqui já. A última vez foi quando pegamos o Wallace.
— Não faz tanto tempo assim, doutor — respondeu uma voz
infantil. Ao menos conseguiam ouvi-los razoavelmente bem.
— Oh, Beth, sabe como as coisas são para gente velha como
eu.
A criança parou um instante, encarou o velho.
— Eu sou um pouquinho mais velha que você — ela falou
com um quê de humor.
George cutucou o ombro do parceiro e, juntos, caminharam
pela mata, fazendo o máximo de esforço para produzir o mínimo de
ruído. Denis precisou dar tudo de si para conseguir mover as
pernas. Sentia-as tão pesadas quanto duas colunas de concreto.
Todo seu corpo parecia pesado feito concreto.
— Preste atenção a tudo, principalmente aos nomes —
George lembrou quando ficaram tão próximos quanto ousavam. Dali
tinham uma boa visão e conseguiam ouvir os estranhos muitíssimo
bem, além de permanecerem devidamente escondidos.
— E-eu sei — Denis alegou e, ao se remexer, acabou
pisando num galho que se partiu e fez soar um barulho estridente
que assassinou o frágil silêncio daquela madrugada.
Mesmo naquela penumbra, George reparou quando a criança
virou a cabeça na direção deles, alarmada. A sua boca ficou
instantaneamente seca. Olhou para o parceiro no escuro. Denis
estava completamente petrificado, como se fizesse parte da própria
paisagem.
— Como eu dizia…
— Shiu… — Ela silenciou o velho. — Ouvi alguma coisa,
doutor.
— Não seja boba. Não há nada por aqui — argumentou o tal
doutor. — Provavelmente foi um esquilo.
— Nem existem esquilos nessa cidade. — Rebateu a
menininha e se distanciou do grupo, caminhando a passos
muitíssimos cautelosos na direção da mata. Os dois prenderam a
respiração e, caso fosse possível, teriam obrigado os corações a
pararem de bater também.
Cada metro vencido por ela acrescentava sobre os dois uma
tonelada de tensão. Seus pés praticamente não produziam barulho
sobre a mata — um som úmido, tão diferente dos produzidos por
Denis algum tempo antes.
E, assim como Denis, ela ficou parada a pouquíssimos
metros, encarando tudo e procurando qualquer coisa suspeita
naquela escuridão dominada por um silêncio soturno. Um silêncio
que penetrava nos ouvidos dos dois jornalistas e fazia crescer no
âmago de ambos uma série de arrepios medonhos.
George não saberia dizer ao certo, mas pensou ter sentido os
olhos dela sobre os seus. Gotículas de suor começaram a se formar
e escorrer por sua testa. O frio acabou dando lugar a um calor
sufocante. Sentia como se houvesse uma mão quente em volta do
seu pescoço. Por um momento, o corpo desaprendeu
completamente como respirar por conta própria. Por um momento,
uma corda invisível lhe roubou todo o ar. A tensão o afogava pouco
a pouco.
Aquele mísero instante, aquela mísera sensação de troca de
olhares, pareceu durar uma eternidade. O pânico catatônico o
envolveu de uma forma nunca antes saboreada, impossibilitando-o
de fazer qualquer coisa além de desejar o fim daquela agonia.
Naquele momento, não parecia existir nada além daquela tensão,
daquela criança, do medo de ser pego e acabar como as centenas
de outros sequestrados: no limbo.
Havia algo na mão da criança, ele notou, sem conseguir
deduzir ou ver o que era.
Ela deu mais alguns passos adiante. Afastou uns galhos,
olhou para um lado e depois para o outro. Ficaram a pouquíssimos
metros dela. George até mesmo pôde sentir o seu forte perfume.
Um tênue odor de cereja misturado com inseticida barato.
Sem parecer ter encontrado nada na busca, a criança cansou
de olhar a escuridão e suspirou. Largou os galhos, deu as costas e
voltou para onde esperava o grupo.
— Acho que estou ficando maluca, doutor — disse.
O doutor gargalhou.
— Sempre foi, Beth. Sempre foi.
Lentamente, George voltou a respirar. Seu corpo recordou
como a coisa funcionava. Não conseguia imaginar o que teria
acontecido caso aquilo tivesse durado um pouco mais. Talvez
morresse asfixiado pelo próprio medo, morto pela corda invisível.
Talvez desmaiasse tamanho o estresse. Talvez não fosse capaz de
suportar por muito mais e, num ato de puro desespero, resolvesse
correr desenfreado.
Não demorou muito para sentir o cheiro de urina. Não sentia
as calças molhadas, mas, mesmo tudo apontando para Denis, não
conseguiu olhar para baixo ou mesmo para o lado para conferir.
Lentamente, levou a mão até a virilha.
Engoliu em seco. O cheiro não vinha dele.
Mesmo quando a garotinha já se encontrava distante, os
jornalistas continuaram a agir como se ela ainda os procurasse. Não
queriam passar por aquilo mais uma vez. Poderiam não ter a
mesma sorte.
O bando ficou esperando por algum tempo. O doutor
constantemente olhava para o relógio em seu pulso, um tanto
quanto impaciente. Talvez existisse um outro compromisso
requisitando sua presença. George os observava na esperança de
encontrar qualquer coisa além das placas para identificá-los
futuramente.
No entanto, antes de conseguir descobrir qualquer coisa útil,
um carro apareceu bem longe.
4.
Viajar de carro nunca foi uma coisa muito prazerosa para
Diana, mas ela não se encontrava em posição de escolher. Ou ia
com a família ou ficava em casa sozinha durante uma semana
inteira. Considerando o nível de desgosto entre ficar uma semana
abandonada ou passar um dia confinada dentro de um carro, a
escolha até pareceu fácil. Preferia estar com a família, embora não
gostasse tanto assim dos parentes do seu esposo.
— Vai adorar a cabana — havia dito o marido com aquele
seu sorriso boboca de vencedor. Ele sempre lutou para arrastá-la
num daqueles passeios exóticos. — Vamos caçar. Posso te ensinar
a atirar.
Não, ela não iria caçar. E não, ela não iria pegar numa arma.
Nunquinha.
A família de Augusto possuía alguns costumes estranhos —
ao menos sob o olhar crítico e urbano dela. Quando tinha apenas
doze anos, o marido já havia caçado, matado e empalhado um
pobre animal. E agora o safado queria ensinar o filho a caçar, assim
como o pai o ensinara. Contra aquilo ela não iria protestar, a não ser
que o filho também não quisesse se envolver com aquele tipo de
bizarrice. Ela não era vegana e não nutria qualquer pretensão de se
tornar uma, mas também não via motivo algum para matar um
animal com as próprias mãos — ou mesmo compactuar com
tamanha atrocidade. Já era difícil o suficiente esquecer todas as
vezes em que ela, por qualquer motivo inoportuno, recordava de
onde vinha todo e qualquer suculento pedacinho de carne.
Infelizmente, não existem árvores de bacon ou picanha.
Infelizmente.
Ela fez uma careta.
— É um costume. Somos uma família de caçadores, meu
amor.
— Não, Augusto. — Diana riu e rebateu. — Você é um
professor de taekwondo que, uma vez no ano, vai caçar com sua
família maluca. — Ela revirou os olhos ao pensar no que tornava a
coisa toda ainda pior: caçar no Brasil era crime havia décadas.
Um certo arrependimento pairava sobre os pensamentos
dela, mas já não podia mais voltar atrás — mesmo que quisesse. Já
se encontravam na metade do caminho, e Diana, no banco traseiro
do carro, tentava começar pela sexta vez naquele mesmo dia a ler
O Iluminado. Havia lido tantas vezes os primeiros parágrafos que
acabou memorizando alguns deles. “Jack Torrance pensou:
babaquinha pomposo.”
Sempre acontecia alguma coisa, e ela se sentia obrigada a
parar a leitura: um carro passava buzinando; Augusto e Mateus
cantando com entusiasmo uma música enjoadado Bon Jovi; um
maldito quebra-molas não notado pelo displicente motorista; eles
precisavam parar para abastecer. O máximo que conseguiu
alcançar sem ser interrompida foi a parte em que Jack Torrance
entendia o argumento sobre um snowmobile, no qual Ullman fez
uma suposição a respeito de um possível acidente num local
isolado.
Parecia uma realidade terrível aquela.
O que interrompeu a leitura dessa vez foi algo bem mais
inusitado. Enquanto tentava ler as palavrinhas em constante
movimento, como se estivessem tentando fugir dela, Diana ouviu o
filho gritar:
— Pai!
Conseguiu erguer os olhos a tempo de ver a menininha no
meio da estrada. Augusto freou abruptamente, e os pneus do carro
gritaram alto enquanto derrapavam sobre o asfalto da BR-101. Por
um instante, pareceu que o carro ia atropelar a menina.
Embora tenha sido por muito pouco, felizmente não chegou a
acontecer.
Augusto saltou do veículo, assustado. No banco do
passageiro, Mateus esticou o pescoço na tentativa de visualizar
melhor a cena.
— O que faz aqui no meio do nada? — Augusto indagou, sua
voz tomada pela adrenalina.
A resposta da criança foi um balbuciar de palavras
incompreensíveis misturadas a um choro deturpado pela gagueira.
As palavras saíram apressadas e embaraçadas, tornando
impossível qualquer entendimento. “Casa. Eles. Pegaram. Fugi.
Meus pais. Corri. Doendo. Pés.” Essas foram algumas das palavras
vomitadas pela menina. Augusto olhou para o carro com uma
expressão atordoada, buscando saber se a esposa conseguiu
compreender alguma coisa. Diana balançou a cabeça
negativamente.
— Você está bem? — perguntou o marido. — Tá
machucada?
Olhou para a estrada ao seu redor. De onde, pelo amor de
Deus, aquela menina saíra? A noite fazia do lugar praticamente uma
penumbra. O poste mais próximo ficava a alguns bons metros à
frente.
A menina continuava a chorar e, sem que Diana percebesse,
quando voltou a olhar na direção dela e do marido, ela se abrigava
nos braços dele.
— Tudo bem — dizia Augusto, ajoelhado. — Vai ficar tudo
bem. — Ele continuava olhando para Diana, ainda buscando uma
resposta no olhar dela.
— Não — a menina disse. — Não vai.
Mais uma vez, o filho gritou:
— Pai!
Diana olhou para o mundo ao seu redor, o rosto maquiado
por uma expressão desorientada. Viu um par de sombras
aproximando-se lentamente do carro. Augusto se ergueu,
assustado, tentando esconder a menina atrás de si.
— São eles! São eles! São eles! — voltou a gritar e continuou
a gritar, histérica.
O par de sombras estava próximo. Próximo o suficiente para
Diana notar as máscaras que lhes cobriam os rostos. Máscaras com
bicos pontudos e olhos que se destacavam na escuridão. Sentiu
vontade de gritar como a garotinha — e teria gritado se a voz não
tivesse ficado entalada na garganta. Não conseguiu fazer nada além
de assistir àquilo tudo boquiaberta e com os olhos bem arregalados,
incrédulos.
— Ei, vocês — disse Augusto com uma voz trêmula. — Não
temos muita grana. Umas cento e cinquenta pratas. Se quiserem,
podem até levar o carro. — Engoliu em seco, erguendo as mãos
num gesto de paz e submissão. Os homens não deram ouvidos às
suas palavras e continuaram caminhando na direção do carro.
Augusto correu de volta para o veículo, arrastando consigo a
menina. Diana não conseguia tirar os olhos dos homens-sombra.
Um deles caminhava de uma forma estranha. Numa outra situação,
poderia até tê-lo achado engraçado, desprovido de compasso e
equilíbrio. Porém, naquele momento, só podia pensar em como ele
parecia assustador envolvido pela fria noite. Já o outro, a
contraponto, caminhava de forma monocórdia feito um verdadeiro
robô.
A menina surgiu no seu colo, atirada pelo marido.
Tudo aconteceu muito rápido.
Augusto deu partida no carro, o motor soou alto; Diana
envolveu a criança num abraço apertado. Mateus gritou quando os
homens alcançaram a porta do veículo; Augusto acelerou, a porta
foi arrancada. O marido deixou escapar um grito de pânico; Diana,
um suspiro rouco. A criança somou seu grito ao do filho. O carro
andou alguns poucos metros, mas, assim como a porta, o marido foi
arrancado.
Um frio avassalador, terrível e congelador preencheu o
veículo. Por um instante, tudo ficou muito silencioso. Era como se
Deus houvesse apertado, com o seu controle remoto universal, o
botão de “silenciar.” Diana ficou encarando a porta arrancada com
olhos incrédulos. O filho, travado no banco do passageiro com a
boca aberta e o rosto congelado numa expressão aterrorizada. A
criança finalmente em silêncio.
Lentamente, olhou para trás. O marido lutava para escapar
dos homens-sombra. A criança parecia se esforçar para se livrar do
seu abraço apertado. Nem chegou a reparar no quão forte apertava
a pobre coitada. Nem mesmo chegou a reparar que segurava algo.
O que estava acontecendo?
Sem conseguir tirar os olhos do marido, Diana ouviu a porta
do passageiro se abrir. Meu filho, ela pensou, e um mau
pressentimento a assolou feito uma descarga elétrica.
Sua boca novamente se abriu e mais uma vez ela se viu
incapaz de gritar — ou de fazer qualquer coisa além de permanecer
no carro. Ficou apenas com a boca aberta e uma expressão
maquiada de desespero desorientado. Nem ao menos passou pela
cabeça dela a possibilidade de tomar uma atitude. Tudo parecia
surreal, um pesadelo em que ela não passava de uma coadjuvante
sem falas ou ações relevantes.
O que estava acontecendo?
O filho empunhava o rifle do pai.
O marido lutava contra os estranhos mascarados. Ele era um
bom lutador, afinal, vivia daquilo. Porém, havia algo de errado com
seus adversários. Augusto desferiu incontáveis golpes em cada um
deles e, mesmo assim, nenhum pareceu surtir qualquer efeito. Por
vezes, fugia da investida lenta dos dois e contra-atacava com socos
e pontapés. O máximo que conseguia fazer era empurrar os sujeitos
para mais longe. E eles sempre voltavam a atacar como se nada
houvesse acontecido.
Por Deus. O que estava acontecendo?
Enquanto o pai lutava e escapava do par de sombras, Mateus
assistia a tudo com a escopeta nas mãos. Não parecia confiante.
Como estaria? Era noite, o mundo praticamente uma penumbra
iluminada apenas pelas lanternas traseiras do carro, e ele nervoso
demais, vivenciado o próprio filme de horror. Não passava de uma
criança! Segurava a arma como se ela fosse um animal perigoso.
Mortal.
Porém, contrariando a tudo, ergueu a arma
desajeitadamente. Mirou com cuidado por mais de quinze segundos,
aguardando pelo momento perfeito, tomando todo o cuidado do
mundo para não acertar o pai por acidente.
E sim. Ele atirou.
E acertou.
O disparo foi certeiro e encontrou as costas de um dos
algozes. Ele caiu instantaneamente de cara no chão.
E lá ficou, sem se mexer — aparentemente morto.
Diana deixou um sorriso torto escapulir. Um sorriso que era
um misto de pânico e fé. Ela apertou ainda mais a criança, sem se
dar conta de que o fazia. Era como se, naquele gesto inconsciente,
ela buscasse se agarrar a um pingo de esperança. E ela a segurava
desesperadamente, como se o destino do mundo dependesse
daquilo. Ao menos o seu dependia.
O filho voltou a engatilhar o cão, deixando a arma pronta para
um novo disparo, e se aproximou da confusão. Parecia mais
confiante agora, depois do primeiro tiro bem-sucedido. No entanto,
sua confiança sumiu tão depressa quanto apareceu. O homem
alvejado pela bala de escopeta se remexeu muito lentamente e se
sentou. Fez tudo isso com os olhos brilhantes cravados no
adolescente. Um espasmo correu pelo corpo dele, seguido por um
grunhido estranho que poderia ter sido uma risada. Com uma mão
apoiada no asfalto, voltou a se erguer muito lentamente. Mateus deu
passos curtos para trás e novamente mirou no mascarado.
— Para trás. Para trás! — gritou. — Ou eu atiro de novo.
Desengonçado e lento, o grandalhão caminhou na direção do
filho. Não parecia se importar com a arma apontada para si.
Conforme o sujeito se aproximava, Mateus arrastava os pés na
direção contrária. E ficou sem ter para onde fugir quando suas
costas encontraram o carro estacionado, os olhosarregalados sobre
o mascarado. Nem sequer passou por sua cabeça apontar a arma
para o grandalhão novamente.
Um aperto no coração fez Diana soltar a menina e, dessa
vez, o grito não ficou preso na garganta. Saiu violento, vomitado e
esganiçado, fazendo sua garganta ficar em chamas imediatamente:
— Atira, Mateus!
O filho se assustou com o grito. Podia ouvi-lo soluçando e
podia vê-lo tremendo.
Diana, histérica e desesperada, gritou novamente:
— Atira. Atira. Atira. Atira!
E ele atirou.
Dessa vez, porém, errou por muito. Não houve tempo para
um terceiro disparo, assim como não havia mais tempo para
qualquer outra coisa. O homem-sombra suspendeu a criança pelo
pescoço, roubando-lhe todo o ar. Mateus deixou escapar um arfar
descontrolado, assim como a arma de sua mão. Ficou chutando o
mascarado com os pés, esperneando-se como um homem
suspenso numa forca.
Conforme o homem-sombra espremia seu pescoço, suas
pernas perdiam o ímpeto, transformando-se em nada mais do que o
tímido oscilar de um balanço empurrado pelo vento. Não demorou
muito tempo para eles cessarem por completo.
Diana assistia a tudo sem conseguir acreditar.
Que diabos está acontecendo?
O menino foi largado no chão, desfalecido. O homem-sombra
ficou encarando-o por um instante, com a cabeça pendendo para a
esquerda. Depois olhou na direção dela, bem no fundo de seus
olhos. Pareceu se alimentar do medo diante de si, do olhar
apavorado de uma mãe que acabava de ver o filho ser
estrangulado. Fez novamente aquele som esquisito parecido com
um riso — ou talvez um soluço. Deu de ombros e foi embora.
Estremeceu com os olhos repletos de lágrimas. Diana levou
as mãos aos olhos e os esfregou com muita força. Ela nem reparou
no marido caído no chão. Queria acordar. Queria fugir daquela
terrível realidade.
— Ei — fez a criança, sem qualquer resquício do tom
lamurioso. — Não fique triste. Não precisa chorar assim. Foi
divertido, não?
Disparou à menina um olhar úmido e assustado. Ela escondia
uma das mãos nas costas, como se guardasse ali uma surpresa.
— O quê? — Sua voz saiu esganiçada.
A criança a encarava, um esboço de sorriso nos olhos.
— Foi um bom sequestro. A maioria das pessoas não reage
tão bem quanto vocês — ela falou. — Obrigada.
Agora sim ela deixou escapar o sorriso por completo. Um
sorriso de criança satisfeita. Largo demais para um rosto tão
delicado e pequeno. Assustador demais para um rosto tão angelical.
Terrível demais para maquiar as feições de uma criança.
Contudo, existia algo de muito errado no rosto dela. Seus
olhos não sorriam, apenas a boca. Quase como se ela fosse uma
atriz de terceiro escalão, sem talento suficiente para emular por
completo a expressão devassa de quem gozava do terror alheio. Os
olhos escuros, sem brilho. Sem nada.
— Você armou tudo isso? — Diana indagou, incapaz de
acreditar.
A resposta foi um balançar a cabeça de um lado para o outro.
Da esquerda para direita. Da direita para a esquerda.
— É. Mais ou menos. Mais pra menos.
Diana voltou a olhar para a mão da criança, a que não estava
visível.
— O que você tem aí?
— Um presente especial. Só para você.
Seu olhar subiu de encontro aos olhos estranhos da menina.
Ficou com medo de se perder naquela imensa inexpressão.
Respirou fundo e, tentando ser rápida, jogou-se na direção da
maldita fedelha. Porém, ela parecia já esperar por aquilo. Antes que
fosse capaz de atacá-la, uma seringa foi cravada em seu pescoço.
Ainda conseguiu ficar sobre a menina. Nem chegou a reparar
na seringa espetada nela. Suas mãos foram de encontro ao
pescoço da maldita fedelha.
Usou toda a sua força para esganar a desgraçada.
A criança sorria e a encarava como se aquela fosse a sua
brincadeira favorita.
Ela gargalhava e tossia. Tossia e gargalhava. Os olhos
permaneciam estáticos.
A visão de Diana ficou embaçada e depois voltou ao normal.
E logo voltou a embaçar e desembaçar novamente. Usou todas as
forças restantes para apertar ainda mais aquele frágil pescoço.
Aquele maldito pescoço.
Ela piscou longamente, o corpo exausto. E ficava mais
exausto a cada piscada, a cada segundo perdido.
Até que os dedos perderam a força.
Seu último vislumbre foi aquele sorriso de criança satisfeita.
5.
— Temos um problema, Baltazar! — a menininha gritou, já
fora do carro.
O doutor se apressou na direção dela.
— Mas que filho da puta — resmungou ele e depois caiu
numa breve gargalhada.
O garoto havia errado o mascarado por muito, mas acabou
acertando o pai em cheio.
— Está mortinho.
A criança chutou o corpo do homem.
— Pegaram a mulher? — perguntou o doutor, o tal do
Baltazar.
— Peguei.
— É o suficiente. Vamos embora — ele disse, já se
distanciando do grupo.
— Vamos deixá-lo aqui?
— Não precisamos de mais mortos.
A menininha deu de ombros. Os capangas mascarados
pegaram o filho e a mãe e os jogaram na Kombi branca feito
pedaços de carne. Não muito tempo depois, assim como os demais
veículos avistados naquela mesma noite, o carro funerário e a
Kombi branca sumiram no mundo. Anotaram as placas e os nomes.
George e Denis passaram algum tempo ainda entocados.
Trocaram olhares no escuro, ambos ofegantes e amedrontados.
George engoliu em seco e, quando dispensou a possibilidade de os
sujeitos voltarem, abandonou o esconderijo. Denis o acompanhou.
Foram caminhando devagar, receosos e ainda desacreditados em
tudo o que haviam presenciado. George constantemente levava as
mãos à cabeça.
As pernas de Denis tremiam. Cada passo se assemelhava a
um tropeço, e o seguinte apenas consequência do tropeço anterior.
— Está morto. Morto, George — arquejou com nojo. A
cabeça do homem estava parcialmente destruída pelo disparo. Boa
parte dela jazia esparramada no chão. Já cheirava mal. — Puta que
pariu, George. Puta que pariu! Puta que pariu.
Denis se ajoelhou ao lado do corpo, entorpecido pelo
remorso. Colocou sobre os ombros toda a culpa pelo ocorrido.
George olhava para os lados, temendo que algum carro pudesse
aparecer. Seria um flagrante e tanto.
— Deveríamos ter avisado a polícia! — Denis esbravejou,
fazendo das palavras uma acusação. — Isso é culpa nossa. Puta
que pariu, George. O que vamos fazer agora? Puta que pariu!
George parecia mais calmo, mas só parecia. A chuva
finalmente caiu, depois de tantas ameaças durante a semana
inteira. Não uma chuvinha passageira, muito menos uma garoa mais
violenta, mas sim uma torrencial tempestade. As gotículas
despencavam do céu escuro e, grossas como eram, chegavam a
machucar. Num segundo, o mundo estava seco e frio. No outro,
alagado como se aquele fosse o terceiro ou quarto dia seguido de
chuva.
Denis ficou assistindo, sem pestanejar, aos miolos do homem
morto serem espalhados pelo asfalto.
— Precisamos sair daqui, Denis. — Tocou o ombro do
parceiro. Ambos já se encontravam ensopados. — Vamos. Não há
nada para ser feito aqui.
Denis o encarou por um instante. Parecia chorar havia horas,
mas nenhuma lágrima tinha sido derramada. O céu chorava por ele.
Afastou a mão de George com uma sacudida de ombro.
— Precisamos ligar pra alguém, isso sim. A polícia.
— Não, não precisamos nada. Ele será encontrado. Vamos
andando antes que algum curioso resolva parar.
— Mas…
— Mas o quê, Denis?! — George estourou. — Quer ficar aqui
e explicar à polícia como nós assistimos a um homem ser morto
pelo próprio filho e sua família sequestrada? É isso o que quer?
Quer ser preso como cúmplice? Não vão nos dar uma medalha nem
vão nos chamar de heróis. Seremos tachados como bandidos.
Seremos presos. Você não vê isso? Precisamos vazar o quanto
antes.
Demorou um pouco para Denis perceber que não fazia a
menor diferença ficar ali ou não. Deu uma última olhada para o
defunto. Sua boca se apertou numa indignação silenciosa.
Lentamente, ele se levantou feito um boxeador depois de levar um
soco e por pouco não ter perdido a partida por nocaute já nos
últimos segundos da contagem.
A dupla correu na direção do carro escondido sob a árvore.
Denis passou o caminho todo choramingando sobre a culpa
deles naquilo tudo.
George passou o caminho todo calado, refletindosobre os
recentes acontecimentos. As palavras de seu parceiro chegavam ao
seu ouvido, mas ele não as ouvia. Não conseguia. O barulho dentro
de sua cabeça soava alto demais. Vozes estranhas gritavam coisas
estranhas.
No meio do percurso, resolveu parar o carro de súbito.
Tirou as mãos do volante, pousando-as nas coxas, e fitou a
estrada. Não proferiu uma única palavra. Apenas ficou observando a
chuva tamborilando violentamente contra o capô. Denis falou uma
coisa ou outra, mas ele ainda não ouvia nada. Nem sequer ouviu um
carro que passou ao seu lado buzinando alto.
Era tudo verdade, George concebeu. Todo o seu trabalho
havia findado em alguma coisa. Todo o esforço e comprometimento
serviram, pela primeira vez em toda a sua vida, a algo… Algo certo.
Pela primeira vez.
Seu suor havia lhe trazido alguma coisa que não a mais pura
e simples decepção. Pela primeira vez, os seus esforços não foram
premiados com o fracasso.
Um sorriso iluminou o seu rosto.
E o sorriso logo foi transformado em vergonha quando se
lembrou do homem abandonado na estrada.
Era tudo verdade.
CAPÍTULO 2
1.
Denis estava cheio de perguntas sem respostas. A noite
anterior havia sido dolorosa, e ficou reprisando-a na cabeça até cair
num sono profundo. Não fazia a menor ideia de quando apagara,
mas dormira um sono sem sonhos e acordara com a imagem do
homem morto na cabeça. O dia seguiu com essa imagem o
atormentando. Não importava para onde olhava ou em que tenta se
concentrar, sempre voltava a ver e a pensar no defunto. Sentia
como se estivesse congelado no tempo; parado naquele momento,
naquela noite, enquanto o mundo ao seu redor continuava a girar e
girar.
As horas passaram em alta velocidade, umas por cima das
outras, assim como os veículos passavam pela estrada na noite
anterior. E, assim como os carros, as horas foram esquecidas
quando deixadas para trás. Mesmo atordoado como se encontrava,
sabe-se lá por qual motivo, resolveu ir para o trabalho.
Passou a tarde inteira fitando os tópicos de matérias a serem
escritas. Não chegou a ligar o computador e muito menos a
escrever qualquer coisa. Quando o expediente acabou e quase
todos os funcionários abandonaram o jornal, apenas ele restava ali.
Existindo.
O som de uma porta sendo aberta soou atrás dele.
— Ei, Denis. O que ainda faz aqui a essa hora?
— Concluindo uns trabalhos.
— A não ser que esteja escrevendo com a força do
pensamento, ainda com o computador desligado… — A sra. Karla
sorriu, irônica, e colocou uma mão delicada sobre o seu ombro.
Num passado não muito distante, como costumava acontecer, teria
a puxado para perto de si, apertado sua bunda com força e dado um
longo beijo nela.
Denis apenas a encarou, os olhos desprovidos de qualquer
desejo.
— Desculpe, minha cabeça tá uma bagunça hoje.
— Sem problema, querido. Vejo que o George não apareceu
hoje. Será que vai nos agraciar finalmente com um pedido de
demissão? — ela brincou. — Se cuida. Hoje eu fiz vista grossa por
você ser o nosso melhor redator, mas amanhã eu o quero a 110%
para compensar o dia perdido.
— Sim, senhora.
Ela o beijou na bochecha e, quando a boca dela encontrou a
sua, o beijo saiu sem qualquer vontade por parte dele. Ela parou um
instante, olhando-o nos olhos.
— Tudo bem?
Denis esboçou um sorriso cansado e mentiu:
— Tudo bem. Desculpa. Não estou no clima hoje. — Fez uma
pausa. — Pensando em outras coisas…
— Posso ver — ela confessou. — Nos vemos depois, então.
Até mais.
Quando a sra. Karla saiu, Denis continuou a fitar o quadro por
mais alguns instantes. E quando percebeu quanto tempo havia
perdido naquele estado atemporal, decidiu que já era hora de ter
uma longa conversa com George.
Ligou para o parceiro uma dúzia de vezes, sem receber
nenhuma resposta além da gravada na caixa postal. George era a
única pessoa que Denis conhecia que tinha sua própria mensagem.
“Oi. Você ligou para o George; deixe o seu recado.” Dirigiu-se até o
quartinho alugado por eles para tocar a investigação, e nada de
George por ali também. Existia mais uma alternativa para tentar e,
quando chegou ao bar, não encontrou o parceiro por lá.
Denis se sentou e pediu algo para beber.
2.
George encontrou o parceiro para lá de bêbado no barzinho.
Costumavam frequentar o lugar para espairecer, quando já se
encontravam praticamente esgotados — ou entediados — depois de
tantas horas e horas correndo atrás de pistas num quartinho
minúsculo.
Denis balbuciava palavras de difícil compreensão na tentativa
de barganhar mais um copo com o garçom, que provavelmente já
tinha uma audição muito bem treinada para decifrar o
incompreensível linguajar dos bêbados. Talvez como um
farmacêutico capaz de ler os garranchos escritos pelos médicos.
Um talento bastante peculiar.
Os olhos de Denis flagraram George.
— Por que demorou tanto? — perguntou. — Venha aqui, diga
a esse bom homem para me dar mais um copo.
— Vou levá-lo para casa, Denis.
— Pra casa não.
— Quanto ele deve? — indagou ao garçom.
— Relaxe, já pagou. Tire-o daqui e não dê mais bebida a ele.
Esse daí não pode ver mais um copo hoje, senão vai parar no
hospital.
— Certo. Obrigado.
Pensou que a força seria necessária para tirá-lo dali, mas não
foi. Bastou passar a mão por baixo do braço do bêbado e guiá-lo
para fora do bar. Ele se deixou conduzir, dócil feito uma criança de
cinco anos repleta de sono. Acomodou o parceiro no banco traseiro
do carro e dirigiu.
— Por que tava enchendo a cara? — George perguntou.
Viu pelo retrovisor o sorriso de Denis, e o sorriso logo morreu,
dando espaço a uma expressão repleta de remorso.
— Não sei. — Sacudiu a cabeça. — Me pareceu uma boa. —
Denis fez uma pausa. — Foi nossa culpa, George.
3.
Denis abriu os olhos e reconheceu o quartinho alugado. Não
se lembrava de ter bebido e muito menos de como fora parar ali.
Sua cabeça latejava, e a ânsia de vômito incomodava no fundo da
garganta.
— Já era hora. — Ouviu alguém dizer.
Tentou falar, mas não encontrou a própria voz. Olhou para o
lado, e o mundo girou. Alguém colocou um balde à sua frente. Ele o
tomou nas mãos e ficou esperando pelo vômito. Esperou e esperou.
Nada aconteceu.
Enquanto George falava alguma coisa sobre ter encontrado
um manicômio, Denis voltou a cair num sono pesado.
Despertou sem saber se essa era a primeira, a segunda ou
até mesmo a terceira vez. A vontade de vomitar havia passado e o
balde não estava mais lá. Sentia cheiro de vômito. A cabeça
continuava a girar. Olhou para os lados e encontrou George
sentado, provavelmente pesquisando alguma coisa. Sua noção de
tempo se encontrava completamente deturpada.
— Que horas são? — quis saber.
— Quase duas — George respondeu.
— Noite?
— Sim.
Sentou-se na cama e ficou massageando a têmpora com as
pontas dos dedos.
— Que dor de cabeça da porra.
— Eu os encontrei. Rastreei a placa de ambos os veículos.
Um pertence a uma casa funerária bem antiga e o outro é uma
espécie de Kombi branca de manicômio.
Fechou os olhos com força e os abriu, muito devagar,
colocando-os sobre George.
— Onde?
— Não fica muito longe. Perto de uma área abandonada.
— Abandonado? — perguntou. — Abandonada?
— Sim. Ninguém vai lá há anos. Está abandonado há mais
de duas décadas. Foi comprado por um grupo desconhecido com a
promessa de que um hotel ou coisa do tipo seria construído. Acabou
não saindo do papel.
— O que vamos fazer, George?
— Ir até lá — George disse e o encarou por um longo
instante. — Quando estiver em condições de fazer qualquer coisa.
CAPÍTULO 3
1.
O dia seguinte se arrastou. George, desprovido de qualquer
disposição, resolveu perder mais um dia de trabalho. Quando
voltasse, caso tivesse o infortúnio de voltar, pretendia arranjar um
atestado ou mesmo uma desculpa capaz de satisfazer a sra. Karla
— aquela megera imprestável. Deu uma rápida passada em casa.
Havia algumas semanas que não pisava por lá e, graças a Deus,
não se deparou com a mulher, embora o receio maior fosse o de
encontrá-la acompanhada. Tomou um banho demorado, apanhou
umas roupas, uma caixinha de madeira com alguns pertences e foi
embora.Pela primeira vez em anos, sentia-se bem ao sair de casa.
Lá pelo fim da tarde, quando faltava muito pouco para o
anoitecer, a dupla encarava o Instituto Alice Bailey.
— Tem certeza de que é aqui? — o parceiro perguntou.
George acenou positivamente.
O manicômio era uma grande construção, praticamente um
condomínio, com três prédios ao todo. Dois grandes e um mais
modesto. Ainda existia uma pequena casinha destruída ao fundo.
Todas construções muito antigas e, de certa forma, assustadoras.
Olhando para as três, seria difícil deduzir qual se encontrava mais
maltratada pelo tempo e pelos cuidados negligenciados. As
paredes, talvez por um milagre, ainda se mantinham de pé. Olhando
de longe, George nutria a impressão de que qualquer vento mais
forte seria o suficiente para levar qualquer um dos prédios abaixo.
Talvez uma reles baforada do Lobo Mau, pensou.
Ficava localizado numa área praticamente abandonada da
cidade. George conhecia o lugar, todos conheciam. Ao menos uma
vez na vida todo natalense ouvia as histórias terríveis que o
cercavam: assombrações, contos bizarros e todo tipo de lorota.
A coisa só melhorava.
— Isso foi construído há quanto tempo? — indagou Denis.
— Mais de um século e meio. Foi reformado nos anos
quarenta e logo depois nos setenta, mas veio a falir no finzinho da
década de noventa, quase nos anos dois mil.
Denis franziu as sobrancelhas.
— Como um manicômio consegue falir?
George revirou o caderninho cheio de anotações. Havia
anotado quase tudo o que fora capaz de encontrar a respeito da
história daquele tenebroso manicômio. Mas eram poucas as
pessoas em Natal que não a sabiam de cor. Só as mais jovens,
como Denis.
— Não foi exatamente à falência, mas sim fechado. Rolaram
muitos boatos a respeito de maus-tratos durante os anos oitenta,
setenta e até mesmo sessenta. Nada chegou a ser realmente
confirmado. Inclusive, rolou uma investigação mais profunda por
parte da polícia e ainda assim não chegaram a encontrar nada de
irregular. Algumas pessoas acreditam que os policiais foram
comprados.
— Isso não me cheira muito bem.
— Tem mais, bem mais. Agora começa a ficar interessante.
— George desdobrou um jornal velho e entregou para o
companheiro. Depois pegou outro para si. — Dê uma olhada!
Na matéria em destaque do antigo jornal, Denis leu: “Instituto
Alice Bailey, manicômio incendiado pelos próprios pacientes numa
tentativa desesperada de alcançar a liberdade”. O título vinha
acompanhando de uma foto do local. Fumaça escapava por
algumas janelas, e era possível ver parte das chamas ainda
queimando. Carros de bombeiro se encontravam ali também, assim
como uma comitiva de curiosos. Um pequeno amontoado de corpos
jazia do lado de fora, bem no fundo da fotografia. Mais parecia lixo.
— O incêndio não foi assim tão horrível. Digo, alguns
pacientes e funcionários morreram queimados, mas apenas cerca
de 30% da propriedade foi tocada pelas chamas. — George molhou
a ponta de um dedo na boca e virou uma página. — Tudo veio à
tona depois do motim. Lobotomia, maus tratos, experimentos
bizarros, coisas satânicas e toda a merda que se pode imaginar
vinda de um lugar como esse.
Denis espremeu os olhos com força na tentativa de puxar do
fundo da memória qualquer lembrança relacionada ao evento. Havia
algo de muito familiar naquela matéria. O nome do manicômio
também não lhe era estranho.
Instituto Alice Bailey…
— Eu lembro — revelou sem tirar os olhos do jornal. —
Estava no fim do ensino médio quando tudo aconteceu. A maioria
dos pacientes que conseguiu escapar atacou os funcionários. Foi
um banho de sangue. Os seguranças abriram fogo contra eles, mas
eram muitos para serem contidos por meia dúzia de homens com
poucas armas.
— Sim, isso. Foi um verdadeiro banho de sangue. Mais de
cem mortos numa só noite. Muitos funcionários morreram. Muitos
também sumiram e, até hoje, tantos permanecem desaparecidos.
Um número enorme de pacientes e funcionários. — George fez uma
pausa. — Uma das maiores tragédias dos últimos tempos. Mas,
como eram loucos, ninguém se importou com as mortes e logo tudo
foi esquecido.
George sacudiu o jornal e leu mais algumas linhas. Aquilo
beirava o surreal. Curioso demais para o seu gosto. E se tudo
estivesse diretamente conectado com os sequestradores… seria
uma bomba e tanto. Mal conseguia conter a empolgação dentro de
si. Já imaginava seu nome estampado em dezenas de capas de
jornais diferentes — e famosos; talvez famosos mundialmente.
“George Garcia, jornalista de trinta e sete anos, depois de uma
minuciosa investigação, descobre uma série de atrocidades
cometida por um grupo de lunáticos.”
Um tênue sorriso sonhador se formou e só se desfez quando
voltou à realidade instantes depois.
— Encontrou mais alguma informação importante aí?
— Não exatamente, mas o diretor do manicômio, um tal de
Reinhard Prinston, que morreu na noite do motim, não era o dono.
— E quem era?
— Um tal de Baltazar. Não se fala muito mais a respeito dele
aqui. — Denis fez uma pausa e estudou mais alguns parágrafos. —
Precisamos pesquisar mais sobre esse nome. Tenho a impressão
de que pode ser apenas um pseudônimo ou coisa do tipo. Tem
muita coisa que não está encaixando muito bem.
George se remexeu no banco ao ouvir tal nome.
— O mesmo Baltazar que vimos naquela noite?
— Com toda certeza não. Ele teria pelo menos uns cento e
sessenta anos hoje. Segundo o que diz aqui, esse Baltazar fundou o
manicômio na década de quarenta, e já era velho. É provável que
aquele seja algum herdeiro ou coisa do tipo.
Não seria um absurdo assim tão grande caso o tal Baltazar
tivesse mesmo todos aqueles anos — ou, quem sabe, até mais,
George ousou fantasiar. O parceiro não pareceu dar muita
importância, mas, no dia do sequestro, presenciaram um homem ser
atingido em cheio por uma bala de escopeta e o viram se erguer e
caminhar como se nada tivesse acontecido instantes depois. Um
colete à prova de balas não seria o suficiente para aquilo. E ele
duvidava muito que o sujeito mascarado estivesse usando um.
Sem falar naquela fedelha assustadora. Beth.
— Bom, vou entrar — George anunciou.
— Não acho que seja boa ideia.
George apenas o encarou, dando a chance para o parceiro
se explicar. Óbvio que não era uma boa ideia. Já podia antecipar
quais questionamentos seriam levantados naquela discussão e
estava preparado para ignorar cada um deles — por mais sensatos
que pudessem parecer.
— Não sabemos se o prédio está mesmo vazio. — Ele
passou a mão nos curtos cabelos escuros. — Se formos pegos, não
há volta e esse pessoal vai continuar a cometer essas atrocidades.
Não podemos permitir.
— E é por isso que eu vou sozinho — George decretou. —
Não vou arriscar a operação inteira. Caso eu não volte…
Denis o interrompeu, visivelmente inquieto, consternado.
— Não. Não pode ser assim. Precisamos entregar tudo à
polícia. Você tá louco, cara. Não posso deixar que faça isso. Você
viu o que eles fizeram na estrada. Viu do que são capazes. Isso é
uma tremenda estupidez. Sejamos sensatos, cara. Já fizemos mais
que o suficiente. Ir além disso é um erro.
O rosto de George, antes sério, ganhou uma expressão
assustadoramente decidida. Nos olhos dele, Denis viu que nenhum
argumento seria capaz de fazê-lo repensar aquela idiotice. Aquela
loucura. A investigação podia ser comparada a uma piscina repleta
de piche negro e pegajoso; George afundava cada vez mais nela e
não demonstrava qualquer sinal de incômodo. Parecia ser seu
objetivo se afogar em toda aquela podridão. Denis se sentia
igualzinho a um bote salva-vidas, ignorado e inútil.
Seria possível salvar quem não queria ser salvo?
— Olha, Denis, com todo o respeito, comecei tudo isso. Não
vou entregar toda a minha pesquisa nas mãos das autoridades
dessa forma. Vou até o fim. É o meu nome que vai estar nas
páginas dos jornais quando a verdade sobre esses caras vier à
tona! — George suspirou e respirou profundamente por um instante.
— Veja bem, já deixei tudo preparado. Quando fomos atrás dos
caras no outro dia, deixei o meu caderno, com todas as anotações e
a nossainvestigação, no meu e-mail. Deixei programado para o
caso de eu não aparecer nas próximas semanas.
Um sorriso sem humor nasceu nos lábios de Denis. Ele
balançou a cabeça sem querer acreditar naquelas palavras — ou
como se quisesse negar a verdade nua e crua diante de si, uma
verdade inevitável. George era mesmo um filho da puta. Gostaria de
saber quando ele pretendia falar a respeito daquelas coisas.
Contudo, não era o momento apropriado para discutir aquilo.
Precisava enfiar um pouco de bom senso naquela cabeça estúpida
e calva.
— Só pode estar maluco, George. — O sorriso continuava
vivo em seu rosto, assim como a cabeça continuava balançando. —
Não posso deixar você se pôr em perigo dessa forma. Se você for…
vou contigo.
Foi a vez de George sorrir, mas só por um breve instante.
— O que eu estaria perdendo? O que tenho a perder? Mais
alguns anos naquele jornal de merda, vivendo essa vida de merda,
com nenhuma expectativa de melhora para o futuro? — indagou,
olhando bem para o companheiro. Ficou esperando Denis
responder alguma coisa e, quando ele não abriu a boca, continuou:
— Não precisamos ir os dois. Posso ir sozinho. Eu comecei isso.
Você não precisa se colocar em perigo. Fui eu quem colocou você
nessa. Não quero ser o responsável por sua vida caso algo
aconteça. Além do mais, tenho certeza absoluta que esse lugar vai
estar vazio. Não seriam loucos a ponto de ficar num local tão óbvio
— mentiu ele.
Denis balançou a cabeça amargamente, incapaz de
compreender tamanha falta de bom senso. O parceiro assinava um
atentado contra a própria vida e segurança ao optar por entrar
sozinho. Não foi capaz de dizer mais nada, muito menos de pensar.
Ele era mesmo um bote salva-vidas ignorado. Inútil.
George esticou o braço na direção do porta-luvas, abriu e
pegou uma pequena caixinha de madeira. Colocou-a sobre colo e
ergueu a tampa. De dentro, tirou um revólver velho.
— Estarei protegido — garantiu. — Vamos fazer assim: vou
entrar e, caso você escute algo suspeito… — fez uma pausa para
conferir se o revólver estava alimentado — algo como um tiro ou
qualquer coisa estranha… Ou caso eu demore muito tempo para
sair de lá… Você foge, ok? Mete o pé sem olhar pra trás.
A resposta veio com um menear de cabeça — relutante,
porém positivo.
Denis encarava a arma, perguntando se o parceiro sabia
mesmo como usá-la.
Antes de sair, George ainda disse:
— Cara, siga o plano. Se algo der errado, fuja. Não invente
de bancar o herói, por favor.
Denis voltou a manear a cabeça.
— Certo — disse.
George deu as costas e começou a caminhar.
À medida que se aproximava, o manicômio ia ficando cada
vez maior, assim como a incerteza à respeito de suas ações. No
entanto, fazendo contraponto à incerteza, havia uma empolgação
crescente. Um misto de sensações contraditórias. Um verdadeiro
guilty pleasure. A ideia de o lugar estar vazio soava tão possível
quanto a de não estar. Naquele momento, não sabia ao certo se
queria mesmo encontrar alguém ali. Torcia para dar de cara com
uma pista realmente útil para a investigação.
Mas… e se realmente estivessem ali?
E se fosse pego?
Sorriu. Fazia tempo que não se sentia tão vivo quanto
naquele momento. Quanto naquela semana, naqueles quase dois
anos de investigação. A euforia, o sabor da adrenalina circulando
em suas veias o deixou completamente extasiado. Tão saboroso e
prazeroso quanto um belo e proveitoso orgasmo também era.
George se sentia bem. Disposto. Pronto para viver.
Antes de qualquer coisa, rondou o terreno à procura de uma
luz acesa ou mesmo algum barulho. Qualquer coisa que pudesse
indicar a presença de vida ali dentro. Caminhava esperando uma
surpresa desagradável a qualquer instante. Mas ela não veio. Foi
checando as portas para saber se estavam abertas. Três tentativas
foram necessárias para encontrar uma destrancada e, já satisfeito
com o silêncio mórbido que o envolvia, resolveu entrar.
George se viu num corredor estreito e escuro, cheirando a
mofo e abandono. Por dentro, a situação parecia tão precária
quanto por fora. Sacou uma lanterna barata e observou o espaço ao
redor. Iluminou as paredes já descascadas e gastas demais para
identificar qual havia sido a cor original; iluminou quadros
desbotados e também os seus passos por sobre o carpete repleto
de irregularidades e buracos.
Encontrou duas dúzias de portas naquele corredor, nenhuma
delas aberta. Eram aquelas típicas portas de manicômio, com
janelinhas e tudo mais. Tentava iluminar ao máximo os detalhes
daquela construção, procurando por pistas ou qualquer coisa que o
fizesse crer que estava no local certo.
Só queria encontrar algo e fazer desse algo o seu furo. O seu
nome. A verdadeira ponta do iceberg.
Seguiu com passos curtos até o fim do corredor, tomando
muito cuidado para evitar os buracos no carpete. Os corredores
exalavam um cheiro estranho, muito parecido com o tão comum aos
hospitais, mas, ainda assim, completamente diferente em essência.
George não saberia explicar exatamente o motivo. Porém, o cheiro
o incomodou assim que o percebeu.
O corredor se esticava estreito, até terminar numa porta
branca. Essa, por sorte ou azar, encontrava-se aberta. Ela rangeu
baixinho quando George a empurrou. Foi introduzido numa
recepção, percebeu ao iluminar um balcão. Além dele, notou uma
mancha de sangue no chão. Ficou encarando-a por alguns
instantes, imaginando se existia havia muito ou pouco tempo. Seria
difícil deduzir.
Foi iluminando aos poucos e com calma o restante do
caminho. A luz da lanterna não alcançava muito mais que dois
metros. Por isso, George precisava se aproximar mais das coisas
caso quisesse vê-las melhor. Encontrou uma escada que descia e
outra que subia, mas, antes de escolher alguma delas, foi até o
balcão da recepção e bisbilhotou as gavetas. Encontrou um
punhado de papéis e algumas chaves. Nada que, a princípio,
pudesse servir como uma pista.
Em uma das gavetas, a mais baixa, achou uma caderneta
muito curiosa. Ela possuía uma mulher nua estampada na capinha.
Parecia-se com uma atriz famosa, de cabelo escuro e pele muito
branca, um cachimbo pendendo da boca. Até fez um breve esforço
para recordar seu nome, mas foi em vão. George abriu a caderneta
e iluminou suas letras com a lanterna. Já nos primeiros parágrafos
pôde perceber que se tratava de um diário. A maioria das páginas
se encontrava intocada. O autor, por certo, não tivera tempo
suficiente para preencher as linhas em branco com o restante da
sua história.
Os pacientes estão agitados hoje. As noites estão cada vez
mais difíceis. Eles ficam inquietos dentro de seus quartinhos, e eu
tenho medo de entregar o jantar. Na ala leste, geralmente, escuto
coisas durante a noite. Às vezes são gritos e às vezes são coisas
que nem gritos parecem ser. Berros inumanos, coisas
verdadeiramente animalescas. Tenho medo de confrontar os
“médicos” e saber que essas coisas não existem apenas na minha
cabeça.
Um relato de 1995, escrito por um tal de Maurício Norbe
poucos dias antes do incêndio e da rebelião.
Pobre coitado, George pensou depois de enfiar o pequeno
caderno dentro do bolso. Afastou-se do balcão e começou a subir os
degraus, agora com o objetivo de procurar a tal ala leste. Enquanto
subia, George parou abruptamente, achando ter ouvido alguma
coisa — como se algo muito pequeno tivesse sido derrubado no
chão. Um som muito distante. Deve ter sido o vento, decidiu, com os
pelinhos da nuca eriçados. Nos filmes, nunca é o vento, lembrou.
Os passos seguintes foram ainda mais cautelosos. Já
conseguia enxergar os pavilhões repletos de portas. As escadas
subiam até o quinto andar e, para cada andar, havia um pavilhão
recheado de quartos, ou melhor, de celas. Tinha a estranha
impressão de que a construção parecia bem maior quando olhada
por dentro, talvez por conta da péssima iluminação. Só conseguia
enxergar com precisão até onde a lanterna alcançava. O resto
aparentava ser um amontoado de sombras deformadas.
O manicômio, de fato, parecia completamente abandonado. E
mesmo assim George se sentia estranho lá dentro. O local haviaservido de palco para uma quantidade inimaginável de atrocidades e
sabe-se lá mais o quê. Vítimas esquecidas pelo tempo e, muito
provavelmente, pessoas que sofreram demais durante suas vidas —
e, também muito provável, em suas mortes.
Olhava constantemente para algumas das celas e imaginava
como teria sido a vida das pessoas que tiveram o azar de viver ali.
Não se encontrava tão excitado agora quanto estava antes de
entrar. Para ser bem honesto, começava a se sentir meio paranoico
com tudo. Imaginava que, caso movesse a lanterna muito
rapidamente, poderia se deparar com um monstro ou coisa do tipo.
Não se sentia daquela forma desde a adolescência.
E foi exatamente o que fez: girou nos calcanhares, jogando
luz para todos os lados ao mesmo tempo, sua respiração acelerada,
o coração batendo forte. E, como costumava acontecer quando
tinha doze anos, não havia nada. Absolutamente nada.
— Claro que não há nada — suspirou.
Aquele não parecia ser o mais saudável dos ambientes para
ficar sozinho. Não podia se dar ao luxo de perder a cabeça. Não
podia ficar nervoso sem qualquer motivo. Precisava manter o foco e
rezar para encontrar algo. Não deixar nada escapar.
Deu um tapinha no próprio rosto. Foi o suficiente para
recuperar a compostura.
George continuou tentando abrir algumas das portas, mas
encontrou todas muito bem trancadas. Às vezes, esforçava-se para
vislumbrar alguma coisa lá dentro, mas, mesmo com a lanterna,
nada parecia visível; os vidros das janelinhas eram escuros demais,
e a luz da lanterna não se mostrou capaz de atravessá-los. Andava
já havia algum tempo, sem um objetivo concreto, apenas esperando
algo acontecer, esperando dar de cara com qualquer coisa de seu
interesse. Explorando todas as possibilidades feito um viajante sem
rumo numa cidade desconhecida.
Durante mais algum tempo, caminhou, caminhou e caminhou,
sem nada encontrar. Depois voltou para a escada, subiu mais um
andar e voltou a checar as portas. Uma de cada vez. E fez isso
ainda com um outro andar. A esperança de que poderia se deparar
com qualquer coisa útil parecia cada vez mais distante. No entanto,
ainda havia dois prédios para vasculhar. Suspirou e, enquanto
andava pelo último dos andares, parou um instante, cansado.
Recostou-se numa grade e ali ficou por um tempo, respirando e
pensando, com o silêncio mórbido lhe fazendo companhia.
Questionava-se sobre o percurso feito até aquele momento.
Poderia muito bem ter deixado de notar uma pista qualquer. O medo
morria aos poucos, assim como a sua excitação. Já começava a
aceitar a realidade. O prédio estava vazio e as portas muito bem
trancafiadas. Muito possivelmente aquele seria mais um fracasso
para acrescentar ao seu currículo recheado de tantos outros.
Quando já se sentia à vontade para continuar, por pura sorte,
viu de soslaio uma janelinha quebrada. A lanterna, sem ter a
intenção, iluminou o local enquanto ele se endireitava. Um meio
sorriso surgiu. George se aproximou com cuidado e tentou espiar
por aquela pequena fenda — parecia grande o suficiente para
apenas um braço passar por ela. Vasculhou o lugar com os olhos,
sem encontrar nada de muito interessante. Era difícil enxergar
qualquer coisa, ainda mais sendo obrigado a dividir o espaço com a
lanterna. Passou o facho de luz de um lado para o outro, iluminando
o pequeno cômodo. Havia uma cama, uma pequena mesa e um
móvel coberto por um pano cinzento. Demorou alguns instantes com
os olhos sobre o móvel, achando estranho o fato de o terem
coberto, mas o que pareceu mais estranho foi quando ele pensou
tê-lo visto se mover com o canto dos olhos.
Ao tentar vislumbrar com mais atenção, George se
atrapalhou e acabou deixando a lanterna escorregar para dentro da
cela. Ouviu um grunhido baixo, incômodo. A lanterna iluminou um
par de pés escuros. Tentou ser rápido, mas a coisa lá dentro foi
muito mais. George teve o seu braço agarrado com força por uma
mão que mais parecia uma garra implacável. Esforçou-se ao
máximo para se desvencilhar. Não conseguiu.
Desesperado, puxou a arma e simplesmente disparou,
preenchendo o mundo inteiro com o barulho estridente. O projétil
deve ter atingido a coisa em cheio. Um grito soou alto, animalesco e
repleto de dor. Seu braço foi finalmente solto, e ele caiu para trás,
direto no chão. O pulso onde a coisa o agarrara latejava. Se
houvesse luz suficiente, teria notado a marca vermelha quase viva
na pele.
Segundos depois, ouviu a coisa chocando-se contra a porta
violentamente.
Segundos depois, ouviu o som de milhares de coisas se
chocando contra as portas violentamente.
2.
Ouviu gritos, pancadas e mais gritos e pancadas. Gritos
ensurdecedores e pancadas que, somadas umas às outras, fizeram
tremer toda a velha estrutura do manicômio. Tudo soava como um
alarme, avisando sobre convidados indesejados. Um musical
infernal tão alto quanto possível.
Da porta por onde George tentara vislumbrar o interior do
quartinho, um braço agora pendia frenético na tentativa de alcançá-
lo. O membro completamente carbonizado e asqueroso, repleto de
cicatrizes pungentes.
Num ato de puro e descontrolado desespero, George fez a
primeira escolha sensata do dia: correu. Correu sem uma lanterna
para iluminar o caminho à sua frente. Seus passos mais se
assemelhavam a tropeços sucessivos e atrapalhados. Foi
praticamente um milagre não ter tropeçado de verdade e se
acidentado. Talvez, só talvez, o medo e o pânico foram os
responsáveis por tamanha façanha.
Correu pelas escadas, saltando os degraus de dois em dois.
Logo se viu na recepção, tão atônito que nem chegou a notar a
pequena plateia ali presente, assistindo com humor ao fugitivo
acanhado. Atravessou a recepção feito um trem desgovernado e
entrou num corredor. George correu muito depressa e não demorou
para alcançar a mesma porta usada mais cedo.
Dessa vez encontrou-a fechada.
George se encostou na porta, respirando profunda e
pesadamente. Demorou a notar as três sombras que se
sobrepunham à escuridão quase no fim do corredor. Uma delas não
era alta nem forte, mas ainda assim assustava com a sua máscara
de bico pontudo e olhos estranhos. Pareciam brilhar no escuro, mas
não exatamente. Simplesmente se destacavam. Andava na sua
direção de peito aberto, sem se importar com a pistola na mão do
indesejado visitante. O próprio George se esqueceu que a segurava.
As três pararam bem na sua frente, a não mais de três
metros. Seria difícil deduzir o que mais parecia fora de controle
naquele instante: se a sua respiração ou o coração. Ambos se
encontravam num frenesi absurdo. Uma música acelerada e
desprovida de qualquer compasso.
— Jesus. Você parece estar à beira de um colapso nervoso
— observou o doutor num tom bem humorado. Possuía um sotaque
peculiar, com uma pronúncia estranha, como se fosse um
estrangeiro que já vivia no Brasil havia tempo suficiente para falar o
português com perfeição, mas incapaz de abandonar suas raízes.
— Abaixe a arma, jovem — aconselhou a criança. — Não vai
ser nada bonito caso dispare.
Ficou encarando o velho com uma espécie muito peculiar de
admiração, acompanhada por espanto e receio. Os olhos bem
abertos, ansiosos, incapazes de acreditar naquela visão. Suas
pernas tremiam, tanto pelo nervosismo quanto pela pequena
maratona. George, com toda certeza, havia batido alguma espécie
de recorde velocista. Ou ao menos supunha. Talvez, se não
houvesse uma parede sustentando-o como os braços de uma mãe,
nem sequer estaria de pé. Sentia-se anestesiado.
— Baltazar? — ele enfim perguntou.
O doutor o olhou com certo interesse.
— O próprio. Quem seria você?
George engoliu em seco e disse:
— Um curioso.
— Sua curiosidade o levou um tanto longe, hein — a criança
brincou.
Baltazar censurou a pirralha com um olhar e voltou a atenção
para o visitante.
— O que busca aqui, forasteiro? — perguntou.
George ainda lutava para controlar a respiração. Os olhos
esbugalhados, assustado. Respirar nunca fora uma atividade tão
árdua quanto naquele maldito momento.
— Respostas — respondeu. Depois de alguns segundos
silenciosos, completou: —Vim fazer algumas perguntas.
O doutor riu por um breve instante. Uma gargalhada pausada
e cheia de humor que logo morreu. Pareceu considerar suas
palavras e depois disse:
— Me acompanhe.
O velho deu as costas e foi embora.
Ficou plantado onde estava, ainda muito nervoso e sem
saber se o que fazia era, de fato, certo. De qualquer forma, não
havia mais para onde correr. Em qualquer sentido, concluiu.
— É melhor se apressar. O doutor não é lá muito paciente —
aconselhou a menininha e começou a seguir o velho.
George continuou parado, respirando profundamente. O
homem mascarado, embora Baltazar já estivesse quase no fim do
corredor, continuava plantado no mesmo lugar. Parecia esperar
alguma espécie de ordem para voltar a se mexer.
E George seguiu os passos do velho.
Quando voltou à recepção, já não se ouvia mais as milhares
de batidas contra as portas, apenas os passos produzidos pela
pequena comitiva serviam como trilha sonora. Silêncio quase
completo. O doutor seguiu na frente e os guiou até uma pequena
salinha, praticamente no fim do primeiro andar. Um local semelhante
a um escritório. Ao contrário de todo o resto do manicômio, aquela
sala jazia em perfeitas condições. Tudo se encontrava bem
organizado, com cada coisa em seu devido lugar. Baltazar
contornou uma comprida mesa que ocupava boa parte do espaço e
aconchegou-se numa poltrona confortável. Estendeu uma mão na
direção de George e indicou uma das cadeiras vazias.
— Sente-se, por gentileza.
O homem tinha uma certa pitada de elegância nos gestos,
mas, ao mesmo tempo, o sorriso sugestivo e os olhos
excessivamente interessados faziam contraponto àquela imagem.
Parecia quase impossível deduzir quem era aquele ser diante dos
seus olhos. Para George, o doutor Baltazar tanto poderia ser um
lunático religioso quanto uma espécie muito exótica de gênio. O
tempo havia pintado parte do seu cabelo de branco.
— A julgar pelo que vejo, você não é um padre — ele disse
bem devagar. — Quem seria você, George?
George se remexeu na cadeira, desconfortável. Havia
imaginado aquela conversa uma centena de vezes e, agora que se
via nela, não sabia bem como proceder. A presença do homem o
sufocava a ponto de fazê-lo perder o dom de transformar qualquer
pensamento em fala.
O doutor deixava sua impaciência evidente enquanto
tamborilava os dedos sobre a mesa num ritmo quase frenético. Por
um instante, George se obrigou a encarar o homem e voltou a
abaixar a cabeça. Baltazar franziu as sobrancelhas.
— Me sinto obrigado a confessar, sr. Baltazar — George
finalmente falou. — Estou um pouco nervoso.
— Mr. Baltazar, por gentileza.
Mr. Baltazar, George pensou, quase sentindo vontade de rir
de nervoso. Mr. Baltazar…
— Vamos, rapaz. Não tenho muito tempo. Ainda preciso dar
cabo do seu amiguinho que fugiu de carro.
— Eu me chamo George…
— O que mais, George? — Ele gesticulou com as mãos. —
Isso não é uma entrevista de emprego. Não quero saber quais são
as suas qualidades. Quero saber apenas o motivo de estar aqui.
Suas intenções.
George respirou longa e profundamente. Olhou para os pés e
depois para as mãos. Voltou a fitar Baltazar e logo desviou o olhar.
As mãos apertaram na calça jeans. Mais uma vez, respirou fundo e
só então vomitou tudo o que guardava dentro de si:
— Eu estou curioso. Gostaria de saber o que fazem aqui.
Quero saber quem vocês são. Quero saber quem caralhos é essa
menininha assustadora e quero conhecê-lo, Baltazar. Quero minhas
perguntas respondidas. Há quantos anos vocês fazem isso? Cem,
cento e cinquenta? Mais? Vocês fazem parte de uma seita maluca,
um grupo de psicopatas? Vendem órgãos no mercado ilegal? Eu
simplesmente quero saber tudo ao seu respeito. Tudo. Sem deixar
passar nada. Nem um fiozinho de cabelo sequer. Tudo, tudo, tudo.
Quando terminou de falar, George viu com o canto dos olhos
o sorriso jubiloso nos lábios do doutor.
— Estou acostumado a sequestrar pessoas, sabe? Mas essa
é a primeira vez que alguém vem até mim por livre e espontânea
vontade. — Fez uma pausa. — Ah! — deixou escapar. — Têm
aqueles que vêm com o intuito de me matar, mas não me refiro a
esse tipo de gente. Enfim. Interessante o seu caso. Mas por que eu
acreditaria em você? O seu amigo do carro pensa da mesma forma?
George engoliu em seco e maneou a cabeça negativamente.
— Não. Tenho certeza que não.
Baltazar pareceu refletir por um instante.
— Como posso acreditar em você, George?
Com os olhos sobre os do doutor, George se remexeu na
cadeira. Ajustou a postura e, pela primeira vez, tentou parecer
respeitável.
— Eu é que preciso acreditar em você — respondeu.
O sorriso do doutor se fez ainda mais largo.
— Como eu farei você acreditar em mim?
— Prove-me que você não é louco. Prove que não é só um
lunático religioso seguindo supostas ordens divinas. Quero saber se
o que fazem aqui é fruto de qualquer coisa sensata. — George
sorriu de nervoso. — Sensata, com toda certeza, não é. Mas
justificável de alguma forma.
— Bom… eu estou seguindo ordens, não exatamente divinas,
mas são ordens. — Baltazar virou sua atenção para a criança. Por
alguns instantes, George se esquecera por completo da sua
presença. — Traga nosso amigo Wallace até aqui, Beth. Por
gentileza.
Ela não pareceu feliz, mas foi mesmo assim. George,
apreensivo, e Baltazar, curioso e divertido, esperaram em silêncio o
retorno da menininha. Durante esse tempo, o doutor deixou George
muito pouco à vontade, mantendo seus olhos sobre ele, analisando-
o como se fosse uma espécie de produto numa vitrine.
Por sorte, Beth não demorou em sua jornada. Instantes
depois estava de volta, agora acompanhada.
— Boa noite, Wallace. Vejo que está com aparência
fantástica esta noite. Venha até aqui.
O estranho se prostrou ao lado de Mr. Baltazar. Um
desconforto cheio de repugnância assolou George quando viu o
rosto do homem. Os lábios eram desprovidos de carne,
praticamente uma linha reta e sem vida. O olho esquerdo
descomunalmente maior que o direito, quase saltando da órbita.
Sobre a cabeça, havia vários e vários buracos, falhas e mais falhas,
no entanto, onde restava cabelos, eles desciam até as orelhas: ralos
e aparentemente tão frágeis feito macarrão cru. Nunca havia
vislumbrado tamanha ruína num rosto antes, apenas nas
maquiagens das grandes produções hollywoodianas. Mas, além da
imagem degradada do sujeito, uma coisa incomodou George: uma
sensação de familiaridade. Sentia como se já tivesse visto o tal do
Wallace em algum lugar.
O recém-chegado puxou uma das cadeiras e se sentou. Fitou
o teto com um esboço de sorriso constrangido nos lábios. George
não conseguia tirar os olhos dele. Sentia pena, nojo e um nobre
desconforto por não ser capaz de se lembrar de onde o conhecia —
ou achava conhecer. Enquanto a conversa de Baltazar e George
seguia, ele conversava com alguém que não estava ali.
— Então, meu caro George, pode me emprestar a sua arma,
por gentileza?
O corpo inteiro de George tremeu. Mais uma vez, engoliu em
seco. E, mesmo contra todos os pedidos de cuidado gritados pelo
seu corpo, colocou a arma sobre a mesa, fazendo demasiado
esforço para não deixar transparecer o quão trêmula estava sua
mão. Baltazar, muito casualmente, apanhou a arma e entregou-a
para o recém-chegado. Ao lado de George, Beth assistia àquilo tudo
com a curiosidade de quem desfrutava de um filme incrivelmente
divertido.
— No peito, por favor.
Com mãos desajeitadas, Wallace apontou o revólver para o
próprio coração.
— Será que eu vou morrer? — ele perguntou, mas não
parecia ter feito a pergunta para ninguém ali presente. Um sorriso
nasceu novamente em seu rosto, como se alguém tivesse feito um
comentário engraçado.
Ele fitou Baltazar, e Baltazar maneou a cabeça positivamente.
Os dedos do deformado buscaram o gatilho de forma
atrapalhada. George apertou o tecido de seu jeans com mais força
ainda. Por algum motivo, ele realmente achava que aquele homem
fosse mesmo puxar o gatilho. E ele puxou…
Apenas um clique. A trava de segurança impediu o suicídio.
Ao não ouvir o disparo da arma, a expressão do pobre
coitado

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