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1 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 Saúde da Mulher III CÂNCER DE COLO DE ÚTERO Introdução: O colo uterino é dividido em ectocérvice e endocérvice. A ectocérvice é formada por epitélio escamoso estratificado e a endocérvice é formada por epitélio colunar simples ou glandular. A região de transição entre o epitélio escamoso estratificado da ectocérvice e o epitélio colunar simples ou glandular da endocérvice é denominada junção escamocolunar (JEC) ou zona de transformação e representa a área de maior suscetibilidade para o desenvolvimento de neoplasias devido à alta taxa de mitoses deste epitélio. Em mulheres que estão na menacme, o epitélio escamoso estratificado da ectocérvice é altamente proliferativo e atua como barreira contra lesões. Em crianças e mulheres que estão na pós-menopausa, o epitélio escamoso estratificado da ectocérvice geralmente é atrófico, aumentando o risco de lesões inflamatórias. As células glandulares do canal endocervical são responsáveis por secreção de muco, que tem a função de facilitar o transporte de espermatozoides até o útero e as tubas uterinas. O orifício cervical externo, visível ao exame especular, é puntiforme em mulheres nulíparas e dilatado (em forma de fenda) em mulheres que já gestaram. A junção escamocolunar (JEC) localiza-se próxima ao orifício cervical externo, com topografia variável dependendo de fatores como idade, estímulo hormonal, uso de anticoncepcionais hormonais e gestação. Assim, algumas mulheres podem apresentar ectopia do colo uterino, que caracteriza-se por exposição da junção escamocolunar (JEC) e do epitélio glandular endocervical. A junção escamocolunar (JEC) é formada por epitélio metaplásico, que não apresenta significado patológico, correspondendo apenas ao avanço fisiológico do epitélio escamoso sobre o epitélio colunar/glandular. O avanço do epitélio escamoso sobre o epitélio colunar pode causar obstrução das células glandulares, resultando na formação dos Cistos de Naboth, que correspondem às áreas de metaplasia do colo uterino. Entretanto, como a junção escamocolunar (JEC) caracteriza-se por processo constante de divisão celular, a zona de transformação está sujeita a maior risco de transformação maligna/neoplásica. O câncer de colo uterino representa o único câncer genital feminino que apresenta método de rastreamento efetivo e de baixo custo que permite a detecção e o tratamento da lesão na fase pré-maligna, ainda sob a forma de neoplasia intraepitelial cervical (NIC). Epidemiologia: O câncer de colo de útero representa a segunda neoplasia maligna ginecológica mais prevalente, correspondendo a aproximadamente 25% de todas as neoplasias malignas ginecológicas e sendo precedido apenas pelo câncer de mama. A doença apresenta maior incidência em mulheres com idade entre 40 e 50 anos, 2 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 principalmente em regiões onde o rastreamento populacional não é realizado de forma adequada. O câncer de colo uterino representa a terceira maior causa de morte por câncer em mulheres, apresenta diagnóstico acessível e de baixo busto, além de rastreamento efetivo por meio de exame citopatológico (Papanicolau), também acessível e de baixo custo. Aproximadamente 99% dos casos de câncer de colo de útero estão associados à infecção por HPV. A neoplasia maligna geralmente apresenta lesão precursora (pré-maligna) de evolução lenta denominada neoplasia intraepitelial cervical (NIC). A maioria das mulheres que desenvolvem câncer cervical não realizaram o rastreamento há ≥ 5 anos. Fatores de Risco: Os principais fatores de risco para o desenvolvimento de câncer de colo uterino associam-se à infecção por HPV, responsável por aproximadamente 99% dos casos da doença. Os principais fatores de risco são: - Infecção por HPV, especialmente por subtipos de alto risco oncogênico, como 16 e 18. - Início precoce de atividade sexual. - Grande número de parceiros sexuais. - Multiparidade. - Tabagismo, pois associa-se à alteração da resposta imune genital, com diminuição da capacidade de combate ao HPV e diminuição dos mecanismos de reparo à lesão celular induzida pelo vírus. - Imunodepressão, como infecção por HIV. - Imunossupressão. - História pessoal de ISTs, pois as ISTs frequentemente associam-se à coinfecção por HPV. - Deficiência de α1-antitripsina. - Baixo nível socioeconômico. Fisiopatologia: A evolução da infecção por HPV para câncer de colo uterino baseia-se em: - Infecção do epitélio metaplásico localizado na zona de transformação cervical. - Persistência da infecção viral, devido à falha dos mecanismos imunológicos de eliminação do vírus, com incorporação do DNA viral ao DNA da célula hospedeira. - Progressão do epitélio persistentemente infectado para lesão pré-maligna denominada neoplasia intraepitelial cervical (NIC). - Invasão da membrana basal do epitélio cervical, ou seja, evolução do carcinoma in situ para carcinoma invasor. Os 2 subtipos de HPV mais associados ao desenvolvimento de neoplasia maligna cervical são o 16 e o 18, considerados subtipos virais de alto risco oncogênico. O subtipo 16 está mais associado ao desenvolvimento de carcinoma espinocelular e o subtipo 18 está mais associado ao desenvolvimento de adenocarcinoma. Entretanto, nem todos os subtipos de HPV estão associados ao desenvolvimento de câncer de colo uterino. Os subtipos 6 e 11 estão mais associados ao condiloma acuminado, ou seja, ao desenvolvimento de verrugas genitais, apresentando baixo risco oncogênico. Prevenção: A prevenção primária do câncer de colo de útero baseia-se em vacinação contra o HPV. Há diferentes tipos de vacinas contra o HPV, como vacina bivalente (subtipos 16 e 18), vacina quadrivalente (subtipos 6, 11, 16 e 18) e vacina nonavalente (subtipos 6, 11, 16, 18, 31, 33, 45, 52 e 58). A vacina disponível no SUS é a quadrivalente, que deve ser realizada em meninas na faixa etária de 9-14 anos de idade e em meninos na faixa etária de 11-14 anos de idade, por meio de 2 doses, com intervalo de 6 meses entre uma dose e outra. Em pacientes HIV-positivos e em pacientes imunossuprimidos, a vacina quadrivalente deve ser realizada em pessoas de 9-26 anos de idade por meio de 3 doses (0, 2 e 6 meses). A prevenção secundária do câncer de colo de útero baseia-se em rastreamento com exame citopatológico (Papanicolau), objetivando detectar e tratar precocemente lesões pré-malignas (neoplasias intraepiteliais cervicais), de forma a evitar 3 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 sua progressão para câncer cervical invasor e, assim, diminuir a morbimortalidade associada à doença. Rastreamento: A colpocitologia oncótica ou exame citopatológico do colo uterino baseia-se em coleta de amostra de células do colo uterino, devendo compreender tanto células escamosas da ectocérvice quanto células glandulares da endocérvice para que a amostra seja considerada satisfatória. Segundo o Ministério da Saúde, o rastreamento do câncer de colo uterino por meio do exame citopatológico deve ser realizado em mulheres que já iniciaram a vida sexual, com idade entre 25 e 64 anos, inclusive gestantes, anualmente e, após 2 resultados consecutivos normais, a cada 3 anos. A justificativa para o intervalo de 3 anos entre os exames é a velocidade lenta de progressão das lesões, ou seja, a probabilidade de uma lesão intraepitelial cervical evoluir para carcinoma invasor em < 3 anos é muito baixa. Classificação de Papanicolau Classificação da OMS Classificação de Richart Classificação de Bethesda Classe I – – Alterações benignas Classe II – – Atipias de significado indeterminado Classe III Displasia leve NIC I Lesão intraepitelial de baixo grau (LSIL) Displasia moderada à grave NIC II e NIC III Lesão intraepitelial de alto grau (HSIL) Classe IV Carcinoma in situ NIC III Lesão intraepitelialde alto grau (HSIL) Carcinoma in situ Classe V Carcinoma invasor Carcinoma invasor Carcinoma invasor Diagnóstico Citopatológico Idade Conduta Atipias de significado indeterminado Células escamosas atípicas de significado indeterminado possivelmente não neoplásicas (ASC-US) < 25 anos Repetir em 3 anos 25-29 anos Repetir em 12 meses ≥ 30 anos Repetir em 6 meses Células escamosas atípicas de significado indeterminado não podendo excluir lesão de alto grau (ASC-H) – Encaminhar para colposcopia Células glandulares atípicas de significado indeterminado (AGC ou AGUS) – Encaminhar para colposcopia Lesão intraepitelial de baixo grau (LSIL) < 25 anos Repetir em 3 anos ≥ 25 anos Repetir em 6 meses Lesão intraepitelial de alto grau (HSIL) – Encaminhar para colposcopia Carcinoma in situ ou Carcinoma invasor – Encaminhar para colposcopia 4 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 As mulheres HIV-positivas ou imunossuprimidas devem iniciar o rastreamento após a sexarca, repetir a coleta do exame citopatológico a cada 6 meses e, após 2 resultados consecutivos normais e contagem de linfócitos T CD4+ > 200 células/mm3 em pacientes HIV-positivas, anualmente. O resultado do exame citopatológico do colo uterino apresenta várias nomenclaturas diferentes, mas a nomenclatura atualmente utilizada no Brasil é a de Bethesda. As pacientes HIV-positivas ou imunossuprimidas que apresentam alteração em resultado do exame citopatológico, independentemente da idade e da alteração citopatológica apresentada, devem ser encaminhadas para colposcopia. Pacientes que apresentam ASC-US ou LSIL e realizam novo exame citopatológico que apresenta resultado alterado também devem ser encaminhadas para colposcopia. A colposcopia baseia-se em visualização do colo uterino por meio de colposcópio, que permite o aumento de 6-40 vezes da imagem da área analisada. Na colposcopia, sempre deve-se realizar o teste com ácido acético. O ácido acético não reage com o epitélio escamoso normal do colo uterino, apenas com proteínas presentes no epitélio escamoso anormal, resultando em achado de epitélio acetobranco. Além do epitélio acetobranco, outros achados anormais do teste com ácido acético são lesões pontilhadas ou em mosaico, leucoplasia e presença de vasos sanguíneos atípicos. Quando houver a presença de qualquer uma dessas alterações à colposcopia, inclusive de epitélio acetobranco, deve-se realizar biópsia e estudo anatomopatológico. O achado mais sugestivo de neoplasia invasora é a presença de vasos sanguíneos atípicos (indicativo de angiogênese). Nos casos de neoplasia intraepitelial cervical ou de neoplasia invasora, a reação à aplicação do ácido acético geralmente é imediata e persiste por mais tempo. O teste de Schiller baseia-se em aplicação de lugol (solução de iodo), que cora de marrom-escuro as células que contêm glicogênio, ou seja, as células escamosas normais, e também cora parcialmente epitélio escamoso atrófico, epitélio escamoso imaturo e epitélio glandular, mas não cora lesões como neoplasia intraepitelial cervical e neoplasia invasora. Quando alguma área do epitélio escamoso cervical não for corada após aplicação de lugol, deve- se realizar biópsia e estudo anatomopatológico. Quando o epitélio cervical cora após aplicação de lugol, o teste é dito iodo-positivo e Schiller-negativo. Quando alguma área do epitélio cervical não cora após aplicação de lugol, o teste é dito iodo-negativo e Schiller-positivo. Após a realização do teste com ácido acético e do teste de Schiller (com lugol), avalia-se também a presença de possíveis áreas suspeitas para que se realize biópsia. Diferentemente do exame citopatológico, que avalia características celulares, o exame anatomopatológico avalia características teciduais, possibilitando determinar a extensão das lesões cervicais. Os achados do exame anatomopatológico são classificados em neoplasias intraepiteliais cervicais (NIC), lesões pré-malignas sem invasão da membrana basal, e carcinoma cervical invasor, lesão maligna com invasão da membrana basal. As neoplasias intraepiteliais cervicais são classificadas em lesões de baixo grau (NIC I) e lesões de alto grau (NIC II e NIC III). Tratamento das Neoplasias Intraepiteliais Cervicais (NIC) Lesão Conduta NIC I Colpocitologia e colposcopia semestrais por 2 anos A NIC I apresenta regressão espontânea em 60-85% dos casos NIC I persistente por ≥ 2 anos Conização 5 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 NIC II Conização NIC III Conização A conduta terapêutica inicial de NIC II e NIC III, mesmo em pacientes com prole constituída, baseia-se em conização e não em histerectomia! Portanto, o manejo das lesões intraepiteliais cervicais (NIC) baseia-se em colpocitologia (exame citopatológico), colposcopia e, às vezes, conização, que caracteriza-se por remoção cirúrgica de fragmento do colo uterino que contém a lesão. Apresentação Clínica: As neoplasias intraepiteliais cervicais e os carcinomas de colo uterino em fases iniciais geralmente são assintomáticos. As principais manifestações clínicas do carcinoma cervical invasor são: - Sangramento cervical/vaginal irregular. - Leucorreia de odor fétido. - Sinusorragia (sangramento às relações sexuais). - Dispareunia. - Caquexia. - Disúria, oligúria e perda involuntária de urina devido à formação de fístulas. - Edema de membro inferior, lombociatalgia e hidronefrose ipsilaterais ao crescimento tumoral, quando há invasão em direção à parede pélvica. Diagnóstico: O diagnóstico do câncer de colo uterino baseia-se em anamnese, exame físico ginecológico, colposcopia e biópsia da lesão cervical. Quando a paciente apresenta lesões tumorais extensas, friáveis e vegetantes, a colposcopia não é necessária, podendo ser realizada biópsia durante o exame físico ginecológico. O tipo histológico mais comum de câncer de colo uterino é o carcinoma de células escamosas, também denominado carcinoma espinocelular ou carcinoma epidermoide, representando aproximadamente 70-80% dos casos de câncer cervical. O segundo tipo histológico mais frequente de câncer de colo uterino é o adenocarcinoma, correspondendo a aproximadamente 15- 20% dos casos de câncer de colo uterino. A disseminação do câncer de colo uterino pode ocorrer por contiguidade (paramétrios, paracolpos, bexiga, ureteres e reto), por continuidade (vagina e corpo uterino), por via linfática (linfonodos paracervicais, parametriais, obturadores, ilíacos internos e externos, ilíacos comuns e para-aórticos) e/ou por via hematogênica (fígado, pulmões, cérebro e ossos). Estadiamento: O estadiamento do câncer de colo uterino é clínico e baseia-se em exame ginecológico especular e colposcópico, toque vaginal bimanual e toque retal. 6 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 A RM permite avaliar se há invasão da bexiga, do reto e/ou das vias urinárias. Além disso, realiza-se radiografia ou TC de tórax e ecografia/ultrassonografia ou TC de abdômen para investigar metástases à distância. Fatores Prognósticos: - Estadiamento: quanto mais precoce o diagnóstico, maior a possibilidade de tratamento, sobrevida e cura. - Comprometimento linfonodal: redução da probabilidade de cura se houver metástase linfonodal. - Tipo histológico: o carcinoma espinocelular apresenta melhor prognóstico que os demais tipos histológicos; o adenocarcinoma geralmente apresenta pior prognóstico. - Grau de diferenciação celular: quanto mais bem diferenciado for o tumor, melhor o prognóstico. - Diâmetro tumoral: quanto maior o tumor, pior o prognóstico. - Envolvimento parametrial: o acometimento de paramétrios associa-se a pior prognóstico. - Invasão angiolinfática ou vascular: associa- se a pior prognóstico, maior risco de recidiva e menor sobrevida. - Idade da paciente: carcinoma invasorem pacientes jovens (< 40 anos) geralmente apresenta pior prognóstico. Tratamento: O tratamento do câncer de colo uterino baseia-se em cirurgia, quimioterapia e radioterapia. O tratamento depende do estadiamento do tumor: - Estágio 0: tumor in situ (NIC III); o tratamento baseia-se em conização. - Estágio IA1: histerectomia tipo 1 (histerectomia total) OU conização, se houver desejo de gestação. - Estágio IA2: histerectomia tipo 2 (histerectomia total com remoção dos paramétrios mediais aos ureteres e do terço superior da vagina) + linfadenectomia pélvica. - Estágio IB1: histerectomia tipo 3 ou cirurgia de Wertheim-Meigs (histerectomia total com remoção total dos paramétrios e do terço superior da vagina) + linfadenectomia pélvica. - Estágio IB2: quimioterapia + radioterapia. - Estágio IIA1: histerectomia tipo 3 + linfadenectomia pélvica OU quimioterapia + radioterapia. - Estágios ≥ IIA2: quimioterapia + radioterapia. Nos casos de adenocarcinoma de colo uterino, deve-se realizar anexectomia bilateral associada à histerectomia, devido à alta taxa de recidiva anexial deste tipo histológico de tumor.
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